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Disponibilidade de frutos e a dieta de Lycalopex vetulus (Carnivora - Canidae) em um cerrado de Mato Grosso, Brasil

Fruit availability and the diet of Lycalopex vetulus (Carnivora - Canidae) in a cerrado vegetation of Mato Grosso, Brazil

Resumos

A frutificação de 41 espécies consideradas como alimentos potenciais para mamíferos foi acompanhada mensalmente durante os anos de 1985 e 1986 e comparada com a dieta frugívora da raposa-do-campo (Lycalopex vetulus) em uma área de cerrado próxima ao Parque Nacional de Chapada dos Guimarães. O padrão de frutificação foi sazonal, com maior disponibilidade de frutos no começo da estação seca e começo da estação chuvosa. Hancornia speciosa, Rauwolfia sp. e Solanum lycocarpum apresentaram um padrão longo (nove a 12 meses) de frutificação, enquanto Guettarda viburnioides e Mouriri elliptica, um padrão curto (cinco a oito meses). Setenta por cento das espécies com frutos listados como alimentos potenciais foram consumidos por L. vetulus. Apesar do grande número de espécies utilizadas, um percentual pequeno (26%) de frutos foi consumido com freqüência acima de 10%. O consumo de frutos pela raposa foi oportunístico, em geral coincidindo com o padrão de frutificação na área de estudo. H. speciosa e S. lycocarpum foram consideradas espécies importantes na dieta de L. vetulus, desde que proporcionaram fontes alimentares disponíveis ao longo do ano, inclusive em períodos de baixa disponibilidade como durante o pico da estação seca. Alterações na freqüência de consumo de certas espécies de frutos, como a substituição de uma espécie de fruto por outra, parecem refletir estados de saciação da raposa-do-campo e interesse por novos frutos atrativos. Aparentemente, acessibilidade, forte odor e conteúdo energético são características dos frutos que determinam preferências primárias da raposa-do-campo por determinadas espécies. Devido ao grande número de diferentes tipos de frutos consumidos e à elevada freqüência de sementes intactas nas fezes durante diferentes períodos do ano, L. vetulus pode ser considerado um dispersor potencial na área de estudo.


The fruiting phenology of 41 species known as potential food for mammals was monitored monthly during the period of 1985 and 1986, and compared with the frugivorous diet of the hoary fox (Lycalopex vetulus) in a cerrado area near Chapada dos Guimarães National Park, Mato Grosso, Brazil. The fruiting pattern was seasonal, with peaks of greater availability in the beginning of dry and wet seasons. Hancornia speciosa, Rauwolfia sp. and Solanum lycocarpum showed a long (nine to 12 months) fruiting pattern, while Guettarda viburnioides and Mouriri elliptica a short pattern (five to eight months). Seventy percent of the fruit species were eaten by the hoary fox. Despite the large number of fruit species consumed, a small percentage (26%) of these species reaches 10% of occurrence frequency in the fox scats. The consumption of fruits by the hoary fox was opportunistic, generally consistent with the seasonal fruiting pattern in the study area. H. speciosa and S. lycocarpum were considered the most important fruit species in the diet of the hoary fox, since they give sources of alternative food year round, including periods of low availability of other fruits, like the peak of dry season. Changes in the intensity of fruit used by the hoary fox, like the replacement of some species by others, seem to show states of satiation and interest for new atractive fruits. Apparently, accessibility, strong smell and energetic content are features of the fruits that determine primary preferences for some species. The role of the hoary fox as an important agent to disperse fruits in the cerrado may be suggested by the large number of fruit species eaten, and by the presence of undamaged seeds in the scats.

Fruit availability; cerrado; diet of Lycalopex; Mato Grosso


Disponibilidade de frutos e a dieta de Lycalopex vetulus (Carnivora - Canidae) em um cerrado de Mato Grosso, Brasil

JULIO CESAR DALPONTE11. Pós-Graduação - Biologia Animal, Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, UnB, CEP 70910-900 Brasília, DF, Brasil. Pós-Graduação - Biologia Animal, Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, UnB, CEP 70910-900 Brasília, DF, Brasil. , 31. Pós-Graduação - Biologia Animal, Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, UnB, CEP 70910-900 Brasília, DF, Brasil. Pós-Graduação - Biologia Animal, Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, UnB, CEP 70910-900 Brasília, DF, Brasil. e EDSON DE SOUZA LIMA21. Pós-Graduação - Biologia Animal, Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, UnB, CEP 70910-900 Brasília, DF, Brasil. Pós-Graduação - Biologia Animal, Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, UnB, CEP 70910-900 Brasília, DF, Brasil.

(recebido em 05/11/98; aceito em 06/06/99)

ABSTRACT - (Fruit availability and the diet of Lycalopex vetulus (Carnivora - Canidae) in a cerrado vegetation of Mato Grosso, Brazil). The fruiting phenology of 41 species known as potential food for mammals was monitored monthly during the period of 1985 and 1986, and compared with the frugivorous diet of the hoary fox (Lycalopex vetulus) in a cerrado area near Chapada dos Guimarães National Park, Mato Grosso, Brazil. The fruiting pattern was seasonal, with peaks of greater availability in the beginning of dry and wet seasons. Hancornia speciosa, Rauwolfia sp. and Solanum lycocarpum showed a long (nine to 12 months) fruiting pattern, while Guettarda viburnioides and Mouriri elliptica a short pattern (five to eight months). Seventy percent of the fruit species were eaten by the hoary fox. Despite the large number of fruit species consumed, a small percentage (26%) of these species reaches 10% of occurrence frequency in the fox scats. The consumption of fruits by the hoary fox was opportunistic, generally consistent with the seasonal fruiting pattern in the study area. H. speciosa and S. lycocarpum were considered the most important fruit species in the diet of the hoary fox, since they give sources of alternative food year round, including periods of low availability of other fruits, like the peak of dry season. Changes in the intensity of fruit used by the hoary fox, like the replacement of some species by others, seem to show states of satiation and interest for new atractive fruits. Apparently, accessibility, strong smell and energetic content are features of the fruits that determine primary preferences for some species. The role of the hoary fox as an important agent to disperse fruits in the cerrado may be suggested by the large number of fruit species eaten, and by the presence of undamaged seeds in the scats.

RESUMO - (Disponibilidade de frutos e a dieta de Lycalopex vetulus (Carnivora - Canidae) em um cerrado de Mato Grosso, Brasil). A frutificação de 41 espécies consideradas como alimentos potenciais para mamíferos foi acompanhada mensalmente durante os anos de 1985 e 1986 e comparada com a dieta frugívora da raposa-do-campo (Lycalopex vetulus) em uma área de cerrado próxima ao Parque Nacional de Chapada dos Guimarães. O padrão de frutificação foi sazonal, com maior disponibilidade de frutos no começo da estação seca e começo da estação chuvosa. Hancornia speciosa, Rauwolfia sp. e Solanum lycocarpum apresentaram um padrão longo (nove a 12 meses) de frutificação, enquanto Guettarda viburnioides e Mouriri elliptica, um padrão curto (cinco a oito meses). Setenta por cento das espécies com frutos listados como alimentos potenciais foram consumidos por L. vetulus. Apesar do grande número de espécies utilizadas, um percentual pequeno (26%) de frutos foi consumido com freqüência acima de 10%. O consumo de frutos pela raposa foi oportunístico, em geral coincidindo com o padrão de frutificação na área de estudo. H. speciosa e S. lycocarpum foram consideradas espécies importantes na dieta de L. vetulus, desde que proporcionaram fontes alimentares disponíveis ao longo do ano, inclusive em períodos de baixa disponibilidade como durante o pico da estação seca. Alterações na freqüência de consumo de certas espécies de frutos, como a substituição de uma espécie de fruto por outra, parecem refletir estados de saciação da raposa-do-campo e interesse por novos frutos atrativos. Aparentemente, acessibilidade, forte odor e conteúdo energético são características dos frutos que determinam preferências primárias da raposa-do-campo por determinadas espécies. Devido ao grande número de diferentes tipos de frutos consumidos e à elevada freqüência de sementes intactas nas fezes durante diferentes períodos do ano, L. vetulus pode ser considerado um dispersor potencial na área de estudo.

Key words - Fruit availability, cerrado, diet of Lycalopex, Mato Grosso

Introdução

É possível esperar uma relação entre as estratégias reprodutivas de plantas e o padrão de utilização de recursos alimentares por consumidores de frutos (Marinho-Filho 1991). Plantas dependem de animais para a dispersão de sementes e, neste sentido, o ritmo de frutificação, ou a fenologia das espécies representa um aspecto importante a ser estudado (Morellato & Leitão-Filho 1992). Dados sobre fenologia de frutificação são úteis porque podem ser comparados com observações de dieta, cujo propósito seja a descrição da disponibilidade e utilização de diferentes itens alimentares por espécies frugívoras; partes reprodutivas de muitas plantas, inclusive frutos, são comidas sazonalmente em períodos restritos e várias espécies representam recursos alimentares importantes durante estes períodos (National Research Council 1981). Variações sazonais não são determinantes exclusivas do processo reprodutivo de plantas lenhosas do cerrado, sendo que parte das estratégias fenológicas exibidas podem ser determinadas por interações ecológicas (Oliveira 1998).

Dados detalhados sobre ritmos de frutificação e disponibilidade de frutos para mamíferos frugívoros geralmente acompanham estudos sobre hábitos alimentares de primatas (Chiarello 1994) e morcegos (Heithaus et al. 1975, Bonaccorso 1979, Marinho-Filho 1991, Handley et al. 1991). Um padrão sazonal no uso de frutos, com maiores percentuais de consumo na estação chuvosa, tem sido sugerido para canídeos neotropicais como Cerdocyon thous (Brady 1979, Bisbal & Ojasti 1980, Facure 1996), Chrysocyon brachyurus (Dietz 1984) e Lycalopex vetulus (Dalponte 1997).

A raposa-do-campo, Lycalopex vetulus, é o menor dos canídeos brasileiros, atuando como um onívoro do estrato subarbustivo no cerrado (Dalponte 1997). A base da dieta é representada por frutos e insetos, com pequenos vertebrados (principalmente roedores) atingindo menores percentuais de freqüência nas fezes desse canídeo. Frutos de 30 espécies de plantas ocorreram em 87% das fezes coletadas em um cerrado denso, baixo e semidecíduo do platô da Chapada dos Guimarães, destacando-se pelos percentuais de freqüência de ocorrência Hancornia speciosa, Solanum lycocarpum, Guettarda viburnioides, Rauwolfia sp. e Mouriri elliptica (Dalponte 1997). Este mesmo estudo sugeriu que a raposa-do-campo consome frutos na proporção de sua disponibilidade.

O presente trabalho apresenta dados de fenologia de frutificação e compara a disponibilidade de frutos com o padrão de consumo mensal deste recurso pela raposa-do-campo, L. vetulus, em um cerrado na Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, Brasil.

Material e métodos

Área de estudo - O trabalho de campo foi conduzido no platô de Chapada dos Guimarães (600-800 m de altitude), cerca de 40 km a nordeste de Cuiabá, estado de Mato Grosso, Brasil, em uma área adjacente ao Parque Nacional de Chapada dos Guimarães (15°25'S e 55°47'W). O clima é do tipo Aw na classificação de Köppen e a temperatura média anual é 24° C. Entretanto, a mínima mensal pode cair para 0°C (à noite) durante os meses de junho a agosto. A precipitação anual pode atingir 2000 mm, com a maior parte das chuvas de dezembro a fevereiro (Dalponte 1997). Duas estações climáticas foram definidas para a região: uma estação chuvosa (outubro a março) e uma estação seca (abril a setembro). A sazonalidade climática da área de estudo foi definida com base em médias mensais de precipitação em um período de 70 anos, obtidas 40 km a sudoeste da área de estudo. O substrato da área caracteriza-se por uma grande extensão arenosa recoberta por um cerrado denso e baixo (1,5 m) onde predominam plantas como Mouriri elliptica, Alibertia sessilis, Talisia subalbens, Ouratea floribunda, Palicourea coriacea, Eugenia chrysanytha, Allagoptera campestris, Virola sessilis e muitas espécies arbóreas de cerrado com porte arbustivo (Oliveira-Filho & Martins 1986). Outros detalhes sobre a região onde se insere a área de estudo podem ser encontrados em Oliveira-Filho & Martins (1986).

Fenologia da frutificação - A presença ou ausência de frutos maduros, ou em processo de amadurecimento, foi registrada durante observações em intervalos mensais, durante o período de abril de 1985 a agosto de 1986, parcialmente sobrepondo-se ao trabalho de coleta de fezes para o estabelecimento da dieta de L. vetulus na área, realizado entre junho de 1983 e dezembro de 1985. Detalhes metodológicos sobre amostragem e análise das fezes são descritos por Dalponte (1997). Durante caminhadas por estradas, trilhas e pelo interior do cerrado, numa área de aproximadamente 20 ha coberta com vegetação não perturbada, a ocorrência de frutos, potencialmente utilizados como alimento por L. vetulus, foi registrada, resultando na avaliação do número de espécies em frutificação a cada mês. Visando fornecer informações adicionais sobre oferta alimentar, foi procedida uma avaliação subjetiva da abundância de frutos maduros (estimativa do número de plantas com frutos a cada observação mensal). Os seguintes critérios foram adotados para essa avaliação subjetiva: espécie abundante = mais de 10 indivíduos; espécie freqüente = número intermediário de indivíduos (cinco a 10); espécie ocasional = poucos indivíduos (dois a quatro); espécie rara = apenas um indivíduo detectado. Estes critérios representam uma adaptação daqueles utilizados por Ratter et al. (1973, 1996), Ratter & Dargie (1992) para áreas de cerrado. Três padrões de duração de frutificação foram adotados (S.M. Sano, J.F. Ribeiro & C.L. Fonseca, dados não publicados): 1) espécies com período de frutificação curto (até quatro meses), 2) espécies com período de frutificação longo (nove a 12 meses), e 3) espécies com padrão de frutificação intermediário (cinco a oito meses). Foi coletado material botânico das espécies frutificadas e encaminhado a especialistas da Universidade Federal de Mato Grosso para identificação. Amostras de plantas da área de estudo foram depositadas no Herbário Central daquela instituição e no Herbário UEC, da Universidade Estadual de Campinas. Amostras de frutos maduros da área foram coletadas para compor uma coleção de referência para a comparação e identificação de sementes (normalmente intactas) e outras estruturas diagnósticas de frutos nas fezes das raposas-do-campo.

Foi elaborada uma lista das espécies de plantas, relacionando-se a forma de vida das mesmas na área: rasteiro (rt), subarbusto (sb), arbusto (ab) e arvoreta (av). Estes critérios seguiram, em parte, os adotados por Oliveira-Filho & Martins (1986).

Utilização de frutos - O padrão de utilização de espécies de frutos por L. vetulus na área de estudo foi analisado comparando-se os ritmos sazonal e mensal de frutificação com as freqüências de ocorrência sazonais e mensais de frutos (principalmente sementes) nas fezes das raposas.

Uma segunda análise relacionou a ocorrência mensal de todas as espécies de plantas com frutos com ocorrência comprovada na dieta de L. vetulus, onde se comparam as quantidades de fezes com frutos de cada espécie e o número total de fezes analisadas por mês no período de junho de 1983 a dezembro de 1985. Foram analisados também os ritmos mensais de frutificação de espécies com percentuais de freqüência de ocorrência nas fezes acima de 10% e consumo dessas espécies por L. vetulus.

Consideraram-se como frutos importantes na dieta aqueles que apresentaram pelo menos uma das seguintes características: 1) ocorrência elevada (acima de 10% nas fezes) ao longo do período do estudo; 2) ocorrência elevada (acima de 10% nas fezes) durante curtos períodos de frutificação ou em períodos de baixa disponibilidade de frutos.

Resultados e Discussão

Fenologia da frutificação - Períodos de frutificação de 41 espécies de plantas potencialmente dispersas por mamíferos silvestres no platô da Chapada dos Guimarães são apresentados na tabela 1. Frutificação máxima ocorreu de fevereiro a abril (final da estação chuvosa) e de setembro a novembro (início da estação chuvosa). O mês de agosto (auge da estação seca) contribuiu com apenas 21% das espécies com frutos disponíveis (figura 1 ). O padrão geral de disponibilidade de frutos (máxima na estação chuvosa) foi semelhante aos padrões observados em outras áreas de cerrado do Brasil central, como na Baixada Cuiabana (Guarim-Neto et al. 1994).

Embora o ritmo de frutificação na Chapada dos Guimarães tenha sido sazonal, 16,6% das espécies frutificaram ao longo do ano, mantendo um estoque regular de recursos alimentares potenciais para frugívoros (tabela 1 ). Exemplos típicos desse grupo de plantas foram Hancornia speciosa, Rauwolfia sp. e Solanum lycocarpum. Um padrão de frutificação semelhante ao observado na Chapada dos Guimarães foi encontrado para S. lycocarpum em outra área de cerrado, no Parque Nacional da Serra da Canastra, Minas Gerais (Dietz 1984). Mais da metade (66%) das espécies de plantas apresentaram um período curto de frutificação, algumas completando a frutificação na mesma estação (tabela 1 ). Com exceção de Pouteria ramiflora, que frutificou apenas nos meses chuvosos, as outras espécies de período intermediário disponibilizaram seus frutos em períodos que incluem parte das duas estações (tabela 1 ).

Utilização de frutos - Sementes de 70% das espécies de frutos considerados alimentos potenciais para canídeos silvestres foram encontradas nas fezes da raposa-do-campo na Chapada dos Guimarães (tabela 2 ). Apesar do grande número (30) de espécies utilizadas, um percentual pequeno (26%) destas espécies foi consumido com freqüências acima de 10%. A maior parte dos frutos consumidos (definidos em termos de sementes encontradas nas fezes) pertence a Hancornia speciosa (20%), seguida por Solanum lycocarpum e Guettarda viburnioides (18%), e Rauwolfia sp. e Mouriri elliptica (13%).

Hancornia speciosa foi consumida ao longo da estação chuvosa, principalmente de janeiro a março, com interrupção no final da estação seca (julho, agosto e setembro), justamente durante o período de maior oferta de frutos maduros. Este evento coincidiu com o início do consumo de outras espécies (tabela 2 ).

Embora tenha sido utilizada durante toda a estação seca e início da chuvosa, Solanum lycocarpum passou a ser fortemente consumida justamente no momento de interrupção do consumo de H. speciosa. Outros frutos atrativos estavam disponíveis e também foram consumidos ativamente neste período (tabela 2 ). Períodos de substituição de uma determinada espécie por outra podem ter refletido um estado de saciação das raposas.

Os ritmos de frutificação de S. lycocarpum e H. speciosa parecem garantir a disponibilidade de recursos durante períodos longos. Além disso, S. lycocarpum é a espécie mais freqüentemente consumida por L. vetulus durante a estação seca (Dalponte 1997), quando o número de outras espécies de frutos disponíveis decresce (figura 1 ). No Parque Nacional da Serra da Canastra, S. lycocarpum também representa um item alimentar importante para Chrysocyon brachyurus (lobo-guará) durante todo o ano, não sendo observadas diferenças sazonais significativas no consumo desta ou de qualquer outra espécie de fruto (Dietz 1984).

Figura 1. Comparação entre o número de espécies com frutos maduros e o número de espécies de frutos consumidos por L. vetulus na Chapada dos Guimarães. Médias de precipitação do período de 1911 a 1980. Com frutos maduros. Frutos consumidos. Precipitação (mm).

Espécies com diferentes padrões de frutificação apresentaram consumo elevado e fortemente sazonal (tabela 2). Várias espécies foram consumidas com maior freqüência no auge da frutificação, enquanto outras foram utilizadas em períodos de aparente baixa disponibilidade, como Guettarda viburnioides. Sementes de Rauwolfia sp. ocorreram no período de grande disponibilidade de outras espécies (início da estação seca), atingindo cerca de 50% de ocorrência nas fezes em junho (tabela 2). Neste caso, o consumo diminuiu conforme a disponibilidade decresceu.

Duguetia furfuracea foi pouco consumida, com sementes e fragmentos de exocarpo aparecendo nas fezes no auge da estação seca e durante a primeira metade da chuvosa (tabela 2). Observações pessoais evidenciaram que o consumo deste fruto por L. vetulus aumenta em áreas perturbadas, onde a disponibilidade de outras espécies de frutos é baixa e a densidade de D. furfuracea é elevada.

Bromelia sp. e Tocoyena formosa foram pouco consumidas, embora apresentassem alta disponibilidade de frutos no final da estação chuvosa e início da estação seca. O consumo de Ananas sp. ocorreu de maio a julho, embora estivesse disponível desde fevereiro (mês de maior abundância). Frutos de bromeliáceas parecem não representar um alimento preferencial para L. vetulus na área de estudo. Seu consumo talvez seja explicado em parte pela diminuição da oferta de frutos importantes no período de seca (tabela 1).

Sementes de Anacardium humile e Caiaponia sp. apareceram com pouca freqüência nas fezes de L. vetulus, embora os frutos de ambas estivessem disponíveis na área de estudo durante seus curtos períodos de frutificação. Entretanto, segundo Juarez (1996), Anacardium humile pode ser um fruto freqüente na dieta de L. vetulus, em amostras pequenas e restritas à segunda metade do ano. Várias outras espécies, com disponibilidades variadas, estiveram ausentes ou contribuíram pouco para a dieta da raposa-do-campo na área de estudo (tabela 2). Entretanto, é possível que algumas dessas espécies possam ser consumidas de forma mais consistente em outras áreas onde a riqueza de espécies seja menor. É provável, também, que algumas espécies nunca sejam utilizadas. Caryocar brasiliense, por exemplo, possui frutos cujas sementes são revestidas por numerosos acúleos, o que os torna impalatáveis à maioria dos frugívoros. Eschweilera nana tem sementes secas e relativamente duras, aparentemente dispersas por formigas do gênero Atta e pequenos roedores.

O consumo de frutos por canídeos Sul Americanos ocorre de forma oportunística e sazonal, existindo uma correlação positiva entre frugivoria e diminuição da massa corporal, exceto no caso de Chrysocyon brachyurus (Redford & Eisenberg 1992). Em geral, o consumo de frutos por canídeos torna-se mais freqüente durante a estação chuvosa, como demonstrado por diversos estudos (Crespo 1971, para Pseudalopex gymnocercus, Dietz 1984, para Chrysocyon brachyurus, Brady 1979 e Facure 1996, para Cerdocyon thous, Dalponte 1997, para Lycalopex vetulus). O aumento da importância de frutos na dieta de canídeos durante o período úmido ocorre quando o consumo de pequenos mamíferos decresce e vice e versa (Brady 1979, Dietz 1984, Facure 1996, Dalponte 1997). Na Chapada dos Guimarães, o consumo de frutos por L. vetulus no período chuvoso foi independente da disponibilidade de pequenos mamíferos, que não variou entre as estações (Dalponte 1997).

Apesar da maior freqüência de frutos nas fezes durante a estação chuvosa, a riqueza de espécies consumidas variou pouco sazonalmente (23 na estação seca e 21 na estação chuvosa). Isto pode ser explicado, ao menos em parte, pelo consumo máximo de espécies importantes, como Hancornia speciosa, em meses chuvosos.

Características dos frutos como acessibilidade, cor, peso, palatabilidade e conteúdo energético de partes comestíveis podem representar adaptações das plantas que determinam a escolha das espécies de frutos por animais (Gautier-Hion et al. 1985). Embora tamanho de fruto (Wheelwright 1985) e cores contrastantes (Snow 1981) sejam considerados parâmetros básicos que influenciam na escolha de alimentos por aves frugívoras, uma preferência de L. vetulus por determinados tipos morfológicos de frutos não foi detectada. Frutos de tamanho grande, como de Solanum lycocarpum e de Annona crassiflora, médios, como os de Mouriri elliptica e H. speciosa, e pequenos, como os de Miconia rubiginosa, foram consumidos com freqüências elevadas. Frutos maduros de algumas espécies mais freqüentemente consumidas, como S. lycocarpum, H. speciosa, A. crassiflora e Pouteria ramiflora, que completam o amadurecimento no solo, e de Mouriri elliptica, que amadurecem na planta, exalam odores fortes e típicos. No caso de L. vetulus, e talvez de outros canídeos que consomem frutos, é possível que estas características (acessibilidade e odor) e conteúdo energético dos frutos sejam mais importantes como atrativos primários à fonte alimentar, do que tamanho, peso, cor e forma dos diásporos.

A dispersão de frutos zoocóricos depende da atividade dos dispersores, a qual parece ser mais intensa no cerrado durante a estação chuvosa (Gottsberger & Silberbauer-Gottsberger 1983). O consumo de frutos por L. vetulus na Chapada dos Guimarães foi consistente com este padrão, mas indica que um conjunto de espécies pode ser disperso na transição entre estações ou mesmo no auge da seca. Devido ao grande número de espécies de frutos consumidos e à elevada freqüência de sementes intactas nas fezes durante diferentes períodos do ano, L. vetulus pode ser considerado um agente dispersor importante na área de estudo. Além de várias fisionomias de cerrado, savanas estépicas e planícies de inundação, L. vetulus também é freqüentemente visto em áreas abertas, como pastagens artificiais (Dalponte 1995). O papel deste canídeo na reprodução de plantas em áreas mais secas do cerrado, e na recolonização de áreas abertas por atividade humana, precisa ser melhor conhecido. Estudos sobre a viabilidade de sementes oriundas de fezes, complementariam os dados aqui apresentados.

Agradecimentos - Os autores agradecem à Fundação Buriti, Escola Evangélica Buriti, pelo apoio logístico durante o trabalho de campo, Ary T. Oliveira-Filho e Silvo A. Rodrigues, pelo auxílio na identificação de espécies de frutos e Beatriz S. Marimon, pela revisão crítica do manuscrito.

2. Departamento de Ciências Biológicas, Campus Universitário, UNEMAT, CEP 78690-000 Nova Xavantina, MT, Brasil.

3. Autor para correspondência: dalponte@unb.br

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  • 1. Pós-Graduação - Biologia Animal, Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, UnB, CEP 70910-900 Brasília, DF, Brasil.
    Pós-Graduação - Biologia Animal, Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, UnB, CEP 70910-900 Brasília, DF, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Fev 2000
    • Data do Fascículo
      Out 1999

    Histórico

    • Recebido
      05 Nov 1998
    • Aceito
      06 Jun 1999
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