Acessibilidade / Reportar erro

O sagrado: narrar a Fé entre o discernimento e a ambiguidade

RESENHAS

O sagrado: narrar a Fé entre o discernimento e a ambiguidade

Ademir Bavaresco; Danilo Vaz-Curado R.M. Costa

OLIVEIRA, Pedro Rubens Ferreira. O Rosto plural da Fé – Da ambiguidade religiosa ao discernimento do crer. Campinas: Ed. Loyola/Unicamp, 2008, 200pp.

A obra O Rosto Plural da Fé é o destacamento e a re-elaboração de modo a alcançar a autonomia conceitual e a unidade temática e estilística necessárias para a apresentação ao público brasileiro da tese de Doutorado em Teologia defendida pelo Prof. Pedro Rubens, junto ao Centre Sèvres em Paris, sob a orientação de Christoph Theobald. O texto aqui resenhado é o primeiro dos três tomos em que foi dividida a tese, e que, em breve, estará disponível à comunidade brasileira em sua integralidade.

Dividiremos a presente resenha em dois momentos. Primeiramente, revelaremos a estrutura temático-argumentativa do autor, apresentando, segundo a ordem do discurso, os principais temas e problemas trazidos ao debate e as constatações a que se chegou. Após esta fase, analisaremos suas conclusões, de modo a avaliar o potencial de produtividade estabelecido pelo livro e suas conclusões.

A delimitação do modo e do escopo da ação da presente obra enquadra-se em um ponto de partida que se situa através do reconhecimento da legitimidade e da justificação da pergunta acerca da situação do crer, enraizado na experiência dos contextos de seu desenvolvimento e manifestação. Sem que, com isso, seja legada a um segundo plano a experiência pessoal como fundamento da fé, para, a partir das respostas a que se chega a esta pergunta, erigir uma Teologia Fundamental de nota pneumática.

O autor claramente nos indica que o espaço das razões, ou o contexto de inserção e desenvolvimento do ato de fé, é um imbricado correlacionar-se da recepção por nós da fé e a assunção de seu desenvolvimento em nós, inserindo, na legitimidade da pergunta acerca dos contextos nos quais a fé aflora e se desenvolve, o papel fundamental que exerce o seu destinatário singularmente tomado. Neste sentido, a busca pelo crer contextualmente avaliado e justificado se constitui na exata medida em que também é a procura das razões daqueles que vivenciam a experiência do sagrado, unindo as demandas propriamente sócio-hermenêuticas aos padrões de exigência e resposta de uma pesquisa fenomenológica.

Somos instados, pela tessitura do texto e mediação do autor, a passarmos da pergunta pelo que significa crer à constatação de uma das mais singulares nuances de nosso ethos contemporâneo, qual seja: a não aceitação pelo cristão da justificação de sua vivência do sagrado pelo mero apelo ao antes simbolizado na tradição com seus ritos e interditos, ou pelo acima inscrito através da relação de normatividade hierárquica do cristão em face de sua Igreja e da estrutura piramidal que a compõe.

Reconhecer "a unicidade do ato de Cristo e a diversidade das situações humanas" é o que profeticamente nos coloca Pedro Rubens como pórtico daquilo que se anunciará como eixo de força ou núcleo duro e estruturante a ser desenvolvido na obra. Relacionar discernimento e ambiguidade, ou, Teologia e seus modos de expressão e vir-a-ser é a forma que encontramos perpassando a proposta do livro e que se afirma já pelo corte metodológico de estudar o ambíguo, o plural, aquilo que nos compõe e, ao mesmo tempo, a racionalidade, o discernimento, elemento de centralidade de uma fé que é capaz de dar e pedir razões, que nos instiga a ir além e a vivenciar o mundo. Não apenas como um dado realisticamente posto, porém, como uma experiência rica e plena de sentido, irredutível às suas múltiplas significações.

Estudar a ambiguidade e a racionalidade nos quadros de uma Teologia contemporânea, certamente, é um tema deveras atraente, mas muito amplo, e o autor fecha seu corte com a experiência dos contextos cristãos no Brasil pós-Concílio Vaticano II. De modo que, epistemicamente, interessam-lhe sobretudo aquelas expressões que se auto-intitulam reveladoras do Espírito Santo entre nós, especificamente, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Renovação Carismática Católica (RCC) e o movimento Pentecostal.

Afirmar a ambiguidade da experiência da fé cristã através de uma delimitação de seus modos privilegiados de manifestação no contexto brasileiro é tarefa que melhor se desenvolveria mediante a apresentação do estado da arte ambíguo e polissemântico que conduziu a esta circunstância, e o autor o faz. Primeiramente, através da estruturação e da abordagem analítica da realidade sócio-histórica, onde, sem renunciar à tradição teológica latino-americana, reconhece-lhe seus méritos, especialmente a permanente exigência de se manter no compromisso, engajamento e atualidade do discurso teológico. O autor, ao mesmo tempo, afirma o ponto fraco dessa mesma teologia, o qual reside na tormentosa passagem da análise sócio-histórica à própria Teologia, como disciplina unitária acerca do discurso do divino cristão. Meta que a Teologia da Libertação, por exemplo, fazia, mas com um 'necessário' recurso a 'saltos' no seio de seu próprio discurso.

Construir uma "hermenêutica das experiências contextuais constitui o ponto de partida do livro". E é mediante a compreensão da racionalidade que conduz a tais experiências e dirige os modos de sua manifestação, que, segundo o autor, pode-se conectar o discurso de análise dos dados empíricos à expressão do Divino em sua univocidade pneumo-soteriológica.

O autor mesmo afirma que o "(...) discernimento precisa ser feito; mas somente uma interpretação das experiências, tais como elas se manifestam, possibilitará uma abordagem pertinente, responsável e digna de crédito" (:30).

Oliveira acentua como as três figuras – CEBs, RCC e Pentecostalismo –autodefinem-se como experiências do Espírito Santo e declaram-se portadoras do novo para a vivência cristã, expressando, respectivamente, um jeito novo de ser Igreja e um modo novo de manifestação dos signos da experiência cristã diretamente ligada à liturgia. Essas figuras, ou configurações da vivência cristã, canalizam, sob diversos modos, o catolicismo popular, que encontra potencialização máxima do princípio católico no Brasil mediante sua capacidade de sincretismo e re-significação ritualística, que atinge seu maior estágio, segundo o autor, através do Pentecostalismo de feição protestante.

Essas figurações ou momentos fenomenológico-existenciais do sagrado, que se manifestam no discurso salvífico e redentor, coincidem opositivamente, constituindo a delimitação do contexto brasileiro tal como apresentada pelo autor, através de sua irredutível singularidade e inevitável radicalidade. Três figuras e um único pano de fundo, o catolicismo popular, pelo qual e no seio do qual se diferenciam e singularizam as experiências do sagrado.

Mas o que constitui para o autor esta matriz da religiosidade denominada catolicismo popular? Informa-nos Oliveira, no primeiro capítulo de seu livro, que se compõe da tensão entre o catolicismo oficial e sua recepção no Brasil; e do seu amálgama com os elementos afro-brasileiros e ameríndios, sendo a matriz que compõe a "[...] a memória viva da evangelização do país ao longo de sua história" (:39).

Reconstituindo as faces da conformação histórica desta matriz da religiosidade viva e popular brasileira, somos lucidamente postos sobre algumas bases constituídas desde a pesquisa genealógica operada pelo autor, que resumiríamos a: a) o catolicismo não-oficial é figura por excelência da nossa religiosidade popular; b) a natureza matricial do catolicismo popular compõe-se de uma feição dúplice, tanto como forma específica da religiosidade brasileira, quanto como uma forma específica do próprio Catolicismo; c) o seu desdobramento interno em três novas figuras (CEBs, RCC e Pentecostalismo) é parte do movimento mesmo de autocompreensão, resignificação e recomposição do cristianismo, como religião viva. Por fim, o autor acena para a conclusão de que esta frenética efervescência do catolicismo popular, ambíguo, e que clama pelo discernimento no seio de tantos rostos é a dimensão essencial da fé cristã e quiçá das configurações do crer cristão.

O autor, sensatamente e de maneira a situar o neófito no debate acerca da apropriação e constituição de um consenso sobre o que é o catolicismo popular, retoma as tipologias de base weberiana que marcaram os trabalhos de Riolando Azzi e Joseph Comblin. Ambos partiam de um pressuposto dicotômico entre um ser (o catolicismo popular) e o dever ser (o catolicismo oficial de Roma), e, desde essa oposição, acrescentavam um elemento distintivo e reconstituíam assim historiograficamente tipos de catolicismo.

Reconhecendo a fecundidade do tipo ideal, porém apontando para suas deficiências, o autor prefere uma Teologia plural, onde o tipológico persista, mas se priorize a experiência de fé, "(...) em sua tríplice dimensão, questionando-se sobre a autenticidade da experiência, a justeza das relações com as outras e a verdade do próprio crer" (:72).

Em seu percurso de mapeamento da matriz do catolicismo popular naquilo que lhe constitui como ambíguo e que nos impele ao seu discernimento à luz da unidade teológico doutrinal, somos afrontados ao descortinamento de três figurações essenciais para a constituição dessa teologia do crer, isto é, as CEBS, a RCC e o Pentecostalismo.

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) constituem-se como uma figura fruto da experiência religiosa posterior ao Concílio Vaticano II. Elas atuavam tanto na dimensão prática quanto na elaboração de uma reflexão teológica singular, de base fortemente ideológica, onde a experiência da fé se fazia indissociável do seu contexto social e político.

As CEBs promoveram a aproximação do povo com a Igreja Católica, reaproximando o clero e as comunidades, através de um cristianismo ativo, em que a comunidade possuía vez e voz. Segundo Rubens, "assistia-se assim, a emergência do sujeito e à irrupção histórica dos pobres na cena socioeclesial" (:75).

As CEBs possuem uma formação tríplice, onde se sobrepõem os momentos de ser uma Igreja Católica em gênese, de optar pelos pobres e de assumir o desafio do pluralismo cultural e religioso. O fazer-se Igreja Católica, que é operado pelas CEBs é a reação a um estado de coisas insustentável no contexto político – a ditadura militar – e inadiável no contexto eclesial, e que converge, no plano da ação pastoral, para um maior protagonismo social.

Passa-se do fazer da Igreja Católica que anuncia para uma igreja que é escuta e clamor pelos desfavorecidos. O agir cristão e a ação política associam-se ao ponto de constituírem a fragilidade desse tipo teologal, buscando a solução da ambigüidade de um momento historicamente conturbado. As CEBs se conduzem para o interior desse modo de discernir a realidade vivenciada sem refletir sobre o próprio percurso que está sendo trilhado e o elemento político da Igreja é socialmente cooptado por sua face política.

Ao fim da análise da constituição e da destinação da primeira figura da ambígua expressão do catolicismo popular no Brasil, Oliveira nos brinda com a elaboração de um conceito para as CEBs que aglutina sua base teórica à sua prática eclesial, através da união da a) forma: celebração da palavra, conselho comunitário e grupo de estudo bíblico como modo estruturante de ser igreja viva política e comunitariamente; e do b) conteúdo, presente no pressuposto teológico advogado pelas CEBS, de constituir-se como um novo jeito de ser Igreja e de ser a base de interpretação litúrgica da fé nas comunidades e pelas comunidades.

Com as CEBs vivencia-se uma Igreja Católica que se pauta na centralidade dos dogmas católicos, mas que os reinterpreta segundo suas experiências, anseios e projetos mais imediatos. O autor registra que as CEBs são "(...) uma reestruturação da paróquia sob a forma de uma rede de comunidade" (:95).

A transição da primeira figura expressiva de nosso catolicismo popular pós-Concílio Vaticano II à sua segunda figura é uma negação, pois a Renovação Carismática Católica (RCC) não postula a realização da fé pela política, ao mesmo tempo em que é uma conservação do espírito profético do anúncio do Espírito Santo à luz de uma re-interpretação das escrituras.

Em sua estruturação histórica e tipológica, Oliveira nos mostra a RCC esmiuçada, desde seu matiz nos EUA, em 1966, à sua introdução no Brasil, no ano de 1969, pelo Jesuíta Harold Rahm. Apresentando, em seguida, seu impulso definitivo em nossas terras conferido pelo também Jesuíta Pe. Edward Dougherty SJ, que consolida a nova forma de viver a esperança no Cristo crucificado pela predominância da vivência dos dons do Espírito Santo.

No seu vir a ser, essa emblemática figuração do catolicismo popular recebe, pelo autor, uma caracterização cronológica de três tempos: (i) seu surgimento e constituição (1966-70); (ii) seu crescimento e expansão (1972 a fins dos anos 80); e (iii) sua ofensiva midiática com apelo e apoio do marketing religioso (1983 aos anos 90). A ambiguidade da RCC se potencializa pelo fato singular de que suas fases se sobrepõem entre si, assim como se interconectam com o próprio desenvolvimento do culto oficial da Santa Sé e das CEBs, como expressão desse mesmo catolicismo popular.

A afirmação da RCC no Brasil se dá em paralelo à ditadura militar, porém incólume a seus olhares, tendo um expressivo crescimento exatamente no momento de transição ao regime democrático. Assim, conclui-se que a Renovação Carismática surge como alternativa ao já crescente estado de desilusão face às utopias "marxianas" em geral.

Segundo o autor, a RCC passa do carisma à institucionalização por um fenômeno anômalo de constituição, que, sem uma organicidade prévia em seu ponto de partida, difunde-se mediante os grupos de oração por todo o Brasil. Ao mesmo tempo, a estrutura da RCC vai se avolumando até adquirir a autonomia de um verdadeiro movimento religioso com características, ritos, e signos bem particulares, especialmente distintivos dos demais grupos católicos laicos, pelo uso da glossolalia, profecias, exorcismos e curas.

Contudo, a afirmação definitiva da RCC vem através de sua ofensiva televisiva, que se estrutura em torno de alguns movimentos. Primeiramente, a assunção de um modus operandi no reconhecimento da CNBB, conferindo-lhe status institucional mesmo na laicidade, e afirmando sua catolicidade. Em seguida, destaca-se o empenho e profissionalismo do leigo João Monteiro e de sua família. Começa assim a investida do catolicismo popular como fogo do Espírito Santo que se lança à conquista de fiéis.

No Brasil, a RCC se consolida dentro do catolicismo ancorada na reivindicação de uma experiência pessoal do Espírito Santo via participação comunitária nos dons de Deus, e apoiada no vazio da Teologia da Libertação, tanto pelo descontentamento que essa causou no seio do catolicismo oficial, como por sua melancolia e impotência frente ao cumprimento de suas pautas pós-abertura militar. De forma análoga, torna-se ponto forte da ofensiva da Santa Sé face ao crescente alargamento das fronteiras pelos segmentos pentecostais.

A consolidação da RCC consegue afirmar-se mesmo face às críticas que lhe são dirigidas por setores internos e externos à Igreja de não conferir a devida importância ao engajamento do cristão, de afastar-se em demasia da Diocese, de ser um fenômeno fugaz e mesmo de tender a uma fenomenalização da fé e de suas expressões que priorizam o maravilhoso sobre a ascese, a emoção sobre a reflexão etc.

Se as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – constituíram o primeiro novo jeito de crer na igreja do catolicismo popular brasileiro, após o Concílio Vaticano II, a Renovação Carismática, como segunda figuração fundamental do catolicismo popular, possui a nota fundamental de se mover por um espírito de renovação. Enfrentaremos, em continuidade, a exegese acerca da terceira figura do catolicismo popular, o pentecostalismo.

O pentecostalismo adentra o Brasil a partir dos anos de 1910 com a chegada da Congregação Cristã e da Assembleia de Deus, que se notabilizam até a década de 1940 por sua restrita atuação e nítida influência americana e de suecos americanizados entre os seus pastores e precursores. O movimento se funda no batismo do Espírito Santo, na sua expressão via glossolalia e numa experiência imediata de Deus pela intercessão presentificada do Espírito Santo.

A partir de 1950, com a crescente urbanização brasileira, a consolidação da imprensa e dos meios de comunicação, e a facilidade de mobilidade de pessoas, ocorre um deuteropentecostalismo, correspondente à segunda fase de fixação da doutrina pentecostal entre nós e que se notabiliza pelo ingresso no Brasil das seguintes denominações: Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ), Brasil para Cristo (IBPC), Deus é Amor (IDEA). Essas denominações se constituem por características como a pregação em locais seculares para pessoas de baixa renda e pouca formação; proposta de massificação e uso dos meios de comunicação, especificamente o rádio; e um forte apelo pietista na pregação, vinculando a fé ao sentimento, à cura divina, ao exorcismo, à salvação e ao retorno de Cristo.

Com o início da década de 1980, ocorre a transição do pentecostalismo ao neopentecostalismo. Esse último acompanha as características das duas gerações anteriores, mas possui uma feição midiática e televisiva, com a passagem do culto do templo à TV, radicalizando os processos de massificação da fé e de suas expressões e submetendo as manifestações do sagrado aos interesses da mercantilização quantitativa, tanto pela busca de fieis como pela superação das denominações ditas concorrentes.

Outra característica dessa terceira onda é o recurso ao caráter universal por parte de suas duas principais representantes, a Igreja Universal (IURD) e a Igreja da Graça Internacional (IGI). Isso se daria não por uma simples coincidência com o katholikós da Igreja Apostólica de Roma, mas porque em ambas, os propósitos se coordenam no sentido da máxima expansão, eficácia e eficiência na aquisição, manutenção e perpetuação dos seus quadros de seguidores.

A passagem da segunda à terceira geração do catolicismo popular sob a égide do pentecostalismo recupera, negando e afirmando, a fase dos milagres e da glossolalia como expressões do Espírito Santo para erigir o sucesso econômico e a prosperidade financeira como sinais de ação e ratificação das bênçãos divinas. Quanto ao aspecto propriamente doutrinal do pentecostalismo, Oliveira assinala que:

Em geral a teologia pentecostal põe um forte acento no pecado e no mal, dentro de uma visão dualista de mundo e do ser humano, o que implica a necessidade de uma intervenção divina para a libertação do poder demoníaco. (...) Finalmente, a experiência pentecostal compreende-se como inspirada pelo Espírito Santo, sinal de um novo pentecostes, postulando assim a possibilidade de uma experiência imediata de Deus (:146).

Para o autor, o movimento de missões, evangelizações e a sua mercantilização fecham com a terceira onda do pentecostalismo, exacerbando as ambiguidades do catolicismo popular e suas imaturas estruturas imagéticas e teologais. Estas resultam em grande parte de um baixo padrão de formação educacional da população associado a uma tradição paternalista do Estado, que cumpre suas pautas de modo insuficiente, abrindo assim um campo imenso para essa teologia da prosperidade e do sucesso imediato.

O divino se revela pelas bênçãos adquiridas no mercado, inclusive a salvação, porém o Espírito sopra onde Ele quer e a ambigüidade transforma o dualismo entre bem e mal em uma tênue linha em que sagrado e profano, templo e rua se mesclam e obliteram o discernimento acerca do crer.

Oliveira afirma que a conclusão requerida "não é tanto da ordem de uma resposta, mas propriamente da elaboração de uma pergunta" (:162) e também não se trata de "fazer um julgamento teológico ou dogmático das experiências vividas, sem ter circunscrito a coisa mesma do crer, imerso numa situação de ambiguidade religiosa" (:161). A partir desse pressuposto, o autor estabelece o método de sua análise com o auxílio de uma metáfora: "como em uma eclusa, tentaremos passar do nível sócio-histórico ao nível especificamente teológico. Seguindo o curso das águas, nossa reflexão será levada en aval ('rio abaixo': perspectiva sócio-histórica para análise da situação do crer) e en amont ('rio acima': perspectiva teológica rumo às fontes da fé)" (:162).

De início, o autor aplica, criticamente, ao caso brasileiro, esse método fazendo a releitura sociológica das três figuras do catolicismo popular, através da abordagem tipológica de Ernst Troeltsch que explica o processo de socialização do cristianismo a partir de três categorias: Igreja, seita e espiritualismo místico. Depois, opera-se a releitura teológica das referidas figuras, concluindo que "a exigência de uma regula fidei para realizar o discernimento do crer exige uma abertura, superando preconceitos e quebrando nossas categorias cristalizadas", isto é, "só uma 'normatividade aberta' revela-se capaz de discernir a fé na ambiguidade do religioso" (:177). E, no entanto, perdura a questão: "numa situação marcada pela ambiguidade das experiências religiosas, como discernir o crer em sentido cristão" (:175)? O objetivo da pesquisa, responde o autor, "não é tanto justificar ou julgar as experiências, mas relançar a reflexão, na perspectiva do futuro do próprio ato de crer" (:177).

A obra tem, na experiência plural e na ambigüidade religiosa, o desafio de se posicionar face ao debate das sociedades plurais e do pluralismo religioso entrecruzados na experiência da ambiguidade humana. O questionamento teológico se defronta com o estatuto da verdade, ou seja, o que é a verdade cristã numa sociedade plural? Ou ainda, a verdade é por natureza intolerante? Essas questões são cruciais para todas as religiões, na medida em que se engajam no debate entre verdade dogmática e hermenêutica, entre confessionalidade e cidadania face à opinião pública secularizada e emancipada.

Ademir Bavaresco (abavaresco@pucrs.br)

Doutor em Filosofia por Paris 1. Professor do PGFilosofia PUCRS.

Danilo Vaz-Curado R.M. Costa (danilocostaady@hotmail.com)

Doutorando em Filosofia pela UFRGS.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    2010
Instituto de Estudos da Religião ISER - Av. Presidente Vargas, 502 / 16º andar – Centro., CEP 20071-000 Rio de Janeiro / RJ, Tel: (21) 2558-3764 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: religiaoesociedade@iser.org.br