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Infecção experimental por Trypanosoma vivax em ovinos

Experimental infection by Trypanosoma vivax in sheep

Resumos

O presente estudo teve por objetivo avaliar as alterações clínicas, hematológicas e patológicas em ovinos infectados experimentalmente com Trypanosoma vivax, utilizando-se um isolado proveniente de bovinos infectados naturalmente no município de Catolé do Rocha, Paraíba. Quatro ovinos da raça Santa Inês foram infectados por via intravenosa com 1ml de sangue contendo 1,85x10(5) tripomastigotas de T. vivax e outros quatro ovinos foram destinados ao grupo controle. A parasitemia e a temperatura foram determinadas diariamente durante 30 dias após a infecção (dpi) e quinzenalmente dos 31 aos 90 dias. A cada 15 dias os animais foram pesados e realizados coletas de sangue para hemograma. Um ovino morreu aos 75 dpi, os demais animais do grupo infectado e do grupo controle foram sacrificados 90 dias após o início do experimento. T. vivax foi evidenciado a partir do 4º dpi em todos os ovinos infectados. A parasitemia foi constante até os 15 dias e irregular entre os 16 e 30 dias. Após o 30º dia não foram observados parasitas no sangue. Foi observada correlação linear positiva entre temperatura retal e parasitemia [Y=0,027x + 38,515; R²=0,9444 (P<0,05)]. Diferença significativa do peso entre os grupos infectado e controle foi verificada a partir do 30º ao 90º dpi. Do 30º ao 90º os animais apresentaram anemia e leucopenia. As lesões macroscópicas encontradas na necropsia foram palidez da carcaça, aumento generalizado dos linfonodos e do baço, e discreta quantidade de líquido nas cavidades peritoneal e pericárdica. Histologicamente, em todos os animais infectados foi observada miocardite multifocal mononuclear. Concluiu-se que o isolado é patogênico para ovinos. Sugere-se que a região semi-árida onde ocorreu o surto, não é endêmica para a tripanossomíase e a doença pode ocorrer se o parasita for introduzido na presença de vetores.

Infecção experimental; Trypanosoma vivax; ovinos; semi-árido


This paper has the objective to report clinical signs, hematologic changes, and macroscopic and microscopic alterations in sheep infected experimentally with Trypanosoma vivax, isolated from an outbreak in cattle in the semiarid region of the state of Paraíba, northeastern Brazil. Four Santa Inês sheep were inoculated intravenously with 1ml of blood containing 1.85x10(5) trypomastigotes. Other 4 sheep were used as control. The presence of trypanosomes in the blood and the temperature were recorded daily during the first 30 days and fortnightly from day 31 to day 90 after infection. Also fortnightly, the sheep were weighed and blood samples were obtained for hematological analysis. One inoculated sheep died 75 days after inoculation. The other 3 inoculated and the 4 control sheep were killed 90 days after the beginning of the experiment. T. vivax was observed constantly in the blood of the inoculated sheep from 4-15 days after inoculation. From day 16 to day 30 the parasitemia was lower and irregular. No trypanosomes were observed in the blood after 30 days of infection. A positive linear correlation [Y=0.027x + 38.515, R²=0.944 (P<0.05)] was found between the number of trypanosomes in the blood and body temperature. Significant differences were observed in body weight between inoculated and non-inoculated sheep from day 30 to day 90 after the experiment. From day 30 to day 90 after inoculation trypanosomes were absent or only in low numbers in the blood, and the animals showed anemia and leucopenia. Gross alterations were pale carcasses, enlarged lymph nodes and spleen, and augmented liquid in the peritoneal and pericardiac cavities. Multifocal lymphocytic myocarditis was observed histologically. It is concluded that the isolate is pathogenic to sheep. It is suggested that the semiarid region, where the outbreak occurred, is non-endemic (marginal) for trypanosomosis, and that the disease may occur if the parasite is introduced through vectors.

Experimental infection; Trypanosoma vivax; sheep; semiarid


Infecção experimental por Trypanosoma vivax em ovinos

Experimental infection by Trypanosoma vivax in sheep

Jael Soares BatistaI; Franklin Riet-CorreaI, * * Autor para correspondência. E-mail: franklin.riet@pesquisador.cnpq.br ; Rossemberg Cardoso BarbosaI; José Luis GuerraII

IHospital Veterinário, Universidade Federal de Campina Grande, Campus de Patos, Jatobá, Paraíba, PB 58700-000, Brasil IIDepto Patologia Animal, FMVZ, USP, Rua Orlando Paiva 87, São Paulo, SP 05508-000

RESUMO

O presente estudo teve por objetivo avaliar as alterações clínicas, hematológicas e patológicas em ovinos infectados experimentalmente com Trypanosoma vivax, utilizando-se um isolado proveniente de bovinos infectados naturalmente no município de Catolé do Rocha, Paraíba. Quatro ovinos da raça Santa Inês foram infectados por via intravenosa com 1ml de sangue contendo 1,85x105 tripomastigotas de T. vivax e outros quatro ovinos foram destinados ao grupo controle. A parasitemia e a temperatura foram determinadas diariamente durante 30 dias após a infecção (dpi) e quinzenalmente dos 31 aos 90 dias. A cada 15 dias os animais foram pesados e realizados coletas de sangue para hemograma. Um ovino morreu aos 75 dpi, os demais animais do grupo infectado e do grupo controle foram sacrificados 90 dias após o início do experimento. T. vivax foi evidenciado a partir do 4º dpi em todos os ovinos infectados. A parasitemia foi constante até os 15 dias e irregular entre os 16 e 30 dias. Após o 30º dia não foram observados parasitas no sangue. Foi observada correlação linear positiva entre temperatura retal e parasitemia [Y=0,027x + 38,515; R2=0,9444 (P<0,05)]. Diferença significativa do peso entre os grupos infectado e controle foi verificada a partir do 30º ao 90º dpi. Do 30º ao 90º os animais apresentaram anemia e leucopenia. As lesões macroscópicas encontradas na necropsia foram palidez da carcaça, aumento generalizado dos linfonodos e do baço, e discreta quantidade de líquido nas cavidades peritoneal e pericárdica. Histologicamente, em todos os animais infectados foi observada miocardite multifocal mononuclear. Concluiu-se que o isolado é patogênico para ovinos. Sugere-se que a região semi-árida onde ocorreu o surto, não é endêmica para a tripanossomíase e a doença pode ocorrer se o parasita for introduzido na presença de vetores.

Termos de indexação: Infecção experimental, Trypanosoma vivax, ovinos, semi-árido.

ABSTRACT

This paper has the objective to report clinical signs, hematologic changes, and macroscopic and microscopic alterations in sheep infected experimentally with Trypanosoma vivax, isolated from an outbreak in cattle in the semiarid region of the state of Paraíba, northeastern Brazil. Four Santa Inês sheep were inoculated intravenously with 1ml of blood containing 1.85x105 trypomastigotes. Other 4 sheep were used as control. The presence of trypanosomes in the blood and the temperature were recorded daily during the first 30 days and fortnightly from day 31 to day 90 after infection. Also fortnightly, the sheep were weighed and blood samples were obtained for hematological analysis. One inoculated sheep died 75 days after inoculation. The other 3 inoculated and the 4 control sheep were killed 90 days after the beginning of the experiment. T. vivax was observed constantly in the blood of the inoculated sheep from 4-15 days after inoculation. From day 16 to day 30 the parasitemia was lower and irregular. No trypanosomes were observed in the blood after 30 days of infection. A positive linear correlation [Y=0.027x + 38.515, R2=0.944 (P<0.05)] was found between the number of trypanosomes in the blood and body temperature. Significant differences were observed in body weight between inoculated and non-inoculated sheep from day 30 to day 90 after the experiment. From day 30 to day 90 after inoculation trypanosomes were absent or only in low numbers in the blood, and the animals showed anemia and leucopenia. Gross alterations were pale carcasses, enlarged lymph nodes and spleen, and augmented liquid in the peritoneal and pericardiac cavities. Multifocal lymphocytic myocarditis was observed histologically. It is concluded that the isolate is pathogenic to sheep. It is suggested that the semiarid region, where the outbreak occurred, is non-endemic (marginal) for trypanosomosis, and that the disease may occur if the parasite is introduced through vectors.

Index terms: Experimental infection, Trypanosoma vivax, sheep, semiarid.

INTRODUÇÃO

Tripanossomíases são doenças provocadas por protozoários patogênicos do gênero Trypanosoma, que têm larga distribuição e importância econômica na África, principalmente em áreas ocupadas pela mosca tsetse (Glossina spp) (Murray & Trail 1984, Gardiner 1989). A ampla distribuição geográfica de Trypanosoma vivax fora do seu local de origem, o continente africano, é atribuída a sua habilidade de adaptação à transmissão mecânica por insetos hematófagos tais como Tabanus spp e Stomoxys spp (Anosa 1983, Otte & Abuabara 1991).

Estudos morfológicos (Gardiner 1989), genéticos (Dirie et al. 1993, Ventura et al. 2001) e bioquímicos (Murray & Clarkson 1982, Dirie et al. 1993) demonstraram similaridade entre isolados de T. vivax sul-americanos com isolados do Oeste da África, que se caracterizam por apresentar alta patogenicidade. No entanto, verifica-se baixa freqüência de manifestação clínica da doença no continente americano, o que não se deve à falta de patogenicidade de T. vivax, e sim às características epidemiológicas e formas de transmissão do parasita (Stephen 1986). Por outro lado, a patogenicidade verificada em condições experimentais está relacionada a grandes quantidades de inóculo utilizados nos experimentos (Desquenes & Gardiner 1993). No entanto, Schenk et al. (2001) não induziram sinais clínicos ou alterações bioquímicas em bovinos inoculados com T. vivax, concluindo que os animais são capazes de estabelecer equilíbrio na relação parasita-hospedeiro quando em bom estado nutricional.

Embora em infecções experimentais, caprinos e ovinos são susceptíveis e desenvolvem a doença, a tripanossomíase por T. vivax nessas espécies não é um problema importante em condições naturais, mesmo em países da África onde é relatada a presença da mosca tsetse, pois raramente este vetor se alimenta em pequenos ruminantes (Jordan 1986). Na América Latina não há relatos de surtos de tripanossomíase por T. vivax em pequenos ruminantes e sim, achados casuais do parasita por ocasião de exames hematológicos (Applewaite 1990) ou detecção de anticorpos (Vokaty et al. 1993), porém, sem ocorrência da doença. Nos locais onde são relatados sinais clínicos da enfermidade, principalmente anemia, não foi descartada a possibilidade de ocorrência de doenças com sintomatologia similar, como a haemoncose (Applewaite 1990). Devido à susceptibilidade de caprinos e ovinos a tripanossomíase por T. vivax, estas espécies são freqüentemente utilizadas como modelo experimental na avaliação da virulência e patogenicidade de cepas.

Recentemente foi identificado um surto de tripanossomíase por T. vivax em bovinos leiteiros na região semi-árida do Sertão da Paraíba (Riet Correa et al. 2003, Batista 2004). O objetivo deste trabalho foi determinar a patogenicidade e os sinais clínicos associados a infecção por T. vivax em ovinos infectados com a cepa isolada de surto em bovinos.

MATERIAL E MÉTODOS

Grupos experimentais

Foram utilizados oito ovinos da raça Santa Inês, machos, com idade aproximada de 4 meses. Os animais foram mantidos em baias no Hospital Veterinário da Universidade Federal de Campina Grande, Campus de Patos, Paraíba.

Antes de serem inoculados os ovinos foram mantidos por 2 semanas em observação. Nesse período, os animais foram pesados, dosificados com anti-helmíntico e submetidos a exames clínicos e hematológicos.

Depois de constatada a higidez dos animais, realizou-se o sorteio dos mesmos para composição dos grupos experimentais. Quatro animais foram infectados com T. vivax (Ovinos 1, 2, 3 e 4), enquanto os outros foram destinados ao grupo controle (Ovinos 5, 6, 7 e 8).

Os dois grupos de animais foram submetidos a condições de manejo idênticas, alimentados à vontade com água, feno de capim "Tifton" e ainda suplementados com ração comercial na quantidade de 1,5% do peso por animal e por dia, durante 90 dias, tempo determinado para o término do experimento.

Preparo do inóculo e infecção experimental com Trypanosoma vivax

A cepa de T. vivax empregada na infecção experimental dos ovinos foi isolada do sangue de bovinos afetados durante um surto de infecção natural no município de Catolé do Rocha, Paraíba. Sangue de um bovino com parasitemia foi coletado em ácido etilenodiamino-tetracético disódico (EDTA) a 10% e imediatamente inoculada nos ovinos. Em cada animal do grupo experimental foi inoculado, via intravenosa, com 1ml de sangue contendo 1,85x105 tripomastigotas de T. vivax, estimados de acordo com o método de Brener (1961).

Exames clínicos e determinação da parasitemia

Nos animais infectados e testemunhas, diariamente, durante 30 dias após a infecção e posteriormente, quinzenalmente, do 31º ao 90º dia, foram realizados exames clínicos, sendo avaliados temperatura retal, aspecto das mucosas aparentes e volume dos linfonodos externos à palpação, assim como o comportamento e estado geral. A parasitemia foi avaliada concomitante a cada exame clínico, pela técnica descrita por Brener (1961).

Acompanhamento do peso

Após a primeira pesagem, realizada um dia antes da infecção, os animais foram pesados individualmente a cada quinze dias, por 90 dias.

Avaliação hematológica

Hemogramas completos foram realizados em todos os animais, um dia antes da infecção e a cada quinze dias após a infecção, por 90 dias. Para análises dos hemogramas foram obtidos 2ml de sangue, através de punção da jugular. As amostras foram acondicionadas em tubos esterilizados contendo 1mg/ml de EDTA. Para realização do hemograma seguiu-se a metodologia descrita por Ferreira Neto et al. (1981).

Patologia

Foram necropsiados um ovino (nº 4) morto espontaneamente no 75º dia após a infecção e todos os demais animais dos grupos infectado e controle, eutanasiados no fim do período experimental. Colheram-se fragmentos de coração, pulmão, estômago, fígado, pâncreas, baço, rins, intestino delgado, intestino grosso, parótida, paratireóide, tireóide, adrenal e linfonodos que foram fixados em solução tamponada de formol a 10%. Após a fixação, o sistema nervoso central foi cortado em secções transversais que incluíram cortes do córtex frontal, parietal, occipital e temporal, cápsula interna e núcleos da base, tálamo, mesencéfalo a altura dos tubérculos quadrigêmeos, ponte, cerebelo, pendúnculo celebelar, medula oblonga e medula cervical, torácica e lombar. Os tecidos fixados foram incluídos em parafina, cortados a uma espessura de 5 micrômetros e corados pela Hematoxilina e Eosina.

Análise estatística

Para a análise das variações do eritrograma, leucograma, temperatura e peso vivo, foi utilizado o delineamento inteiramente casualizado e realizada análise de variância, utilizando-se o teste de Tukey para comparação múltiplas das médias ao nível de 5% de probabilidade, considerando-se como parcelas os grupos infectado e controle, e como subparcela o tempo de infecção. As variáveis de temperatura e parasitemia foram submetidas à análise de regressão, utilizando-se o procedimento REG a 5% de probabilidade, do pacote estatístico do SAS (1999).

RESULTADOS

Alterações clínicas

Durante o período de adaptação, nenhuma anormalidade clínica foi observada. No grupo de animais infectados, observou-se hipertermia, de até 41,5ºC, do 7º ao 15º dpi. A partir do 15º dia a temperatura retal manteve-se dentro da normalidade e não diferiu do grupo controle (fig.01).


Todos os ovinos experimentais apresentaram entre o 20º e 40º dpi, mucosas pálidas e aumento de volume de todos os linfonodos. Dois ovinos (nºs 1 e 2) apresentaram apatia, respiração ofegante e sinais de cansaço após qualquer esforço. Um ovino (nº 4) apresentou depressão, fraqueza, anorexia e decúbito lateral, com morte aos 75 dpi.

Determinação da parasitemia

A presença de tripanossomos no sangue periférico foi observada em todos os animais do grupo infectado, todos os dias, do 4º ao 15º dpi. Maiores picos parasitêmicos foram observados entre o 7º e 13º dpi (máximo de 144 tripanossomos por ml de sangue). Do 16º ao 30º dpi houve alternância de períodos de parasitemia que, quando ocorria era de baixa intensidade. A partir do 31º dpi, não foi detectado parasitemia em nenhum dos animais (Fig.2). A análise de regressão da temperatura retal em relação a parasitemia demonstrou uma resposta linear positiva, ou seja, a medida que aumentou o número de tripanossomos no sangue periférico, houve o aumento da temperatura retal (Fig.3).



Acompanhamento do peso

A partir do 30º dpi o peso médio dos animais do grupo infectado foi significativamente menor que do grupo controle. A diferença significativa do peso entre os dois grupos permaneceu até o fim do experimento (Fig.4).


Avaliação hematológica

O eritrograma e o leucograma dos animais do grupo controle permaneceram com os parâmetros dentro da normalidade para a espécie durante o período experimental. A partir do 15º dpi, todos os animais do grupo infectado apresentaram redução significativa no número de hemáceas, do hematócrito e dos teores de hemoglobina (Fig.5, 6 e 7 ). Três ovinos deste grupo (nºs 1, 2 e 3) apresentaram leucopenia com linfocitose a partir do 30º dpi (Fig.8 e 9 ). No Ovino 4, a leucopenia foi acompanhada de eosinofilia a partir do 30º dpi.



Patologia

Na necropsia foi verificada em todos os ovinos do grupo infectado palidez da carcaça, aumento generalizado dos linfonodos, aumento de volume do baço com acentuação da polpa branca, e acúmulo de discreta quantidade de líquido amarelo citrino nas cavidades peritoneal e pericárdica. No Ovino 4 foi verificado ainda, severa infecção por Haemonchus contortus. Não foram encontradas lesões nos animais do grupo controle.

No exame histológico foi verificada hiperplasia da polpa branca do baço em todos os animais do grupo infectado. Em um ovino (nº 4) foi verificado linfadenite eosinofílica. Miocardite foi a lesão mais importante observada em todos os ovinos do referido grupo. Nos Ovinos 1, 2 e 4 a miocardite foi caracterizada por intensos infiltrados multifocais, por vezes confluentes, de células mononucleares no interstício. No Ovino 3 a miocardite foi mais discreta e caracterizou-se por pequenos focos de células monucleares no interstício. Nos Ovinos 1 e 2 a miocardite foi acompanhada de pericardite, caracterizada por extensa infiltração multifocal de células mononucleares.

DISCUSSÃO

Em condições naturais a tripanossomíase não é importante na América Latina (Stephen 1986). Nos surtos descritos nesta região não são comprovadas a elevada mortalidade e perdas econômicas verificadas na África. Um surto foi observado na Guiana Francesa em 1919 em uma fazenda leiteira, na qual altas parasitemias estiveram associadas à queda brusca da produção leiteira, anemia, perda de peso e morte de 95 de 180 vacas infectadas (Leger & Vienne 1919).

Na Colômbia em 1931 foi atribuído a Trypanosoma vivax anemia, perda de peso e enfraquecimento progressivo em bovinos que apresentaram uma enfermidade denominada localmente de "huequera" ou "cachohueco". No entanto, de 120 exames de esfregaços sangüíneos de animais que apresentavam a citada enfermidade o parasita foi observado somente em 18 animais. Os sinais atribuídos a T. vivax ocorreram em vacas paridas na época da seca, ocasião em que havia carência de pastagem, bem como alguns animais apresentavam infecções simultâneas por Anaplasma e endoparasitas (Zapata 1931). Posteriormente, em estudo de acompanhamento de animais infectados naturalmente por T. vivax na Colômbia, realizado entre 1981 e 1989, não houve apresentação clínica da enfermidade e a infecção foi caracterizada por alterações subclínicas (Otte et al. 1994). Na Guiana entre 1990 e 1992, foi comprovada a presença de antígenos e anticorpos para T. vivax em 29% de 3000 animais analisados, mas nenhum caso clínico agudo foi verificado durante a amostragem (Desquesnes & Gardiner 1993).

Um surto de tripanossomíase bovina por T. vivax foi diagnosticado na Bolívia em 1998. Nessa ocasião, o parasita foi identificado em 86,2% de 29 bovinos examinados mediante a técnica do microhematócrito por centrifugação. Os sinais clínicos observados foram febre, anemia, aborto, perda de apetite, letargia, diarréia, perda de peso e progressiva emaciação. O valor mínimo do hematócrito observado foi 17% e a média de 26% (Silva et al. 1998).

No Brasil foi diagnosticado um surto de tripanossomíase por T. vivax na região de Poconé, Estado do Mato Grosso. Dez de 29 bovinos apresentavam o parasita no sangue periférico, que foi observado mediante a técnica do microhematócrito por centrifugação e esfregaços sangüíneos da camada leucocitária. A sintomatologia relatada pelos autores consistia de febre, letargia, anemia, perda do apetite, enfraquecimento, oftalmite, disenteria, aborto e substancial perda de peso em curto espaço de tempo. Foi sugerido que T. vivax causaria perdas econômicas importantes em bovinos no Pantanal do Mato Grosso e que havia a possibilidade de disseminação do parasita pelo território nacional (Silva et al. 1996). No entanto, em trabalhos posteriores a expectativa com relação a gravidade da tripanossomíase não foi confirmada. O acompanhamento de rebanhos infectados demonstrou que nas condições epidemiológicas do Pantanal, T. vivax não é patogênico e, embora alguns animais apresentem parasitemia elevada, não há apresentação clínica da doença (Paiva et al. 2000).

Recentemente foi descrito um surto de tripanossomíase por T. vivax no Sertão da Paraíba, no qual adoeceram 64 bovinos adultos e morreram 11 de um rebanho de 130 vacas leiteiras. Entre os bezerros adoeceram 27 e morreram 5 de um total de 100 animais. O curso da doença no rebanho foi de aproximadamente 4 meses e, posteriormente, não foram observados novos casos (Batista 2004).

Apesar da pouca freqüência de surtos de tripanossomíase a observação de T. vivax em animais assintomáticos (Otte et al. 1994) e a presença de anticorpos são freqüentes em amostragens realizadas em países da América Latina (Wells & Ramirez 1977, Desquesnes & Gardiner 1989), o que sugere que T. vivax é um parasita freqüente, mas que a doença é de ocorrência rara. Contrariamente, na África, nas regiões onde há mosca tsetse a doença é muito freqüente e causa perdas econômicas importantes. Alguns fatores que podem ser responsáveis por essas diferenças são: (1) menor eficiência dos vetores mecânicos na transmissão da doença em relação à mosca tsetse; (2) ausência de diferentes seronemas de T. vivax, ao contrário do que ocorre na África onde ocorre infecção continuada por diferentes seronemas que não promovem imunidade cruzada; (3) ausência de patogenicidade de T. vivax na América Latina; e (4) a possível resistência natural de raças de bovinos da América Latina. Os resultados deste trabalho demonstram que o isolamento de T. vivax que causou infecção espontânea em bovinos no Sertão da Paraíba, é patogênico e o fato da doença espontânea ter afetado bovinos que apresentaram sinais clínicos, demonstram a susceptibilidade destes à infecção.

As alterações clínicas, hematológicas e anatomopatológicas observadas no presente estudo, em ovinos infectados experimentalmente com 1,85x105 tripanossomos por ml de sangue, confirmam a patogenicidade da cepa de T. vivax isolada do sangue de bovinos durante um surto de infecção natural no município de Catolé do Rocha, Paraíba. O curso da infecção nos ovinos pode ser dividido em duas fases: (1) a fase aguda, que persistiu por aproximadamente duas semanas e foi caracterizada por parasitemia e febre altas; e (2) a fase crônica, caracterizada por temperatura normal e parasitemia baixa ou ausente. Anemia, leucopenia com linfocitose e ausência de ganho de peso foram observados, também, durante a fase crônica.

No surto espontâneo ocorrido em bovinos no Sertão da Paraíba foi observada sintomatologia nervosa caracterizada por incoordenação, tremores musculares, opistótomo, cegueira, estrabismo lateral e hipermetria, sendo que os animais que apresentaram sintomatologia nervosa na sua maioria apresentaram recidivas clínicas e parasitológicas e morreram (Batista 2004). Os ovinos inoculados experimentalmente no presente estudo não apresentaram sintomatologia nervosa.

A ausência de ganho de peso do grupo infectado até o 60º dpi demonstra a influencia negativa da infecção por T. vivax no ganho de peso. Tal fato foi observado, também, por Camus & Martrenchar (1990) em bovinos infectados experimentalmente com cepa guianense de T. vivax. Os autores observaram redução de 17kg em relação ao grupo controle 1 mês após a infecção e a recuperação do peso somente 3 meses após o tratamento dos animais com aceturato de diminazeno (Ganaseg®).

O eritrograma dos animais do grupo infectado revelou acentuada queda na contagem de hemáceas, no hematócrito e nos teores de hemoglobina, indicando que os animais desenvolveram intensa anemia que persistiu durante todo o período experimental. A ocorrência da anemia confirma os resultados de trabalhos que relatam essa alteração hematológica como a mais freqüente observada em animais infectados naturalmente ou experimentalmente por T. vivax (Facer et al. 1982, Anosa 1983, Olabavo & Mugera 1985). A anemia provocada por T. vivax é considerada multifatorial, sendo atribuída à hemólise intra e extravascular, diminuição ou inibição da eritropoiese e hemorragias (Holmes 1987).

A leucopenia com linfocitose foi a principal característica do leucograma na fase crônica da doença nos animais do grupo infectado. Os dados verificados no presente trabalho são semelhantes aos obtidos por Espinosa & Aso (1992) que verificaram leucopenia como a principal alteração no leucograma em bovinos infectados experimentalmente com uma cepa venezuelana de T. vivax. Para esses autores a leucopenia parece ser uma ocorrência importante em infecções por T. vivax em bovinos, ovinos e caprinos.

A leucopenia e a conseqüente imunossupressão poderiam estar associadas ao aumento da sensibilidade à infecção por Haemonchus contortus e morte de um ovino aos 75º dias após a infecção. A maior predisposição à helmintose como conseqüência da infecção por T. vivax foi confirmada por Trail et al. (1993) que verificaram que bovinos infectados por T. vivax foram mais freqüentemente parasitados por helmintos e apresentaram maiores valores de ovos por grama de fezes. A presença do T. vivax em esfregaços sangüíneos de caprinos e ovinos que apresentam infecção simultânea por Haemonchus tem levado a dificuldade de avaliação do efeito primário da infecção por T. vivax, uma vez que a anemia freqüentemente relatada nos casos de infecção por T. vivax poderá estar associada à hematofagia realizada pelo citado helminto (Applewaite 1990).

Neste trabalho, todos os ovinos infectados desenvolveram sinais clínicos, não ocorrendo, portanto, infecções subclínicas. No surto de tripanossomíase em bovinos observado no semi-árido da Paraíba, o isolado de T. vivax, posteriormente utilizado na infecção experimental em ovinos, causou tanto infecções clínicas quanto subclínicas (Batista 2004). Essa diferença da doença espontânea em ovinos, com a doença experimental em ovinos deve-se, provavelmente, a que as doses inoculadas em infecções naturais são sempre menores que as inoculadas experimentalmente. Este fato confirma a afirmação de Desquenes & Gardiner (1989) de que a patogenicidade de cepas americanas em infecções experimentais está relacionada à dose inoculada.

A pesar de não serem específicos, os achados verificados durante a necropsia, caracterizados por palidez da carcaça, aumento generalizado dos linfonodos, aumento de volume do baço e acúmulo discreto de líquido no saco pericárdico, podem ajudar no diagnóstico da doença a campo. No entanto, no surto observado no Semi-Árido da Paraíba essas lesões não foram observadas em todos os animais, sendo que as principais alterações, observadas histologicamente, ocorreram no sistema nervoso central e foram caracterizadas por meningoencefalite e malacia (Riet-Correa et al. 2003, Batista 2004).

As alterações histológicas observadas no coração dos ovinos, caracterizadas por infiltrado multifocal de células mono-nucleares no interstício são semelhantes às descritas por Masake (1980) em bovinos e caprinos infectados experimentalmente por T. vivax. A importância do parasita na patogênese da cardiopatia em infecção por T. vivax foi mencionada por Kimeto et al. (1990) que, pela microscopia eletrônica do coração de bovinos infectados experimentalmente com T. vivax, detectaram o parasita no miocárdio e correlacionaram a severidade das lesões inflamatórias com a localização extravascular do mesmo.

Recebido em 6 de dezembro de 2004.

Aceito para publicação em 22 de outubro de 2005.

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    Autor para correspondência. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 2006

    Histórico

    • Aceito
      22 Out 2005
    • Recebido
      06 Dez 2004
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