Introdução
A Língua Azul (LA) é uma enfermidade que acomete ruminantes, causada por um vírus (Wilson et al. 2008) pertencente ao gênero Orbivirus, da família Reoviridae e denominado vírus da língua azul (VLA) (Monaco et al. 2006, Roy 2008). É uma enfermidade infecciosa, não contagiosa, de notificação obrigatória, apresentando graves impactos sócio-econômicos e/ou sanitários, repercutindo no comércio internacional de animais e produtos de origem animal (OIE 2014).
No Brasil foram isolados dois sorotipos do vírus, o primeiro (VLA-4) de bovinos exportados para a Flórida, nos EUA (Groocock & Campbell 1982) e de ovinos leiteiros no Rio de Janeiro em 2014 (Balaro et al. 2014) e o segundo (VLA-12), de ovinos no Paraná (Clavijo et al. 2002) e no Rio Grande do Sul (Antoniassi et al. 2016). Diversos inquéritos sorológicos demonstram que a infecção ocorre em ruminantes em diversas regiões do País (Abreu 1982, Castro et al. 1992, Melo et al. 2000, Konrad et al. 2003, Costa et al. 2006, Alves et al. 2009, Nogueira et al. 2009, Tomich et al. 2009, Venditti 2009, Antoniassi et al. 2016, Souza et al. 2010, Mota et al. 2011, Dorneles et al. 2012, Pinheiro et al., 2013).
O principal vetor deste agente são os insetos hematófagos do gênero Culicoides (Zientara, Bréard & Sailleau 2006) e, há descrição de 26 sorotipos do vírus (Hofmann et al. 2008, Maan et al. 2011) identificados em áreas tropicais e subtropicais (Costa et al. 2006). Sua distribuição está restrita a áreas onde insetos adultos estão presentes e a transmissão é limitada a áreas com clima favorável (Mellor & Boorman 1995). Temperaturas entre 13 e 35°C favorecem a multiplicação de vetores, assim como clima úmido (Nogueira et al. 2009). A manifestação clínica da infecção é rara nos bovinos (Tweedle & Mellor 2002), com exceção do VLA-8 (Elbers et al. 2008).
Os bovinos são considerados sentinelas para a infecção pelo VLA, podendo desenvolver a doença de forma mais branda. Entretanto, esses animais desempenham importante papel na epidemiologia da doença por se tornar reservatórios do vírus (Adam et al. 2014, Khair et al. 2014). Diversos fatores podem afetar a disseminação do vírus para áreas livres da doença, tais como: mudanças climáticas em regiões fronteiriças com áreas enzoóticas, trânsito de animais, mudança nas características da estação chuvosa e modificação dos ventos que podem contribuir para o deslocamento de vetores (Nogueira et al. 2007).
O Estado de Pernambuco é o terceiro maior produtor de leite do Nordeste e 12º do país (CONAB 2016) e apesar da sua importância na produção leiteira ainda não foram conduzidos inquéritos epidemiológicos para LA. Desta forma, objetivou-se com este estudo determinar a ocorrência de animais positivos e os fatores de risco associados à infecção pelo VLA em bovinos na microrregião Garanhuns, Pernambuco, Brasil.
Material e Métodos
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Uso de Animais (CEUA) da Universidade Federal Rural de Pernambuco, sob o número de licença 052/2014.
Foi realizado um estudo transversal em 20 propriedades, distribuídas nos 19 municípios componentes da microrregião Garanhuns, Pernambuco, Brasil. Para compor a amostra foi considerado um total de 239.786 cabeças (IBGE 2013), prevalência esperada de 50,0% (maximização da amostra), nível de confiança de 95% e erro estatístico de 5%. Estes parâmetros forneceram um número de amostras de 384 animais (Thrusfield 2004). Foram coletadas 384 amostras sanguíneas de animais do sexo feminino, de aptidão leiteira em idade adulta, no período de março a dezembro de 2013. Os animais amostrados eram mestiços de raças zebuínas e taurinas, criados de forma extensiva e semi-intensiva.
A escolha das propriedades foi feita por conveniência e o número de animais amostrados por propriedade variou entre 10 a 29. Antes do procedimento da coleta de material biológico, foi aplicado um questionário investigativo constituído para identificar os possíveis fatores de risco. As variáveis investigadas e respectivas categorias foram: criação consorciada (sim/não); exploração (leite/leite e carne); áreas alagadas na propriedade (sim/não); áreas alagadas em propriedades circunvizinhas (sim/não); presença de insetos hematófagos (sim/não); controle de insetos (sim/não); tipo de rebanho (aberto/fechado); realiza quarentena (sim/não); manejo reprodutivo (monta natural/inseminação artificial/ambos).
As amostras sanguíneas foram colhidas por punção da veia caudal mediana, após antissepsia com álcool iodado, na quantidade de 10mL em tubos de ensaios siliconizados sem coagulante, devidamente identificados. Para obtenção do soro, as amostras foram centrifugadas por 10 minutos a 900g, e armazenadas em microtubos de polipropileno devidamente identificados.
As amostras foram submetidas ao teste de Imunodifusão em Gel de Agarose (IDGA) para pesquisa de anticorpos neutralizantes contra o VLA, utilizando o kit comercial da Veterinary Medical Research and Development (VMRD®) conforme o protocolo do fabricante.
Para o estudo dos fatores de risco associados à infecção por VLA foi realizada uma análise das variáveis de interesse, por teste de qui-quadrado de Pearson ou exato de Fisher, quando necessário, e posteriormente, uma analise de regressão logística considerando como variável dependente os resultados do IDGA (positivo ou negativo). As variáveis independentes ou explanatórias consideradas no modelo foram aquelas que apresentaram significância estatística de <0,20. Esta probabilidade foi estipulada para que possíveis fatores de risco do evento não fossem excluídos da análise (Hosmer & Lemeshow 1989). O programa EPIINFOTM 3.5.1 foi utilizado para a execução dos cálculos estatísticos, considerando como fator de risco no modelo final as variáveis que apresentaram significância estatística <0,05.
Para caracterização espacial da ocorrência, as coordenadas planas foram obtidas pelo georreferenciamento de cada propriedade por meio do Sistema de Posicionamento Global (GPS). Para o mapeamento e identificação dos pontos espaciais, os dados referenciados foram lançados no software QuantumGIS 2.8.2. Para a classificação da ocorrência (baixa, média e alta) considerou-se os percentis da pesquisa de anticorpos anti-VLB, considerou-se como baixa ocorrência as propriedades que apresentaram valores <55,0%; média, de 55-82,9% e alta >90,8%.
Resultados
Observou-se a ocorrência de 71,3% (274/384; IC 95% - 66,5% a 75,7%) de amostras positivas para detecção de anticorpos anti-VLA. Além disso, 100,0% (20/20) das propriedades possuíam ao menos um animal positivo, com ocorrências que variaram de 22,7% a 100,0% dentro dos rebanhos. Os resultados da análise de fatores de risco associados à infecção pelo VLA estão apresentados no Quadro 1. A classificação das ocorrências nas propriedades estudadas foi: baixa <55,0%; média - de 55,0-82,9%; alta >90,8% (Fig.1).
Quadro 1 Análise dos fatores de risco associados à infecção pelo VLA em rebanhos bovinos da microrregião Garanhuns, Pernambuco, 2015
Variável | N | Sorologia reagente |
Análise univariada OR (I.C. 95%) |
Valor P | Regressão logística OR (I.C. 95%) |
Valor P |
Criação consorciada | ||||||
Sim | 113 | 85 (75,2%) | 1,3 (0,8-2,1) | 0,279 | ||
Não | 271 | 186 (69,7%) | ||||
Exploração | ||||||
Leite | 261 | 168 (64,4%) | ||||
Leite e carne | 123 | 106 (86,2%) | 3,4 (1,9-6,1) | <0,001 | ||
Áreas alagadas na propriedade | ||||||
Sim | 291 | 225 (77,3%) | 3,0 (1,8-5,0) | <0,001 | 11,8 (2,5-54,5) | 0,001 |
Não | 93 | 49 (52,7%) | ||||
Áreas alagadas em propriedade circunvizinhas | ||||||
Sim | 259 | 195 (75,3%) | 1,7 (1,1-2,8) | 0,014 | ||
Não | 125 | 79 (63,2%) | ||||
Presença de insetos hematófagos | ||||||
Sim | 336 | 238 (70,8%) | ||||
Não | 48 | 36 (75,0%) | 1,2 (0,6-2,7) | 0,340 | ||
Controle de insetos | ||||||
Sim | 278 | 192 (69,1%) | ||||
Não | 77 | 65 (84,4%) | 2,4 (1,2-5,1) | 0,004 | 2,1 (1,0-4,3) | 0,033 |
Tipo de rebanho | ||||||
Aberto | 257 | 198 (77,0%) | 2,2 (1,4-3,5) | <0,001 | 2,1 (1,3-3,4) | 0,001 |
Fechado | 127 | 76 (59,8%) | ||||
Realiza quarentena | ||||||
Sim | 188 | 132 (70,2%) | ||||
Não | 141 | 101 (71,6%) | 1,1 (0,6-1,7) | 0,438 | ||
Manejo reprodutivo | ||||||
Monta natural | 272 | 185 (68,0%) | - | |||
Inseminação artificial | 41 | 39 (95,1%) | 9,1 (2,1-38,9) | 0,001 | 8,8 (2,0-37,6) | 0,003 |
Ambos | 71 | 50 (70,4%) | 1,1 (0,6-2,0) |
N = Total de amostras, OR = Odds Ratio (Razão de Chance), IC = Intervalo de Confiança.

Fig.1 Distribuição espacial da prevalência da infecção pelo VLA em rebanhos bovinos da microrregião Garanhuns, Pernambuco.
Os fatores de risco identificados foram: presença de áreas alagadas na propriedade (OR=11,8; IC 95% = de 2,5-54,5; p=0,001); não realizar controle de insetos (OR=2,1; IC 95% = de 1,0-4,3; p=0,033); rebanho aberto (OR=2,1; IC 95% = de 1,3-3,4; p=0,001) e a utilização de inseminação artificial (OR=8,8; IC 95% = de 2,0-37,6; p=0,003).
Discussão
Este é o primeiro registro da detecção de anticorpos anti-VLA em bovinos no Estado de Pernambuco. Similarmente, em outros estudos também foi relatada a presença de anticorpos anti-VLA em diversas regiões do País. No Estado de Minas Gerais, Castro et al. (1992) encontraram 76,3% de positividade em doadoras e receptoras de embrião, e Konrad et al. (2003) observaram 59,9% de positividade em matrizes (Konrad et al. 2003). No Estado de São Paulo foram observadas prevalências em bovinos de 74,1% (Venditti 2009) e 73,5% (Bernardes 2011).
Os resultados obtidos são diferentes das pesquisas desenvolvidas em outras regiões do País. Em um estudo na região Nordeste observou-se uma prevalência de 4,38% para a infecção em bovinos de ambos os sexos e diferentes idades no sertão do Estado da Paraíba (Melo et al. 2000). No Rio Grande do Sul, houve uma positividade de 0,6% em fêmeas em idade reprodutiva (Costa et al. 2006).
A diferença entre os resultados supracitados pode estar relacionada aos fatores climáticos, visto que no sertão nordestino, os baixos índices pluviométricos podem ser fatores determinantes da sazonalidade dos vetores na região (Mota et al. 2011). Outro ponto que pode ser destacado para as divergências dos resultados obtidos no presente estudo em relação as outras pesquisas realizadas em outros estados brasileiros é o planejamento amostral adotado. Apesar da amostragem ter sido realizada por conveniência os resultados encontrados são importantes para o conhecimento da infecção pelo VLA em bovinos, uma vez que esses animais podem atuar como fontes de infecção e ocasionar perdas para a produção animal. Além disso, as condições climáticas na microrregião Garanhuns são favoráveis ao desenvolvimento do vetor. De acordo com Andrade et al. (2008) essa microrregião possui temperaturas médias anuais em torno dos 20°C, podendo passar dos 30°C nas épocas mais quentes e 15°C no período mais frio, com chuvas principalmente de abril a agosto (Borges Júnior et al. 2012). Esses eventos podem contribuir para o aumento da população de insetos pelo aumento do desenvolvimento larval proporcionado pelas condições ambientais da região (Carvalho & Silva 2014).
Em relação aos fatores de risco, foi identificado que a presença de áreas alagadas está associada à infecção pelo VLA (OR=11,8; p=0,001). A presença de áreas alagadas pode aumentar os sítios de reprodução do vetor, o que tende a aumentar a presença de insetos aliada à possibilidade de novas infecções. Este evento associado à falta de higiene e manejo correto das instalações também pode contribuir para a proliferação dos vetores (Alves et al. 2009). Além disso, a falta de controle de insetos nas propriedades pode contribuir para o aumento do número de animais infectados (OR=2,1; p=0,033). Estratégias para reduzir ou eliminar a população de Culicoides na sua forma adulta ou larval deve ser utilizado para controlar ou reduzir as infecções, como a redução de locais de criação, pela drenagem de áreas alagadas (Maclachlan & Mayo 2013), utilizando inseticidas adulticidas e larvicidas, ou iscas que atraiam os insetos (Cepeda 2010). Sabe-se que o risco de estabelecimento da infecção está principalmente influenciado pela densidade populacional dos bovinos e pela presença do vetor (Tweedle & Mellor 2002).
Outro fator de risco observado foi o tipo de rebanho, onde animais procedentes de rebanhos abertos estão mais predispostos à infecção. Este evento pode estar relacionado à compra de animais sem apresentar sinais clínicos, entretanto infectados. Sabe-se que bovinos infectados pelo VLA podem apresentar viremia prolongada, sem sinais clínicos evidentes, o que facilitaria a disseminação do patógeno na presença de vetores. A movimentação de animais de uma fazenda para outra é um risco potencial e pode facilitar à propagação de patógenos entre rebanhos (Ensoy et al. 2014).
Em relação ao manejo reprodutivo, identificou-se neste estudo a prática de inseminação artificial como fator de risco. A inseminação artificial já foi identificada em outros estudos como fator de risco associados a outras infecções (Almeida et al. 2013, Chiebao et al. 2015). Estudos indicam a presença e virulência do agente em amostras de sêmen, sendo necessária a certificação negativa para sua comercialização (Vanbinst et al. 2010). Ressalta-se que esta variável deve ser analisada com cautela, visto que centrais de inseminação utilizam sêmens testados para diferentes patógenos e são considerados seguros. O problema pode estar relacionado à utilização de sêmen na inseminação artificial sem o devido atestado sanitário.
A transmissão do VLA é muito dinâmica e extremamente difícil de ser combatida, a menos que as regiões de risco de transmissão estejam preparadas para fornecer indicadores epidemiológicos, incluindo informações sobre sazonalidade e hábitos do vetor (Carpenter et al. 2009). Surtos de LA podem interromper ou mesmo impedir a circulação e o comércio de bovinos, podendo ocasionar impactos econômicos e sociais para as regiões afetadas. Limitar a propagação viral é a principal meta dos programas de controle para a doença (Maclachlan & Mayo 2013).
Conclusão
Conclui-se que a infecção pelo VLA ocorre em bovinos na área estudada. Desta forma, sugere-se que medidas de controle baseadas no manejo higiênico-sanitário e biosseguridade sejam implantadas para evitar a propagação do vírus, tais como: eliminação de áreas alagadiças, controle de insetos, utilizar sêmen na inseminação artificial com atestado sanitário, realizar exames sorológicos ao adquirir animais