Introdução
Neoplasmas em bovinos apresentam ocorrência esporádica e dados concretos obtidos na forma de levantamentos são infrequentes na literatura brasileira (Ramos et al. 2008, Lucena et al. 2011, Carvalho et al. 2014). Estudos retrospectivos são importantes no entendimento da epidemiologia, dos aspectos clínicos e patológicos facilitando, assim, o diagnóstico e a busca por prevenção e tratamento. Os dados levantados podem servir como base para a comparação dos diferentes tipos de tumores que ocorrem em bovinos em diferentes regiões do Brasil. As diferenças na frequência de um tipo particular de neoplasma entre as regiões podem sugerir que diferentes fatores ambientais estão associados com o desenvolvimento do neoplasma (Lucena et al. 2011).
De maneira geral, alguns neoplasmas são mais frequentes em bovinos, como o carcinoma de células escamosas (Carvalho et al. 2014) e o linfoma (Silva Filho et al. 2011). O conhecimento sobre essa maior frequência possibilita estudos mais detalhados sobre os neoplasmas e os fatores de risco envolvidos (Carvalho et al. 2012), propiciando, também, maior número de relatos de casos encontrados na literatura (Barros et al. 2006).
O objetivo deste estudo foi determinar os tipos de neoplasmas e sua frequência em bovinos diagnosticados no Setor de Patologia Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SPV-UFRGS), relacionando-os aos aspectos epidemiológicos.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo retrospectivo através da análise dos registros do Setor de Patologia Veterinária (SPV) de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre. O estudo abrangeu todas as amostras de bovinos da mesorregião metropolitana de Porto Alegre, que foram submetidos à necropsia, amostras encaminhadas por veterinários de campo ou provenientes de frigorífico que tiveram como diagnóstico final algum tipo de neoplasma, no período de janeiro de 2005 a dezembro de 2014. Dessas amostras foram compilados dados referentes a espécie, raça, sexo, idade, tipo de neoplasma e o sistema acometido. Em oito casos foi realizada uma nova avaliação histopatológica. Os bovinos foram classificados em três faixas de idade: jovens (0-1 ano), adultos (1-7 anos) e senis (>7 anos).
Resultados
No período do estudo foram realizadas 4.188 necropsias e exames de casos remetidos ao SPV-UFRGS para histopatologia de bovinos; 3,7% (154/4.188) desses exames tiveram diagnóstico de neoplasia. Destes, 100 casos foram a causa da morte, 41 foram achados de frigorífico e 13 casos foram de biopsias de cirurgias realizadas por veterinários de campo. A raça Holandesa foi a mais frequente (79/154), seguida por bovinos sem raça definida (39/154), Angus (6/154), Franqueira (2/154), e um exemplar de Girolando, Nelore, Devon, Simental e Charolês. Quanto ao sexo dos bovinos afetados, 81% eram fêmeas, 11,7% machos e 7,3% não tiveram o sexo mencionado no registro. Os bovinos adultos (65,6%) foram os mais frequentemente afetados, seguidos pelos senis (20,1%) e jovens (1,3%), e 13% não tiveram a idade informada.
O linfoma (Fig.1) foi o neoplasma mais frequente neste estudo (73/154), seguido pelo carcinoma de células escamosas (CCE) (28/154; Fig.2A e 2B), papiloma (9/154), melanoma (6/154) e feocromocitoma (6/154;Fig. 2C). Os demais neoplasmas observados estão representados no Quadro 1. Dentre os sistemas orgânicos, o hematopoiético foi o mais acometido (75/154), seguido pelo tegumentar (25/154), reprodutor feminino (13/154), digestório (11/154) e o endócrino (9/154). Os demais sistemas acometidos, bem como os tumores correspondentes, estão dispostos no Quadro 1.

Fig.1: Leucose enzoótica bovina (linfoma). (A) Coração com infiltração tumoral branca-amarelada em átrio e ventrículo. (B) Rim com múltiplas nodulações brancacentas na superfície capsular. (C) Parede abomasal acentuadamente espessa e com múltiplas úlceras na mucosa. Ao corte essas áreas eram formadas por tecido tumoral brancacento e homogêneo (detalhe). (D) Linfoma em espaço epidural causando compressão na medula espinhal.

Fig.2: (A) Carcinoma de células escamosas (CCE) na base da língua e em orofaringe, com formação de várias massas atingindo aproximadamente 7cm do diâmetro. (B) CCE ocular (4x3x3 cm) e em linfonodos regionais em um bovino de 10 anos. No detalhe invasão do CCE em gânglio trigeminal. (C) Feocromocitoma ao lado do rim, para comparação do tamanho. Bovino de 7 anos com massa de 20cm de diâmetro. (D) Carcinoma hepatocelular em um bovino de 3 anos, com massas multifocais a coalescentes no parênquima hepático.
Quadro 1: Localização anatômica de neoplasmas diagnosticados em bovinos pelo Setor de Patologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no período de 2005 a 2014
Localização anatômica | Tipo de neoplasma | Total | % |
Hematopoiético | Linfoma | 73 | 47,4 |
Hemangiossarcoma | 2 | 1,3 | |
Tegumentar | CCE* | 13 | 8,4 |
Papiloma | 4 | 2,6 | |
Melanoma | 6 | 3,9 | |
Carcinoma sebáceo | 1 | 0,6 | |
Sarcoma histiocítico | 1 | 0,6 | |
Endócrino | Feocromocitoma | 6 | 3,9 |
Carcinoma de córtex de adrenal | 2 | 1,3 | |
Adenoma de córtex de adrenal | 1 | 0,6 | |
Fígado e pâncreas | Carcinoma hepatocelular | 3 | 1,9 |
Colangiocarcinoma | 1 | 0,6 | |
Insulinoma maligno | 1 | 0,6 | |
Reprodutor feminino | Adecarcinoma de útero | 4 | 2,6 |
Papiloma | 3 | 1,9 | |
Adenocarcinoma de mama | 1 | 0,6 | |
Fibrossarcoma vaginal | 1 | 0,6 | |
Tumor benigno de células da granulosa | 2 | 1,3 | |
CCE vulvar | 2 | 1,3 | |
Urinário | Carcinoma de células transicionais de bexiga | 1 | 0,6 |
Fibrossarcoma renal | 1 | 0,6 | |
Carcinoma renal | 2 | 1,3 | |
CCE | 1 | 0,6 | |
Digestório | Adenocarcinoma de gl. salivar | 1 | 0,6 |
CCE | 8 | 5,2 | |
Papiloma | 2 | 1,3 | |
Peritônio | Mesotelioma maligno | 2 | 1,3 |
Respiratório | Adenocarcinoma pulmonar | 2 | 1,3 |
Nervoso | Tumor maligno de bainha de nervo periférico | 1 | 0,6 |
Ocular e periocular | CCE | 4 | 2,6 |
Carcinoma de origem não determinada | 1 | 0,7 | |
Sarcoma indiferenciado | 1 | 0,6 | |
TOTAL | 154 | 100,0 |
* CCE = carcinoma de células escamosas.
Quanto ao linfoma, 72 casos eram de leucose enzoótica bovina, com proliferação tumoral principalmente em linfonodos, coração, abomaso, rim e espaço epidural do segmento lombar da medula espinhal. Quanto à distribuição por faixa etária, bovinos adultos foram os mais acometidos, principalmente de cinco a sete anos de idade e destes, 77% eram da raça Holandesa. Um caso de leucose juvenil foi diagnosticado em uma fêmea de dois meses de idade, com nódulos tumorais em linfonodo, coração e rim.
Foram diagnosticados 28 casos de CCE localizados na pele (13/28 casos), sistema digestório (8/28), olhos e tecidos perioculares (4/28), vulva (2/28) e sistema urinário inferior (1/28). No trato digestório foram observados tumores em língua, palato, laringe, rúmen e omaso. Em alguns casos ocorreram em apenas uma destas localizações e em outros casos abrangeram mais de uma destas localizações anatômicas mencionadas. No sistema urinário, havia CCE na bexiga urinária. Em dois casos de neoplasma no trato digestório havia concomitância com papilomas, no entanto não foram contabilizados separadamente, já que o CCE era o neoplasma mais importante, por gerar sinais clínicos e metástases. Dentre todos os casos, em sete bovinos ocorreram metástases, sendo três deles para linfonodo regional, seguidas de um caso em pulmão, um em fígado, um em gânglio trigeminal e um caso com metástase em linfonodo, pulmão e coração concomitantemente.
Papilomas foram encontrados em nove bovinos; em quatro deles na pele, dois no sistema digestório e três em sistema reprodutor feminino. Os tumores melanocíticos ocorreram em seis bovinos e em dois deles ocorreram metástases, em um animal para o coração e outro para o fígado. O feocromocitoma foi diagnosticado em seis bovinos e em três destes ocorreram metástases para os pulmões e o fígado. O tumor de células da granulosa foi observado em seis vacas e carcinoma hepatocelular foi visto em um bovino (Fig.2D).
Um bovino apresentou sarcoma indiferenciado e outro bovino apresentou carcinoma de origem não determinada, o que se deve ao fato de terem sido encaminhados apenas fragmentos para exame, não descartando a possibilidade de serem metástases de outros órgãos, não encaminhados para exame histopatológico.
Discussão
A frequência de neoplasmas em bovinos foi de 3,7% dos diagnósticos, similar à encontrada em um estudo realizado na região sul do Rio Grande do Sul, com frequência de 2,22% (Ramos et al. 2008). Todavia, em outro estudo, realizado na região central do Estado do Rio Grande do Sul, a frequência de neoplasmas em bovinos foi maior que o dobro (Lucena et al. 2011), frequência esta atribuída ao número de casos CCE em trato digestório associado ao consumo crônico de Pteridium aquilinum subsp. arachnoideum, que era abundante nas pastagens. No presente estudo, o CCE localizado em trato digestivo e sistema urinário também foi associado ao consumo de Pteridium arachnoideum, conhecida popularmente por samambaia do campo, uma das plantas tóxicas mais importantes do Brasil (Tokarnia et al. 2012). Em um bovino, o CCE ocorreu no omaso, provavelmente por extensão de lesão em região de sulco ruminorreticular. O histórico deste caso é restrito por ser material enviado por veterinários de campo. A maior frequência em fêmeas neste estudo é provavelmente devido à sua maior criação em relação aos machos em sistemas de produção leiteira. Machos destinados à produção de carne geralmente são abatidos quando ainda jovens, o que mantem baixa a frequência dos neoplasmas (apenas 1,3% dos bovinos deste estudo eram jovens). A maior frequência de bovinos adultos se explica pelo fato de que bovinos geralmente são descartados antes de atingirem a idade senil.
O linfoma foi o neoplasma mais frequente neste estudo. Pode ocorrer como uma única ou múltiplas massas em locais anatômicos diferentes. Os locais mais frequentemente acometidos foram linfonodos, coração, abomaso, rim e espaço epidural do segmento lombar da medula espinhal. Em estudo realizado com 24 bovinos com linfoma foi observado que os linfonodos, o abomaso e o intestino foram os órgãos mais acometidos e apontou coração, fígado, rins e útero como os órgãos menos acometidos (Silva Filho et al. 2011). Carvalho et al. (2014) apontaram o linfoma como o segundo tumor mais frequente em bovinos no Nordeste do Brasil, atrás apenas do CCE. Em outro levantamento feito no Rio Grande do Sul foi observada maior frequência de linfomas dentre os neoplasmas de bovinos (Ramos et al. 2008). Neste estudo, 77% dos bovinos eram da raça Holandesa, o que corrobora com os dados apresentados por Lucena et al. (2011), os quais observaram que 57% dos bovinos acometidos por linfoma eram dessa raça, o que demonstra que bovinos de leite são mais suscetíveis devido ao fato da criação ser mais intensiva, o que permite maior proximidade entre os animais e requer práticas de manejo constantes, o que pode influenciar na disseminação do vírus da leucose bovina (Radostits et al. 2007, Panziera et al. 2014).
O CCE foi o segundo neoplasma mais frequente. Em um estudo feito no nordeste brasileiro, 58% dos tumores em bovinos eram CCEs localizados na pele, nos olhos e tecidos perioculares e em vulva, e foram associados à radiação solar intensa e à criação extensiva dos bovinos (Carvalho et al. 2014). A raça também influencia a ocorrência do neoplasma e justifica a quantidade de casos de CCEs cutâneos vista neste estudo, já que a maioria dos bovinos afetada era da raça Holandesa e suas cruzas, as quais apresentam maior suscetibilidade por apresentarem áreas de pele clara ou hipopigmentada (Carvalho et al. 2012, Carvalho et al. 2014). Neste estudo, foi vista metástase de CCE para o gânglio trigeminal. Carvalho et al. (2014) descrevem também cinco casos de bovinos com metástases de CCE para linfonodos, pulmão, diafragma, coração, glândula salivar parótida e veia jugular. Também já foi relatada invasão cerebral de um CCE ocular, através de nervos cranianos (Barros et al. 2006).
Os papilomas em bovinos possuem etiologia viral e por serem de fácil transmissão, são frequentemente encontrados na clínica. Porém, sua aparência macroscópica é bem conhecida pelos veterinários de campo, de forma que geralmente não os enviam para laboratórios de patologia veterinária. Papilomas no sistema digestório podem ser achados incidentais de necropsia ou frigorífico, ou vir acompanhados de CCE causado pela ingestão crônica de Pteridium arachnoideum. Nesse caso, são encontrados preferencialmente em palato, língua, esôfago e faringe (Schuch 2007). Neste estudo foram observados papilomas na língua e no rúmen sem concomitância com CCE e, por se tratarem de coletas em frigorífico, dados de histórico mais detalhados não foram obtidos. Outros papilomas desenvolvidos juntos a CCE foram contabilizados com estes. Foram registrados quatro casos de papilomatose cutânea e dois casos de lesões papilomatosas em tetos. No histórico de um dos bovinos com lesões papilomatosas cutâneas constava haver outros 14 em um total de 60 bovinos na fazenda com lesões semelhantes. É descrito que esse neoplasma pode ocorrer na forma de surtos, apesar de comumente ter morbidade baixa (Schuch 2007).
Os casos de tumores melanocíticos corresponderam a aproximadamente 4% dos tumores observados, dado semelhante a outros trabalhos, os quais relatam frequência em torno de 5 a 6% (Miller et al. 1995, Smith et al. 2002, Brito et al. 2009). Os tumores melanocíticos podem ser congênitos, desenvolvendo-se em bovinos de até dois anos de idade e em adultos (Long et al. 1981, Miller et al. 1995, Brito et al. 2009). Neste estudo, um bovino nasceu com um nódulo e os demais apresentavam idade que variava de dois a cinco anos. Também se descreve predileção por bovinos da raça Angus e de pele e pelos pigmentados (Miller et al. 1995, Brito et al. 2009). Neste caso ocorreu em um bovino Angus de dois anos de idade, o qual já apresentava uma massa desde o nascimento. Esta era pendular, de crescimento lento, com 12 cm de diâmetro na pele da região cervical ventral direita. A maioria dos bovinos era mestiça e não houve menção à pigmentação da pele do animal. Neste estudo foram encontradas metástases em dois bovinos, uma no coração e outra no fígado. Metástases em diversos órgãos foram relatadas em um caso de melanoma oral em um bovino (Brito et al. 2009).
O feocromocitoma foi o neoplasma mais frequente do sistema endócrino, com amostras de três casos de necropsias encaminhadas por veterinários de campo e três como achados de frigorífico. Os três casos de necropsia tinham metástases para os pulmões e fígado, sendo assim, responsável pela morte dos bovinos. Feocromocitoma é o neoplasma da medular da adrenal mais comum em animais, com maior frequência em bovinos e cães e raro em outras espécies (La Perle & Capen 2009). Pereira et al. (2007) descreveram dois casos de feocromocitoma em bovinos de abate no estado do Pará, sendo que em um deles havia metástase pulmonar e em linfonodos. Carvalho et al. (2014) relataram um caso de feocromocitoma em um bovino de um total de 72 bovinos com algum tipo de neoplasma diagnosticado. O número elevado de casos desse tumor neste estudo deve-se a uma rotina de envio de amostras com lesões em frigorífico para exame histológico.
Neste estudo foram observados seis casos de tumor benigno de células da granulosa, o qual foi o mais frequente no sistema reprodutor de bovinos, o que corrobora com as informações de Foster (2013) que afirma ser este o tumor ovariano mais comum para esta espécie. Geralmente é maligno em fêmeas de cães e gatos, mas em éguas e vacas frequentemente é benigno (Foster 2013). Pode ser também usado o termo “tumor do cordão sexual-estromal” devido às incertezas sobre a origem embriológica e engloba tumores originários da teca, células foliculares da granulosa e seus derivados luteinizados (MacLachlan & Kennedy 2002).