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O quando do cristianismo

RESENHA

O quando do cristianismo

Natali Destefani Braga

Mestranda em Sociologia, IESP/UERJ (natalidestefani@gmail.com)

VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão: [312-394]. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, 288 pp.

Até final do século XIX e início do século XX, a história foi contada através da narração de grandes eventos políticos, datas marcantes, sendo utilizados para isso estudos demográficos e econômicos, um tipo de narrativa anacrônica que não considerou a evolução das mentalidades enquanto processos. Nesse contexto, Paul Veyne, arqueólogo e historiador francês nascido em 1930, especialista em Roma antiga, contribui com a produção da chamada Nova História superando aquele anacronismo através do aguçamento de uma sensibilidade atenta à causalidade e aos grandes personagens, compondo a terceira geração da revista francesa Annales, que buscou lançar um novo olhar para a história observando o tempo e seus diferentes ritmos.

Veyne assume uma perspectiva metodológica que busca na dimensão da vida cotidiana as bases para explicar acontecimentos maiores, elabora argumentos a partir das pessoas e não das instituições. Isso é o que encontramos no livro Quando nosso mundo se tornou cristão: [312-394], lançado em 2007 e recentemente traduzido para o português, que vem descrever o processo pelo qual o cristianismo passou de uma seita de vanguarda para se tornar a religião predominante em todo o Ocidente.

Trata-se de uma perspectiva que não trabalha com a narrativa totalizante, fortalecida pela crença de que a história da humanidade pode ser contada para além de capítulos soltos, como num livro único. A publicação traz informações que não narram esse processo a partir das instituições que dele se beneficiaram, como aconteceu principalmente com o Estado absolutista. O autor está na pista das pessoas que receberam essa nova fé e quais foram as consequências disso, elaborando uma história do cristianismo enquanto uma construção coletiva, mas que contou com uma conversão fundamental para seu sucesso: a do imperador Constantino, em 312 d.C.

Ao lançar um novo olhar para Constantino, o autor parte da noite de véspera de uma batalha decisiva que visava recuperar Roma e as demais regiões da Itália, usurpadas por Maxêncio, noite em que Constantino teve um sonho no qual Cristo lhe dizia "sob este sinal vencerás". Após o sonho, Constantino levou para o campo de batalha a marca da nova fé (o crisma, as iniciais do nome de Cristo em grego: C e R) no estandarte de sua tropa, nos escudos dos soldados e em seu próprio capacete. O que era para ser mais um confronto entre generais tornou-se um marco na história, pois com a vitória de Constantino o cristianismo passava de seita minoritária para religião oficial do imperador, ou seja, uma guinada significativa no rumo dos fatos que se sucederam.

Na literatura sobre tal episódio corre a interpretação de que Constantino teria usado a religião para legitimar seu poder, interpretação essa que aloca em sua conversão um estratagema político. O olhar lançado por Veyne contesta essa interpretação que desconsidera importantes elementos da vida no século IV d.C. Para o autor, a cristianização do Ocidente não correspondeu a um cálculo ideológico em busca de bases metafísicas para o governo de um imperador, o livro mostra que foi a junção de mais fatores que concorreram para os rumos da história.

Para Veyne, o cristianismo corresponde a uma invenção coletiva que falava sobre a misericórdia de um Deus de proporções grandiosas, que une em sua essência todas as coisas e se apaixona pela sorte da humanidade toda, homem por homem, indivíduo por indivíduo. O sucesso do cristianismo reside exatamente na forma como ele foi elaborado e disseminado, seu mérito também está em sua natureza. Tratava-se até então de uma seita que resistia entre uma elite apesar das perseguições. O autor desenha esse período que considera ser o "quando" da cristianização do Ocidente à partir da causalidade, lançando a conversão de um homem e seu poder de influência combinada com uma questão colocada à população até então pagã: Qual é a religião verdadeira? – questão pertinente às buscas por grandes verdades e o destino da humanidade que pairava no pensamento do tempo em questão.

No segundo capítulo, "Uma obra prima: o cristianismo", o autor mostra a superioridade do cristianismo com relação ao paganismo, apontando primeiramente a originalidade dessa nova fé que se propunha a falar do amor e da paixão do Deus pela humanidade, estabelecendo uma relação que envolve seu adepto em uma unidade, em que cada um de seus atos passa a ter significado, solidificando o ser para libertá-lo da angústia do futuro, e sustentado a defesa de uma relação entre o Pai e seus filhos, que trazia segurança interior para todos que Nele acreditassem, fossem eruditos ou analfabetos. Comparada ao paganismo, a religião cristã já se mostra mais atraente no que se refere à relação estabelecida entre as divindades e seus seguidores, pois com os deuses pagãos a relação era bem diferente e a busca por atenção positiva de uma dentre as várias divindades do panteão estava relegada à inconstância da divindade.

O fato de seu Deus ser único dentro da doutrina não implica que a superioridade do cristianismo se deveu ao monoteísmo em disputa com o politeísmo. O autor faz um apêndice para esclarecer acerca desse suposto monoteísmo – que ele denomina monolatria, ou seja, a obrigatoriedade em reconhecer apenas um Deus, embora se saiba que se trata do Deus de Israel, ao qual se deve fidelidade. O mérito desse Deus reside em sua grandiosidade, seu gigantismo, que converge características antropomórficas e metafísicas, transformando-se em fundamento e autor da ordem cósmica e do Bem.

Com a importante contribuição de um profeta carismático, Jesus Cristo, a difusão do Deus grandioso que ama a humanidade ganhou a adesão de significativo número de pessoas. Nesse movimento podemos perceber que a adesão ao cristianismo significou a suplementação de um costume por outro, onde a fé também imprimia no crente todo um novo padrão de comportamento que passa a ser regulado pela moral cristã. Não bastava crer, era preciso professar. Jesus, que teve vida humana, portanto inquestionável, pedia como oferta não o sacrifício animal, mas o sacrifício humano, convidando os mais ricos a venderem tudo e a segui-lo, pois não haveria oferta maior do que a própria vida, algo que os mais humildes podiam fazer muito bem, obedecer Sua lei.

Outra obra-prima apontada pelo autor é a própria instituição da Igreja, que levou o cristianismo a se apresentar como um organismo completo e que comportava além dos ritos, tal qual o paganismo, ainda todo um arsenal muito mais elaborado, dotado de sacramentos, dogmas, livros santos, elementos sagrados etc.

O cristão, diferentemente do pagão, contava com uma fé unificada em um Deus, precisava confessar essa fé, respeitar a lei divina e era a igreja que regulava tudo isso, apoiada em uma hierarquia instruída, um clero que foi fortalecido por Constantino. Nosso mundo começou a se tornar cristão com essa conversão que levou o imperador a eliminar em definitivo a perseguição aos cristãos no momento da história em que o paganismo era a crença predominante. Favoreceu e sustentou a nova fé com a organização eficaz da religião em uma Igreja.

Trata-se de uma religião que, como nenhuma outra, teve no decorrer daquele século um enriquecimento espiritual e intelectual muito grande. E que, ainda que sumariamente elaborada, mostrou-se no tempo de Constantino uma religião superior ao paganismo, portanto digna de seu trono. Com destreza, Paul Veyne levanta essas características da nova doutrina e localiza seus efeitos na sociedade da época, desenhando como se deu a recepção pela sociedade do século IV d.C. de uma religião que trazia em si uma nova sensibilidade. Nas palavras do autor, a ascensão do cristianismo "provocou um corte geológico na evolução bimilenar das religiões, abriu uma nova era para a imaginação que as cria e vai servir de modelo às religiões que a sucederam, maniqueísmo ou islã" (:45).

No livro aqui resenhado o autor deixa claro que acredita na sinceridade da conversão de Constantino considerando a força de seu sonho. Afirma que, assim como as premonições, os sonhos participavam da vida cotidiana no século IV como elemento residual da cultura pagã, que embora em declínio ainda contribuía com o imaginário comum. Tomar uma decisão após ter um sonho não era algo estranho para a época.

Para o autor, quando Constantino se converteu ele apenas concluiu com o término da política de perseguição que já dava sinais de seu insucesso na busca pelo retorno ao paganismo. Ao cessar em definitivo as perseguições, Constantino não tentou impor uma nova religião que legitimasse seu governo – que foi simultaneamente cristão e pagão.

Fato é que, assim como os imperadores pagãos que erguiam templos aos seus Deuses de devoção, Constantino favoreceu em muito a nova fé, ordenando a construção da cidade de Constantinopla, que se tornaria a Roma cristã no Oriente, contribuindo sobremaneira para a difusão de seu Deus.

Para Veyne, Constantino estremeceu a história universal, foi um revolucionário, um herói, um homem maduro convencido do seu papel importante na economia milenar de salvação e que, por ser imperador, sua crença resultou em transformações decisivas na história. Através de uma narrativa de comparação, o autor aproxima as motivações de Trotsky e Lenin às de Constantino para levar o leitor a imaginar o sentimento contido em ambas as ações, ou seja, tanto no que levou Constantino a favorecer o cristianismo quanto no que levou Lenin e Trotsky a lutarem pelo comunismo repousa uma "racionalidade" do sentido da história: em uma, a revolução materialista de uma classe oprimida, e em outra, a salvação redentora da humanidade.

Não se trata de um fanatismo, mas da postura de um homem moderado que admirava a disciplina e tinha certa repulsa ao sacrifício a ponto de proibir práticas rituais pagãs que envolvesse sacrifício animal – o que contribuiu muito para o advento do cristianismo em detrimento das crenças pagãs que foram privadas desse elemento central de seu ritual.

Paul Veyne sabe que é difícil, aos olhos dos intelectuais que se debruçam sobre o assunto, perceber que a religião pode ser algo suficientemente sério, mesmo para um homem que ocupa lugar central de poder. O divino e o sagrado, para esse historiador, são qualidades primárias, que não derivam de outras coisas. Seu livro rebate a ideia de que a fabulação religiosa seja inconscientemente utilitária – ela é um fim em si.

É preciso considerar que isso significa dizer que o autor trabalha com uma perspectiva que vem afirmar a força da razão religiosa presente no fato histórico de repercussões tão vastas. Veyne não acredita que a religião é "uma mentira útil" que comporta a função de educar o povo para a vivência de uma moral. Ele atribui isso ao habitus – que compreende funções não religiosas da religião. Ao lançar sua análise para a vida de Constantino, o autor propõe que o sucesso do cristianismo está diretamente ligado à fé de um líder político, que na qualidade de tal, expressa uma fala pragmática, não ideológica. Lembra-nos que os sucessores de Constantino tiraram do cristianismo uma nova fraseologia pragmática legitimante, a fim de estabelecerem um reino pela graça de Deus. A estratégia se esclarece, nas palavras de Veyne, pela percepção de que: "de religião pessoal do imperador reinante, o cristianismo se tornou a religião do trono".

No último capítulo, Veyne mostra que isso não significa dizer que o cristianismo resultou na transformação das noções de individualismo e universalismo dando início ao que temos hoje em valores modernos, associação feita a partir da máxima de que o espaço do Ocidente corresponde a uma civilização cristã. A religião é apresentada nessa obra como um entre vários outros componentes de uma civilização, e reduzi-la apenas a isso seria um equívoco, assim como é um equívoco pensar que o humanitarismo característico do Ocidente seria uma mera herança cristã.

Não se trata de uma investigação das raízes da civilização europeia, tarefa talvez impossível, visto que as civilizações se formam em etapas, não têm raízes. De maneira inovadora, o historiador Paul Veyne nos mostra com essa obra alguns elementos desse processo, seus personagens, suas ações, e o que também concorreu para a formação do mundo de nossos dias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    2012
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