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Traços puritanos na pintura de Rembrandt

Resumos

Este texto desenvolve uma pista levantada por Max Weber em A ética protestante e o "espírito" do capitalismo: trata-se da influência da ascese protestante na pintura de Rembrandt. Com base na sociologia da religião de Weber e em algumas análises sobre o pintor holandês e a Holanda do século XVII, argumenta-se ser possível ver numa parte do itinerário artístico rembrandtiano o equivalente pictórico da sensibilidade puritana descrita por Weber.

Weber; Rembrandt; estilo de vida; protestantismo ascético na esfera da arte


This text develops a clue that was raised by Max Weber in The protestant ethic and the "spirit" of the capitalism: it deals about the protestant ascesis' influence on Rembrandt's painting. Taking Weber's sociology of religion and some analyses of the Dutch painter and the seventeenth century Holland as guidelines, it is argued that it's possible to see in a certain part of Rembrandt's artistic itinerary the pictorial equivalent of the puritan sensibility described by Weber.

Weber; Rembrandt; lifestyle; ascetic Protestantism in the art sphere


ARTIGO

Traços Puritanos na Pintura de Rembrandt

Carolina Pulici

RESUMO

Este texto desenvolve uma pista levantada por Max Weber em A ética protestante e o "espírito" do capitalismo: trata-se da influência da ascese protestante na pintura de Rembrandt. Com base na sociologia da religião de Weber e em algumas análises sobre o pintor holandês e a Holanda do século XVII, argumenta-se ser possível ver numa parte do itinerário artístico rembrandtiano o equivalente pictórico da sensibilidade puritana descrita por Weber.

Palavras-chave: Weber, Rembrandt, estilo de vida, protestantismo ascético na esfera da arte

ABSTRACT

This text develops a clue that was raised by Max Weber in The protestant ethic and the "spirit" of the capitalism: it deals about the protestant ascesis' influence on Rembrandt's painting. Taking Weber's sociology of religion and some analyses of the Dutch painter and the seventeenth century Holland as guidelines, it is argued that it's possible to see in a certain part of Rembrandt's artistic itinerary the pictorial equivalent of the puritan sensibility described by Weber.

Keywords: Weber, Rembrandt, lifestyle, ascetic Protestantism in the art sphere

A impregnação da vida de todo dia por princípios de cunho religioso foi assunto de uma das mais importantes obras da sociologia de todos os tempos e todos os lugares. A ética protestante e o "espírito" do capitalismo, de Max Weber, lançada em 1904-1905 e ampliada em 1920. De tudo que se pode tirar desse livro de enorme fôlego e, por isso mesmo, passível das mais diferentes apropriações, gostaríamos de aqui desenvolver com mais vagar uma pista levantada por Weber no último capítulo do livro, "Ascese e capitalismo": trata-se dos possíveis impactos do protestantismo ascético na pintura de Rembrandt (1606-1669).

A conhecida repulsa da doutrina protestante pelas artes visuais e, além disso, a não menos sabida "parca potência expansiva do puritanismo holandês" (Weber 2004:264) poderiam, à primeira vista, dar a impressão de que não haveria nada a ser dito a esse respeito, não fosse a incitação contrária do próprio Weber, para quem "um gênio singularíssimo como Rembrandt foi decisivamente condicionado em seu impulso criativo pelo meio religioso sectário ao qual pertencia, por menos que sua 'mudança de conduta' tivesse encontrado graça aos olhos do Deus puritano" (Weber 2004:154).

Artes visuais e protestantismo ascético: eis a combinação improvável que aqui pretendemos explorar. O que se verá a seguir não é uma análise exaustiva da vida ou da obra completa de Rembrandt – o que só numa investigação de proporção mais vasta se poderia empreender –, nem uma comparação sistemática com outros pintores. Trata-se, tão-somente, de levar a sério a dica weberiana, examinando em que medida parte dessa pintura remete aos sistemas de classificação típicos do meio puritano com o qual esteve em contato.

Dessa forma, o assunto aqui não é propriamente a arte de Rembrandt em si mesma, mas as impressões de uma mentalidade que se revelam através dela. Cientes de que um feito artístico não é nunca mera evidência histórica, nossa tentativa será a de abordar parte dessa pintura não enquanto registro "literal", uma espécie de "carbono" de toda a experiência social da Holanda seiscentista, mas como documento de algumas das convicções mais caras à sensibilidade puritana do século XVII. Se, como mostrou Weber, toda religião de salvação individual – como é o caso do protestantismo ascético – tem o objetivo de assegurar um estado sagrado ao que será salvo e, assim, "o hábito que garante a salvação", a idéia aqui é perscrutar o equivalente pictórico desses modos salvacionistas de condução da vida no itinerário artístico rembrandtiano.

Pelas lentes de Weber

"Todo cuidado é pouco, ou aquele eu carnal,

gatuno, nada deixará para Deus".

Richard Baxter

A caracterização ideal-típica do estilo de vida protestante ascético empreendida por Max Weber em A ética protestante e o "espírito" do capitalismo é referência obrigatória a todo estudioso do estilo de vida, tema que fez fortuna na história da sociologia e que figura, atualmente, como noção corrente em diversos âmbitos do senso comum, integrando desde os apelos das investidas publicitárias aos discursos médicos1 1 É certo que n' A ética Weber emprega com mais freqüência o termo "conduta de vida" e menos vezes "estilo de vida". Entretanto, no momento em que, no último capítulo, discute sistematicamente a postura do protestantismo ascético frente aos bens culturais, o autor passa a empregar mais vezes o conceito de "estilo de vida". .

N'A ética, a demonstração de como a exigência religiosa de uma conduta de vida ascética influenciou diretamente o desenvolvimento do estilo de vida capitalista é explorada de forma mais sistemática no último capítulo, "Ascese e capitalismo", momento em que a relação causal histórica que vinha sendo construída ao longo de todo o livro explode em verossimilhança, fazendo dessa etapa conclusiva o verdadeiro coroamento do grande achado: a tradição protestante puritana associada não ao capitalismo como sistema econômico ou modo de produção, mas ao capitalismo como "espírito". Nas palavras de Antônio Flávio Pierucci, "o capitalismo vivenciado pelas pessoas na condução metódica da vida de todo dia" (Pierucci 2004:7).

Interessado nos efeitos práticos da religião no dia-a-dia do seguidor da igreja reformada – e, mais especificamente, nos eventuais vínculos entre as concepções religiosas do protestantismo ascético e a vida econômica de todo dia –, Weber apreende os direcionamentos dos atos mais comezinhos da vida cotidiana a partir das recomendações que figuram nos escritos teológicos enraizados na prática de cura das almas, especialmente na teologia moral puritana de Richard Baxter, propagador voltado ao fomento aplicado da vida moral religiosa. Nessas espécies de "manual de etiqueta do predestinado" ditam-se as regras de savoir-vivre a serem observadas por todos aqueles que buscam se assegurar em vida das garantias de salvação no Outro Mundo, regras essas que vão desde prescrições alimentares à regulamentação das práticas sexuais.

Ainda que a necessidade de salvação esteja no cerne de toda religiosidade negadora do mundo, há que se atentar para os diferentes modos de prática salvacionista, sobretudo quando se tem em vista um período histórico – como é o caso do século XVII – em que o pós-morte era muito mais importante do que chega a ser hoje em dia. No calvinismo, vertente que nos interessa especialmente por ser a religiosidade dominante na Holanda do tempo de Rembrandt, e também a realização mais coerente do protestantismo ascético, a certeza da eleição – e jamais a obtenção da salvação, assunto exclusivo de Deus – exige uma conduta de vida metódico-racional, uma disciplina sóbria e rigorosa que exclui todo cultivo do lado sentimental e mágico da religião e também da vida. Para essa religiosidade que advoga o particularismo da graça (somente alguns estão predestinados por Deus a serem salvos, há necessariamente uma aristocracia dos eleitos), o trabalho profissional sem descanso é tido como o meio mais certeiro de se obter a confirmação subjetiva da própria eleição e ainda aumentar neste mundo a glória de Deus. A fé comprovada por seus efeitos objetivos, eis os estímulos psicológicos criados por essa doutrina que direcionava toda a conduta de vida, firmando um elo entre a comprovação da bem-aventurança futura e a ação intramundana, entre a predestinação e a atitude profissional no mundo2 2 "A eclosão de reavivamentos ascéticos no seio das comunidades calvinistas sempre esteve ligada, notadamente na Holanda, a um reaquecimento da doutrina dapredestinação após período de momentâneo esquecimento, ou abatimento". Cf. Weber (2004:117). .

E nesse universo doutrinário o dever ético do trabalho sem trégua não está ligado à manutenção da vida, mas tão-somente ao imperativo do envolvimento racional numa profissão como um fim em si mesmo – como "vocação" –, como meio de atender a um chamamento ("calling") divino. Trabalho por dever de consciência e não por razões utilitárias, de acordo com a ordem de Paulo segundo a qual "quem não trabalha não coma", igualmente válida para todos. Se é certo que a valorização do trabalho cotidiano é anterior à Reforma, não é menos verdade que foi só nas correntes puritanas orientadas pela ascese intramundana que a dedicação incessante à vocação profissional passou a figurar como "o mais excelso conteúdo que a auto-realização moral é capaz de assumir" (Weber 2004:72). Nessa linha de juízo, não é se retirando do mundo via ascese monástica que se pode pretender acercar-se de Deus, mas, bem ao contrário, devotando-se a ideais ascéticos dentro da vida profissional mundana. Dessa forma, o mau trabalhador, ainda que rico, é necessariamente mau devoto. "São os preguiçosos em sua profissão que não acham tempo para os santos deveres" (Weber 2004:251).

Além de servir à distinguibilidade do estado de graça, o trabalho duro e continuado é, com efeito, meio ascético que previne contra todas as tentações que o puritanismo abrange no conceito de unclean life. Em lugar do inconstante católico que, muito em função da prática das indulgências, levava uma vida toda feita de "boas obras" isoladas, o calvinista que almejasse confirmar sua saída do status naturae rumo ao status gratiae devia basear seu percurso intramundano numa conduta de vida dotada de um plano de conjunto coerente e sistemático, o que requeria não apenas a dedicação ininterrupta ao trabalho profissional, como o afastamento permanente de todos os prazeres carnais e sentimentais, de todo gozo impulsivo da vida.

E esse "triunfar do quanto há de instintivo e irracional em cada um" (Weber 2004:134) pressupunha, em termos práticos, que o devoto vivesse quase como se não pudesse contar com os frutos de seu trabalho, usufruindo preferencialmente dos bens indispensáveis à satisfação das necessidades vitais. Não que a riqueza em si fosse problemática para o devoto, já que, quando oriunda do trabalho honesto, era indício da autenticidade de sua fé e, assim, da certitudo salutis. O condenável era a ambição por bens terrenos como um fim em si mesmo, e não o enriquecimento como conseqüência de motivos puramente religiosos, isto é, como efeito prático da busca incessante pela salvação da alma via ascese profissional. O problema, então, não era propriamente a riqueza – como quer o historiador Simon Schama –, mas o uso da riqueza para viver prazerosamente3 3 É disso que se esquecem os anti-weberianos que, como Schama (1992), sinonimizam riqueza e usufruto da riqueza! O gozo das posses – e não a posse em si – já foi exaustivamente apontado pelo próprio Weber como atitude moralmente reprovável. . A luta contra a concupiscência da carne e contra o apego aos bens exteriores que conformou a restrição puritana ao consumo – especialmente o de luxo – não era uma investida contrária ao ganho advindo do desempenho do dever profissional, mas, sim, ao uso irracional das posses, isto é, à "valorização das formas ostensivas de luxo, tão aderidas à sensibilidade feudal e agora condenadas como divinização da criatura, em vez do emprego racional e utilitário da riqueza, querido por Deus, para os fins vitais do indivíduo e da coletividade" (Weber 2004:156). Em lugar disso, bem ao contrário, o bom devoto deve satisfazer-se com dietas sóbrias à base de refeições frugais e banhos frios. A abundância é perigosa pela série de tentações que oferece: o gozo da riqueza não apenas afasta das abnegações de uma vida inteiramente voltada a fazer crescer no mundo a glória de Deus, como incita os prazeres carnais.

Em sua relação absolutamente negativa com a "cultura dos sentidos", o puritanismo advoga, em suma, que há que se "domar o mundo do pecado" (Weber 1982:385) por meio de um estilo de vida regrado, enérgico e comedido, negando os aspectos corpóreos e sensitivos do homem.

Ócio e prazer, não; só serve a ação, o agir conforme a vontade de Deus inequivocamente revelada a fim de aumentar sua glória. A perda de tempo é, assim, o primeiro e em princípio o mais grave de todos os pecados. Nosso tempo de vida é infinitamente curto e precioso para 'consolidar' a própria vocação. Perder tempo com sociabilidade, como 'conversa mole', com luxo, mesmo com o sono além do necessário à saúde – seis, no máximo oito horas – é absolutamente condenável em termos morais.

Nesses universos bafejados pela sensibilidade puritana, o esporte, como meio de descontração e liberação de impulsos indisciplinados, era moralmente censurável, assim como a leitura de romances e coisas do gênero era associada aos pecaminosos wastetimes. Nem o gozo carnal, nem a pura fruição estética – essa última ainda tinha que se haver com a exigência de que não deveria custar nada, já que a nenhum devoto era permitido, enquanto administrador dos bens que lhe foram dispensados pela graça de Deus, usufruir de parte desse patrimônio em benefício pessoal. "Os conceitos de idle talk [conversa mole], superfluities [superfluidades], vain ostentation [ostentação vã] – todas as designações – lá estavam, ao alcance da mão, para enaltecer decisivamente a sóbria adequação dos meios aos fins em detrimento de todo recurso a motivos artísticos" (Weber 2004:155).

Não admira, assim, que ao refletir sobre o desserviço que a igreja reformada prestou ao desenvolvimento artístico, Weber seja claro na afirmação de que no terreno da literatura não-científica, e ainda mais no das belas-artes, "a ascese caiu feito geada" (Weber 2004:153), tamanha a reticência dessa confissão religiosa frente ao puro e desinteressado cultivo estético.

Nesse cenário de árida sensibilidade artística e profundo desapreço pelos bens sensoriais, que exceção à regra é essa, então, afinal de contas, que podemos pretender encontrar? De que modo é possível explorar de forma mais detida a dica weberiana, investigando como a pintura de Rembrandt permite que pensemos no impacto da religião protestante na esfera da arte?

O temperamento batavo seiscentista

"Os neerlandeses vendem muito e gastam pouco".

Busken-Hüet

O argumento de que existem traços protestantes na pintura de Rembrandt pede que de alguma forma adentremos no mundo holandês do século XVII, onde possivelmente muitas das características do estilo de vida puritano descrito por Weber estavam de algum modo já dadas. O próprio Weber, aliás, enfatiza o efeito prático da religião protestante no desenvolvimento do "espírito" do capitalismo sem negar ou excluir outras influências significativas, em alguns casos até mesmo imprescindíveis. Numerosas são as passagens d'A ética em que o autor acena ao condicionamento de classe dos movimentos religiosos, sublinhando que um ethos pequeno-burguês ascendente foi fator importante para que a sensibilidade protestante propriamente religiosa pudesse se desenvolver em sua plenitude, desencadeando o tal "espírito" capitalista. Reconhecendo as relações recíprocas entre dois fatores causais, Weber também não nega que a conversão ao protestantismo era uma atitude muitíssimo mais freqüente nas cidades ricas, mais favorecidas pela natureza e pelas rotas comerciais4 4 A Amsterdã de Rembrandt aparece, n' A ética, como a sede por excelência do mercantilismo e como exemplo de cidade que acolheu generosamente os adeptos das seitas protestantes, por serem considerados preciosos portadores do progresso econômico. Cf. Weber (2004:229). .

E a razão dessa predisposição das regiões economicamente mais desenvolvidas para uma revolução na igreja não deixava de revelar também uma ânsia de rebelião mais ampla contra as autoridades tradicionais de forma geral, ainda que a explicação não se esgote nisso. A propósito, uma genérica aversão à autoridade era, com efeito, uma das características pelas quais os holandeses se diferenciavam dos povos de outros países desde a época da queda de Roma. País sem obsessões aristocráticas, a antiga Batávia impôs sérias restrições ao absolutismo e limitou a soberania tradicional dos condes, tendo se mostrado indiferente e até hostil às preocupações feudais com a guerra, o território e a honra. Diferentemente de outros países europeus, para os quais a guerra era algo intrínseco aos destinos do comércio, os holandeses relutavam em assumir um ethos marcial, o que "os afastava das monarquias absolutas, nas quais fantasias de valor cavalheiresco e indestrutibilidade divina podiam concretizar-se na corte (e às vezes até se transformar em política)" (Schama 1992:254). Esse veio antimonárquico devia-se à crença patriótica de que a precocidade do poderio econômico da antiga Batávia era fruto da ordenação divina, o que permitiria deixar de lado as vãs preocupações habituais das monarquias. Na opinião de Schama, "tanto a igreja calvinista, que proclamava a tutela de Jeová, quanto o patriciado, que afirmava que a casa da República era forte demais para ser varrida pelos bufos dos príncipes, conspiravam para a enganosa noção de excepcionalidade" (Schama 1992:256)5 5 Essa tendência holandesa de não observar os critérios adequados a um grande Estado monárquico harmoniza-se com a ascese que, em princípio, é hostil à autoridade. Como mostra Weber, o ascetismo era perigoso para o Estado porque era antiautoritário. "A sociedade monárquico-feudal defendia os 'desejosos de diversão' contra a moral burguesa emergente e o conventículo ascético hostil à autoridade (...)". Cf. Weber (2004:152). .

Não admira, assim, que no concernente às maneiras propriamente ditas, os holandeses fossem tidos por portadores de hábitos grosseiros, insensíveis aos refinamentos da sociedade polida e impermeáveis às convenções de posição e honra observadas no continente europeu.

Em questões de posição eram displicentes, se não pura e simplesmente indiferentes. Felltham percebeu que a fixação em figuras heráldicas (ainda arraigada nessa época) indicava diluição da hierarquia social por causa do uso comum. "Os brasões são tão abundantes quanto a nobreza é escassa; cada homem é seu próprio arauto". Tanto a hierarquia dos trajes quanto a hierarquia doméstica de patrões e criados eram infringidas nas práticas niveladoras da conduta cotidiana. "Deviam fazer boa justiça, pois não respeitam pessoa nem aparência. Um rústico em seus calções molhados será tão útil quanto um cortesão em seu esplendor" (Schama 1992:266).

Essa indiferença ao estilo de vida aristocrático já fora notada por Weber quando observou que

mesmo num país como a Holanda, que a rigor esteve dominada pelo calvinismo estrito só por sete anos, a maior simplicidade da vida das pessoas muito ricas, predominantes nos círculos mais seriamente religiosos, acarretou uma excessiva compulsão a acumular capital. Além do mais, salta aos olhos que a tendência existente em todos os tempos e lugares de 'enobrecer' fortunas burguesas, cujos efeitos ainda hoje são bem vivos entre nós, só podia ser sensivelmente entravada pela antipatia do puritanismo a formas de vida feudais. Escritores mercantilistas ingleses do século XVII atribuíam a superioridade do poderio capitalista holandês diante da Inglaterra ao fato de que, lá, fortunas recém-adquiridas não buscavam, como cá, enobrecer-se via de regra pelo investimento em terras nem – o importante está nisto: não só pela compra de terras – tampouco pela adoção de hábitos de vida feudais, o que subtrairia tais fortunas à valorização capitalista (Weber 2004:157).

Essa falta de mania de nobreza, que se liga à idéia de que a prosperidade corrompe os que dela desfrutam, é uma constante na doutrina religiosa de várias vertentes do protestantismo puritano e, da mesma forma, uma característica que diferentes estudiosos atribuíram à Holanda do tempo de Rembrandt. Até mesmo Schama, que insiste que o estereótipo de sobriedade dos holandeses é exagerado – especialmente quando se tem em vista a extravagância suntuária do século XVIII –, não nega que a história holandesa seiscentista está repleta de episódios que advertem sobre os perigos da fartura, o que se deve, sobretudo, ao reforço empreendido nesse sentido por seus pregadores, para os quais "quanto mais farto o banquete, mais iminente o anúncio do desastre" (Schama 1992:40)6 6 Eis um belo exemplo de como Schama sinonimiza enriquecimento e gozo das posses, coisas que Weber distingue bem; fala-se em "desconforto da riqueza" mas o exemplo dado é o de um banquete, que, por definição, é uma refeição lauta que indica o usufruto da riqueza para viver luxuosamente e não, simplesmente, a riqueza em si. .

Os estudos sobre "a Holanda no tempo de Rembrandt" confluem na afirmação de que o rigorismo da ascese protestante fez-se presente mesmo num cenário de pluralismo religioso. Ao tratar do contexto holandês seiscentista, período de inaudito esplendor econômico, Paul Zumthor relata que "por volta de 1650, a maior parte das vias públicas urbanas serão pavimentadas, e os pregadores calvinistas vão se lamentar da expansão desse luxo condenável" (Zumthor 1989:26). Numa atitude que condena toda forma de fruição estética, lembra Zumthor, a igreja calvinista só tolerava esculturas quando aplicadas aos túmulos, tendo a edificação da estátua de Erasmo, em Rotterdam, provocado uma querela enorme (Zumthor 1989:377).

A ofensiva puritana na Holanda do século XVII deu-se a ver também no episódio em que o Dr. Tulp, médico, magistrado e aliado do clero calvinista no governo – além de personagem principal de uma das mais famosas telas de Rembrandt –, obteve a aprovação de uma lei suntuária contra os extravagantes banquetes de bodas, dando voz ao incômodo dos clérigos frente ao gosto pelo luxo na cidade (Schama 1992:126). Pouco tempo depois, após a invasão dos exércitos de Luís XIV e num momento de dificuldades financeiras, Amsterdã aprovava sua segunda lei suntuária, abolindo todos os festins "desnecessários" e suntuosos. Na reconstituição feita por Schama, "essa lei foi proclamada em meio a um coro de jeremiadas entoado pelo clero de Amsterdã, o qual atribuiu a catástrofe que se abatera sobre a República ao estilo de vida devasso que invadira as grandes cidades de Holanda" (Schama 1992:190). Foi também com a ajuda do mesmo Dr. Tulp que os fervorosos representantes da Igreja Reformada de Amsterdã lograram suspender a festa de São Nicolau, que incluía troca de presentes, compra e exibição de fantoches e bonecas: "Em 4 de dezembro de 1663, a magistratura finalmente expediu decreto que proibia a venda pública de bonecas, tidas como 'idolátricas', e instituía multa de três florins para os infratores" (Schama 1992:188).

Isso não significa, contudo, e nisso Schama tem razão, que Igreja calvinista e república holandesa fossem termos intercambiáveis. País pluriconfessional, a Holanda do século XVII é conhecida por uma regulamentação dos costumes igualmente fragmentada, que contempla desde os apelos normativos dos meios religiosos mais rígidos aos reclamos da corte e das camadas de rentistas, bem como da classe de pequeno-burgueses enriquecidos (Weber 2004:153). Essa imagem de um país marcado por vários credos em oferta – o que mortificava as monarquias absolutistas da época – foi apresentada numa crônica do temperamento batavo da seguinte forma: "É a feira de todas as seitas, onde todos os mascates de religião têm permissão para divulgar seus brinquedos, fitas e fanáticas matracas" (Schama 1992:267). O próprio Rembrandt foi, aliás, marcado pessoalmente por essa variedade de confissão religiosa, em sua condição de filho de pai calvinista e mãe católica praticante. Ao longo de sua carreira profissional, recebeu encomendas de judeus, protestantes e católicos, tendo feito obras para serem expostas em prédios públicos, a pedido do poder político da época, mas também para servirem ao deleite privado de patrões ricos.

Mas ainda que a produção pictórica rembrandtiana não se deixe facilmente nomear e não obstante seus vínculos com grupos sociais diversos, é possível dizer que uma parte de sua produção retratística revela sintonia inegável com os ideais de vida puritanos em voga no período. E isso, não apenas nos quadros feitos especificamente para atender às solicitações de círculos religiosos protestantes. Além do mais, a tão alardeada "pluralidade religiosa holandesa" não impediu, como vimos, que calvinistas mais enérgicos tivessem tentado impor sua causa à cidade de Amsterdã, convertida ao protestantismo em 1578. Como relata Schama, quando o projeto da Praça Dam entrou em discussão, os grupos calvinistas, que já haviam sido contemplados com um prédio exatamente ao lado da construção destinada aos juízes instalados na prefeitura, "não ficaram contentes com a paridade arquitetônica. Após acalorada campanha, finalmente se concordou em erigir imensa torre que excederia de muito a cúpula da Stadhuis e, assim, proclamaria a submissão do poder terreno ao divino" (Schama 1992:125)7 7 Ainda que, como adverte Schama, seja "errôneo pensar que a República holandesa e o calvinismo ortodoxo fossem intercambiáveis", não é possível negar que essa era a religiosidade oficial e privilegiada – como não nega o fato de que ser membro da igreja reformada constituía condição para ocupar cargo público –, e que, nas palavras do próprio Schama, "a República não teria sido criada sem os calvinistas" (:68). .

A reconstituição de alguns episódios característicos da atmosfera mental na Batávia seiscentista nos permite agora adentrar numa parte da obra plástica daquele que viria a ser um dos maiores expoentes da pintura barroca holandesa do século XVII. A julgar pelo que foi visto até aqui, pode-se dizer que a postura do protestantismo ascético frente às artes visuais foi, na melhor das hipóteses, de suspeição, para não dizer abertamente restritiva. E se, apesar dela, e à revelia dela, manifestações pictóricas de fôlego se fizeram presentes em seara puritana, parece razoável pensarmos agora nas marcas que tais constrangimentos impingiram à arte que, como quaisquer outras modalidades de prática social, a eles esteve exposta.

Sobriedade de Rembrandt

"Rembrandt teve altíssima ascendência sobre os jovens, mas nenhum reviveu sua tragédia e poesia. Só Carel Fabritius o compreendeu, mas, com amarga pujança, enveredou por vias pessoais. Tendo-se transferido para Delft, para onde levou seu singular tratamento da cor compacta, fria, também distendida com excepcional solidez construtiva, teve ali continuadores que lhe entenderam sutilmente o encanto, embora abandonando sua amarga e agressiva passionalidade refreada, em favor de ternuras poéticas e de íntimas sugestões afetivas."

Luigi Mallé

A reconstituição do estilo de vida ascético protestante (tal como proposto por Weber) e dos climas de opinião em voga na Holanda do século XVII nos permite agora discorrer sobre um número reduzido de quadros, sempre a partir dos aspectos que aqui resolvemos destacar. Em lugar de voltarmos nossa atenção às telas que encenam explicitamente temas ou personagens religiosos – o que não é novidade na história da arte –, concentraremos nossa atenção nas produções artísticas que registram os princípios do protestantismo ascético no cotidiano do cristão comum, pois, como insistiu Weber, o ineditismo do protestantismo puritano não reside na assimilação de ideais ascéticos por parte dos profissionais da religião que se isolam do mundo – o que já era corrente nos mosteiros católicos –, mas, sim, na transformação de todo e qualquer devoto em um "monge" na vida mundana de todo dia.

Dessa forma, a proposta de nos orientarmos pelas lentes de Weber incidirá especialmente sobre a transposição plástica de dois imperativos da conduta de vida intramundana requerida pela ascese puritana: a dedicação ininterrupta ao trabalho profissional e o afastamento permanente de todos os prazeres carnais e sentimentais. Como se tentará mostrar a seguir, a ascese intramundana que condena o requinte do bem vestir e a gratuidade do vão lazer, que antipatiza com as formas de vida feudais e rompe, em suma, com todo o gozo impulsivo da vida pode, a nosso ver, ser apreendida nas cinco telas que aqui pretendemos explorar mais sistematicamente.

Marcada pelos fortes contrastes de luz e sombra associados ao caravaggismo de Utrecht, a pintura de Rembrandt testemunha, em diversas ocasiões, a sensibilidade ascética que via com reticências morais a fruição hedonista da fortuna pessoal. A austeridade e praticidade das roupas de muitos burgueses de Amsterdã figuram, de forma emblemática, na obra Os síndicos da guilda dos alfaiates, de 1662, ocasião em que Rembrandt retrata homens abastados vestidos inteiramente de preto, colarinhos e punhos brancos, seguindo os moldes da chamada "moda puritana" (Spence 1998). Exibindo efeitos mais moderados de claro-escuro, esse quadro retrata seis homens, quase todos sentados bem próximos em torno de uma mesa, tornando as cercanias dos corpos pouco discerníveis em partes da tela. Muito embora estejam todos de frente para o espectador, apenas um deles encara-o de frente, enquanto todos os demais mantêm o olhar fugidio, denotando reserva e introspecção8 8 Luigi Mallé avalia que já no início do século XVI a pintura holandesa começa a revelar "uma peculiar excelência no retrato sóbrio e interiorizado", o que na segunda metade do século XVII atinge "os mais altos níveis de concentração interior". Cf. Mallé (1974:348-9). .

Nessa composição, os síndicos apresentam suas contas à guilda, encenando a vida burguesa dos negócios: um deles pousa a mão no livro aberto à sua frente, outro retém uma folha antes de querer referir-se a ela e, na extrema direita, o tesoureiro segura a bolsa de dinheiro. Se como já foi tantas vezes destacado por historiadores da arte, este quadro seria um exemplo cabal de como os personagens dos retratos de Rembrandt estão sempre imersos em seus afazeres, pode-se dizer que a segunda figura da esquerda para a direita é a que mais contribui para essa distorção da rotina retratística. Soerguido, o personagem sugere que acaba de sentar-se, ou, ao contrário, de levantar-se, explorando as várias posições intermediárias entre o sentar e o levantar. Enquanto todos olham para o lado esquerdo de fora do quadro, Volckert Jansz é o único a direcionar o olhar para o lado direito, trazendo para dentro da tela toda essa área externa que passa à direita do espectador. A criação dessa atmosfera de diálogo entre a bancada dos síndicos e um suposto auditório não deixa dúvidas de que estamos frente a homens flagrados em suas atividades diárias, confirmando as impressões de um estudioso desse último retrato coletivo de Rembrandt, para quem "as personagens não posam: as suas atitudes mostram como estão absorvidas nas suas ocupações" (Bockemühl 2005:59).

E por que a atitude dos modelos não corresponde à pose tradicional do retrato? Estaríamos diante daquela exclusão de toda forma de gratuidade que relega o ócio e o lazer à categoria de ostentação vã? Com efeito, nada parece ser mais contrário à chamada "perda de tempo" – o mais grave de todos os pecados entre os calvinistas – do que a representação da atividade profissional, a apresentação de si enquanto ser que trabalha racionalmente e que "posa" (se é que posa) não de forma paramentada, mas em vestes sóbrias, subvertendo o ofício do retratista, que sempre mobilizou as insígnias de validez social para atender aos desejos de prestígio dos retratados. Tal como o "tipo ideal" do empresário capitalista descrito por Weber, o que temos aqui é um personagem que "se esquiva à ostentação e à despesa inútil, bem como ao gozo consciente de seu poder, e sente-se antes incomodado com os sinais externos de deferência social de que desfruta" (Weber 2004:63).

A explicação que considera a Holanda seiscentista a quintessência da burguesia e supõe que "o negócio dos holandeses era fazer negócio e que sua política, sua religião, até sua arte de algum modo obedeciam a essa lei de ferro" (Schama 1992:18) vê na representação das guildas a mera expressão do estatuto privilegiado dessas corporações num país então considerado a mais formidável potência econômica da Europa. Nesse modo de ver, a encenação das guildas não faria senão atestar o seu prestígio destacado numa sociedade de prosperidade sem igual. Isso pode ser verdade, mas pode ser razoável pensar também que a tematização de pessoas em situação de trabalho e em companhia de colegas de ofício remeta a padrões de conduta que, religiosamente motivados, conformam um estilo de vida mais amplo. Não foi sempre que a história da arte deu existência a personagens ocupados com algum tipo de trabalho, mormente uma profissão do mundo comercial, em princípio mais aberta do que os postos que no século XVII eram privativos de certos estamentos 9 9 A representação dos assuntos do mundo comercial fez fortuna em meio aos povos bafejados pelo protestantismo ascético. Como que antecipando os futuros workoholics, cujo envolvimento com o trabalho perpassa todas as dimensões da vida, o sóbrio e restritivo estilo de vida dos quakers tinha na "discussão dos fatos do mundo comercial" uma das poucas recreações permitidas "por Deus". .

A representação pictórica de pessoas unidas por impessoais laços de trabalho – e não de amizade ou de amor – faz ecoar ainda, a nosso ver, a mentalidade puritana que via no apego a relações humanas pessoais um desvio da ação para os fins que são de Deus. Como mostrou Weber, "toda relação pessoal de caráter puramente sentimental – e, portanto, não condicionada racionalmente – de pessoa para pessoa incorre muito facilmente na suspeita, aos olhos tanto da ética puritana como de toda ética ascética, de cair em divinização da criatura" (Weber 2004:209).

Mesmo uma comparação bastante superficial com o "outro Barroco" mostra-se aqui bastante reveladora. Diferentemente dos pintores de corte Rubens (1577-1640) e Velásquez (1599-1660), expoentes da vertente palaciana da arte barroca do século XVII que se notabilizaram pela representação de figuras da aristocracia apreendidas em seu glamour extra-cotidiano, o autor de Os síndicos da guilda dos alfaiates deu existência a pessoas comuns mostradas em seu dia-a-dia de trabalho e em companhia de colegas de ofício10 10 Uma passada de olhos pela obra retratística de Rembrandt nos mostra que, salvo engano, há apenas dois retratos de figuras da nobreza, e ainda assim não da nobreza dos países europeus mais importantes no período: referimo-nos aos seus Retrato de um nobre oriental, de 1632, e Um nobre polonês, de 1637. .

Tanto aqui quanto nos demais retratos que serão vistos a seguir, o que temos são personagens "ocupadas" que não se dão a ver em situações de sociabilidade gratuita, gozando a vida em festas ou práticas de galanteio, mas em ocasiões que escancaram o rígido controle de si, a conduta de vida ordeira e o engajamento em alguma ação racional, repercutindo os mandamentos religiosos que condenam o ethos bon vivant da conversa ociosa, da espontaneidade desimpedida e do trajar ostensivo. A mil léguas de distância das poses voluptuosas e de puro deleite de cortesãos que fariam no século seguinte a alegria da pintura rococó, os personagens em tela posicionam-se de tal forma que se tem a impressão que acabaram de ser interrompidos, arrancados subitamente da atividade em que estavam imersos. Contra o "pecado da preguiça", nada que indique mau uso do tempo, nada que sugira a contemplação inativa, em detrimento da dedicação à vocação profissional.

Se o ócio que afasta do trabalho profissional e da devoção a Deus é em tudo contrário à ascese racional observada pelo protestante, não é difícil entendermos por que o ideal de vida puritano não via com bons olhos o cultivo de bens culturais cujo valor não fosse diretamente religioso, mas tão somente destinado ao deleite pessoal11 11 Exemplar a esse respeito foi o renhido debate em torno do uso do órgão por volta de 1630. Contrariando a proibição desse instrumento pelo Sínodo de Dordrecht, os calvinistas devotos defendiam o uso da música de órgão exclusivamente para fins religiosos e julgavam a decisão do Sínodo a pior possível, "pois o instrumento passara a ser tolerado como ornamento inútil ou distração dentro da Igreja, em vez de contribuir ativamente para a maior glória de Deus". Cf. Schama (1992:70). Grifos da autora. .

Mas ao refletir sobre os constrangimentos que a Igreja Reformada impôs ao florescimento de manifestações artísticas "desinteressadas", Weber ressalvou, não obstante, que tais restrições não se abateram sobre a literatura de cunho científico, o que vai de par com o fato de que, mesmo na Holanda, onde apesar de tudo o espaço para uma grande arte fora resguardado, tenha-se cultivado um veio artístico "não raro cruamente realista" (Weber 2004:153)12 12 Na opinião de um especialista em Rembrandt, foi justamente o realismo arrebatador das cenas construídas pelo pintor o que lhe rendeu notoriedade já enquanto jovem. Cf. Bockemühl (2005). .

Essa concessão à literatura estritamente científica – cujo equivalente pictórico é o gosto pela pintura realista, de transmissão clara e direta de idéias – impede-nos de dizer que a postura restritiva dos protestantes frente aos bens culturais significou um desprezo obscurantista pela cultura em geral. De acordo com A ética protestante, os povos puritanos eram grandes entusiastas do desenvolvimento das ciências empíricas, notadamente a física e disciplinas matemático-naturais, que trabalhavam com o método da racionalização matemática. A predileção pelas ciências empíricas devia-se ao fato de que, para o protestantismo ascético, as leis divinas inscritas na natureza só poderiam ser apreendidas empiricamente, jamais pela via da especulação conceitual. Ao discutir o sentido da ciência enquanto vocação, Max Weber lembra como a partir do século XVI, ao contrário do que se dá nos dias de hoje, a ciência foi tida como caminho que conduziria a Deus.

Lembremos o aforismo de Swammerdam: "Apresento-lhes aqui, na anatomia de um piolho, a prova da providência divina" e compreenderemos qual foi, naquela época, a tarefa própria do trabalho científico, sob influência (indireta) do protestantismo e do puritanismo: encontrar o caminho que conduz a Deus. Toda a teologia pietista daquele tempo, sobretudo a de Spener, estava ciente de que jamais se chegaria a Deus pela via que tinha sido tomada por todos os pensadores da Idade Média – e abandonou seus métodos filosóficos, suas concepções e deduções. Deus está oculto, seus caminhos não são os nossos, nem seus pensamentos os nossos pensamentos. Esperava-se contudo, descobrir traços de suas intenções através do exame da natureza, por intermédio das ciências exatas, que permitiriam apreender fisicamente suas obras (Weber 1970:34)13 13 A esse respeito, Weber escreveu ainda que "a desconfiança característica que o pietismo nutria por Aristóteles, e pela filosofia clássica de modo geral, já estava latente em Calvino". Cf. Weber (2004:231). .

Nessa linha de juízo, o empirismo do século XVII era o meio de buscar Deus na natureza, enquanto a especulação filosófica só fazia afastar o homem dos desígnios divinos. Como foi escrito em outro texto célebre, a religião "considera a pesquisa exclusivamente empírica, inclusive a Ciência Natural, como mais conciliável com os interesses religiosos do que a Filosofia. Isso ocorre, acima de tudo, com o protestantismo ascético" (Weber 1982:401)14 14 Isso não anula a idéia mais geral de que a tensão entre a religião e as diversas ordens do mundo é maior quando a ética religiosa enfrenta a esfera do conhecimento intelectual, seja ele predominantemente especulativo ou aplicado. Como pondera Weber, "todo aumento do racionalismo da ciência empírica leva a religião, cada vez mais, do reino racional para o irracional". (2004:401). .

Vejamos agora, a título de exemplo, a representação naturalista do corpo humano que se desprende de A lição de anatomia do Dr. Tulp, quadro feito para ser exposto nas paredes do primeiro andar da Casa de Pesagem Pública, ocupado pela guilda dos cirurgiões. Eis uma temática que fala por si mesma, na medida em que a dissecação meticulosa do corpo humano para conhecer-lhe as partes está em perfeito acordo com essa idéia de que o homem deve valer-se da ciência para apreender empiricamente as criações de Deus. Como nota Richard Mühlberger, "era costume iniciar uma aula de anatomia com a exortação 'Conhece-te a ti mesmo', pois os holandeses acreditavam que poderiam entender Deus pelo estudo de suas criações, entre as quais o corpo humano"15 15 Mühlberger (2002:14). . Outra não é a visão de Michael Bockemühl, para quem o objetivo das aulas públicas de anatomia em Amsterdã era "realçar a sabedoria que o Criador mostrara ao conceber o corpo humano. A finalidade da dissecação não era verificar à vista os bons fundamentos da sabedoria das obras dos Antigos, mas sim confirmá-los" (Bockemühl 2005:40)16 16 Consta ainda no itinerário artístico de Rembrandt o quadro A lição de anatomia do Doutor Joan Deyman, de 1656. .

Nessa representação plástica de uma autópsia de cadáver tal como era praticada no século XVII, o clareamento da palheta não parece aleatório. Ao retratar minuciosamente os tendões do antebraço esquerdo sendo levantados pela pinça de um cirurgião, Rembrandt não buscou meramente destacar um corpo humano qualquer, mas a investida científica no corpo humano, o gosto pela aplicação prática do conhecimento tão caro à mentalidade protestante da época.

De proporções e contornos bem definidos em suas áreas mais significativas, a composição mobiliza o clareamento da palheta no momento exato da intervenção cirúrgica, fazendo uso de um procedimento técnico que atende a um princípio de encenação recorrente na verve de Rembrandt, o qual consiste em levar ao auge o episódio narrado, retratando-lhe o ponto culminante. Para Bockemühl, "ao longo de toda a sua obra, Rembrandt não fugirá a este princípio e tratará sempre de mostrar o ponto culminante de um acontecimento ou de uma situação" (Bockemühl 2005:18).

Por fim, resta dizer que nesse quadro, como em Os síndicos da guilda dos alfaiates, o espectador se confronta com personagens que partilham uma ocupação e estão envolvidas coletivamente numa atividade racional. Sóbrias e compenetradas, tanto lá como aqui, tais figuras encarnam o exato oposto daquilo que se poderia chamar de gozo espontâneo da vida, rompendo com toda forma de contentamento com o mundo: a fisionomia concentrada do orador, a escuta atenta de um imaginário auditório, o olhar dos discípulos para o livro onde conferem as palavras do Dr. Tulp. Além do chapéu, Dr. Tulp se distingüe dos outros médicos pela gola retangular e plana – e não redonda bufante – e também pelos punhos brancos. Enquanto ministra sua aula, o cirurgião-professor não dirige o olhar ao cadáver mas aos seus formandos, como que a perscrutar reações de assentimento ou contrariedade.

Guilda de alfaiates, guilda de cirurgiões e construtor naval: a pintura de Rembrandt recende puritanismo no retrato de uma sociedade que é vista através de suas atividades profissionais17 17 Desnecessário lembrar que as guildas eram formadas por membros do chamado brede middenstand, justamente a camada social onde se concentram, na opinião de Weber, os portadores preferenciais da ascese protestante. . O elogio à especialização das profissões, garantia do incremento qualitativo e quantitativo do trabalho, bem como as prescrições de que uma profissão fixa ("certain calling", "stated calling") é a que melhor convém são alguns dentre outros temas caros à sensibilidade protestante que aqui vemos transpostos plasticamente. Só mesmo um ascetismo vocacional tão firmemente levado a sério poderia fazer refluir a invencível oposição da ascese protestante às artes visuais.

Outro indício do envolvimento de Rembrandt com os meios religiosos protestantes que floresceram nos Países Baixos do século XVII nos é dado por uma série de retratos (dois desenhos, duas gravuras e um quadro) do ministro menonita Cornelis Claeszoon Anslo, conhecido como eloqüente pregador e autor religioso. Um dos poucos retratos duplos pintados por Rembrandt, O pregador menonita Cornelis Claeszoon Anslo a conversar com sua mulher Aeltje, de 1641, encena o modo de vida desses devotos full-time que, avessos à tutela eclesiástica, travam contato direto com Deus em profundo isolamento interior18 18 Essa apropriação subjetiva da religiosidade por parte do indivíduo tinha, na opinião de Weber, conseqüências muito mais poderosas para a conduta de vida cotidiana quando comparada a uma regulamentação da ascese pela disciplina eclesiástica. Para uma análise pormenorizada de como algumas seitas anabatistas – e, dentre elas, em menor medida, os menonitas - desvalorizavam a salvação por via eclesiástica, consultar Weber (2004:133). .

A abolição da mediação clerical característica de alguns partidários da Reforma é transposta plasticamente neste episódio que, em lugar de retratar os rituais religiosos tradicionais, dá à Bíblia uma importância imensa nas práticas de devoção. Na avaliação de Mühlberger,

era costume dos ministros menonitas pregar para suas famílias em casa. Rembrandt decidiu que seria esse o tema de seu quadro. No retrato duplo, o ministro prega para sua mulher, Aeltje. O gesto de sua mão esquerda foi usado desde os artistas da Roma antiga para representar o homem como um orador. Ao escutar atentamente, Aeltje não olha para o marido, mas para a Bíblia, fonte de toda sua sabedoria e inspiração. Rembrandt reservou os poucos toques de cor do quadro para o rosto do casal Anslo, cujas roupas, em contraste, são escuras e discretas (Mühlberger 2002:28)19 19 Outro pastor que Rembrandt retratou em gesto de orador foi Jan Cornelisz, cuja gravura a ponta-seca, que data de 1646, não será analisada aqui. .

Em gesto de aquiescência e inteiramente absorvida no que escuta, a esposa está sentada numa cadeira com os braços descansados sobre a região limítrofe entre as coxas e o ventre, trajando um longo vestido preto, todo fechado, sem qualquer decote, que traz como adorno somente uma gola branca discretamente pregueada. Em sua atitude de imobilidade, dá-se a ver não em sensuais cabelos esvoaçantes, mas com a cabeça envolta numa espécie de touca que cobre toda a cabeleira até chegar às orelhas, de onde não se desprende qualquer sinal de brincos ou alguma outra jóia. Outra não é a situação em que se deixa retratar a figura feminina do quadro O construtor naval Jan Rijcksen e sua mulher Griet Jans, mencionado acima. Lá, como aqui, as mesmas vestes sóbrias, a mesma ausência de qualquer tipo de enfeite, o mesmo gesto de subserviência em relação ao marido que prossegue diligente em seu ofício. Como os discretos e funcionais quakers tão bem caracterizados por Weber, os casais de Rembrandt parecem integrar o mesmo time de opositores invencíveis de toda sorte de penduricalhos ou acessórios destituídos de fim prático.

Além da discrição das roupas - sinal da invencível hostilidade ao estilo de vida aristocrático –, os interiores domésticos em que os dois casais se dão a retratar são igualmente contidos, indicando a reprovação do uso senhorial-feudal da propriedade e, assim, a adesão à indiferença com relação aos bens materiais deste mundo que todo bom puritano deve observar. Os personagens destacam-se de fundos que poderíamos dizer neutros, e é sempre a ação que une as figuras da trama e nunca o cenário em que se desenrola a ação. A bem da verdade, nenhuma das quatro obras que retratam interiores expõe espaços ornamentados que denunciariam uma nítida preocupação com a estilização da existência por parte dos personagens neles dispostos. Ao contrário, a sobriedade dos fundos parece prolongar o comedimento das figuras, o férreo domínio de si de personagens que parecem mergulhados numa permanente auto-inspeção. Tanto nos retratos de casal como nos das guildas, o que temos são personagens cujos olhares não fixam o espectador, e que mesmo quando são retratados de frente não abandonam certa atitude esquiva e introspectiva. Nos quatro casos, figura e fundo em perfeito acordo na negação de todo "gozo descontraído das posses", de todo apego "pecaminoso" ao mundo20 20 Exemplar, nesse sentido, é o quadro O festim de Baltazar, de 1635, no qual Rembrandt elege como clímax da narrativa o momento em que o rei Baltazar, que oferecia um lauto jantar, vê subitamente uma mão espectral a escrever uma mensagem de destruição, sendo assim punido em flagrante numa ocasião de luxo e embriaguez. . A alternativa "ou-ou", isto é, ou vontade de Deus ou vaidade humana, parece excluir toda inclinação decorativa, tratando tudo o que não é estritamente funcional como sinal de depravação aristocrática e uso concupiscente dos bens da terra21 21 A esse respeito, é interessante lembrar aqui a recuperação da noção de confort que Weber atribuiu ao estilo de vida cultivado pelos quakers: "Aos brilhos e clarões do fausto cavalheiresco que (...) prefere a elegância sórdida à sóbria simplicidade, eles opõem como ideal o conforto asseado e sólido do home burguês". Cf. Weber (2004:156). Desnecessário dizer que, no que diz respeito à ornamentação pessoal, o apreço dos quakers pelo conforto vira do avesso a moda aristocrática que tinha na roupa incômoda uma das maiores insígnias de validez social, precisamente por sinalizar que seu portador estava desobrigado de trabalhar. .

Essa rígida e inconciliável alternativa entre o que é de Deus e o que é da criatura também é uma chave para apreendermos a inspiração dos trajes no quadro da guilda dos alfaiates sobre o qual já discorremos. Se é certo que na Holanda do século XVII os membros das guildas não se caracterizavam pelo uso de uniforme (Schama 1992:245), não é bem esse costume anti-nivelador que se desprende da pintura de Rembrandt. Como é claríssimo já à primeira vista, à exceção de um único personagem retratado sem chapéu – e apesar dos tecidos das vestes de alguns deles serem mais cintilantes –, os retratados síndicos da guilda dos alfaiates praticamente não se distinguem um do outro. A indumentária é substantivamente a mesma para cada um do grupo, e cada um deles está pintado na mesma escala que todos os demais. A condenação da "divinização da criatura" parece revelar-se aqui com força. Não há como atribuir um significado especial a quem quer que seja ante a significação inigualável do reino de Deus – e só dele. Quando reflete sobre a tiranização puritana de todas as superfluities, Weber sublinha que

mais do que nunca isso se verificava quando se tratava da ornamentação direta da pessoa, por exemplo, dos trajes. Essa poderosa tendência para a uniformização do estilo de vida, que hoje vai lado a lado com o interesse capitalista na standardization da produção, tinha seu fundamento ideal na rejeição à "divinização da criatura" (Weber 2004:154) 22 22 Uma outra razão para essa tendência ao nivelamento estaria no baixo apreço dos holandeses pelas virtudes feudais e aristocráticas, ao qual nos referimos anteriormente. Quando discorre sobre a preocupação tipicamente holandesa de representar plasticamente a participação coletiva em alguma irmandade urbana por meio da apresentação ostensiva de todos os membros do grupo – e não somente dos mais importantes –, Schama considera que tais representações iconográficas simbolizavam "a fraternidade comunal que se comprometera a defender a cidade contra os abusos do feudalismo e do absolutismo". Cf. Schama (1992:185). .

Retomando agora a composição do espaço cênico de O pregador menonita Cornelis Claeszoon Anslo a conversar com sua mulher Aeltje e pensando, especialmente, nas questões de iluminação, vemos que o modo como Rembrandt representa seus personagens é em si já bastante significativo: o diálogo do pintor com as subculturas de tradição protestante puritana revela-se não apenas no plano da temática, evidente na própria escolha dos modelos, mas também no nível da notação cromática e luminosa, uma vez que reservou à Bíblia – e não ao casal – a área predominantemente contraposta à área de sombra, bem como uma das partes da pintura mais investida de cores. É o livro sagrado que é apanhado pela luz que vem do lado esquerdo do quadro, ainda que as golas, mãos e rostos dos personagens também tenham mobilizado o clareamento da paleta, sobressaindo do fundo escuro.

Herdeiro artístico do caravaggismo da Escola de Utrecht, Rembrandt não se esgota facilmente no rótulo de adepto do claro-escuro para aqueles que, como Bockemühl, atribuem às zonas iluminadas de seus quadros "uma função ostensiva de demonstração", isto é, a de sublinhar os momentos altos da ação e os personagens principais, deixando na obscuridade o resto do espaço (Bockemühl 2005:36). Ante essa idéia de que em Rembrandt a iluminação desempenha um papel tão ativo a ponto de ser tida como "suporte da ação", pode-se dizer, com alguma justiça, que toda a composição da tela em pauta parece pensada para atender a um ponto de honra do protestantismo calvinista, o qual celebra a soberania absoluta de Deus pairando sempre muito acima do melhor dos expoentes humanos. Como insiste Mühlberger, "a Bíblia domina a metade do quadro. Ao colocá-la sob forte luz, sobre o suntuoso vermelho do tapete oriental que cobre a mesa, Rembrandt a fez competir em importância com os retratados. Ao contrário dos outros livros na sala, ela está aberta e apoiada em um suporte, o que a distingue como objeto de veneração" (Mühlberger 2002:30).

A mesma "função ostensiva de demonstração" direciona o olhar que pode ser lançado ao retrato do construtor naval e sua esposa, no qual as zonas mais claras e mais infundidas de colorido são, justamente, as que dão a ver o envolvimento do personagem com sua vocação profissional, aqui representada com alarde pelo manejo de um compasso. Mais do que isso, o tipo de profissão em que se aferra o personagem é algo por si só bastante significativo para o tipo de argumento que estamos tentando defender aqui. Além de aludir à predileção puritana pelos métodos de racionalização matemática, os estudos de engenharia naval – que pressupõem o conhecimento aplicado de geometria e matemática – punham-se a serviço da promoção de um ethos mercantil, outra virtude cara aos protestantes. Tendo em vista o quanto a generosa malha fluvial holandesa foi significativa para a presença marcante do país nas principais rotas comerciais da Europa, não é difícil entender por que Rembrandt encena o ofício de um construtor naval, figura imprescindível, no século XVII, à expansão econômica da Holanda.

Nas quatro telas vistas até aqui, os personagens movem-se invariavelmente entre duas alternativas: ou travam contato direto com Deus – caso do casal menonita –, ou estão envolvidos por inteiro nas suas atividades profissionais – caso da guilda dos alfaiates, da guilda dos cirurgiões e do construtor naval com régua e compasso em punho –, correspondendo inteiramente àquela recomendação puritana de que é preciso ter uma vocação que preencha racionalmente todo o tempo não empregado no serviço imediato ao Senhor. Se, tal como afirma um estudioso da obra de Rembrandt, "os assuntos que o artista escolhe dizem-nos qual o objetivo que quer atingir com as suas encenações" (Bockemühl 2005:23), pode-se dizer, sem muito medo de errar, que a pintura rembrandtiana reverencia não a posuda lassidão do grão-senhor ou a ostentação do novo-rico, mas, de forma inequívoca, a sóbria continência do self-made man burguês em suas primeiras configurações.

Ainda sobre o retrato do casal menonita, a presença do livro sagrado poderia remeter também a uma cultura livresca e, mais especificamente, à fixação literária de conhecimentos que é própria das religiões doutrinárias. Diferentemente do misticismo mágico ou meramente contemplativo, as religiões que recorrem a uma doutrina investem-se de uma apologética racional e selam, assim, a valorização religiosa do saber. A análise que faz Weber das sempre renovadas ligações entre a religião e o intelectualismo sugere que "quanto mais a religião se tornou livresca e doutrinária, tanto mais literária tornou-se e mais eficiente foi no estímulo ao pensamento leigo racional, livre do controle sacerdotal" (Weber 1982:402). A despeito da invencível disparidade entre as imagens do mundo esboçadas pelas formas religiosas e pelas visadas intelectuais, e ainda muito embora o fato de que toda religião exija, em alguma medida, o "sacrifício do intelecto", a própria busca intelectualista de salvação, bem como a interiorização do caráter racional da ética religiosa, estiveram a renovar constantemente as alianças entre religião e intelectualismo, testemunhando a recorrência ao conhecimento racional por parte da religiosidade ética23 23 Sobre como a cultura livresca dos puritanos decorreu, em parte, da valorização religiosa do saber, consultar Weber (2004:153). .

Poder-se-ia pensar, por fim, que o olhar da esposa à bíblia – e não ao marido – e, da mesma forma, a própria postura do marido, que discorre sobre passagens bíblicas - e não sobre o cotidiano do casal -, sugerem antes os laços de fé do que as ligações de matrimônio. Ligações essas, aliás, das quais só tomamos conhecimento através do título da obra. Quando trata das tensões existentes entre a religião e o mundo – conflito que é tanto mais agudo quanto mais as religiões tiverem sido religiões de salvação -, Weber avalia que as profecias salvacionistas – como é o caso do protestantismo ascético, uma religião de salvação individual – criam comunidades religiosas cujas obrigações rivalizam com os papéis pressupostos no interior do clã natural, e exigem, muitas vezes, a hostilidade em relação aos membros da casa por parte de todo aquele que se pretendesse discípulo de Jesus. A frase célebre "não vim trazer a paz, mas a espada" (Mateus X, 34) é metáfora perfeita dessa religiosidade que supõe "que o fiel deve, em última análise, aproximar-se mais do salvador, do profeta, do sacerdote, do padre confessor, do irmão em fé, do que dos parentes naturais e da comunidade matrimonial" (Weber 1982:377).

Supremo exemplo de uma relação permanente entre conduta de vida e premissas religiosas, o empenho em organizar formalmente a composição de modo a retratar um casal no recesso do lar, porém envolvido no serviço imediato a Deus, é indicador de um ponto de honra protestante ao qual já nos referimos anteriormente: aquele segundo o qual as premissas religiosas devem permear e regular a totalidade da vida de todo dia, não estando, portanto, restrito aos canais institucionalizados de devoção.

O forte predomínio de interesses religiosos em todas as dimensões do cotidiano que dá aos preceitos do onipresente Deus puritano o poder de legislar acerca da condução da vida por inteiro, pode ser uma chave para entendermos o implacável golpe moralizante que a representação pictórica rembrandtiana impingiu ao mito grego O rapto de Ganimedes24 24 Devo a Antônio Flávio Pierucci a recomendação da análise desse quadro específico. . Nesse quadro, um pouco diferentemente dos outros examinados até aqui, o jogo de zonas claras e escuras se mantém, ainda que menos intenso, e as zonas de dégradés e traços esfumados ganham mais espaço relativo na área total da tela. Os contornos do fundo se dissipam, formas e cores não têm consistências bem delineadas, o que contribui para a criação de uma cena de alvoroço, da qual se desprende um personagem dominante. Não fosse a presença da águia, O rapto de Ganimedes estaria de todo destituído de personagens secundários. Ao contrário das outras obras já analisadas, o ambiente em que se encena a ação é uma paisagem, conquanto nebulosa, e não um interior, o que é mais freqüente em Rembrandt e na própria pintura barroca de modo geral.

Se o chamado "barroco burguês" dos países protestantes é conhecido pelo alto valor que é dado à transmissão clara e direta das idéias, aqui o fim doutrinário é flagrante e expressão inequívoca da intransigência puritana. Encomendado por um calvinista, o Ganimedes de Rembrandt distorce violentamente os matizes eróticos clássicos, afastando-se da representação corrente do mito. Segundo a fábula clássica, o filho do rei de Tróia, Ganimedes, era um belíssimo jovem que despertara a paixão de Zeus e, em função disso, fora raptado pelo próprio Zeus travestido de águia para ser levado ao Olimpo. Diferentemente de Rubens, pintor oficial da corte italiana que segue as convenções clássicas ao retratar a dócil entrega erótica de um atraente efebo, Rembrandt nos apresenta uma águia em fúria a arrebatar subitamente uma criança que chora e se urina toda de medo. A intensidade da carga dramática, expressa no gesto de pavor na fisionomia do menino, transforma o símbolo do amor grego quase que numa condenável cena de violência pedófila. Não parece haver dúvidas de que estamos diante de uma arte incitada pela "tirania" calvinista.

Duas versões de O rapto de Ganimedes de Rubens

Essa interpretação ganha ainda mais força quando sabemos que "depois do processo da 'Alteração' protestante – admirável eufemismo – em Amsterdã, em 1578, eram os crimes contra a família ou contra a ordem sexual 'natural' que exigiam a extirpação pela água" (Schama 1992:34) 25 25 Grifos da autora. Na Holanda "na época de ouro", os crimes mais sérios eram punidos pelo afogamento e, nesse período, molhado era sinônimo de cativo, vadio e pobre, ao passo que seco equivalia a livre, trabalhador e remediado. Seja pela sensibilidade moral da época, seja pela geografia de um país em permanente luta contra o mar, o fato é que se pensava então que os que sobrevivem a inundações transformam a catástrofe em fortuna, marcando o início do respeito por si mesmo. Além disso, na consciência histórica dos holandeses, a resistência às inundações dos séculos XIV e XV os tornava sobreviventes predestinados e abençoados por determinação divina. . Um outro exemplo de como a dominação calvinista foi, para falar como Weber, "a forma simplesmente mais insuportável que poderia haver de controle eclesiástico do indivíduo" (Weber 2004:31) reside no fato de que enquanto os idealizadores das casas de correção de Amsterdã, seguindo a tradição holandesa de reabilitação, advogavam a necessidade de se guardar sigilo sobre a identidade dos presos, a fim de que não carregassem nenhum estigma quando voltassem a se reintegrar na sociedade civil, uma ética rival calvinista nada fez para impedir que se zombasse das prostitutas cativas, pois, bem ao contrário, "sustentava que a vergonha provocada pela exposição podia ser o arauto da regeneração" (Schama 1992:31).

No fundo, o que tentamos sugerir é que houve aí certa continuidade entre o rigorismo moral puritano, que relega à categoria de unclean life todas as tentações sexuais, e a atitude tomada pelo pintor frente à interpretação de um mito erótico grego, sobretudo quando se tem em vista a inelutável sintonia que deve existir entre o ofício do retratista e as circunstâncias da encomenda. Aceitar uma encomenda implica invariavelmente alguma restrição à autonomia do artista. Nessa linha de juízo, a posição atribuída à ascese sexual no puritanismo – que abarca também a vida conjugal e é por isso mesmo mais poderosa do que a ascese monástica – era, para Rembrandt, um encorajamento para inseri-la em suas pinturas, tanto mais que se tratava, no caso em tela, de satisfazer às expectativas de um seguidor da Igreja Calvinista.

Quando reflete sobre o efeito absolutamente devastador do ideal de vida puritano sobre as artes visuais, Max Weber mostra que em searas protestantes o teatro, em si mesmo condenável, ficou marcado por estrita exclusão do erótico e da nudez, e "as concepções mais radicais não tiveram como se firmar na dramaturgia, como nas artes" (Weber 2004:156)26 26 A esse respeito, Schama escreve que "em 1654, Lúcifer, a controvertida peça de Vondel, provocou renovada campanha contra o teatro profano, bem como ativa perseguição a pessoas de 'má vida' que, entre outros, apanhou em sua rede Rembrandt e Hendrijke Stoffels. Cf. Schama (1992:125). .

Dessa forma, pode-se concluir, em suma, que a distorção do mito erótico clássico respondeu à necessidade de transpor plasticamente a demonização generalizada do desejo sexual não-rotinizado – desejo esse, aliás, imprescindível à vigência da esfera especificamente erótica –, compondo o equivalente pictórico da oposição do ascetismo racional, ativo, à maior força irracional da vida: o amor sexual.

Para além das incompatibilidades entre as orientações religiosas e a esfera erótica, a própria esfera estética entra, como vimos, em conflito permanente com a inclinação racional do puritanismo, que se posiciona de maneira absolutamente negativa "perante todos os elementos de ordem sensorial e sentimental na cultura e na religiosidade subjetiva" (Weber 2004:96). Mas se, apesar e à revelia disso, a Holanda calvinista entrou para a história da arte do século XVII, não parece ter sido despropositado inventariar aqui as marcas especificamente puritanas impingidas à obra plástica de um de seus mais importantes pintores, Rembrandt Harmenzoon van Rijn.

Considerações finais

O argumento de que existem traços de protestantismo puritano na pintura de Rembrandt não anula ou exclui a influência de outras culturas religiosas na obra desse eminente representante das artes plásticas holandesas seiscentistas, pois, como dito anteriormente, Rembrandt não só foi pessoalmente marcado por uma determinada variedade de confissão religiosa como soube mobilizar, ao longo de sua carreira artística, repertórios doutrinários diferencialmente apropriados por judeus, protestantes e até católicos.

A esse respeito, poder-se-ia ter mostrado aqui também que boa parte de sua produção retratística recende o que Weber chamou de "sabedoria hebraica de vida" (Weber 2004:112), o que nos permitiria pensar na penetração do espírito judaico do Antigo Testamento no puritanismo e, com isso, redimensionar o que teriam sido as referências religiosas no itinerário artístico rembrandtiano27 27 Sobre a presença dos "climas severos do Velho Testamento" na pintura dos Países Baixos setentrionais, ver Mallé (1974). .

A assimilação puritana do racionalismo vétero-testamentário aparece ainda na atenção dada aos patriarcas bíblicos, tidos como aqueles que possuíam o estado de alma dos próprios eleitos e que eram, assim, verdadeiros parâmetros de vida para os devotos interessados na comprovação do estado de graça28 28 A respeito do fascínio dos holandeses pelo repertório do Velho Testamento e da identificação da Holanda com Israel em questões de ordem patriótica, ver Schama (1992). . Alguns dos vários exemplos da presença dessa temática no conjunto da obra de Rembrandt são os quadros O profeta Jeremias lamentando a destruição de Jerusalém (1630), Abraão e Isaac (1645), José acusado pela esposa de Potifar (1655), David tocando a harpa antes de Saul (1656), Jacó abençoando os filhos de José (1656), Moisés com as tábuas da lei (1659), São Mateus e o anjo (1661), entre outros. Não foi à toa, pois, que Weber afirmou tão peremptoriamente que "quem pára diante do Saul e Davi de Rembrandt imediatamente acredita sentir o poderoso efeito da sensibilidade puritana" (Weber 2004:263).

Mas o propósito do presente ensaio foi o de explicitar o modo como os retratos de Rembrandt registraram o impacto da sensibilidade puritana no dia-a-dia do homem comum e não, de forma específica, na caracterização de personagens e episódios bíblicos. As aproximações sugeridas aqui nos permitem concluir, com Weber, que mesmo com o desapreço protestante pelas chamadas artes visuais e a breve dominação da teocracia calvinista na Holanda, pode-se dizer que, com Rembrandt, a disposição religiosa dos seguidores do protestantismo ascético figurou em boa medida na pintura holandesa do século XVII.

Fontes

Os síndicos da guilda dos alfaiates

http://www.rijksmuseum.nl/images/aria/sk/z/sk-c-6.z

http://www.rijksmuseum.nl/aria/aria_assets/SK-C-6?lang=nl&context_space=&context_id =

A lição de anatomia do Dr. Tulp

http://www.wga.hu/art/r/rembran/painting/group/anatomy.jpg

http://home.tiscali.nl/~corosa/rembrandt/anatomischeles.html

O construtor naval Jan Rijcksen e sua mulher Griet Jans

http://home.tiscali.nl/~corosa/rembrandt/scheepsbouwer.html

O pregador menonita Cornelis Claeszoon Anslo a conversar com sua mulher Aeltje

http://www.wga.hu/art/r/rembran/painting/group/anslo.jpg

O rapto de Ganimedes (Rembrandt)

http://www.wga.hu/art/r/rembran/painting/z_other/ganymede.jpg

O rapto de Ganimedes (Rubens)

Versão 1

http://www.wga.hu/art/r/rubens/21mythol/10mythol.jpg

Versão 2

http://www.maicar.com/GML/000Free/000Ganymedes/source/16.html

http://www.canariastelecom.com/personales/fernandorubio/ganimedes4g.jpg

Notas

Recebido em fevereiro de 2007

Aprovado em abril de 2007

Carolina Pulici

Doutoranda em Sociologia pela USP. (carolpulici@terra.com.br)

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  • MÜHLBERGER, Richard. (2002), O que faz de um Rembrandt um Rembrandt? Tradução de Valentina Fraíz-Grijalba. São Paulo: Cosac & Naify.
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  • SCHAMA, Simon. (1992), O desconforto da riqueza: a cultura holandesa na época do ouro. Uma interpretação Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras.
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  • VÁRIOS. "Novo Testamento". In Bíblia Sagrada Edições Paulinas, 1985.
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  • ZUMTHOR, Paul. (1989), A Holanda no tempo de Rembrandt Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 1
    É certo que n'
    A ética Weber emprega com mais freqüência o termo "conduta de vida" e menos vezes "estilo de vida". Entretanto, no momento em que, no último capítulo, discute sistematicamente a postura do protestantismo ascético frente aos bens culturais, o autor passa a empregar mais vezes o conceito de "estilo de vida".
  • 2
    "A eclosão de reavivamentos ascéticos no seio das comunidades calvinistas sempre esteve ligada, notadamente na Holanda, a um reaquecimento da doutrina dapredestinação após período de momentâneo esquecimento, ou abatimento". Cf. Weber (2004:117).
  • 3
    É disso que se esquecem os anti-weberianos que, como Schama (1992), sinonimizam riqueza e usufruto da riqueza! O gozo das posses – e não a posse em si – já foi exaustivamente apontado pelo próprio Weber como atitude moralmente reprovável.
  • 4
    A Amsterdã de Rembrandt aparece, n'
    A ética, como a sede por excelência do mercantilismo e como exemplo de cidade que acolheu generosamente os adeptos das seitas protestantes, por serem considerados preciosos portadores do progresso econômico. Cf. Weber (2004:229).
  • 5
    Essa tendência holandesa de não observar os critérios adequados a um grande Estado monárquico harmoniza-se com a ascese que, em princípio, é hostil à autoridade. Como mostra Weber, o ascetismo era perigoso para o Estado porque era antiautoritário. "A sociedade monárquico-feudal defendia os 'desejosos de diversão' contra a moral burguesa emergente e o conventículo ascético hostil à autoridade (...)". Cf. Weber (2004:152).
  • 6
    Eis um belo exemplo de como Schama sinonimiza enriquecimento e gozo das posses, coisas que Weber distingue bem; fala-se em "desconforto da riqueza" mas o exemplo dado é o de um banquete, que, por definição, é uma refeição lauta que indica o usufruto da riqueza para viver luxuosamente e não, simplesmente, a riqueza em si.
  • 7
    Ainda que, como adverte Schama, seja "errôneo pensar que a República holandesa e o calvinismo ortodoxo fossem intercambiáveis", não é possível negar que essa era a religiosidade oficial e privilegiada – como não nega o fato de que ser membro da igreja reformada constituía condição para ocupar cargo público –, e que, nas palavras do próprio Schama, "a República não teria sido criada sem os calvinistas" (:68).
  • 8
    Luigi Mallé avalia que já no início do século XVI a pintura holandesa começa a revelar "uma peculiar excelência no retrato sóbrio e interiorizado", o que na segunda metade do século XVII atinge "os mais altos níveis de concentração interior". Cf. Mallé (1974:348-9).
  • 9
    A representação dos assuntos do mundo comercial fez fortuna em meio aos povos bafejados pelo protestantismo ascético. Como que antecipando os futuros
    workoholics, cujo envolvimento com o trabalho perpassa todas as dimensões da vida, o sóbrio e restritivo estilo de vida dos quakers tinha na "discussão dos fatos do mundo comercial" uma das poucas recreações permitidas "por Deus".
  • 10
    Uma passada de olhos pela obra retratística de Rembrandt nos mostra que, salvo engano, há apenas dois retratos de figuras da nobreza, e ainda assim não da nobreza dos países europeus mais importantes no período: referimo-nos aos seus
    Retrato de um nobre oriental, de 1632, e
    Um nobre polonês, de 1637.
  • 11
    Exemplar a esse respeito foi o renhido debate em torno do uso do órgão por volta de 1630. Contrariando a proibição desse instrumento pelo Sínodo de Dordrecht, os calvinistas devotos defendiam o uso da música de órgão exclusivamente para fins religiosos e julgavam a decisão do Sínodo a pior possível, "pois o instrumento passara a ser tolerado como
    ornamento inútil ou distração dentro da Igreja, em vez de contribuir ativamente para a maior glória de Deus". Cf. Schama (1992:70). Grifos da autora.
  • 12
    Na opinião de um especialista em Rembrandt, foi justamente o realismo arrebatador das cenas construídas pelo pintor o que lhe rendeu notoriedade já enquanto jovem. Cf. Bockemühl (2005).
  • 13
    A esse respeito, Weber escreveu ainda que "a desconfiança característica que o pietismo nutria por Aristóteles, e pela filosofia clássica de modo geral, já estava latente em Calvino". Cf. Weber (2004:231).
  • 14
    Isso não anula a idéia mais geral de que a tensão entre a religião e as diversas ordens do mundo é maior quando a ética religiosa enfrenta a esfera do conhecimento intelectual, seja ele predominantemente especulativo ou aplicado. Como pondera Weber, "todo aumento do racionalismo da ciência empírica leva a religião, cada vez mais, do reino racional para o irracional". (2004:401).
  • 15
    Mühlberger (2002:14).
  • 16
    Consta ainda no itinerário artístico de Rembrandt o quadro
    A lição de anatomia do Doutor Joan Deyman, de 1656.
  • 17
    Desnecessário lembrar que as guildas eram formadas por membros do chamado
    brede middenstand, justamente a camada social onde se concentram, na opinião de Weber, os portadores preferenciais da ascese protestante.
  • 18
    Essa apropriação subjetiva da religiosidade por parte do indivíduo tinha, na opinião de Weber, conseqüências muito mais poderosas para a conduta de vida cotidiana quando comparada a uma regulamentação da ascese pela disciplina eclesiástica. Para uma análise pormenorizada de como algumas seitas anabatistas – e, dentre elas, em menor medida, os menonitas - desvalorizavam a salvação por via eclesiástica, consultar Weber (2004:133).
  • 19
    Outro pastor que Rembrandt retratou em gesto de orador foi Jan Cornelisz, cuja gravura a ponta-seca, que data de 1646, não será analisada aqui.
  • 20
    Exemplar, nesse sentido, é o quadro
    O festim de Baltazar, de 1635, no qual Rembrandt elege como clímax da narrativa o momento em que o rei Baltazar, que oferecia um lauto jantar, vê subitamente uma mão espectral a escrever uma mensagem de destruição, sendo assim punido em flagrante numa ocasião de luxo e embriaguez.
  • 21
    A esse respeito, é interessante lembrar aqui a recuperação da noção de
    confort que Weber atribuiu ao estilo de vida cultivado pelos
    quakers: "Aos brilhos e clarões do fausto cavalheiresco que (...) prefere a elegância sórdida à sóbria simplicidade, eles opõem como ideal o conforto asseado e sólido do
    home burguês". Cf. Weber (2004:156). Desnecessário dizer que, no que diz respeito à ornamentação pessoal, o apreço dos
    quakers pelo conforto vira do avesso a moda aristocrática que tinha na roupa incômoda uma das maiores insígnias de validez social, precisamente por sinalizar que seu portador estava desobrigado de trabalhar.
  • 22
    Uma outra razão para essa tendência ao nivelamento estaria no baixo apreço dos holandeses pelas virtudes feudais e aristocráticas, ao qual nos referimos anteriormente. Quando discorre sobre a preocupação tipicamente holandesa de representar plasticamente a participação coletiva em alguma irmandade urbana por meio da apresentação ostensiva de todos os membros do grupo – e não somente dos mais importantes –, Schama considera que tais representações iconográficas simbolizavam "a fraternidade comunal que se comprometera a defender a cidade contra os abusos do feudalismo e do absolutismo". Cf. Schama (1992:185).
  • 23
    Sobre como a cultura livresca dos puritanos decorreu, em parte, da valorização religiosa do saber, consultar Weber (2004:153).
  • 24
    Devo a Antônio Flávio Pierucci a recomendação da análise desse quadro específico.
  • 25
    Grifos da autora. Na Holanda "na época de ouro", os crimes mais sérios eram punidos pelo afogamento e, nesse período, molhado era sinônimo de cativo, vadio e pobre, ao passo que seco equivalia a livre, trabalhador e remediado. Seja pela sensibilidade moral da época, seja pela geografia de um país em permanente luta contra o mar, o fato é que se pensava então que os que sobrevivem a inundações transformam a catástrofe em fortuna, marcando o início do respeito por si mesmo. Além disso, na consciência histórica dos holandeses, a resistência às inundações dos séculos XIV e XV os tornava sobreviventes predestinados e abençoados por determinação divina.
  • 26
    A esse respeito, Schama escreve que "em 1654,
    Lúcifer, a controvertida peça de Vondel, provocou renovada campanha contra o teatro profano, bem como ativa perseguição a pessoas de 'má vida' que, entre outros, apanhou em sua rede Rembrandt e Hendrijke Stoffels. Cf. Schama (1992:125).
  • 27
    Sobre a presença dos "climas severos do Velho Testamento" na pintura dos Países Baixos setentrionais, ver Mallé (1974).
  • 28
    A respeito do fascínio dos holandeses pelo repertório do Velho Testamento e da identificação da Holanda com Israel em questões de ordem patriótica, ver Schama (1992).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Maio 2008
    • Data do Fascículo
      Jul 2007

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2007
    • Recebido
      Fev 2007
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