Introdução
A leptospirose é uma doença infecciosa causada por bactérias do gênero Leptospira, que acomete animais domésticos, silvestres e humanos (Ellis 1984, Draghi et al. 2011). Em humanos, a doença é endêmica em regiões tropicais com índices pluviométricos elevados e altos níveis de água subterrânea, com casos esporádicos em climas áridos e desertos (Dutta & Christopher 2005). A enfermidade é transmitida por animais infectados através do contato direto ou indireto com urina contaminada (Levett 2001, Adler & De la Peña Moctezuma 2010). A doença tem caráter ocupacional e afeta especialmente agricultores, trabalhadores de matadouros e médicos veterinários (Hartskeerl & Ellis 2011). A severidade da doença em humanos varia de acordo com o sorovar de Leptospira envolvido, idade e competência imunológica do paciente (Adler & De la Peña Moctezuma 2010).
A leptospirose é também uma doença importante em cães, sendo a quarta doença infecciosa mais letal para a espécie na região Central do Rio Grande do Sul (Fighera et al. 2008). Cães acometidos geralmente apresentam icterícia, hemorragia - principalmente nos pulmões, além de graus variados de lesões renais e hepáticas (Tochetto et al. 2012), sendo mais comum a infecção pelos sorovares Canicola e Icterohaemorrhagiae (Himani et al. 2013).
Na pecuária a doença tem grande importância por gerar perdas econômicas, principalmente, por causar problemas reprodutivos, como abortamento e infertilidade (Ellis 1984, Draghi et al. 2011). Bovinos são os principais reservatórios do sorotipo Hardjo, sendo este um importante agente causador de abortamentos na espécie, e podem ainda ser infectados por outros sorovares, como Pomona, Grippotyphosa e outros (Himani et al. 2013).
Herbívoros são importantes também na manutenção do agente no ambiente, visto que Leptospira sp. sobrevive melhor em urina alcalina (Adler & De la Peña Moctezuma 2010). Casos de leptospirose aguda em bovinos são infrequentes (Draghi et al. 2011), sendo assim, o objetivo deste estudo é descrever os achados epidemiológicos e clinicopatológicos de um surto de leptospirose em bezerros criados em resteva de arroz no município de Glorinha, Rio Grande do Sul, Brasil.
Material e Métodos
Foram necropsiados quatro bezerros (A, B, C e D); um foi encaminhado para necropsia no Setor de Patologia Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e três foram necropsiados em visita à propriedade, na qual foram também colhidos dados sobre a epidemiologia e achados clínicos da doença. Dois bezerros eram machos (Bezerros A e C) e duas fêmeas (Bezerros B e D). Fragmentos de órgãos e tecidos foram coletados e fixados em formalina 10%, e amostras de rim, fígado e pulmão foram congeladas. Foi realizada citologia através de esfregaço do baço e do encéfalo para pesquisa de Babesia spp. e Anaplasma marginale. As amostras fixadas em formalina foram processadas rotineiramente para histopatologia, incluídas em parafina, cortadas a 3μm e coradas com hematoxilina e eosina (HE). Cortes histológicos dos rins foram submetidos à técnica de impregnação por prata (Warthin-Starry).
Fragmentos de rim, fígado e pulmão dos Bezerros B, C e D foram encaminhados para PCR para identificação de Leptospira sp. A técnica de PCR foi realizada conforme o protocolo descrito por Ahmed et al. (2012), que desenvolveram uma técnica de PCR multiplex para Leptospira 16S RNA ribossomal e Leptospira patogênica pelo gene da proteína Lip 32, usando 200mM de dNTP, 1,5mM MgCl2, 10pmol de cada primer, 1x tampão da enzima e 1U de Taq polimerase. Para a reação de PCR foram empregados 5 min a 95°C, seguidos de 35 ciclos de 30 seg a 95°C, 30 seg a 58°C e 45 seg a 72°C e uma etapa final de 5 min a 72°C.
Resultados
Uma propriedade rural localizada no município de Glorinha, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, possuía um lote de 45 vacas e 39 bezerros Angus mantido em resteva (=palhada, restos culturais de lavoura) de arroz (Fig. 1). De outubro a novembro de 2014 adoeceram 13 bezerros, nove dos quais morreram. Além destes casos, três vacas abortaram, mas não foi informada a idade gestacional em que os abortamentos ocorreram. Os bovinos não eram vacinados contra leptospirose, uma vez que a doença ainda não tinha sido diagnosticada na propriedade. Os bezerros apresentaram hemoglobinúria, apatia e morte em menos de 24 horas após o início dos sinais clínicos. Os Bezerros A, B e C tinham 28 a 35 dias de idade e o Bezerro D tinha dois dias.

Fig.1. Leptospirose em bezerros criados em resteva de arroz (palhada ou restos culturais de lavoura) de arroz com áreas alagadiças em que estavam os bezerros afetados.
No exame macroscópico, a cavidade torácica do Bezerro A estava repleta de líquido avermelhado. Nos Bezerros A, B e C foram observadas mucosas, tecido subcutâneo, cavidade torácica e abdominal ictéricas, fígado alaranjado (Fig.2), pulmões com hemorragias multifocais a coalescentes, localizadas predominantemente em lobos craniais (Fig.3). No timo, no intestino delgado e no intestino grosso havia hemorragias multifocais na serosa; os rins estavam difusamente avermelhados e com hemorragias multifocais. O Bezerro D tinha pequena quantidade de sangue na porção ventral do abdômen; diafragma e pulmões com múltiplos focos hemorrágicos e encéfalo discretamente congesto.

Fig.2. Leptospirose em bezerros criados em resteva de arroz. Necropsia do Bezerro B. Cavidades torácica e abdominal com serosas ictéricas, fígado alaranjado e hemorragias pulmonares multifocais.

Fig.3. Leptospirose em bezerros criados em resteva de arroz. Necropsia do Bezerro A. Pulmões com hemorragias multifocais a coalescentes, mais acentuadas em lobos craniais.
À avaliação microscópica foram observadas hemorragia e deposição difusa acentuada de fibrina nos pulmões (Fig.4), com espessamento discreto de septos alveolares e infiltrado discreto de linfócitos, macrófagos e raros neutrófilos. No fígado havia necrose e vacuolização hepatocelular centrolobular difusa moderada, além de infiltrado linfocítico periportal discreto, colestase intra-hepática difusa moderada e quantidade moderada de hemácias nucleadas intravasculares. Nos rins observaram-se cilindros hialinos em túbulos renais e nefrite intersticial linfoplasmocítica multifocal discreta. Em timo, intestino delgado e intestino grosso havia hemorragia multifocal discreta. Os esfregaços do baço e do encéfalo foram negativos para Babesia spp. e Anaplasma marginale. A técnica de Warthin-Starry resultou negativa para Leptospira sp.

Fig.4. Leptospirose em bezerros criados em resteva de arroz. Avaliação histológica dos pulmões, demonstrando hemorragia acentuada associada à deposição multifocal de fibrina e edema difuso acentuado nos alvéolos. HE, obj.10x.
No exame de PCR, os Bezerros B e D foram positivos para Leptospira 16S RNA ribossomal e para o gene da proteína Lip 32. O resultado do sequenciamento demonstrou 99% de homologia com a sequência referência depositada no Genbank para os dois genes alvos.
Discussão e Conclusão
O diagnóstico de leptospirose em bezerros foi baseado na epidemiologia, nos achados clínicos e patológicos associados à positividade na PCR. A atividade orizícola tem grande importância econômica no sul do Brasil e ocorre, muitas vezes, associada à prática da bovinocultura. Os bovinos são mantidos em palhadas de lavouras de arroz no período pós-colheita até o preparo do solo para a safra seguinte, ou durante o descanso da lavoura, que pode variar de um a dois anos (Marchezan et al. 2003). A produção de arroz é realizada em regiões alagadiças, em que o solo apresenta alta umidade, propiciando a sobrevida de bactérias do gênero Leptospira no ambiente (Levett 2001). O pH ótimo para a sua sobrevivência é próximo a neutralidade, entre 7,2 e 7,4 (Levett 2001, Girio & Lemos 2007) e, em casos de terras destinadas ao plantio, há um maior controle do pH do solo, por meio da calagem, a fim de evitar solos muito ácidos (Marrenjo et al. 2016).
O surto ocorreu na primavera, quando a temperatura no sul do Brasil está em elevação. A leptospirose é uma doença de caráter sazonal, com pico de ocorrência nas épocas de temperaturas mais elevadas (Levett 2001). Neste caso, o surto ocorreu em bezerros mantidos na resteva de arroz, enquanto que bovinos adultos mantidos na mesma área não apresentaram sinais clínicos de doença septicêmica, o que indica maior suscetibilidade dos bovinos jovens (Yeruham et al. 1997). Na mesma propriedade em que ocorreu o surto, outros bezerros mantidos em pastagens drenadas não foram acometidos. Em diferentes países, surtos de leptospirose em humanos estão associados a contato com água contaminada por urina de rato ou de bovinos, o que evidencia a importância do ambiente na propagação da doença (Levett 2001). Sendo assim, essas bactérias penetram no organismo através das mucosas ou pele umedecida por período prolongado, bem como por pequenos cortes (Adler & De la Peña Moctezuma 2010).
Os achados clínicos e patológicos observados de hemoglobinúria, apatia e morte, com icterícia e hemorragia principalmente nos pulmões, são semelhantes aos descritos por outros autores (Yeruham et al. 1997, Draghi et al. 2011). Na infecção por Leptospira sp. as lesões resultam da liberação de toxinas bacterianas, com crises hemolíticas e septicemia, caracterizadas clinicamente por hemoglobinúria, anemia, hemorragias em mucosas e icterícia (Hunter 2004). O Bezerro D tinha dois dias de idade, o que sugere infecção transplacentária, já que esta via de transmissão é comum em bovinos e o período de incubação varia de sete a 14 dias (Girio & Lemos 2007). Três vacas abortaram. Os abortos possivelmente estavam relacionadas à infecção das vacas por Leptospira sp. pois o aborto é um dos principais problemas reprodutivos observados em bovinos adultos infectados (Draghi et al. 2011), no entanto, não foram feitos exames de fetos e dessas vacas para confirmação.
Esfregaços sanguíneos foram realizados a fim de descartar anaplasmose e babesiose, que também são causas de hemólise, anemia e icterícia, sendo que na Babesiose há também manifestação de hemoglobinúria. A técnica de impregnação pela prata (Warthin-Starry) resultou negativa, mas a doença não foi descartada, já que é comum apresentar resultados duvidosos nesta coloração (Tochetto et al. 2012).
Amostras de três dos quatro bezerros necropsiados foram encaminhadas para PCR, sendo dois com resultados positivo para Leptospira. O resultado negativo na PCR foi atribuído a possível degradação do DNA da amostra, vista a semelhança do quadro clinicopatológico com os demais casos.
Neste estudo foi diagnosticado um surto de leptospirose aguda em bezerros criados em resteva de arroz no sul do Brasil, o que torna pertinente investigar a doença quando bovinos jovens criados em locais alagadiços manifestam sinais de doença septicêmica de curso agudo. Estes achados reforçam a importância da necropsia, do exame histopatológico e da PCR para o diagnóstico de leptospirose