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Mudando de eixo e invertendo o mapa: para uma antropologia da religião plural

Resumos

A proposta deste artigo é colocar em perspectiva crítica a última recessão realizada sobre a antropologia da religião brasileira publicada na coletânea Horizontes das Ciências Sociais no Brasil (Martins e Duarte 2010). Um dos pontos principais que abrimos para o debate neste artigo é o efeito uniformizador do campo de pesquisa que a recessão em tela promove, tornando invisível a produção norte-nordestina e por consequência, e mais fundamentalmente, a própria área de pesquisa. Nesta oportunidade, mudamos o eixo da análise e invertermos o mapa, olhando para o nosso campo de atuação acadêmico a partir da região Norte e Nordeste, identificamos algumas "agendas locais" que na realidade dialogam intensamente e compõem contemporaneamente as agendas nacional e internacional.

campo religioso brasileiro; invisibilidade acadêmica; antropologia


The purpose of this paper is to evaluate critically the latest general review of the field of the anthropology of religion practiced in Brazil and which was published in the anthology Horizons of the Social Sciences in Brazil (Martins and Duarte 2010). One of the main points that we highlight for discussion in this article is the effect of the homogenization of this field of research in Brazil as it is promoted by the review under scrutiny. This equalization passes over a significant part of the work done in the North and Northeast of Brazil, leaving it invisible, and hence affecting, more fundamentally, the evaluation of the state of the area of research. In a response, we change the focus of analysis and reverse the map (turn it up side down). Taking the literature produced in the North and the Northeast as the focus of our reflection, we identify some "local agenda" that actually are in dialogue with, and participates in, the contemporary national and international agendas. In conclusion, both as an ethnographic area and as an academic contribution to the literature, the North and the Northeast distinctively contribute significantly to the national and international field of the anthropology of religion.

brazilian religious field; academic invisibility; anthropology


Mudando de eixo e invertendo o mapa: para uma antropologia da religião plural

Roberta Bivar C. Campos; Mísia Lins Reesink

RESUMO

A proposta deste artigo é colocar em perspectiva crítica a última recessão realizada sobre a antropologia da religião brasileira publicada na coletânea Horizontes das Ciências Sociais no Brasil (Martins e Duarte 2010). Um dos pontos principais que abrimos para o debate neste artigo é o efeito uniformizador do campo de pesquisa que a recessão em tela promove, tornando invisível a produção norte-nordestina e por consequência, e mais fundamentalmente, a própria área de pesquisa. Nesta oportunidade, mudamos o eixo da análise e invertermos o mapa, olhando para o nosso campo de atuação acadêmico a partir da região Norte e Nordeste, identificamos algumas "agendas locais" que na realidade dialogam intensamente e compõem contemporaneamente as agendas nacional e internacional.

Palavras-chave: campo religioso brasileiro, invisibilidade acadêmica, antropologia.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to evaluate critically the latest general review of the field of the anthropology of religion practiced in Brazil and which was published in the anthology Horizons of the Social Sciences in Brazil (Martins and Duarte 2010). One of the main points that we highlight for discussion in this article is the effect of the homogenization of this field of research in Brazil as it is promoted by the review under scrutiny. This equalization passes over a significant part of the work done in the North and Northeast of Brazil, leaving it invisible, and hence affecting, more fundamentally, the evaluation of the state of the area of research. In a response, we change the focus of analysis and reverse the map (turn it up side down). Taking the literature produced in the North and the Northeast as the focus of our reflection, we identify some "local agenda" that actually are in dialogue with, and participates in, the contemporary national and international agendas. In conclusion, both as an ethnographic area and as an academic contribution to the literature, the North and the Northeast distinctively contribute significantly to the national and international field of the anthropology of religion.

Keywords: brazilian religious field, academic invisibility, anthropology.

Introdução

Realizar balanços sobre a produção brasileira das ciências sociais e da antropologia, em particular, traz como resultado uma série de impactos e pertinências. Se de um lado, no sentido estrito da própria produção acadêmica, a tarefa consiste em um esforço de refletir sobre a evolução, os caminhos, a dinâmica e o que se quer estudar no campo, de outro lado, esses balanços demarcam fronteiras que posicionam qualitativamente perspectivas e grupos em relações de competição, revelando ao mesmo tempo as disputas internas ao campo. De qualquer forma os balanços são sempre interessantes porque instauram um ponto de partida para se pensar o campo. Nesse sentido, a coletânea Horizontes das Ciências Sociais (Martins e Duarte 2010) é bem vinda.

Entretanto, há um possível efeito (não) desejado nesse tipo de démarche que é quando o ponto de partida se torna o ponto de chegada, e o balanço se torna a "realidade" do campo acadêmico e não uma visão sobre ele1 1 Efeito potencializado quando se tem o selo de legitimidade da Anpocs. . Para evitar esses efeitos colaterais, os balanços devem ser os mais abrangentes possíveis, deixando claras as suas aberturas e limitações. Um esforço evidente nessa direção pode ser visto na maioria dos artigos contidos na referida coletânea; porém uma das exceções sendo a que pretende discutir a produção brasileira sobre o campo religioso.

O artigo de Almeida (2010), intitulado "Religião em Transição", incluído nessa coletânea, afirma pretender a realização de um "balanço da literatura nacional" (Almeida 2010:370) no campo da religião. Nesse sentido, cabe-nos aqui perguntar se o trabalho consegue atender ao objetivo da coletânea e ao que ele se propõe em termos desse balanço nacional. De imediato avançamos a nossa resposta negativa e indicamos os três pontos em que consideramos que o artigo falha, pontos esses que classificamos como condições fundamentais para a realização de um balanço realmente abrangente e competente.

Para nos auxiliar nessa análise utilizaremos metaforicamente três categorias caras ao autor: invisibilidade, trânsito e pluralismo. Antes, no entanto, seria importante salientar que não estamos aqui nem adicionando, nem dialogando explicitamente com os pontos ou eixos elaborados por Almeida em seu balanço (religiosidade: prática, moralidade e subjetividade; espaço público e o religioso; religiões e alteridade). Na realidade, a nossa crítica toma por base esse balanço globalmente em suas metas e confessadas ambições; só nos referimos a esses eixos quando necessárias à ilustração e à exemplificação.

Um balanço nacional: o que é nacional?

Uma das primeiras perguntas que se coloca a um texto em que se pretende refletir sobre a produção do campo acadêmico nacional é se ele atende a esse critério e qual o recorte que ele faz dentro dessa amplitude. Em um dos parágrafos de sua introdução, Almeida explicita bem isso:

Apesar de ser um balanço da literatura nacional, trata-se de uma visada que destaca certos debates e não contempla outros. Dentro desse limite, o intuito é organizar heuristicamente um universo que nos últimos anos cresceu se diferenciando (Almeida 2010:370, grifos nossos).

É extremamente sensato fazer recortes e, cremos, ninguém espera que um artigo sobre religião dê conta de todo o universo da produção brasileira sobre o tema. Entretanto, espera-se sim que tal "balanço da literatura nacional" revele de fato a evolução desse campo "que nos últimos anos cresceu se diferenciando". Contudo, ao se ler o texto de Almeida, duas questões se impõem rapidamente: Como esse campo evoluiu? e O que é nacional?

Extremamente interligadas, as duas questões estão, no entanto, silenciadas no texto. Talvez porque responder a essas questões seja exatamente trazer à superfície aquilo que (ao que parece) se deseja deixar submergido. Isto porque, do nosso ponto de vista, um dos dados mais relevantes dos últimos doze anos no campo da produção dos estudos sobre religião no Brasil (e que de certa forma expressa o que o autor pretende tratar a respeito desse "universo que nos últimos anos cresceu se diferenciando") é o aumento e a circulação da produção norte-nordestina em termos nacionais. É interessante notar o que o autor, explicitando os critérios do seu recorte, afirma, em uma nota em referência à citação anterior:

Tenho como referência mais específica o campo de cientistas das ciências sociais da religião, que em como principais fóruns de interlocução: o Grupo de Trabalho Religião e Sociedade da Anpocs, a revista Religião & Sociedade e, mais recentemente, a rede de pesquisadores do Mercosul (Almeida 2010:370).

Como explicar, então, a ausência de nomes como, por exemplo, o de Joanildo Burity, um dos coordenadores do citado GT de Religião e Sociedade da Anpocs, e um dos mais profícuos e respeitados pesquisadores da questão religião/política/público/ privado, tema longamente abordado por Almeida no seu balanço? Como se pode ignorar em um texto que se pretende nacional os trabalhos publicados em Religião & Sociedade de nomes como: Maués (2002), Burity (2006), Campos (2005; 2008), Rabelo (2008a), Reesink (2005; 2009), Pires (2010) e Miranda (2010). Como se pode esquecer a presença constante e cada vez maior nos eventos da Anpocs, MERCOSUL, ABA, ISSR-SISR de pesquisadores como Roberto Motta, Ferreti e Ferreti, Lemuel Guerra, Bartolemeu Tito Medeiros, Eliane Tânia Freitas, entre outros?2 2 Usamos aqui os mesmos critérios utilizados por Almeida para demonstrar o nosso argumento: a invisibilização da produção dessas regiões no seu balanço.

Assim, se Montero (1999) poderia, em certa medida, justificar em seu balanço sobre o campo da religião no Brasil a pouca presença de referências à produção norte-nordestina, porque de fato havia uma pequena circulação nacional dessa produção naquela época3 3 Vale ressaltar que mesmo assim alguns poucos nomes foram citados por Montero. , doze anos depois isso já não é mais possível. De fato, a dinâmica passada da produção norte-nordestina era de uma intensa produção que circulava prioritariamente em termos locais, mas, curiosamente, também em termos internacionais, em que podemos ter talvez como figura paradigmática desse movimento Roberto Motta – e aqui se poderia também levantar a questão de por que a produção norte-nordestina tinha maior visibilidade internacional que nacional.

Entretanto, na última década essa dinâmica mudou radicalmente, sobretudo devido às políticas do MEC/CAPES e MCT/CNPQ de desregionalização dos investimentos na pesquisa e no ensino de pós-graduação. Estas políticas tiveram como resultado o aumento na quantidade e na qualidade da produção norte-nordestina e, consequentemente, um maior interesse dos pesquisadores oriundos dessas regiões em circular sua produção nacionalmente4 4 Uma breve exploração nas publicações na revista Religião & Sociedade e de outras revistas que estão no qualis de antropologia (como por exemplo: Mana, Revista de Antropologia e Ciencias Sociais y Religión/ Ciências Sociais e Religião) comprova o argumento. .

Nesse sentido, mais uma vez perguntados: Como um balanço do campo de estudos de religião no Brasil, que se pretende nacional, pode ignorar essa evolução?

O que de fato há no texto é (para usarmos um conceito caro ao autor) uma invisibilização5 5 Mais uma vez, reforçamos que o uso aqui desse conceito do autor (e dos outros) é expressamente metafórico. Sabemos que o uso que Almeida faz da invisibilidade católica se refere ao fato de que o catolicismo está por toda parte, segundo ele, de forma invisível, sendo esta uma invisibilidade que não priva o catolicismo de sua força política, mas que, ao contrário, é reflexo de sua hegemonia política. Entretanto, a nossa utilização metafórica do conceito de invisibilidade acadêmica das regiões Norte e Nordeste se refere exatamente ao desempoderamento dessas regiões no campo intelectual. da produção norte-nordestina. Quando falamos aqui em Norte/Nordeste, estamos pensando do ponto de vista institucional, ou seja, não se tratam apenas de pesquisadores nascidos nessas regiões, mas de pesquisadores que, independente do seu local de nascimento, estão integrados a instituições de pesquisa dessas regiões – se poderia até pensar que há aí um recado implícito para aqueles oriundos de outros locais do país, apontando para o risco de se tornarem invisíveis academicamente, ou quem sabe simbolicamente mortos6 6 Pode parecer exagero o que falamos aqui, mas esse exagero deriva da nossa experiência. Assim, um antropólogo de uma instituição paulista, convidado para participar de uma banca de dissertação no PPGA/UFPE, chamou um mestrando para fazer o doutorado na sua instituição com o argumento de que se ele permanecesse no Nordeste ele estaria "morto". .

Parece, portanto, que esse processo de invisibilidade acadêmica da produção norte-nordestina é feito em três direções: 1º) das regiões que deixam de fazer parte do Brasil; 2º) das suas instituições e dos pesquisadores que estão a elas vinculados; e 3º) do campo etnográfico. Na nossa perspectiva, é esse último ponto, a invisibilidade do campo etnográfico, particularmente o nordestino7 7 A região Norte é salva desse corte no que se refere aos dados etnográficos pelo fato de fazer parte de área de pesquisa do autor e de consequentemente compor os seus interesses temáticos. Entretanto, como já se referiu Maués (1999), a região Norte fica aí restringida ao seu aspecto de "paraíso dos etnólogos" não locais. , o mais problemático em todo esse processo. A questão se ancora (e se revela) na adoção pelo autor de uma clivagem regional na estruturação do seu texto, em um reforço e reprodução de um movimento que constitui o nosso campo acadêmico, como já discutido por outros autores (S. Costa 2010; Reis 1991).

Reconhecemos, obviamente, a existência e a importância de outras clivagens na construção desse campo acadêmico nacional, algumas das quais aparecem residualmente no balanço em questão. Entretanto, na nossa leitura, a clivagem que funda e organiza o balanço de Almeida é precisamente a regional. Mais importante ainda: a clivagem realizada pelo autor se configura de fato como exclusão, pois a sua característica principal é exatamente a de ser uma clivagem que nega a clivagem.

Nesse sentido, ao excluir o que é produzido nessas regiões, que de modo geral recobrem esse mesmo espaço etnográfico, Almeida torna nacional aquilo que é regional, pois a prática dos pesquisadores das instituições do Sul e do Sudeste é a mesma: em sua maioria realizam as pesquisas nas fronteiras dessas regiões. Mais uma questão emerge: Etnograficamente, o Brasil é um só? Tratar etnograficamente de uma região é suficiente para se discutir etnograficamente o Brasil? Não estaria Almeida reproduzindo o mesmo "pecado" de que é acusado Gilberto Freyre, isto é, de projetar o Nordeste para o Brasil8 8 Aliás, sejamos justos e reconheçamos que parece ser algo mais generalizado: se levarmos em conta ao que M. Aubré chamou atenção no GT de Religião e Sociedade da Anpocs (2008), os pesquisadores das regiões do Sul-Sudeste generalizam o campo etnográfico "sulista" e "sudestino" para todo o Brasil. ?

De qualquer forma, ao se ignorar o campo etnográfico dessas regiões, empobrece-se a diversidade etnográfica brasileira e, sobretudo, as possibilidades reflexivas que um campo diversificado e rico possibilita. Além disso, tal atitude nos permite retomar a qualificação (que estamos acostumados a ouvir nos bastidores acadêmicos) de que somos provincianos, e fazer a seguinte indagação: Afinal, quem é provinciano aqui9 9 Entretanto, essa indagação não é e nem pode ser direcionada exclusivamente a Almeida. De fato, o autor funciona talvez aqui como o catalisador de uma atitude e "crença" muito comum no centro acadêmico brasileiro em relação a sua periferia, habitualmente expressa (explícita ou implicitamente) de maneira informal, mas raramente oficializada em textos acadêmicos, e que no fundo parece refletir uma "confusão" entre periferia e provincianismo (confusão esta que muitas vezes encobre uma posição política de dominação). Se pensarmos no exemplo das antropologias inglesa e francesa, podemos facilmente concluir que, nestes termos, o centro pode ser extremamente provinciano. ?

Para fecharmos esse primeiro ponto, nos parece que o primeiro recorte realizado pelo autor foi a exclusão do seu campo de reflexão das regiões Norte e Nordeste, nas três dimensões aqui apontadas, impossibilitando-o assim de realizar uma verdadeira reflexão nacional do campo. Resta-nos saber o porquê desse recorte que, inconscientemente ou não, resulta no impacto político de produzir uma invisibilidade acadêmica da região no campo dos estudos da religião.

Quando o campo é o lugar que nele se ocupa

Se no ponto anterior fica explícito o recorte político realizado pelo autor, agora o que nos chama a atenção é o segundo recorte adotado exatamente naquilo que ele contém de ambíguo. Na elaboração do seu texto, Almeida parece hesitar entre: a) o balanço da literatura do campo; b) uma reflexão sobre a categoria religião; e c) seu ponto de vista a respeito dessa categoria e do respectivo campo. Explicitamente, o autor parece ter dois objetivos: o primeiro refere-se ao item b) e se explicita no que ele afirma: "Isto posto, a proposta deste texto é discutir algumas transformações contemporâneas daquilo que é compreendido como religião e quais os efeitos sobre a própria categoria analítica" (Almeida 2010:370); e o segundo referindo-se ao item a), como já observamos no ponto anterior. Porém, se esses são os objetivos explicitados, ao longo do texto o que nos parece ganhar corpo e ênfase é a reflexão do autor sobre o campo e a categoria de religião a partir do lugar que ele ocupa nesse campo. Ou seja, menos um balanço da produção brasileira sobre religião do que um olhar que o autor lança sobre o campo a partir da sua experiência acadêmica.

Vale salientar, contudo, que não estamos aqui desqualificando a produção acadêmica desse autor. Consideramos, muito pelo contrário, que os seus trabalhos são pertinentes e de qualidade, tendo muito a contribuir para o debate sobre o campo religioso brasileiro. O que questionamos aqui é a adequação da adoção do seu ponto de vista particular (mesmo que qualificado) como o lugar privilegiado para falar desse campo em um locus que tem como objetivo realizar balanços do que se vem produzindo na antropologia brasileira10 10 Como fica evidente na introdução do livro e nas palavras do coordenador geral do projeto Horizontes das Ciências Sociais no Brasil, expresso nos três volumes: "O resultado final do projeto oferece uma contribuição relevante para apreciação da trajetória intelectual de determinados campos temáticos que vêm se destacando nessas áreas e as perspectivas teóricas, metodológicas que se encontram subjacentes ao seu tratamento, bem como suas perspectivas futuras de pesquisa e reflexão. (...) Nesse sentido, os trabalhos, além de oferecerem amplo balanço da produção acadêmica de determinados campos temáticos, abrem caminhos para futuras investigações" (Martins e Duarte 2010:11). Tal empresa intencional é reforçada pelas palavras do coordenador da área de antropologia, também do mesmo projeto: "Os textos que compõem esta coletânea foram encomendados com o objetivo explícito de apresentar o estado da arte de cada disciplina, mapeando o percurso e/ou evolução intelectual da discussão do campo temático escolhido na respectiva área de conhecimento, bem como suas perspectivas futuras" (Martins e Duarte 2010:19). É ainda relevante mencionar que a publicação Horizontes das Ciências Sociais produzida pela Anpocs vem na mesma linha e com os mesmos objetivos da coletânea em três volumes organizada por Sergio Miceli O que ler na Ciência Social brasileira: 1970-1995, e da BIB-Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, sendo estes títulos bastante explícitos ao mesmo tempo na sua intenção e na previsão do seu impacto. . Nesse sentido, é esperado desse tipo de texto um maior trânsito acadêmico, com certo grau de "infidelidade" as suas próprias "crenças" teórico-interpretativas, exatamente para permitir ao leitor uma maior possibilidade de visualizar a riqueza das múltiplas interpretações, suas convergências e suas concorrências, produzidas pela academia brasileira sobre os estudos do campo religioso. A não ativação de um maior trânsito acadêmico pode ter como efeito instaurar o ponto de vista particular de um pesquisador, e do lugar que ele ocupa no referido campo, como o modo prioritário de compreender e interpretar esse campo, o qual consequentemente corre o risco de ser pautado a partir de um lugar único11 11 Tal inclinação interpretativa agrava-se pelo efeito impositivo que ganha, pois, como é indicado nas introduções dos coordenadores do projeto, a referida coletânea se dirige a um público estudioso mais amplo do que aqueles já treinados nas Ciências Sociais, abrangendo não só a pós-graduação como a graduação, e muito provavelmente servirá de base para concursos em todo o Brasil. Portanto o poder de reprodução da interpretação de Almeida está de antemão facilitado pelo selo de legitimidade da Anpocs, como já indicado acima. . Assim, se o texto que analisamos tem o seu real interesse em expressar como seu autor vê o campo religioso brasileiro e o que se produz sobre ele – assim como qual é a "boa pergunta" (Almeida 2010:396) que ele acha deve ser dirigida a esse contexto12 12 Mais uma vez sublinhamos que nesse sentido as reflexões e os questionamentos levantados pelo autor são pertinentes e podem contribuir de fato para uma maior compreensão do contexto religioso brasileiro. –, ele diz muito pouco do que as outras vozes falam e dos outros olhares que aí são lançados, mesmo quando citados13 13 É assim que se fica sabendo que "a relação entre religião e modernidade (ou seus congêneres: globalização e contemporaneidade)" é o que "pauta boa parte das discussões nacionais" (Almeida 2010:368), mas não se tem de fato ideia de qual é o conteúdo dessas discussões, quais as diferentes interpretações e debates realizados, salvo referências indicativas. O mesmo movimento se percebe quando Almeida faz referência à diversidade do catolicismo brasileiro (Almeida 2010:372), ao relatar algumas linhas de pesquisa, mas também se tem pouca ou nenhuma ideia de qual é o conteúdo dessa diversidade. Em contrapartida, tem-se uma clara noção da interessante discussão do conceito de "trânsito religioso" como definido pelo autor (Almeida 2010:372-376) no tópico sobre "religiosidade: prática, moralidade e subjetividade" (Almeida 2010:371-381). Porém é na sua discussão sobre "religiões e alteridade" (Almeida 2010:389-396) que essa démarche se torna menos evidente, sem que se possa ter uma melhor visualização das discussões no campo. Talvez porque, como lembra o autor, trate-se de uma questão que (se bem que relevante) é periférica no campo mais específico da antropologia e/ou da sociologia da religião (incluindo-se a questão da quantidade) e sendo mais facilmente localizada no campo da etnologia indígena. Fica evidente, porém a qual linha de argumentação o autor se filia e qual a contribuição do seu trabalho para esta linha. , e nesses casos vindos muito mais como uma contribuição e um reforço para seus argumentos.

Entretanto, a nossa crítica mais de fundo se refere à grande oportunidade perdida por Almeida de evidenciar a importância do que se tem produzido no Brasil para o debate internacional ao não dialogar com etnografias produzidas em outros contextos culturais, mas antes se restringindo a localizar e ancorar sua análise no porto seguro das narrativas mais gerais de velhos conhecidos, tais como Weber, Durkheim e, particularmente, Geertz. Aliado a isso, ele também deixa de apontar as novas agendas de pesquisa que estão sendo desenvolvidas no Brasil, em uma dinâmica interlocução com a produção internacional, tais como: a proposta de uma antropologia do cristianismo14 14 É importante notar que Almeida cita o trabalho de Aparecida Vilaça (quem talvez inaugurou essa linha investigativa no Brasil e abriu canal de comunicação entre a nossa produção – antropologia da religião brasileira – com a literatura internacional), ele entretanto não faz qualquer menção à contribuição dos trabalhos dessa autora para a referida linha de pesquisa. ; as temáticas de pesquisa que se consolidam através de projetos de pesquisa, dissertações e teses defendidas em PPGAS, e que ganham destaque em congressos; temáticas como as da criança, da educação, da mediação e das questões em torno da materialização da religião; ou ainda de antigas agendas que estão sendo renovadas, tais como corpo e experiência ou o marianismo. É de se estranhar sobretudo o quase silêncio em relação ao campo das religiões afro-brasileiras, que só são referidas ou tratadas (mas não de forma profunda) em vista às outras religiões, não se fazendo menção, por exemplo, das reflexões feitas a respeito da produção etnográfica nesse campo de pesquisa.

Tudo isso nos leva a interpretar que o olhar que Almeida lança à produção brasileira sobre religião está fortemente ancorado em sua posição no campo, transformando a sua agenda de pesquisa na própria agenda desse campo em geral, em uma clara ausência do que chamamos aqui de um maior trânsito acadêmico.

Para mudar de eixo e inverter o mapa

Nossa proposta aqui é, como indica o subtítulo, mudar de eixo e inverter o mapa. A intenção é olhar para o nosso campo de atuação acadêmico a partir das regiões Norte e Nordeste e aí identificar algumas "agendas locais" que, na realidade, dialogam intensamente e compõem contemporaneamente as agendas nacionais e internacionais (ainda que nacionalmente elas possam ser em certos contextos aparentemente invisibilizadas). Não se trata, portanto, de realizar um balanço da literatura produzida por pesquisadores das instituições dessas regiões, mas de pensar como algumas dessas agendas contribuem para a pluralidade acadêmica brasileira no campo dos estudos da religião. Nesse sentido, pretendemos realizar movimentos que descentralizem o "nacional", pensando esse "nacional" a partir de uma mudança de eixo.

Nosso primeiro movimento é o de trazer à tona as reflexões sobre as relações entre ciências sociais (da religião), o campo etnográfico (afro-brasileiro) e seus impactos, elaboradas por Motta (p. ex. 1988; 1994a; 1994b; 2002; 2010). Assumindo-se como um pesquisador com "reflexos aristotélicos, popperianos e até leninistas" (Motta 2009:153), ele adota uma démarche fortemente reflexiva do campo acadêmico, para discutir não a "interferência" dos pesquisadores nativos nas ciências sociais da religião, mas na atuação dos cientistas sociais como "doutrinadores" das religiões na contemporaneidade. Tratando mais enfaticamente do campo etnográfico afro-brasileiro, em especial o contexto recifense, Motta argumenta que a:

modalidade mais surpreendente, ao mesmo tempo em que a mais sutil, de sincretismo afro-brasileiro, representando uma reviravolta decisiva na história religiosa do Brasil, é o resultado do contato dos cultos com os sociólogos e antropólogos. (...) Pode-se mesmo sustentar que, tal como se difunde atualmente por todo o Brasil, décommunalisé e eclesificado, o candomblé é consideravelmente uma invenção dos antropólogos e sociólogos, brasileiros e estrangeiros (Motta 2002:120).

Porém, segundo o autor, tal processo se apresenta de forma positiva, ou como ele sugere: "veio a constituir-se, sem dúvida com consequências proveitosas para ambas as partes, uma santa e sábia aliança entre aquela religião e os cientistas sociais que a estudam" (Motta 2010:115). Aliança que se renovaria, sobretudo, nos momentos de "festividade acadêmica".

A tese fundamental de Motta, no entanto, é de que esse movimento estaria presente não apenas na relação entre os cientistas sociais e as religiões afro-brasileiras, mas seria constituinte do modus operandum mesmo das ciências sociais. Adotando uma perspectiva weberiana, Motta avança que as religiões, na modernidade, sendo submetidas às ciências sociais, perdem a sua autonomia principalmente na produção de suas teologias.

Dessa intervenção, dessa, pode-se chamar, tomada de posse da religião pela ciência social, envolvendo o estabelecimento de uma espécie de protetorado teórico da segunda sobre a primeira, poderemos encontrar diversos exemplos com referência a diversas religiões em diversos países. Mas ficaremos aqui limitados a um caso bem determinado, que é o do Candomblé, para o qual os cientistas sociais têm, entre outras coisas, elaborado toda uma teologia altamente racionalizada, o que constitui um excelente exemplo da dominação, ou tentativa de dominação, da religião pela Sociologia, pela Antropologia ou por disciplinas análogas (Motta 2010:124, grifos do autor).

As religiões pentecostais e, sobretudo, as neopentecostais, segundo Motta, seriam as refratárias a esse processo de intervenção ou dominação, provocando uma situação de animosidade latente (às vezes mesmo explícita) entre os dois campos.

O interesse nas reflexões de Motta é a abertura que ele promove em direção à exigência da adoção de uma radicalização reflexiva da posição do antropólogo no campo, alinhando-se com as proposições de Cannell (2007). Essa exigência tem como premissa o antropólogo levar em conta a sua posição e a sua relação com os nativos como condição da intrínseca produção do conhecimento antropológico, em especial, no que se refere aos fenômenos religiosos.

O segundo movimento que fazemos é o de apontar para as novas perspectivas na abordagem do tema da possessão, do transe e do êxtase, particularmente através dos trabalhos e pesquisas de Maués (2000; 2003; 2004) e Rabelo (2005a; 2005b; 2008b), que adotam uma abordagem fenomenológica, tendo o corpo como locus privilegiado de reflexão. A originalidade desses trabalhos também reside na adoção de uma reflexão comparativa desses fenômenos, entre candomblé e pentecostalismos e entre renovação carismática e pajelança amazônica, procurando analisar quais as aproximações e os afastamentos possíveis de ser encontrados.

Estabelecendo um diálogo entre Mauss e Csordas por meio de seus dados, Maués amplia a discussão das técnicas corporais para incluir o fenômeno do transe, do êxtase e da possessão como técnica corporal, descolando tais categorias de um campo etnográfico específico para sobressaltar as suas articulações relativas:

As diferentes técnicas corporais utilizadas na RCC, como o canto, os gestos, a dança, a glossolalia e várias outras, têm, como finalidades principais, o louvor a Deus e a obtenção do contato íntimo com a divindade. (...) Ora, se completa através do êxtase, quando o fiel – tendo seu corpo concebido na tradição cristã mais ampla como o "templo do Espírito Santo" – é capaz de literalmente incorporar a própria divindade, através de técnicas corporais que induzem, proporcionam e configuram o êxtase. Nesse sentido – e usando uma imagem propositalmente forte, mas na qual não existe a intenção de qualquer desrespeito –, o fiel carismático é um possuído de Deus. Exatamente por isso é que, neste trabalho, privilegio a análise do êxtase, do transe ou da possessão como técnica corporal (ou técnicas, pois na verdade envolvem mais de uma) privilegiada na RCC (Maués 2003:15-16, grifos do autor).

Dessa forma, enfocando particularmente no campo da RCC paraense a centralidade do corpo e da sua posse como meio etnográfico e analítico para a compreensão da renovação carismática, Maués aponta para o fato de que o modus de posse do corpo do fiel está diretamente ligado ao tipo de relação que se estabelece com uma divindade, mas principalmente com qual tipo de "divindade", assim como com a sua temporalidade. E apontando ainda para a possibilidade de esse processo ser condição do movimento pentecostal como um todo, como ele mesmo conclui:

Mas o êxtase, o transe e a possessão constituem fenômenos centrais na RCC porque, num certo sentido, e no limite, essa forma de doutrina e prática religiosa – poderíamos estender isso a todo o pentecostalismo? – considera que, no fundamental, os seres humanos são uma espécie de "possuídos" (Maués 2003:46).

Comparando as experiências de sujeitos do candomblé de caboclo e de pentecostais em Salvador, Rabelo traz uma primeira mudança que é a saída etnográfica dos tradicionais terreiros nagô para o campo dos numerosos terreiros que cultuam também caboclos. Introduz assim nas suas discussões sobre corpo e posse duas comparações/distinções, uma entre caboclo e orixá e outra entre pentecostais/espírito santo e candomblé/orixás-caboclo. Contudo essas comparações em sua pesquisa só podem ser pensadas a partir da existência do corpo no espaço religioso. Dessa maneira afirma que:

Abordando a possessão a partir dos modos de experiência e engajamento do corpo no espaço, procurei captar as dimensões sociais e existenciais das sensibilidades que os indivíduos desenvolvem enquanto membros de uma comunidade religiosa. Entendido como lugar – terreno da práxis humana – o espaço é ao mesmo tempo o solo que conecta meu corpo a outros corpos e a outras coisas, como também o produto da forma pela qual os corpos se movimentam e se envolvem em diferentes configurações significativas de cores, sons, cheiros, gostos e texturas (Rabelo 2005a:35).

Dialogando intensamente e particularmente com Stoller, Bourdieu e Merleau-Ponty, Rabelo propõe refletir sobre a possessão e o transe a partir de uma abordagem da antropologia do sensível, em que o corpo surge como cultura. Ao mesmo tempo, ou a partir de onde, procura questionar as concepções já apriorísticas de agência e prática, articulando-as à questão da temporalidade. Para Rabelo, a sua reflexão levanta:

três pontos inter-relacionados que são particularmente relevantes: 1. o jogo entre passividade e atividade na construção da agência via possessão; 2. a dimensão encarnada da possessão como prática dotada de sentido; e 3. a elaboração mútua entre passado e futuro no desenrolar da experiência com as entidades espirituais (Rabelo 2008b:113).

A partir de campos etnográficos originais e articulações inovadoras, esses dois autores apresentam possibilidades interpretativas que potencializam as reflexões sobre um tema tradicional do campo religioso, qual seja, corpo e posse. Tais questões têm muito a contribuir na compreensão da relação instaurada entre o fiel e as divindades, assim como no aprofundamento da análise de como esse fiel torna em ação significativa sua "(in)fidelidade" para com aquelas dinvindades. Além disso, as discussões de Maués e Rabelo abrem espaços para o estabelecimento de um diálogo com outras experiências etnográficas, como o trabalho de Birgit Meyers (1998) sobre pentecostalismo na África, em que a autora trata da centralidade dos cultos de possessão para a compreensão dos processos de mudança cultural.

Se o fenômeno da possessão, do êxtase e do transe é um velho conhecido, o nosso terceiro movimento nos leva para o lugar que a criança ocupa no contexto religioso e, a partir desse lugar, a como se dá o processo cognitivo de construção do sujeito religioso – algo ainda pouco estudado no Brasil.

Nesse sentido, as pesquisas de Pires (2009; 2010) entre católicos no sertão paraibano são pioneiras na articulação de uma antropologia da criança e da religião. Uma de suas primeiras preocupações é procurar justamente compreender como se dá essa construção do ser religioso, demonstrando através de seus dados as diferentes concepções e transformações que ocorrem nesse processo.

Uma das hipóteses deste trabalho é que, a julgar pela quantidade massiva de desenhos de igrejas, podemos dizer que a religião, para as crianças, está de alguma forma relacionada à igreja. Se por um lado religião se liga à figura da igreja para as crianças, o entendimento do que a igreja representa vai mudando à medida que a idade da criança varia. Nos primeiros anos pesquisados os desenhos apresentam a igreja "solta" na folha de papel, sem qualquer outro desenho associado. Com o passar dos anos a igreja vai frequentemente aparecer acrescida de elementos contextuais, dos quais se destaca a cidade que a rodeia, com sua praça, cruzeiro, ruas. Com o aumento da idade, a igreja é associada aos eventos que ali têm lugar, notadamente, a festa do padroeiro, casamentos, missas, cultos – e vemos aí a presença de pessoas (Pires 2010:146).

Avançando mais ainda em sua reflexão, a partir da categoria nativa de "mal-assombro", Pires demonstra como as concepções mais escatológicas ou as representações religiosas não são dadas a priori, mas "amadurecidas" ao longo do processo cognitivo de aprendizagem do ser religioso. Como analisa a autora:

Com o passar dos anos, as crianças cristianizam os próprios mal assombros através da restrição dos mesmos às almas dos mortos. Nos desenhos produzidos, vimos que, até por volta dos sete anos de idade, mal assombro não é necessariamente alma ou fantasma. Por volta desta idade, a criança ainda não parece dialogar com o conceito de alma versus corpo. (...) A idéia da existência da alma e da sua sobre-vida após a morte do corpo é um conceito que leva algum tempo a ser assimi-lado – assim como os conceitos de bem e mal, Demônio e Deus (Pires 2009:301).

Sua conclusão expõe que em "se tratando dos mal assombros, este seria o limiar entre as crianças e os adultos: as primeiras tornam se adultas no momento em que passam a cris-tianizar os mal assombros" (Pires 2009:302).

O interesse e a originalidade dos trabalhos de Pires residem, para nós, exatamente no fato de que ao refletir etnograficamente sobre esse processo cognitivo da construção do ser religioso a partir do mundo infantil, em conexão com as reflexões de Toren, torna-se possível desconstruir e relativizar as próprias categorias de religioso e de religião, ao mesmo tempo em que nos é permitido encontrar uma chave metodológica e analítica para compreender esse processo que, quando aparentemente completado, é vivido como ontologia.

O terceiro e último movimento que fazemos, nesse exercício de mudança de eixo e inversão do mapa, vai justamente em direção às realidades etnográficas que apresentam os sujeitos vivendo a sua religião como ontologia. Para isso, tomaremos como referência quatro campos etnográficos diferentes – dois que discutem a IURD: em templos comunitários em Recife (Campos 1995) e em Cachoeira (BA) (L. Costa 2002); e dois realizados entre católicos: penitentes no Juazeiro do Norte (Campos 2001) e católicos "cotidianos" em um bairro recifense (Reesink 2003). Uma das características que aproximam estas reflexões, implícita ou explicitamente (aqui incluindo as apontadas nos movimentos anteriores), é a adoção de uma perspectiva etnográfica que leva em consideração "a possibilidade da verdade religiosa" (Cannel 2007:130), e que toma as categorias nativas também como categorias tornadas analíticas, no sentido dado por Toren (2006).

Uma das originalidades dos trabalhos de Roberta Campos e de Lívia Costa é a de construir a reflexão sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, não mais a partir do par catedral-clientes, mas do par templo de bairro-comunidade de fiéis. Nesse sentido, o que ressalta aqui (além das discussões específicas de cada autora) é a percepção de um forte comprometimento do fiel à sua comunidade religiosa, que se dá em diferentes níveis e em diferentes velocidades, em que se é problematizada a complexidade do processo de adesão/conversão e fidelização. Como afirma L. Costa:

O processo de adesão a uma religiosidade qualquer é uma situação que, ao princípio, aparece como cheia de contradições aparentes, de surpresas, implicando para o indivíduo, em um esforço de "digestão" das formas simbólicas propostas, em um movimento de bricolage permis. (...) Para aqueles que permanecem e que vivem o bricolage permis, a religiosidade neopentecostal oferece com o seu conjunto "híbrido" um tipo de suporte a realização de si baseada sobre uma ruptura parcial em relação às experiências anteriores (L. Costa 2002:207-208, grifos da autora).

O que retém a nossa atenção, primeiramente, é o potencial analítico que o conceito de bricolage permis oferece para as discussões relativas à conversão, fidelização e trânsito no campo religioso brasileiro. Reelaborando o conceito de bricolage lévistraussiano, L. Costa concebe a ideia de bricolage permis como a maneira pela qual os sujeitos organizam para si mesmos a "experiência de uma realidade criada a partir de empréstimos de diferentes materiais (às vezes opostos), transformando-a em 'realidade aceitável', em que estes elementos aparentemente disparatados são unificados em um espectro harmonioso" (L. Costa 2002:207). Ampliando essa perspectiva, Reesink (2003) vai afirmar que em relação aos católicos estudados esse bricolage é permis (permitido) porque para os indivíduos ele faz sentido, ao mesmo tempo em que não põe em xeque a sua cosmologia. Consequentemente os sujeitos católicos pensam e agem teologicamente, movimentando-se ou transitando no campo religioso de forma reflexiva e criativa, mas permanecendo a se conceber como fiéis católicos (Reesink 2007).

É dialogando com essas questões que pretendemos aqui refletir mais detidamente sobre a ideia de fidelidade religiosa e do processo de conversão vivido pelo sujeito como ontologia15 15 De fato, essas questões fazem parte das reflexões temáticas sobre "processos de conversão e de construção de verdades religiosas" realizada pelos pesquisadores do Núcleo de Estudo de Religiões Populares (NERP) do PPGA/UFPE, do qual fazemos parte. . Nossa argumentação levanta a questão de que tanto a fidelidade (ou a infidelidade) religiosa quanto a conversão só podem ser compreendidas antropologicamente radicalizando a articulação entre as categorias do nativo e as do antropólogo, mesmo porque as negociações da verdade se dão nessa interação, como discutido por Campos (2009), em sua experiência junto aos penitentes Ave de Jesus:

Quando mestre José me relatava a sua vinda de Pernambuco para Juazeiro nos idos dos anos 70, disse-me que recebeu uma espécie de chamado. Ao ques-tioná-lo sobre a forma desse chamado, ele afirmou ter sido um pensamento. De seu quarto, sua esposa, dona Regina, logo interveio para melhor explicar: "Ele teve foi uma visão, minha filha. Foi, uma visão". No relato de dona Regina, mestre José, na verdade, tivera uma espécie de chamado místico, "uma espécie de visão", na qual Padre Cícero colocou, em seu coração, o desejo de ir para Juazeiro do Norte. A "contradição" é logo desfeita por mestre José, que nega a diferença entre visão e pensamento e argumenta que visão é uma espécie de "pensamento visível". José, certamente, ao jogar com palavras elaborava metáforas e tentava, assim, negociar significados. Negociava significados para que não fosse julgado louco ou fanático, ao mesmo tempo que sustentava as suas cren-ças. Consciente de que as visões, no mundo de onde eu vinha, são interpre-tadas como coisa de louco ou de fanáticos, José tentava um diálogo com as minhas crenças e critérios de verdade (Campos 2009:39-40, grifos da autora).

Dessa maneira, Campos evidencia etnograficamente, ao modo de Roy Wagner, a criatividade constitutiva do encontro entre antropólogo e nativos, que põe em movimento reflexivo a cultura do antropólogo e a do próprio nativo. Mesmo porque o nativo tem consciência que é sobretudo o seu sistema de verdade que está sendo prioritariamente questionado tanto pelo mundo que o antropólogo representa quanto por aqueles que, mesmo compartilhando o seu sistema religioso, têm posições e verdades diferenciadas. É nesse sentido que:

Mestre José, por sua vez, transforma "visão" em uma metáfora – "chamado visível", criando assim a flexibilidade de sentidos que essa expressão pode oferecer e, deste modo, cria também a possibilidade de negociação dos significados, significados estes que podem ser mais bem aceitos pelo que ele acredita ser meu sistema de interpretação, o que fica claro quando ele afirma: "Um chamado visível é um pensamento que dá na gente" (Campos 2009:42, grifos da autora).

Assim, é tendo isto em mente que nossas reflexões nos levam a considerar que, se do ponto de vista da antropologia a realidade social é construção processual, portanto a conversão seria processo; do ponto de vista do nativo, a conversão é vivida como ontologia ou mais especificamente como transformação radical. Isso parece indicar que aquilo que o antropólogo interpreta como processo, o nativo convertido instaura como mito (no sentido de Lévi-Strauss) e portanto como verdade última e ponto de transformação.

Se a conversão para os informantes é vista e vivida como transformação ontológica – e o que é esperado pelos outros (convertidos e não-convertidos) é que essa transformação seja presentificada e comprovada (Gusmão 2011) – como entender então a questão da (in)fidelidade no campo religioso? Primeiramente, o que se deve perguntar é: Fidelidade/infidelidade para quem ou do ponto de vista de quem?

Ao que nos parece, sempre se toma a instituição (ou aquilo que é pensado como sua ortodoxia) para se por a prova a fidelidade ou a infidelidade dos fiéis. A questão da (in)fidelidade parece ser uma preocupação constante de certos sistemas religiosos e resolvida geralmente do ponto de vista da sua liderança. Assim, dentro do contexto judaico-cristão, o que a Bíblia descreve, em boa parte, é a infidelidade dos israelitas para com seu deus, do que resulta a instauração de profetas a fim de trazer as "ovelhas" de volta para o seu rebanho. Não é demais lembrar que uma das frases mais repetidas na Bíblia é "Deus é fiel", em oposição, claro, à potencial infidelidade dos homens.

Ao levarmos, todavia, em conta o ponto de vista dos fiéis que compõem o conjunto dos membros de uma determinada religião, o que nos parece é que a noção de ser fiel ou infiel também está em disputa, só podendo ser considerada se as posições que os sujeitos ocupam no campo forem pensadas como relativas. E é levando em consideração essa relatividade como intrínseca ao campo que sobressai a noção de que para os fiéis a fidelidade é condição para a adesão e para a permanência religiosa. Tal adesão pode ser questionada pelos outros, é certo, na dependência, porém, de onde esses outros se situam. Mas, sobretudo a questão da (in)fidelidade está intrinsecamente relacionada à questão da reflexividade religiosa, que se constitui na dialética entre dúvida e crença. Como discute Reesink:

Há aqui uma dialética entre a crença, a dúvida e o ceticismo que é própria do processo reflexivo religioso, sendo talvez o que explique a diversidade, complexidade e poder criativo dos sistemas religiosos. De qualquer forma, ou por causa disso mesmo, é bom ter em mente que a dúvida não é unívoca, pois ela se dá em níveis distintos: no mais intenso, esta põe em xeque todo o sistema cosmológico, podendo levar à conversão a outro sistema; em níveis intermediários, a dúvida põe em xeque elementos pontuais ou parciais, ou mesmo a eficácia de certos ritos dentro do sistema cosmológico, sem colocar em questão o próprio sistema. Assim, pode-se duvidar da eficácia da vela na ajuda aos mortos, ou mesmo da eficácia de todo o complexo de Finados, continuando a ser católico e a acender velas, como faz Ana (Reesink 2010:166).

O que desejamos avançar nesse último movimento é, portanto, que a reflexão sobre o campo religioso brasileiro, particularmente no que concerne às movimentações aí realizadas, através de temáticas tais como conversão e (in)fidelidade, pode ser enriquecida se certos pontos forem levados em consideração, tais como: bricolage permis; negociações de verdade; reflexividade religiosa; abertura para uma maior multiplicidade etnográfica. Porém, o que acabamos de afirmar não se refere apenas ao último movimento efetuado, mas a todos aqueles propostos, "provocando" uma descentralização que pode ter como primeiro efeito uma maior pluralidade acadêmica na interpretação do campo religioso brasileiro.

E então

Através das três metáforas construídas (invisibilidade acadêmica, trânsito acadêmico e pluralidade acadêmica), este artigo buscou realizar um primeiro movimento em resposta à tomada de consciência de se ter chegado a um momento crítico, em que nos é apresentada uma "exigência": fomentar uma crítica à construção de uma geopolítica da produção acadêmica no campo da antropologia da religião cujo eixo fundante se traduz por uma clivagem regional. Tomar esta clivagem como o motor da nossa reflexão sobre a formação de uma verdadeira geopolítica acadêmica é reconhecer que a clivagem regional possui uma transversalidade aos diferentes campos de poder e saber, em que um dos seus efeitos – que para nós é paradigmático – é o balanço produzido por Almeida, e de onde, segundo esta mesma perspectiva, deriva a importância do seu texto.

A nossa démarche crítica se constitui em um movimento antropológico de descentralização. Nesse sentido, o que procuramos demonstrar é que ao se mudar o eixo e ao se inverter o mapa se pluraliza (e se relativiza) o campo etnográfico e acadêmico ao mesmo tempo em que se instaura a possibilidade de uma maior visibilidade, trânsito e pluralidade acadêmicos e consequentemente de um maior enriquecimento dos estudos sobre religião no Brasil.

Notas

Recebido em fevereiro de 2011

Aprovado em abril de 2011

Mísia Lins Reesink (reesink@ufba.br)

Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia/UFPE. Possui doutorado em Antropologia Social e Etnologia pela EHESS-Paris. Entre as suas principais publicações, destacam-se os artigos: "Pour une perspective concentrique du catholicisme brésilien", publicado na Social Compass, e "Reflexividade Nativa: quando a crença dialoga com a dúvida no período de Finados", publicado em Mana.

Roberta Bivar C. Campos (robertabivar@gmail.com)

Doutora em Antropologia Social - University of St. Andrews (Escócia), professora adjunta da UFPE, vice-líder do Núcleo de Pesquisa sobre Religiões Populares (UFPE) e do Núcleo de Estudos sobre Cristianismo (UERJ). Atua principalmente nos seguintes temas: religião, cultura e identidade, emoções, teoria antropológica, corpo e sociedade. É autora de artigos em diversos periódicos como Etnográfica, Cahiers Du Brésil Contemporain, Revista de Antropologia da USP, Teoria e Sociedade, Religião e Sociedade, Anthropológicas, Interseções, entre outras, e também de capítulos em várias coletâneas.

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  • 1
    Efeito potencializado quando se tem o selo de legitimidade da Anpocs.
  • 2
    Usamos aqui os mesmos critérios utilizados por Almeida para demonstrar o nosso argumento: a
    invisibilização da produção dessas regiões no seu balanço.
  • 3
    Vale ressaltar que mesmo assim alguns poucos nomes foram citados por Montero.
  • 4
    Uma breve exploração nas publicações na revista
    Religião & Sociedade e de outras revistas que estão no qualis de antropologia (como por exemplo:
    Mana, Revista de Antropologia e
    Ciencias Sociais y Religión/ Ciências Sociais e Religião) comprova o argumento.
  • 5
    Mais uma vez, reforçamos que o uso aqui desse conceito do autor (e dos outros) é expressamente metafórico. Sabemos que o uso que Almeida faz da invisibilidade católica se refere ao fato de que o catolicismo está por toda parte, segundo ele, de forma invisível, sendo esta uma invisibilidade que não priva o catolicismo de sua força política, mas que, ao contrário, é reflexo de sua hegemonia política. Entretanto, a nossa utilização metafórica do conceito de invisibilidade acadêmica das regiões Norte e Nordeste se refere exatamente ao desempoderamento dessas regiões no campo intelectual.
  • 6
    Pode parecer exagero o que falamos aqui, mas esse exagero deriva da nossa experiência. Assim, um antropólogo de uma instituição paulista, convidado para participar de uma banca de dissertação no PPGA/UFPE, chamou um mestrando para fazer o doutorado na sua instituição com o argumento de que se ele permanecesse no Nordeste ele estaria "morto".
  • 7
    A região Norte é salva desse corte no que se refere aos dados etnográficos pelo fato de fazer parte de área de pesquisa do autor e de consequentemente compor os seus interesses temáticos. Entretanto, como já se referiu Maués (1999), a região Norte fica aí restringida ao seu aspecto de "paraíso dos etnólogos" não locais.
  • 8
    Aliás, sejamos justos e reconheçamos que parece ser algo mais generalizado: se levarmos em conta ao que M. Aubré chamou atenção no GT de Religião e Sociedade da Anpocs (2008), os pesquisadores das regiões do Sul-Sudeste generalizam o campo etnográfico "sulista" e "sudestino" para todo o Brasil.
  • 9
    Entretanto, essa indagação não é e nem pode ser direcionada exclusivamente a Almeida. De fato, o autor funciona talvez aqui como o catalisador de uma atitude e "crença" muito comum no
    centro acadêmico brasileiro em relação a sua
    periferia, habitualmente expressa (explícita ou implicitamente) de maneira informal, mas raramente oficializada em textos acadêmicos, e que no fundo parece refletir uma "confusão" entre periferia e provincianismo (confusão esta que muitas vezes encobre uma posição política de dominação). Se pensarmos no exemplo das antropologias inglesa e francesa, podemos facilmente concluir que, nestes termos, o centro pode ser extremamente provinciano.
  • 10
    Como fica evidente na introdução do livro e nas palavras do coordenador geral do projeto
    Horizontes das Ciências Sociais no Brasil, expresso nos três volumes: "O resultado final do projeto oferece uma contribuição relevante para apreciação da trajetória intelectual de determinados campos temáticos que vêm se destacando nessas áreas e as perspectivas teóricas, metodológicas que se encontram subjacentes ao seu tratamento, bem como suas perspectivas futuras de pesquisa e reflexão. (...) Nesse sentido, os trabalhos, além de oferecerem amplo balanço da produção acadêmica de determinados campos temáticos, abrem caminhos para futuras investigações" (Martins e Duarte 2010:11). Tal empresa intencional é reforçada pelas palavras do coordenador da área de antropologia, também do mesmo projeto: "Os textos que compõem esta coletânea foram encomendados com o objetivo explícito de apresentar o estado da arte de cada disciplina, mapeando o percurso e/ou evolução intelectual da discussão do campo temático escolhido na respectiva área de conhecimento, bem como suas perspectivas futuras" (Martins e Duarte 2010:19). É ainda relevante mencionar que a publicação
    Horizontes das Ciências Sociais produzida pela Anpocs vem na mesma linha e com os mesmos objetivos da coletânea em três volumes organizada por Sergio Miceli
    O que ler na Ciência Social brasileira: 1970-1995, e da
    BIB-Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, sendo estes títulos bastante explícitos ao mesmo tempo na sua intenção e na previsão do seu impacto.
  • 11
    Tal inclinação interpretativa agrava-se pelo efeito impositivo que ganha, pois, como é indicado nas introduções dos coordenadores do projeto, a referida coletânea se dirige a um público estudioso mais amplo do que aqueles já treinados nas Ciências Sociais, abrangendo não só a pós-graduação como a graduação, e muito provavelmente servirá de base para concursos em todo o Brasil. Portanto o poder de reprodução da interpretação de Almeida está de antemão facilitado pelo selo de legitimidade da Anpocs, como já indicado acima.
  • 12
    Mais uma vez sublinhamos que nesse sentido as reflexões e os questionamentos levantados pelo autor são pertinentes e podem contribuir de fato para uma maior compreensão do contexto religioso brasileiro.
  • 13
    É assim que se fica sabendo que "a relação entre religião e modernidade (ou seus congêneres: globalização e contemporaneidade)" é o que "pauta boa parte das discussões nacionais" (Almeida 2010:368), mas não se tem de fato ideia de qual é o conteúdo dessas discussões, quais as diferentes interpretações e debates realizados, salvo referências indicativas. O mesmo movimento se percebe quando Almeida faz referência à diversidade do catolicismo brasileiro (Almeida 2010:372), ao relatar algumas linhas de pesquisa, mas também se tem pouca ou nenhuma ideia de qual é o conteúdo dessa diversidade. Em contrapartida, tem-se uma clara noção da interessante discussão do conceito de "trânsito religioso" como definido pelo autor (Almeida 2010:372-376) no tópico sobre "religiosidade: prática, moralidade e subjetividade" (Almeida 2010:371-381). Porém é na sua discussão sobre "religiões e alteridade" (Almeida 2010:389-396) que essa
    démarche se torna menos evidente, sem que se possa ter uma melhor visualização das discussões no campo. Talvez porque, como lembra o autor, trate-se de uma questão que (se bem que relevante) é periférica no campo mais específico da antropologia e/ou da sociologia da religião (incluindo-se a questão da quantidade) e sendo mais facilmente localizada no campo da etnologia indígena. Fica evidente, porém a qual linha de argumentação o autor se filia e qual a contribuição do seu trabalho para esta linha.
  • 14
    É importante notar que Almeida cita o trabalho de Aparecida Vilaça (quem talvez inaugurou essa linha investigativa no Brasil e abriu canal de comunicação entre a nossa produção – antropologia da religião brasileira – com a literatura internacional), ele entretanto não faz qualquer menção à contribuição dos trabalhos dessa autora para a referida linha de pesquisa.
  • 15
    De fato, essas questões fazem parte das reflexões temáticas sobre "processos de conversão e de construção de verdades religiosas" realizada pelos pesquisadores do Núcleo de Estudo de Religiões Populares (NERP) do PPGA/UFPE, do qual fazemos parte.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      Fev 2011
    • Aceito
      Abr 2011
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