Introdução
Babesiose cerebral é uma enfermidade causada pelo protozoário intraeritrocitário Babesia bovis, transmitido pelo carrapato Rhipicephalus (Boophilus) microplus (Amorim et al. 2014). O vetor R. microplus, está amplamente distribuído nas áreas tropicais e subtropicais entre as latitudes 32oN e 32oS (Pereira 2006).
A infecção por B. bovis pode induziro sequestro de eritrócitos parasitados nos capilares cerebrais resultando em sinais neurológicos como hiperexcitabilidade, incoordenação motora, opistótono, tremores musculares, paralisia dos membros pélvicos, movimentos de pedalagem, andar em círculos, cegueira e agressividade, sendo usualmente fatal. Esse fato faz com que a babesiose cerebral possa ser confundida com outras doenças que afetam o sistema nervoso central de bovinos, inclusive com a raiva (Rodrigues et al. 2005).
O Rio Grande do Sul, devido as condições climáticas que determinam períodos de ausência de infestação dos animais pelo ácaro e consequentemente período sem exposição aos agentes da tristeza parasitária bovina (TPB), é considerado área de instabilidade enzoótica para o R. microplus. A falta do contato dos animais com esses agentes diminui a imunidade dos bovinos contra a doença e ainda, determinam níveis insuficientes de anticorpos para promoverem adequada imunidade colostral aos bezerros (Osaki et al. 2002, Farias 2007).
O objetivo do presente estudo foi descrever os aspectos epidemiológicos e clínico-patológicos observados em um surto de babesiose cerebral em bezerros com até 25 dias de idade, na região sul do Rio Grande do Sul.
Material e Métodos
Foi recebido no Laboratório Regional de Diagnóstico (LRD) da Faculdade de Veterinária da Universidade Federal de Pelotas (LRD/ UFPel), um bezerro, macho, da raça Hereford, com 25 dias de idade, proveniente de uma propriedade que apresentava um surto de mortalidade em bezerros com menos de quatro semanas de vida. Os dados clínicos e epidemiológicos foram obtidos com o veterinário de campo responsável pela propriedade e o proprietário do rebanho. A necropsia foi realizada e amostras de todos os órgãos incluindo o sistema nervoso central foram fixados em formalina tamponada 10%, processados rotineiramente e corados com hematoxilina e eosina (HE) para avaliação histológica. Imprints de córtex telencefálico, baço, fígado e rins foram realizados e corados por Giemsa para pesquisa de hematozoários.
Resultados
O surto ocorreu no município de Dom Pedrito, Rio Grande do Sul (Latitude 30°58’58”S e Longitude 54°40’23”W). Em fevereiro de 2015 foram compradas 42 novilhas prenhes, da raça Hereford oriundas de Santana do Livramento, RS (Latitude 30o53’27”S e Longitude 55o31’58”W). Destas, 40 pariram entre os dias 15 de março e 10 de maio de 2015 e 20 (50%) bezerros morreram entre o 7º e 25º dias de idade. Sinais clínicos de apatia e depressão foram observados em sete animais (35%) e treze bezerros (65%) morreram subitamente, sem apresentar sinais clínicos prévios. Na necropsia do bezerro encaminhado ao LRD/UFPel observou-se mucosas pálidas, hemoglobinúria, baço aumentado de tamanho e o fígado estava alaranjado com acentuação do padrão lobular e aumentado de volume. A bile estava espessa e grumosa. No sistema nervoso central havia congestão acentuada do córtex telencefálico (Fig.1). Em esfregaços de fígado, baço e SNC corados por Giemsa e em cortes histológicos do córtex telencefálico corados pela técnica de hematoxilina e eosina, foram observados capilares repletos de hemácias, com inúmeras formas parasitárias de Babesia bovis (Fig.2 e 3).

Fig.1. Babesiose cerebral em bezerros. Córtex telencefálico e cerebelo com marcada coloração vermelho-cereja. No detalhe evidencia-se coloração vermelho-cereja da substância cinzenta do encéfalo.

Fig.2. Babesiose cerebral em bezerros. Capilares do córtex telencefálico repleto por eritrócitos parasitados por Babesia bovis. Coloração de Giemsa, obj.100x.

Fig.3. Babesiose cerebral em bezerros. Observam-se numerosos eritrócitos do córtex telencefálico parasitados por Babesia bovis. HE, obj.40x.
Histologicamente havia congestão, eritrofagocitose e hemossiderose no baço. No fígado havia congestão e necrose centrolobular. Os rins estavam congestos e havia nefrose hemoglobinúrica. O SNC estava acentuadamente congesto e nos capilares cerebrais havia numerosas hemácias parasitadas com um ou dois parasitas basofílicos que mediam menos de 1µm cada.
Discussão e Conclusão
O diagnóstico de babesiose cerebral em bezerros foi realizado com base nos dados epidemiológicos, sinais clínicos, lesões macroscópicas e pela observação de eritrócitos parasitados por Babesia bovis em capilares do encéfalo. No presente estudo, chama a atenção que a babesiose cerebral foi observada na forma de surto, com mortalidade de 100% dos bezerros afetados, no período do outono. Altas taxas de mortalidade pela doença em bezerros nos primeiros meses de vida é raramente descrita na literatura (Trindade et al. 2011), sendo na maioria das vezes poucos casos isolados de mortalidade por B. bovis em bezerros nas primeiras semanas de vida (Kessler et al. 1983, Bracarense et al. 2001, Silva et al. 2007, Santarosa et al. 2013, Moreira et al. 2015).
A morbidade e mortalidade por tristeza parasitária bovina são significativamente maiores em bovinos com mais de 10 meses de idade, pois os bezerros são protegidos por imunidade não específica nos primeiros meses de vida (Folly et al. 2009). Infecção intrauterina por Babesia spp. é rara (Bracarense et al. 2001) e casos de TPB em bezerros nos primeiros meses de vida é incomum (Santarosa et al. 2013). O período da morte dos bezerros desse estudo coincide com a queda do nível de proteção colostral, que ocorre a partir dos 20 dias de idade (Silva et al. 2007). Além disso, a imunidade passiva de bovinos pode ser afetada por fatores ambientais, que prejudicam os níveis séricos de imunoglobulinas e os deixam mais suscetíveis a infecções (Stott et al. 1976). Provavelmente a baixa imunidade colostral juntamente com a exposição a uma alta infestação por carrapatos positivos para B. bovis, culminaram na ocorrência da babesiose cerebral nos bezerros deste estudo. De acordo com o veterinário responsável, o local de origem dos animais (Santana do Livramento) tinha histórico de pouca infestação por carrapato quando comparado à propriedade de destino, que possui campos com alta infestação por Rhipicephalus (Boophilus) microplus. Ainda, o lote acometido era composto por novilhas de primeira cria. Vacas jovens ao parir produzem menos leite e desmamam bezerros mais leves do que as vacas mais velhas (Fagundes et al. 2004). O insuficiente aporte nutricional dos animais é um fator relacionado a casos de TPB (Silva et al. 2007).
A infecção por B. bovis pode causar sinais clínicos neurológicos, como incoordenação, hiperexcitabilidade, cegueira e agressividade (Almeida et al. 2006, Antoniassi et al. 2009). Em animais muito jovens é difícil distinguir sinais de agressividade e hiperexcitabilidade, pois esses são instintivamente mais reativos do que animais mais velhos. Entretanto, nesse estudo os animais apresentaram sinais clínicos de apatia e depressão e 65% dos animais, morreram subitamente. Em um estudo sobre morte súbita em bovinos na mesma região, os autores mencionam que babebsiose cerebral é uma das principais causas desse tipo de morte em bovinos (Estima-Silva et al. 2016).
Na região sul do Rio Grande do Sul, babesiose cerebral é responsável por altas taxas de morbidade e mortalidade em bovinos adultos (Almeida et al. 2006, Schild et al. 2015). Entretanto, em áreas de instabilidade enzoótica a babesiose cerebral deve ser considerada em casos de morte em bezerros nas primeiras semanas de vida, pois apesar de incomum nessa faixa etária, babesiose cerebral em bezerros reflete em prejuízos econômicos aos produtores, e não pode ser uma doença negligenciada no diagnóstico em locais onde a tristeza parasitária bovina é endêmica