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Editorial

EDITORIAL

A noção de ritual têm sido para a antropologia um modo profícuo de articular a reflexão sobre a natureza simbólica do comportamento e da ação humanos. Formulada e reformulada de múltiplas maneiras, ela acompanha a gênese da disciplina e descortina um elenco de questões críticas para o conjunto das ciências humanas e sociais: como se relacionam, no amplo agregado de comportamentos que denominamos rituais, linguagem, pensamento e ação; experiência e eficácia; comunicação, dramatização e expressão; performance e teatralização? Nas últimas décadas, em especial, esse campo de estudos ampliou-se imensamente através de múltiplas conexões interdisciplinares, cheias de matizes e nuances conceituais, com o estímulo das noções de performance, de corporalidade, de narratividade entre outras, ao lado de uma retomada crítica das teorias clássicas sobre o tema. Este número da revista Religião e Sociedade traz a público um conjunto de textos expressivos dos desdobramentos e potencialidades desse campo de estudos, enfocando em especial os temas da corporalidade e das performances rituais e seus correlatos.

Dois textos clássicos de Marcel Mauss, que desdobram e aprofundam o tema durkeimiano da eficácia simbólica, balizam o alcance dos problemas enfrentados. Em "O efeito físico no indivíduo da idéia de morte sugerida pela coletividade" (Sociologia e Antropologia. Cosac &Naify, 2003 [1926]), explorando as relações entre psicologia e sociologia, Mauss chamava a atenção para um tipo específico de morte: aquela causada de modo abrupto simplesmente pelo fato de os indivíduos em questão acreditarem que iam morrer. Dizia-nos então: "A influência do social sobre o físico conta [nesse caso] com uma mediação psíquica evidente; é a própria pessoa que se destrói, e o ato é inconsciente." (:349) Como esse exemplo deixa perceber, a mediação psíquica é também uma mediação corporal, e a relevância sociológica dessa outra mediação, também muitas vezes inconsciente ou inarticulada, e igualmente crítica, foi esboçada por Mauss em "As técnicas do corpo" (idem [1934]) entendidas como verdadeiras "montagens fisio-psico-sociológicas de séries de atos". Por sinal, ao fim desse texto, ao mencionar os estudos de Marcel Granet sobre o taoísmo, Mauss nos dizia "No meu entender, no fundo de todos os estados místicos há técnicas de corpo que não foram estudadas, e que foram perfeitamente estudadas pela China e pela Índia desde épocas muito remotas. (...) Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em 'comunicação com o Deus'." (:422).

Se no caso da morte por sugestão coletiva são sempre representações sociais que atuam sobre o psiquismo humano, vale observar que a concepção de psiquismo com a qual Mauss opera abrange claramente a dimensão corporal e, vice-versa, a concepção de corporalidade enfatizada na discussão das técnicas corporais integra a almejada noção de "homem total" com a qual se vislumbra a apreensão da pessoa como um feixe integrado e simultâneo de múltiplas dimensões.

Os estudos do comportamento ritual sempre nos falaram de uma dimensão muito concreta e encarnada da experiência social uma humanidade prenhe de limites e conflitos, em processo de mudança e cheia de desejos de transcendência e permanência. Com os ritos, afinal, estamos, para usar uma boa expressão de Merleau Ponty ("O Olho e o Espírito". Coleção Os Pensadores. Abril Cultural, 1980), em campos de presença corporal.

Na atualidade, as noções de corporalidade e de performance em especial, ao buscarem desfazer, ou re-equacionar os dualismos mente/corpo, representações e práticas, experiência e simbolização, têm servido para o alargamento de horizontes e renovação desse campo de estudos. Ao percorrerem variadas formas de experiência de contato com o sagrado teatro mediúnico, bailado, meditação, oração, culto e devoção (e ainda a conversão), os textos aqui reunidos trazem com suas pesquisas e etnografias aportes instigantes a esse amplo debate.

Em "Encenando o invisível: a noção de pessoa e de subjetividade em ritos mediúnicos e performances de 'auto-ajuda'", Sandra Stoll, discute o teatro ritual de auto-ajuda criado pelo médium Luiz Antonio Gasparetto na cidade de São Paulo. Ao expressar-se através de elaborada produção cênica de natureza almejadamente teatral, o exercício da mediunidade, que tem por referência central a matriz religiosa espírita kardecista, ganha aqui os significados inusitados que constituem o centro da análise empreendida. Stoll examina as inovações na surpreendente performance ritual da mediunidade atualizada pelo médium/ator/personagem e detém-se na discussão da noção da pessoa encenada e evocada nos dramas apresentados com a marcante interpelação da platéia feminina. Desvendam-se assim experiências de subjetivação e de subjetividade que, mantendo laços frouxos com o universo religioso de referência, transitam decididamente rumo aos ideais e valores da sociedade de consumo.

Com pesquisas realizadas na Argentina, "La meditación en La Luz Sai Baba como performance ritual: acceso corpóreo-experiencial a Dios", de Rodolfo Puglisi e "La estructuración ritual del cuerpo, la experiencia y la intersubjetividad en la practica del budismo zen argentino", de Catón Eduardo Carini, discutem a experiência da meditação como prática ritual cuja eficácia trata-se de desvendar. A discussão da corporalidade e das performances rituais são recursos decisivos em ambos os casos. A análise de Puglisi nos descreve os passos da experiência da meditação. Num segundo momento, discute aspectos do pensamento cartesiano, como uma expressão das chamadas concepções dualistas predominantes no Ocidente, mostrando as diferenças e afinidades existentes entre estas últimas e as concepções associadas a Sai Baba. Já Carini traz também à baila algumas questões weberianas, ao indagar sobre os modos (incluindo certas tecnologias espirituais) pelos quais se produzem as disposições psicofísicas apropriadas a esses rituais. Partindo do exame da sensação e da interpretação da dor, e enfatizando a dimensão coletiva da experiência dos grupos nos quais ocorrem as práticas da meditação, este autor sugere que a pedagogia zen promove a introjeção e a prática de distintas modalidades somáticas de atenção, reeducando assim a atenção de cada praticante sobre seu próprio corpo. Puglisi enfatiza em sua análise a corporalidade da experiência ritual vivida por seus adeptos como intensa experiência espiritual e Carini focaliza a dimensão de (re)construção de subjetividades da meditação zen entendida como prática ritual eficaz.

Francirosy Ferreira, em "A teatralização do sagrado islâmico: a palavra, a voz e o gesto", com pesquisa entre muçulmanos em São Paulo e São Bernardo do Campo, recorre também à antropologia da performance e às formulações de Paul Zumthor, para examinar em detalhe a dimensão criativa e expressiva dos gestos e da voz na oração islâmica a salat - na qual o corpo como um todo é o veículo de comunicação entre o fiel e seu Deus.

O artigo de María Julia Carozzi, "Uma ignorância sagrada: aprendiendo a no saber bailar tango em Buenos Aires", enfoca de modo original e divertido o ambiente do "tango milonguero" em Buenos Aires, sobretudo os cursos em que se aprende a dançá-lo. Nesse ambiente, é forte a idéia de que as mulheres apenas precisam seguir os passos do parceiro masculino. Carozzi dedica-se então a entender a aquisição dessa competência performática que passa por uma desatenção seletiva dançar sem precisar sabê-lo fazer. Aqui os estudos de performance articulam-se a referências ao interacionismo simbólico, conclamados para explorar uma dimensão recorrente em discussões antropológicas no campo da religião: a dialética entre o que se revela e o que se oculta. O resultado é uma análise que adentra, sem desvendá-lo, o segredo público do saber não saber dançar, em uma situação em que a dimensão de gênero é fundamental.

"Santos e devotos no Império Ultramarino Português", de Beatriz Catão, nos traz, em primeira mão, o exame da coleção de vilancicos de São Gonçalo de Amarante, que integram a Coleção Barbosa Machado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Vilancicos, nos informa Catão, são um gênero retórico poético de fins do medievo integrante das devoções aos santos católicos. Para a autora, a coleção examinada é indício da presença ativa do santo na sociedade colonial brasileira dos começos do século XVIII. Através de cuidadosa contextualização e análise dessa preciosa coleção, em diálogo com as ciências sociais - em especial com os estudos das festas e das devoções -, a historiadora nos convida a uma incursão à devoção a São Gonçalo Amarante. Os vilancicos analisados louvam, em especial, os milagres da vida do santo fazendo-os equivaler às assombrosas maravilhas do mundo antigo. Revelam também as características festivas e lúdicas associadas a esse simpático santo que, entre misereres e aleluias, sempre escolhe as últimas como forma predileta de louvor.

Renata Menezes recupera um texto pouco freqüentado, publicado originalmente em 1913, de um autor que conhecemos por seus vínculos com a chamada Escola Sociológica Francesa. Trata-se da análise que Robert Hertz realizou acerca da festa de São Besso, em uma cidade dos Alpes italianos. Renata segue passo-a-passo essa análise e reflete sobre um possível diálogo entre os caminhos seguidos por Hertz e o campo dos estudos sobre festas religiosas. Sua contribuição para nossa reflexão recai especialmente sobre as dimensões que são privilegiadas na observação de um ritual. Hertz exercita as premissas durkheimianas da representação social eficaz e do culto a um grupo social, mas, para além disso, também nos traz a festa como um conjunto complexo de facetas e interpretações.

Os artigos que encerram este número de Religião e Sociedade tratam de conversão religiosa e podem ser aparentados ao bloco temático principal. O artigo de Gabriel Banaggia é uma reflexão teórica acerca da relação entre conceitos de conversão e modelos de mudança cultural. Para realizá-la, apóia-se em diferentes relatos etnográficos versando, em especial, sobre conversão religiosa de populações indígenas. É exatamente sobre a experiência de certas populações indígenas acerca do trabalho missionário que o artigo de Jayne Hunger Collevatti se debruça. No seu caso, trata-se da empresa de catequese e civilização realizada por missionários franciscanos entre os índios Munduruku (sul do Pará), desde o início do século XX. Os dois artigos compartilham referências e se apresentam como contribuições para um tema perene no campo de estudos da religião.

Em relação ao tema da performance ritual, sobre o qual trata também uma das três resenhas que encerram este número de Religião e Sociedade, cabe ainda fazer uma observação em função da notável diversidade de objetos, situações e universos por ele cobertos, como da ampla gama de escolhas teóricas tal como demonstrado pelos artigos aqui publicados. Trata-se de uma prova de que temos aí, mais do que propriamente um tema, um enfoque ou uma ênfase analítica que permite visões novas, inclusive sobre materiais anterior ou alternativamente explorados, e a convivência entre elaborações recentes no campo da performance e/ou da corporalidade e visões bem estabelecidas no estudo da religião.

Maria Laura Cavalcanti e

Emerson Giumbelli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Ago 2009
  • Data do Fascículo
    2009
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