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Deslocando corpos e significados: espaço, tempo e política entre romeiros do Padre Cícero

RESENHAS

Deslocando corpos e significados: espaço, tempo e política entre romeiros do Padre Cícero

Roberto Marques

No ano de 1871, ao final da celebração de missa no pequeno ajuntamento de 32 casas nas proximidades da cidade de Crato (CE), o recém-ordenado Padre Cícero recostou-se à sombra de três frondosos pés de Juá. Ali, através de um sonho em que se transfiguraram Jesus, seus apóstolos e uma legião de flagelados, maltrapilhos e esfomeados, o Padre recebeu a missão: "E tu, Cícero, cuida deles!".

Doze anos após o episódio do sonho, o então capelão de Joaseiro, atualmente chamada Juazeiro do Norte, presenciou, no momento da comunhão à Beata Maria de Araújo, a transformação da hóstia em sangue. Esse evento, repetido muitas vezes, após a noite de 1º de março de 1889, desencadeou a vinda de legiões de sertanejos a Juazeiro do Norte. Posteriormente, o fato precipitaria a instalação de um processo pela hierarquia da Igreja Católica, na chamada Questão Religiosa de Juazeiro do Norte, levando, à suspensão, as ordens eclesiásticas de Padre Cícero.

Por essa ocasião, no entanto, o deslocamento de homens, mulheres e crianças de distintas localidades para o Joaseiro já havia desencadeado, a partir do evento do Milagre, uma nova geografia em que o pequeno distrito transformou-se em local de fluxo e instalação de sertanejos por motivos bastante distantes da "abundância natural" da parte mais verde do Vale do Cariri.

Passados mais 12 anos, em julho de 1911, deu-se a emancipação política de Juazeiro, desmembrando-se do município de Crato. Padre Cícero tornou-se o primeiro prefeito da cidade, assumindo a liderança política do Vale do Cariri. Dessa forma, aproximou-se do então presidente do Estado do Ceará, Antônio Pinto Nogueira Acioli, e de 17 líderes carirenses, no chamado Pacto dos Coronéis. Com a destituição de Nogueira Acioli do cargo, sucedido por Franco Rabelo, criou-se uma rivalidade entre o presidente do Estado, à época, identificado com os profissionais liberais, comércio e operários do litoral e as "velhas oligarquias". A partir de então, com a intermediação do médico baiano Floro Bartolomeu, conjugaram-se forças regionais e federais, e uma tropa de jagunços e romeiros molambudos marchou sobre Fortaleza, forçando a renúncia de Franco Rabelo.

Esses três momentos, dotados de uma dimensão simbólica capaz de congregar religiosidade e política, aliaram a biografia do Padre Cícero e a cidade de Juazeiro do Norte a contextos locais, regionais, federais e, no caso específico do milagre, internacionais.

É desse conjunto de acontecimentos, articulador da biografia do Padre Cícero; a cidade santa e a participação ativa do romeiro, de que se serve Francisco Salatiel Barbosa em seu trabalho, originalmente defendido como tese junto ao Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.

A intenção do autor, no entanto, passa ao largo da acomodação desses três planos distintos ou mesmo da descrição das tentativas do romeiro de internalizar a vida do Padre Cícero e a história da cidade e se recontar a partir delas. Nada disso. Tomando como mote a concentração de multidões de romeiros na cidade de Juazeiro do Norte (CE), Salatiel Barbosa reflete sobre a forma como os romeiros significam a história e a cidade, dotando-lhes de uma espacialidade e temporalidade particulares. Trata-se não de acomodar-se à materialidade da história e da paisagem, mas antes de recontar a vida da cidade a partir de um ponto de vista romeiro. Protagonizar-se como "signo interpretante", ressignificando, assim, não apenas os eventos acima descritos, mas suas vidas privadas para assumir tais planos, a partir de um conjunto de sentidos particular aos romeiros.

Desde que, como já demonstrara Camurça1 (1994), o fenômeno das romarias é responsável direto pelo crescimento populacional e econômico de Juazeiro do Norte, tal dotação de sentido não se restringe à compreensão de um contexto exótico ou particular de um grupo marginalizado. O conjunto aqui analisado se amalgama à própria memória de Juazeiro do Norte, fazendo do romeiro seu protagonista. Como nos lembra Salatiel Barbosa (:26) "à medida que se ombreia e se conecta com todas as outras forças que disputam espaço e poder nesse centro de suas vidas", esse conjunto significante ganha visibilidade, tornando-se um "espaço potencial de poder". Assim, "os seguidores do Padre Cícero fazem parte dos eventos fundantes da cidade santa, que se reconfigura ou se re-inscreve, no ritual da romaria (...) a partir do processo mesmo de sua ação romeira" (:15).

Ao propor, como foco compreensivo do fenômeno na cidade de Juazeiro do Norte, a ação romeira, o autor afasta-se deliberadamente de uma extensa bibliografia que prioriza como agentes da história da cidade ora a biografia do Padre Cícero, ora a arena de lutas e a cena política do Juazeiro nascente.

Provavelmente, Ralph Della Cava2 sintetize essa última posição ao buscar "registrar a história política (...) procurando estudar Joaseiro e seu líder a partir de perspectivas (...) despojadas de paixão, (...) afastando-se das ‘fontes facciosas e lendárias’ e da perspectiva que torna ‘o sacerdote suspenso de ordens num ente ‘milagroso’ e num dos heróis lendários da crença popular regional". Em que pese a valiosa contribuição de Della Cava, sua leitura dos fenômenos, ocorridos no início do século XX, se abstém da análise dos significados mobilizados na relação entre o Padre Cícero, tais fenômenos e uma multidão de romeiros que toma a cidade e a reinscreve ano a ano, redimensionando os eventos de outrora e materializando tais significados na cidade, em produções imagéticas e no corpo dos romeiros.

A análise de Salatiel Barbosa se distancia, pois, da leitura da história pela análise de relações políticas em contextos determinados, bem como dos arroubos românticos enaltecedores da cultura popular. Centra-se em um conjunto semiótico bastante definido, esforçando-se em: "ouvir o romeiro e observar melhor suas práticas, seus envolvimentos com o sagrado, com os mistérios do santo Joaseiro para compreender melhor o papel que desempenhou o Padre Cícero nas visões e vivências dos próprios romeiros" (:15).

Isso, que em uma escrita menos habilidosa poderia se tornar somente um clichê sobre a noção de grupo, comunidade ou até de cultura popular, ganha, no texto aqui referido, uma dimensão inovadora a partir da descrição de tais práticas no tempo presente. Salatiel Barbosa mostra a inventividade desse engenho, abandonando qualquer possibilidade de leitura do presente sob a luz da tradição ou de articulações políticas datadas. O autor chama a atenção para a "ambiguidade, a polissemia e a flutuação de sentidos e significados" (:16) presentes no corpo-romeiro. Compõe-se, assim, a cidade santa e os sentidos de pertença desse grupo a partir de negociações, percursos na cidade e fora dela, jogos de presentificação da terra santa em outras localidades, como a refundação de uma Roma e de uma Jerusalém em Juazeiro, ou a presentificação de Juazeiro em lugares como: Campestre (AL), Ribeirão (PE), Santa Brígida (BA) e União dos Palmares (AL), em "um mundo (...) centrado sobre suas próprias coordenadas de espaço-tempo" (:13) – como nos diz Rita Segato em sua introdução ao livro.

A partir desse jogo de condensação, superpõem-se também as identidades fundantes da noção de graça e vida santa: Jesus, Padre Cícero, Padrinho Pedro Barbosa, Madrinha Dodô são, às vezes, muitos; às vezes, um só.

Ao longo da obra, pode-se perceber como a construção desse conjunto polissêmico potencializa a avaliação das atitudes na romaria pelos próprios romeiros; matiza a relação destes com a prática do turismo ou do comércio entre sua localidade de origem e a terra santa; bem como instrumentaliza a ação e narrativas do romeiro como grupo na avaliação da política local e da exploração do movimento das romarias em benefícios políticos.

Torna-se claro como a categoria de romeiro se constitui a partir de jogos bem mais complexos que a mera afirmação de uma crença comum, de sua fé ou na existência de uma comunidade de origem ou de destino. Salatiel Barbosa nos permite capturar os meandros de construção dessa comunidade, integrando signos do presente a uma rede de significados pré-existentes, articulando tais significados ao denotar esta ou aquela prática com mais ou menos vivacidade, legitimando este ou aquele local como lugar de devoção, este ou aquele gesto como prenhe de significado ou "uma besteira".

Ao mesmo tempo, ao mostrar como esse conjunto vem à tona, o autor lhe confere um papel de agente ativo, com potencial não somente religioso ou no plano da transformação da vida privada, mas de mobilização do espaço público.

Para isso, os eventos cotidianos são avaliados a partir de sua possibilidade de composição com os eventos fundantes da biografia de Padre Cícero e da própria história de Juazeiro. O chamado do romeiro para a terra santa ganha contornos a partir do evento do sonho de Padre Cícero sob os pés de Juá; a graça da remissão dos pecados ou a transposição de obstáculos, pela penitência, toma a forma do "Milagre" e os enfrentamentos do cotidiano superpõem-se ao evento da Guerra.

Assim, como o ir e vir sem fim define a identidade do romeiro, o eterno cerzir dessa comunidade se dá pela instabilidade de seus significados e a ocasional confluência dos signos e sobreposições ali dispostos, materializando-se em formas de contar a sua vi(n)da ao Joaseiro, seu cotidiano, a política da comunidade que se compartilha com outros romeiros, a partir dos eventos fundadores do sonho, milagre e guerra.

Um último ponto a destacar é a aproximação que o autor realiza entre as falas, gestos e percursos dos romeiros e outras formas de materialização desse "olhar romeiro", seja pela literatura de cordel de autores com histórias de vida tão díspares como Abraão Batista e Leandro Gomes de Barros, seja da obra do artista plástico e policial militar José Travassos Filho.

É um desafio, como pesquisador, pensar o que aproxima esse conjunto de fontes de análise. Uma possibilidade precipitada seria justificar tal aproximação a partir de uma tipificação do popular ou da ideia bastante usual do cordel como expressão do povo. Não sendo possível pensar que todos os cordelistas compartilham com os romeiros a "semiose ilimitada" apontada pelo autor, havendo uma variedade de possibilidades na apreensão de tal conjunto pela variedade de cordelistas existentes, como se daria essa confluência entre tais fontes e a etnografia do tempo e espaço de devoção pelos romeiros? Essa é uma questão ainda em aberto.

A partir da leitura de O Joaseiro Celeste somos lembrados dos limites de nossa definição de história e de espaço. Ao mesmo tempo, torna-se claro como outras formas de definição pela sobreposição de eventos e lugares se efetiva em outros engenhos de mundo. Por isso, o livro de Salatiel abre perspectivas bastante inovadoras na interpretação de Juazeiro do Norte e das romarias, aliando uma etnografia bem cuidada, uma narrativa emocionante e um aparato conceitual bastante eficiente.

Notas

1 CAMURÇA, Marcelo. (1994), "Padre Cícero e a Política". In: Anais do Seminário 150 anos de Padre Cícero. Fortaleza: RCV Editora e Artes Gráficas Ltda.

2 CAVA, Ralph Della. (1976), Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Roberto Marques (enleio@yahoo.com.br)

Professor da Universidade Regional do Cariri (URCA), Doutorando em Antropologia Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • 1 CAMURÇA, Marcelo. (1994), "Padre Cícero e a Política". In: Anais do Seminário 150 anos de Padre Cícero. Fortaleza: RCV Editora e Artes Gráficas Ltda.
  • 2 CAVA, Ralph Della. (1976), Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Ago 2009
  • Data do Fascículo
    2009
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