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O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: disputas de agentes e valores religiosos em um estado laico

The right to life in context of abortion and stem cell research: disputes of religious agents and values in a Secular State (Brazil)

Resumos

O artigo aborda o debate público sobre o direito à vida no contexto da autorização da pesquisa com células-tronco embrionárias e no debate sobre o aborto, enfocando a participação de atores religiosos e seus valores. Serão examinados o debate legislativo e judiciário da Lei de Biossegurança e a audiência pública da ADPF 54, referente à antecipação de parto de anencéfalo. Esta pesquisa documental analisa a transcrição da audiência pública da ADPF 54, e os registros do processo legislativo no Congresso Nacional e da ADI 3510 no Supremo Tribunal Federal. Os resultados revelam, além da centralidade do argumento do valor da vida, a diversidade na atuação dos agentes religiosos, com hegemonia da Igreja Católica e a emergência de evangélicos e espíritas.

Religião; Células-tronco embrionárias; Aborto de anencéfalo; Lei de Biossegurança; ADI 3510; ADPF 54


The article analyses the public debate (in Brazil) about the right to life in the context of legal authorization for human embryonic stem cell research and the debate about abortion with focus on religious actors and values. The paper examines the legislative and judiciary debate about Biossecurity Law and the public hearing of ADPF 54 which dealt with abortion of anencephalus. This documental research analyses the transcription of public hearing of ADPF 54, and records of legislative process at National Congress and the action of unconstitutionality (ADI 3510) at the Federal Supreme Court. The results show the core value of life in the center of the argument, besides the diversity in the action of religious agents, the hegemony of Catholic Church, and the rise of Evangelical Protestants and Kardec Spiritualists.

Religion; Human embryonic stem cells; Abortion of anencephalus; Law of Biossecurity; ADI 3510; ADPF 54 (action for anticipation of birth of anencephalic fetus)


O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: disputas de agentes e valores religiosos em um estado laico

The right to life in context of abortion and stem cell research: disputes of religious agents and values in a Secular State (Brazil)

Naara Luna

Doutora e pós-doutora em Antropologia pelo PPGAS – Museu Nacional/ UFRJ. É professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais e Extensão Rural (DCS) do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFRRJ e da Pós- Graduação em Ciências Sociais da UFRRJ. É autora do livro Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas e de diversos artigos e capítulos que abordam aspectos sociais e culturais das novas tecnologias reprodutivas, clonagem, pesquisas e terapias com células-tronco, aborto e a interface de religião e direito com problemas éticos. naara_luna@ig.com.br

RESUMO

O artigo aborda o debate público sobre o direito à vida no contexto da autorização da pesquisa com células-tronco embrionárias e no debate sobre o aborto, enfocando a participação de atores religiosos e seus valores. Serão examinados o debate legislativo e judiciário da Lei de Biossegurança e a audiência pública da ADPF 54, referente à antecipação de parto de anencéfalo. Esta pesquisa documental analisa a transcrição da audiência pública da ADPF 54, e os registros do processo legislativo no Congresso Nacional e da ADI 3510 no Supremo Tribunal Federal. Os resultados revelam, além da centralidade do argumento do valor da vida, a diversidade na atuação dos agentes religiosos, com hegemonia da Igreja Católica e a emergência de evangélicos e espíritas.

Palavras-chave: Religião, Células-tronco embrionárias, Aborto de anencéfalo, Lei de Biossegurança, ADI 3510, ADPF 54.

ABSTRACT

The article analyses the public debate (in Brazil) about the right to life in the context of legal authorization for human embryonic stem cell research and the debate about abortion with focus on religious actors and values. The paper examines the legislative and judiciary debate about Biossecurity Law and the public hearing of ADPF 54 which dealt with abortion of anencephalus. This documental research analyses the transcription of public hearing of ADPF 54, and records of legislative process at National Congress and the action of unconstitutionality (ADI 3510) at the Federal Supreme Court. The results show the core value of life in the center of the argument, besides the diversity in the action of religious agents, the hegemony of Catholic Church, and the rise of Evangelical Protestants and Kardec Spiritualists.

Keywords: Religion, Human embryonic stem cells, Abortion of anencephalus, Law of Biossecurity, ADI 3510, ADPF 54 (action for anticipation of birth of anencephalic fetus).

Nós estamos à cata, em busca de um conceito jurídico, mais especificamente um conceito jurisdicional, para o vocábulo vida", para o pleno significado da expressão dignidade da pessoa humana".

Ministro Carlos Ayres Britto1 1 Transcrição da audiência pública de instrução da ADI 3510 (Brasil 2005b:2).

O que importa na discussão da liberação do aborto em gestação de anencéfalos? Quem está importando: o feto ou a mulher? O feto – disso nós já temos certeza.

Elizabeth Kipman Cerqueira2 2 Transcrição da audiência pública da ADPF 54, sessão de 16/09 (Brasil 2008b:1).

Este artigo3 3 Baseado na comunicação O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: o dilema dos valores religiosos em um Estado laico" apresentada na mesa redonda MR13 – Religião, direitos humanos e espaço público: reflexões sobre temas morais controversos no 35º Encontro Anual da Anpocs, em 2011. O artigo resulta do projeto Do aborto à pesquisa com com células-tronco embrionárias: o estatuto de embriões e fetos e o debate sobre direitos humanos no Brasil", financiado com auxílio APQ-1 da FAPERJ. aborda o debate público sobre o direito à vida em dois contextos distintos: a autorização da pesquisa com células-tronco embrionárias e o debate sobre o aborto, salientando a participação de atores oriundos do campo da religião e da explicitação de valores religiosos em ambos. Esses problemas de pesquisa têm sido abordados por mim em minha investigação de mestrado e de doutorado sobre novas tecnologias reprodutivas e, em estudos pós-doutorais, no mapeamento do campo e do contexto das pesquisas com células-tronco. Dois eventos estarão sob exame: 1) o processo legislativo de aprovação da Lei de Biossegurança no Congresso Nacional, com foco no debate sobre o artigo 5º, que autoriza a extração de células-tronco embrionárias humanas de embriões restantes de reprodução assistida, e sua contestação no Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510 (ADI 3510); e 2) a audiência pública da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54) do STF, referente à autorização da antecipação de parto de anencéfalo. As fontes analisadas são registros do Congresso Nacional sobre a votação da Lei de Biossegurança e discursos proferidos nesse contexto contendo as palavras-chave embrião e aborto, os documentos referentes à ADI 3510 no STF (a petição inicial, a transcrição da audiência pública de instrução e os votos dos ministros) e a transcrição da audiência pública da ADPF 54. Outras fontes são a cobertura da grande imprensa sobre a autorização das pesquisas com células-tronco embrionárias e sobre o debate do aborto em geral.

Este texto articula a análise de diversos objetos (Luna 2009; 2010a; 2010b; Cesarino e Luna 2011), e examina os documentos, de modo a elaborar um enfoque específico quanto ao problema da religião na esfera pública, com respeito aos agentes e valores envolvidos. Para tal análise, adota-se o conceito de esfera pública conforme definido por Montero (2012:177) como um espaço que se constitui discursivamente em contraposição com outras esferas".

A pesquisa com células-tronco e o debate sobre a legalização do aborto são processos independentes liderados por atores sociais distintos (no primeiro caso, a comunidade científica, no segundo, o movimento de mulheres) que foram conjugados no debate público por incidirem na intervenção sobre embriões e fetos humanos. A Igreja Católica tem sido um ator fundamental em ambas as controvérsias e as aglutinou no tema da Campanha da Fraternidade de 2008, Fraternidade e defesa da vida", impondo a força de um discurso religioso até então hegemônico (Luna 2010a).

Tal influência da Igreja Católica é perceptível no âmbito legislativo com a presença de pessoas ligadas à sua orientação nos parlamentos federais e estaduais, onde tramitam os projetos de lei, e nas audiências públicas (Cesarino 2006; Gomes 2009a; Cunha 2007; Kalsing 2002). Ocorre também nos processos do judiciário, em altas instâncias do STF, como na ADPF 54, na ADI 3.510, e em outros processos de instâncias mais baixas (quando se entra com ações para barrar autorizações judiciais individuais de antecipação de parto de anencéfalo – cf. Luna 2009). O contexto que situou a Campanha da Fraternidade de 2008 representa um quadro formado com o início dos eventos que serão aqui analisados: o desencadeamento do processo legislativo da Lei de Biossegurança em dezembro de 2003 e a entrada no STF da ADPF 54 em junho de 2004.

A Igreja Católica é ator central nas disputas sobre questões reprodutivas no Brasil. Contudo a presente investigação no contexto desses dois eventos revela outros atores religiosos que têm se pronunciado no espaço público.

Células-tronco embrionárias em questão: a nova Lei de Biossegurança e o debate no legislativo

O debate sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas (CTEH) dá ensejo para se verificar a centralidade do conceito de vida na enunciação de determinados valores religiosos, e identificar uma diversidade de agentes religiosos que se manifestou nesse campo de disputas referentes à definição dos limites da vida a proteger, o que abrange além da pesquisa com embriões, questões como o aborto e a eutanásia (cf. Gomes e Menezes 2008). No presente artigo, o enfoque se limita às células-tronco embrionárias, extraídas de embriões gerados em laboratório, o que implica a destruição desses entes. As células-tronco adultas, presentes em diversos tecidos do corpo, são apresentadas como alternativa pelos contrários ao uso de embriões humanos, mas teriam menos plasticidade que as células-tronco embrionárias, e seu emprego ofereceria menos riscos e menos possibilidades (Rehen e Paulsen 2007).

O Poder Executivo, no primeiro mandato do presidente Lula, enviou ao Congresso Nacional em outubro de 2003 o projeto original da nova Lei de Biossegurança. A proposta legislava sobre o uso de organismos geneticamente modificados e mantinha o texto da Lei de Biossegurança de 1995 que proibia o uso de embriões humanos como material biológico disponível (Cesarino 2006)4 4 O presente artigo omite o tema dos transgênicos e da organização de instituições técnicas responsáveis pela biossegurança. Remeto à descrição competente feita por Cesarino (2006). . O primeiro substitutivo elaborado pouco depois pelo relator do projeto, Aldo Rebelo, retirava da lei o artigo que proibia a manipulação de embriões humanos, o que abriria espaço para a pesquisa com células-tronco embrionárias. Essa reformulação foi uma resposta a pressões de segmentos da comunidade científica e de associações de pacientes portadores de doenças para as quais os experimentos com células-tronco embrionárias representavam expectativa de cura. Como não especificava o que seria permitido, o projeto daria margem inclusive à produção de embriões humanos para pesquisa ou seu uso para clonagem. Em reação, houve a mobilização imediata da Frente Parlamentar Evangélica que, com o referendo da CNBB, entregou ao presidente da Câmara João Paulo Cunha e ao novo relator, Renildo Calheiros, um manifesto contrário a qualquer tipo de pesquisa com embriões humanos (Cesarino 2006:123ss). O parecer do novo relator voltou a vedar o uso de embriões humanos para pesquisa e passou a criminalizar a atividade, modificação feita após acordo com parlamentares cristãos", uma aliança de católicos e evangélicos. Resumo aqui o processo de alteração no Senado5 5 Segundo Cesarino (2006), a CNBB escreveu diretamente a senadores, solicitando que fosse mantido o texto da Câmara que vedava a pesquisa com embriões. , já retratado detalhadamente por Cesarino, e no final da seção será retomada a descrição e análise das votações nas duas casas legislativas.

No Senado, houve negociações que redundaram na formulação do artigo 5º, que veio a ser aprovado. O artigo 5º da Lei de Biossegurança de 2005 autorizava a extração de células-tronco embrionárias com os fins de pesquisa e de terapia de embriões restantes de reprodução assistida que fossem inviáveis ou estivessem congelados por pelo menos três anos no momento de aprovação da lei, condicionado ao consentimento dos genitores" (sic), sendo o processo de pesquisa fiscalizado por comitês de ética6 6 Os embriões de reprodução assistida são congelados por volta do 3º dia após a fertilização in vitro, caso não sejam transferidos para o útero. Seria necessário cultivá-los até o estágio de blastocisto no 5º ou 6º dia para a obtenção das células-tronco embrionárias pluripotentes extraídas da massa celular interna que daria origem ao corpo do embrião. . Desde o debate no Congresso Nacional para a aprovação da Lei de Biossegurança, foi destacado o papel de parlamentares com orientação religiosa (cf. Cesarino 2006). A rejeição inicial ao artigo 5º foi superada quando, em audiência pública com peritos no Senado (conjunta da Comissão de Educação e Comissão de Assuntos Sociais), os cientistas favoráveis à pesquisa com células-tronco embrionárias conseguiram convencer os parlamentares através da tese remédio ou lixo" referente ao destino dos embriões de reprodução assistida7 7 Foram expositores três cientistas da área biomédica, um médico e formador de opinião e um filósofo e professor de bioética, além do Senador Tião Viana, doutor em medicina tropical. .

Não existe legislação brasileira sobre reprodução assistida. Além do texto da lei de Biossegurança de 1995, a resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina então vigente dava as principais balizas para o setor8 8 Nova resolução do CFM 1.957/2010 foi publicada em janeiro de 2011, e a única alteração a esse respeito foi prever a criopreservação apenas dos embriões viáveis. A resolução do CFM 2.013/2013, publicada no Diário Oficial da União em 9/05/2013, permite descartar os embriões criopreservados por mais de 5 anos, se for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança". Nesse sentido, a última resolução supera a Lei de Biossegurança, que autorizava o uso para pesquisa apenas dos embriões congelados por três anos no momento de aprovação da lei, ou os já congelados que completassem três anos. Supera também a regra anterior, pois permite o descarte após cinco anos, enquanto antes o destino, que não a doação, seria o congelamento por tempo indefinido. . Tal resolução autorizava a crio-preservação de pré-embriões, proibia seu descarte e exigia que os cônjuges expressassem por escrito sua vontade quanto ao destino dos embriões em caso de divórcio, doenças graves, falecimento ou quando desejassem doá-los (para a reprodução de outras pessoas)9 9 A chance de gestação por meio da fertilização in vitro é muito reduzida caso se transfira para o útero apenas um embrião por vez. Para aumentar a eficácia da técnica, produz-se um número maior de embriões e recomenda-se a transferência de no máximo quatro, a fim de evitar a gravidez múltipla. Os demais podem ser congelados para uso futuro do casal. . Na audiência, os cientistas informaram que a maioria dos casais não queria ver seus embriões sendo gerados em outras famílias e optava por mantê-los congelados. O destino de tais embriões após diversos anos de congelamento seria o descarte. Os cientistas argumentaram que seria mais nobre destiná-los à pesquisa, pois poderiam contribuir futuramente no tratamento de diversas enfermidades, sendo este o núcleo da tese remédio ou lixo". Além de afirmar que tais embriões não constituíam formas de vida, inclusive por perda de viabilidade quanto maior o período de congelamento, e afastar a discussão do debate sobre o aborto, os peritos contrastavam essa situação com o caso de pacientes vítimas de doenças degenerativas que poderiam ser beneficiados pelas pesquisas com células-tronco embrionárias.

Nesse sentido, outro grupo de pressão foi o Movitae, uma associação de portadores de doenças genéticas que pressionava pela liberação das pesquisas com o argumento da existência de potenciais beneficiários das pesquisas. A pressão dos grupos de pacientes e a audiência com peritos, todos favoráveis às pesquisas com células-tronco embrionárias humanas, exceto pelo professor de bioética, foram essenciais no convencimento de grande maioria dos parlamentares no Senado (cf. Cesarino 2006) resultando na nova redação do artigo 5º. A mudança de opinião de parlamentares religiosos será explicitada através da descrição da primeira votação na Câmara dos Deputados, em 5 de fevereiro de 2004, e da votação final, após as modificações no Senado, na Câmara em 2 de março de 2005, e por fim do debate no Senado.

O objetivo deste levantamento e análise das votações foi esclarecer a observação de Cesarino (2006) sobre a mudança nos votos dos religiosos entre a primeira a e segunda votação da Lei de Biossegurança na Câmara dos Deputados no que se refere à pesquisa com embriões humanos. Na sessão da Câmara que aprovou o parecer de Renildo Calheiros em fevereiro de 2004, houve antes a votação de uma emenda de Roberto Freire, do PPS, que permitia a pesquisa com células-tronco embrionárias e a clonagem terapêutica: a emenda foi rejeitada, com 128 votos sim", contra 279 votos não" e 2 abstenções. Examinando os blocos partidários dos votantes, a orientação do PPS (partido do autor da emenda), do PFL, do PSDB e do PRONA foi pelo sim", sendo esses partidos de oposição ao governo Lula. De modo geral, os deputados seguiram a respectiva orientação partidária. Para se elucidar a influência dos religiosos nessa votação, buscou-se verificar os parlamentares engajados no debate, com exame em separado dos votos dos religiosos. Considerando apenas os religiosos que foram identificados10 10 Devo agradecer a meu assistente de pesquisa Felipe Lamim pelo auxílio no levantamento das votações e elaboração das tabelas que permitiram obter essas conclusões. A identificação dos parlamentares católicos é mais difícil, pois, enquanto se encontram listas de parlamentares evangélicos (principalmente após a constituição da Frente Parlamentar Evangélica em 2003), a massa dos parlamentares é católica não praticante. Uma pequena minoria militante de parlamentares católicos atua para colocar em pauta a agenda da Igreja e há os provenientes das pastorais populares. A fonte principal para identificação desses católicos mais ativistas, além de buscas na Internet, foram as listas da Pastoral Parlamentar Católica, obtidas por meio de um assessor do gabinete do deputado José Linhares, coordenador da pastoral. , 49 evangélicos, 67 católicos e 1 espírita rejeitaram a emenda, mas ela foi aprovada por 6 evangélicos (2 da IURD, sendo 1 do PFL; 3 luteranos, sendo 1 do PSDB e 1 do PFL; e 1 assembleiano do PFL) e por 28 católicos (10 do PFL, 8 do PSDB e 2 do PRONA). Ou seja, a votação da emenda mostrou ampla rejeição da pesquisa com células-tronco embrionárias não apenas entre identificados religiosos. É provável que nesse momento a orientação partidária explique em parte os votos favoráveis desses religiosos, menos do que sua convicção pessoal.

Após as alterações no Senado, a perspectiva sobre a pesquisa com CTEH mudou radicalmente na votação final na Câmara, em março de 2005, conforme demonstra a votação do artigo 5º que a regulamenta. A orientação de todos os partidos, exceto o PRONA, foi votar pelo sim", isto é, a favor da utilização para fins de pesquisa e terapia dos embriões produzidos por fertilização in vitro e não utilizados que fossem inviáveis, ou estivessem congelados por três anos ou mais na data de publicação da lei, sempre com o consentimento dos genitores. Essa votação, mais do que a anterior, mostra a inclinação do parlamentar acerca dessa pesquisa, em particular quando vota não". Houve 366 votos sim", 59 votos não" e 3 abstenções. Mais da metade dos votos dos evangélicos migrou para a posição favorável aos estudos com células-tronco embrionárias humanas: 30 votaram a favor e 24 contra. Entre os católicos localizados, 27 permaneceram contrários aos experimentos com embriões humanos, 80 foram favoráveis e 1 se absteve, portanto, houve migração dos votos também entre católicos para a posição favorável à pesquisa com CTEH, enquanto o único voto identificado espírita virou favorável. Vale destacar que algumas igrejas mantiveram unanimemente ou quase a rejeição, caso dos deputados pertencentes à Assembleia de Deus (15 contrários e 3 favoráveis) e dos da Igreja do Evangelho Quadrangular (todos os 3 contrários), enquanto todos os 18 deputados pertencentes à Igreja Universal do Reino de Deus viraram para a posição favorável na votação final11 11 Machado (2006) relata que houve orientação do Conselho de Bispos da IURD para votar a favor do artigo 5º que autorizava a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas. . As denominações do protestantismo histórico têm presença muito reduzida, sendo o maior contingente de batistas: na primeira votação 9 batistas rejeitaram e 1 votou pela obstrução, enquanto na final, 2 se mantiveram contrários e 5 tornaram-se favoráveis.

No tocante aos discursos favoráveis proferidos na Câmara sobre o tema, um total de 38 parlamentares discursou favorável à experimentação com CTEH: 6 deputados identificados católicos e 7 evangélicos manifestaram-se em defesa da autorização da pesquisa com células-tronco embrionárias humanas. Esses 13 discursos representaram pouco mais de um terço dos deputados que fizeram pronunciamentos pró-CTEH, enquanto o restante das falas favoráveis (soma de 25) provinha de deputados sem religião ou dos quais não se detectou a religião. Foi possível identificar o pertencimento religioso de todos os 26 deputados que discursaram rejeitando o uso de embriões humanos em pesquisa: o número de evangélicos que discursou superou o número de católicos (16 evangélicos e 10 católicos). Isso mostra que o posicionamento dos religiosos não foi monolítico, com diversos parlamentares aprovando a pesquisa com células-tronco embrionárias, por um lado. Por outro lado, revela que a motivação religiosa permaneceu fundamental para a rejeição na Câmara dos Deputados (ponto também ocorrido no Senado nas posturas de Flávio Arns e Heloísa Helena), na defesa do direito à vida.

No tocante aos discursos e o processo de votação no Senado, ali foi central a audiência conjunta da Comissão de Educação e da Comissão de Assuntos Sociais no dia 2 de junho de 2004. Apenas dois senadores discursaram antes dessa data (Romero Jucá PMDB-RR em abril, e Mozarildo Cavalcanti PPS-RR, em maio), ambos favoráveis à pesquisa com células-tronco embrionárias. Isso mostra a força do argumento remédio ou lixo", usado pelos cientistas nessa audiência para afetar a posição dos senadores. Na ocasião da audiência conjunta de 2 de junho de 2004, dos 12 senadores que se pronunciaram, apenas 1 era contrário (Arns: católico). Os demais 11 se manifestaram favoravelmente a essas pesquisas, sendo que 7 se declararam católicos quando expuseram sua opinião, e mais 1 senador (Tião Viana) declarou ter formação cristã clara e convicta" (ele é católico). Considero a seguir os discursos feitos no plenário do Senado no ano de 2004, sem incluir a audiência pública: 2 senadores se opuseram em discursos – Flávio Arns (PT-PR), que questionou eticamente essas pesquisas por tratar o embrião humano como objeto e alertou para os riscos das terapias, e Heloísa Helena (PSOL-AL), que propôs que o tema das células-tronco embrionárias fosse incluído no debate de outra lei referente à reprodução assistida. Ambos pertencem à Igreja Católica. Por outro lado, ainda em 2004, 9 senadores discursaram favoravelmente às pesquisas com células-tronco embrionárias humanas, dos quais 2 eram católicos. Em 2005, dos 9 senadores que discursaram sobre células-tronco embrionárias humanas, apenas 1 (Arns) declarou-se contra essas pesquisas, enquanto dos demais 8 favoráveis, 3 eram católicos.

Tanto na Câmara como no Senado, encontrou-se variação das posições dos católicos: alguns, seguindo a orientação da Igreja, são contrários às pesquisas com CTEH, enquanto outros são favoráveis. Ambos os exemplos opõem religião em termos de pertencimento e de adesão (cf. Duarte et al, 2006). Embora vários reivindiquem o pertencimento institucional à Igreja Católica, o grau de adesão à doutrina oficial da Igreja é bastante variado. Na votação do substitutivo no Senado que permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias, 53 disseram sim", 2 disseram não" e houve 3 abstenções. Os 2 que recusaram o projeto foram Flávio Arns e Heloísa Helena, ambos católicos engajados, e dos 3 que se abstiveram, 1 é católico (Marco Maciel). 2 senadores evangélicos votaram sim"12 12 Havia apenas 3 senadores evangélicos, e o terceiro não estava presente à votação. bem como 10 identificados católicos. A votação amplamente favorável aos experimentos com CTEH mostra adesão e o poder de convencimento da tese dos cientistas (remédio ou lixo). Considerando o resultado das votações na Câmara e no Senado, constata-se a inexistência de unanimidade no dito voto religioso", mas, pelo contrário, percebe-se certo grau de diversidade de perspectivas. Os que discursaram contra as CTEH na Câmara eram todos religiosos, embora vários religiosos tenham se manifestado a favor. Na votação no Senado, ambos os que rejeitaram a pesquisa com CTEH eram pessoas de forte engajamento religioso. Isso sugere que a formação religiosa pode solidificar posições, mas isso ocorre em função do grau de adesão do sujeito ao conteúdo doutrinário. Por outro lado, diversos usaram a justificativa religiosa para defender suas próprias convicções e rejeitar as diretrizes de sua instituição.

A ação de inconstitucionalidade: ADI 351013 13 Nesta seção, as citações referem-se à transcrição da audiência pública da ADI 3510.

A Lei de Biossegurança foi aprovada pelo Congresso Nacional em março de 2005 e sancionada pelo presidente da República em outubro do mesmo ano. Em maio de 2005, o então procurador geral da República, Cláudio Fonteles, entrou com uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, alegando que o artigo 5º da Lei de Biossegurança feriria a garantia constitucional do direito à vida e faria ruir o princípio da dignidade humana, fundamento do estado democrático de direito. A cobertura da imprensa imediatamente chamou o procurador de católico. Ele respondeu que sua argumentação foi estritamente técnica14 14 O ex-procurador Cláudio Fonteles foi designado de franciscano que recrutou cientistas ligados à Igreja Católica para deporem". Indagado se movera a ação devido à sua ligação com a Igreja Católica, ele respondeu: fiz tudo à luz do Direito". Rafael Garcia & Laura Capriglione. Fonteles acusa cientista de ter viés judaico". Folha de S. Paulo, sáb, 21 abr. 2007, Ciência p. A20. . A petição inicial do processo solicitava uma audiência pública com especialistas e sugeria uma lista a convocar. Na petição, argumentava-se que a vida humana embrionária" seria atingida com seu emprego para extração de células-tronco. Entre os argumentos para fundamentar essa condição humana inicial estava a existência de identidade genética única a partir da fecundação, o que conferiria ao embrião capacidade de desenvolvimento autônomo. A mãe é representada como útero e meio de desenvolvimento (Luna 2010b).

A ADI 3510 proporcionou a primeira audiência pública de instrução na história do STF no dia 20 de abril de 2007. Compareceram 22 especialistas sendo metade contrária à constitucionalidade da lei (rejeição do uso de embriões em pesquisa) e metade favorável (aprovação da pesquisa com CTEH). Os primeiros se designavam defensores da vida". O relator, ministro Carlos Ayres Britto, disse estar em busca de um conceito jurídico, mais especificamente um conceito jurisdicional, para o vocábulo vida', para o pleno significado da expressão dignidade da pessoa humana'" (Brasil 2007:2). O próprio relator comentou que a CNBB participou da indicação de nomes de especialistas para a audiência.

Quanto aos especialistas convocados, exceto por uma antropóloga com pós-doutorado em bioética, todos eram ligados às ciências biológicas ou à medicina. Os defensores da vida tinham dois argumentos básicos: mostrar que o embrião constituía uma vida humana desde o momento da fertilização e garantir que a pesquisa com células embrionárias era dispensável dado o grande avanço dos tratamentos" com células-tronco adultas, o que não implicava ferir vida nem riscos (desenvolvimento de tumores e câncer devido à dificuldade de controlar a pluripotencialidade da célula embrionária). A necessidade de defender o uso de embriões em pesquisa conduziu o outro bloco de cientistas para uma postura relativista apresentando os seguintes argumentos: havia várias concepções de vida em religiões e culturas distintas; é possível identificar outros marcos biológicos para o início da vida que não a fecundação; ou afirmar a definição da vida como processo contínuo (espermatozoide e óvulo seriam vida também). O destino mais nobre para os embriões, a queda da viabilidade destes, a prioridade aos enfermos possíveis beneficiários e o risco de atraso científico do país também foram argumentos invocados.

Analiso a autoapresentação dos especialistas no início de sua exposição. Os 11 depoentes do bloco favorável ao uso de embriões em pesquisa declararam sua formação acadêmica, inserção em instituições científicas e experiência de pesquisa. No bloco defensor da ação, 1 deles definiu-se apenas como professor de medicina, enquanto 2 outros não mencionaram formação e inserção profissional. Na tentativa de mapear os peritos, verifiquei o currículo do sistema Lattes de todos os convocados15 15 A Plataforma Lattes representa a experiência do CNPq na integração de bases de dados de Currículos, de Grupos de pesquisa e de Instituições em um único Sistema de Informações". Portal do CNPq: Sobre a Plataforma Lattes. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/ – acesso em 07/01/2012. . No bloco favorável à pesquisa com células-tronco embrionárias, os intimados tinham envolvimento na área de pesquisa com células-tronco16 16 Uma neurocientista, embora não trabalhasse diretamente com células-tronco, era pesquisadora chefe da principal instituição pública de reabilitação no país, onde havia projetos de pesquisa básica e clínica com células-tronco. Todos os demais tinham envolvimento direto em pesquisa básica ou clínica. O levantamento dos currículos ocorreu em agosto de 2007. , exceto pela antropóloga. Todos tinham doutorado, eram professores ativos ou aposentados de universidades públicas, membros de associações de pesquisa científica, e publicaram quantidade apreciável de artigos científicos (6 especialistas recebiam bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq)17 17 A bolsa de produtividade em pesquisa é destinada aos pesquisadores que se destacam entre seus pares, valorizando sua produção científica segundo critérios normativos, estabelecidos pelo CNPq, e específicos, pelos Comitês de Assessoramento (CAs) do CNPq" Cf. RN-016/2006: Bolsas individuais no país. Disponível em: http://www.cnpq.br/web/guest/view/-/journal_content/56_INSTANCE_0oED/10157/100343#16061 – acesso em 07/01/2011. 3 Tinham bolsa de produtividade em pesquisa 1A, 2 tinham 1B e 1 tinha bolsa de produtividade 2. Avalio a produção dos sem bolsa pelo número de publicações em periódicos científicos em agosto de 2007: 18 artigos, 24 artigos, 37 artigos, 54 artigos e 80 artigos (média: 42,6). . O primeiro bloco tem representantes de destaque na comunidade científica, com grande produtividade. São cientistas com bastante crédito (cf. Latour e Woolgar 1997), alguns deles dominantes no campo científico (Bourdieu 1983). Esse grupo dominante defende os valores constitucionais da liberdade de pesquisa científica e do afastamento de ciência e religião no Estado laico.

No grupo defensor da ADI, 1 expositor, professor emérito da UFF, não tinha currículo Lattes. Outra expositora, declarada médica ginecologista-obstetra, especialista em logoterapia e professora de bioética, tinha apenas o cadastro na plataforma Lattes, sem currículo. Dos 9 restantes, 7 eram doutores e 2 tinham mestrado. Dos 9 cientistas com currículo Lattes, 4 tinham envolvimento em pesquisa com células-tronco. Nenhum tinha bolsa de produtividade em pesquisa. Em termos da produtividade e publicações em periódicos científicos, o resultado era desigual18 18 Os 9 expositores com currículo Lattes tinham a seguinte produção de artigos em periódicos científicos: 2, 5, 7, 7, 11, 11, 26, 50 (média 14,8 artigos). Um era autor de 3 livros, mas não tinha artigos em periódico científico. . Em 4 currículos Lattes, havia menção a atividades ligadas à Igreja Católica; 1 dos especialistas era membro da Pontifícia Academia Pro Vita do Vaticano, e participou de eventos ligados à Igreja Católica ou às pastorais e tinha três artigos em periódicos de divulgação católicos, sendo também assessor de bioética da CNBB. Outra especialista orientou como cientista a abertura da ADI 3510, a pedido do procurador Cláudio Fonteles – ela tinha carta da CNBB de reconhecimento pelos serviços prestados em defesa da vida humana, ganhou o prêmio da CNBB no tema Biologia Molecular, e publicou artigo em periódico católico de divulgação. Outra cientista publicou cinco artigos em revistas católicas; o quarto participara de dois eventos para médicos católicos. O professor emérito da UFF desprovido de currículo Lattes foi palestrante no seminário Vida: o primeiro direito da cidadania" promovido pela Pastoral Universitária da CNBB19 19 Evento promovido pela Pastoral Universitária do Regional Leste 1 da CNBB em julho de 2005. Cf. o boletim eletrônico da CNBB: Boletim Notícias – Nº20 (1825) de 16 abr. 2005. Disponível em: http://www.cnbb.org.br/index.php?op=pagina&chaveid=240a000013 – acesso em: 20/10/2007. . Dos convocados, 5 eram autores do livro de mesmo título que o seminário, usado para fundamentar os argumentos da petição inicial da ADI 351020 20 Rachel Aisengart Menezes informou-me do livro. . Uma cientista tornou-se, em 2008, presidente do movimento Brasil sem Aborto". Essa sequência soma 8 cientistas engajados com instituições católicas ou movimentos relacionados. Desses cientistas, 7 foram sugeridos na petição inicial para participar da audiência pública. Quanto à produção científica, esse grupo é mais heterogêneo que o anterior. Checou-se no currículo dos cientistas favoráveis ao uso de embriões em pesquisa vínculos com entidades e publicações religiosas. Apenas a antropóloga participara de evento do grupo Católicas pelo Direito de Decidir.

Constata-se que o grupo favorável aos estudos com embriões tem volume de produção científica bem maior do que o grupo questionador da Lei de Biossegurança, ou seja, a despeito de o número igual de convocados sugerir divisão na comunidade científica quanto ao tema da pesquisa com embriões humanos, o grupo mais destacado de cientistas é a favor do uso de células-tronco embrionárias, enquanto o grupo contrário é pouco representativo dessa comunidade.

A religião foi pouco mencionada na audiência. O relator falou sobre as ramificações do tema em várias áreas do saber, inclusive pelo prisma da religiosidade. No grupo favorável ao uso de embriões em pesquisa, Mayana Zatz citou os pais evangélicos de duas meninas com atrofia espinhal que defendiam as pesquisas com células-tronco embrionárias. Stevens Rehen afirmou que a definição do início da vida dependia do momento histórico, da formação cultural e da formação religiosa de quem se posicionasse. Segundo Débora Diniz, o questionamento sobre o início da vida tinha cunho metafísico e religioso, pouco susceptível de julgamento razoável. No encerramento da audiência, o relator considerou que houve contribuições de ordem religiosa. Além do relator, apenas expositores do bloco favorável ao uso de CTEH mencionaram religião.

O bloco questionador do artigo 5º da Lei de Biossegurança não mencionou religião. Elizabeth Kipman Cerqueira afirmou que o debate não seria teológico, mas a discussão era de dados da Biologia. Os favoráveis ao uso de embriões em pesquisa relativizam a religião como um dado cultural ou a consideram um fator que atrapalha o julgamento razoável em um Estado laico. Os expositores alinhados com a posição da CNBB não falaram em Deus nem em religião, a fim de mostrar que seus argumentos eram fundados na Ciência. O caráter religioso que permeia as questões do debate reside no conceito de vida, conforme se explicita na afirmativa de Cerqueira sobre o embrião: ele traz uma unidade interior, essa unidade que é a vida e que o faz um ser vivo" (Brasil 2007:113). Essa unidade interior remete a valores transcendentes e não ao mero processo físico e biológico. A FIV e a discussão sobre o uso de embriões em pesquisa retomam o debate do aborto entre os grupos pró-vida e os pró-escolha: os grupos pró-vida prosseguem a tradição judaico-cristã que reputa a vida como dom de Deus, daí a necessidade de defendê-la (Franklin 1995). Para esses grupos antiaborto, a vida é dom supremo merecedor de respeito, excluindo qualquer possibilidade de escolha. Os grupos pelo direito de decidir, dentro do marco liberal, afirmam que sua própria perspectiva permitiria a existência de várias posições em relação ao aborto, inclusive sua recusa (Boltanski 2004). A tentativa de esboçar um estatuto legal a partir da atribuição de dignidade ao embrião fora do corpo levanta a questão das fronteiras da humanidade.

O julgamento da ADI 3510

O julgamento da ação de inconstitucionalidade contra o artigo 5º da Lei de Biossegurança ocorreu em três sessões. A primeira, em março de 2008, foi interrompida quando o ministro Carlos Menezes Direito pediu vistas do processo. O julgamento foi retomado e concluído em duas sessões, nos dias 28 e 29 de maio de 2008. A imprensa chamou-o de juiz católico21 21 Silvana Freitas. Juiz católico adia decisão sobre embrião: ministro Menezes Direito pede vista de processo no Supremo que decidirá se pesquisa com célula-tronco pode continuar. Três ministros declaram voto a favor da Lei de Biossegurança, que deve voltar a ser apreciada no STF nas próximas semanas". Folha de S. Paulo, 6 mar. 2008, Ciência, p. A20. e comentou sobre sua ligação com associações de juristas católicos22 22 O ministro do STF Carlos Alberto Menezes Direito foi conselheiro da União de Juristas Católicos do Estado do Rio de Janeiro (Ujucarj). Cf. a diretoria na página da Ujucarj, disponível em: http://juristascatolicosrj.org/diretoria.html – acesso em 05/04/2009. Existem associações desse tipo em diversos estados. . Com respeito à atuação de magistrados, reconhece-se, não a interferência direta da instituição, mas a tensão entre o catolicismo como formador de valores e o vínculo dessas associações e indivíduos à Igreja Católica. Embora o resultado do julgamento tenha sido de 6 votos favoráveis à constitucionalidade da lei e 5 considerando a lei parcialmente inconstitucional (2 pediam órgãos de regulamentação), apenas 3 juízes acataram a tese da ação de violação da garantia do direito à vida e do atentado contra o princípio da dignidade humana: Carlos Menezes Direito, Ricardo Lewandowski e Eros Grau. Eles só admitiram a obtenção de células-tronco embrionárias por meio da técnica de biópsia, quando se extrai apenas uma célula do embrião de três dias sem destruí-lo e depois se cultiva essa célula até a formação das linhagens. Houve 4 juízes que negaram a relevância de discutir a tese sobre o início da vida (Ellen Gracie, Carmem Lúcia Rocha, Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes) como marcos para definir a proteção à pessoa humana. Outros 4 juízes discutiram o início da vida rejeitando a tese que a fertilização seria o momento inaugural da vida humana e da condição de pessoa: o relator Carlos Ayres Britto, os ministros Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso.

Valores religiosos subjazem ao contexto do julgamento. Com respeito à oposição entre a perspectiva da fé e a concepção jurídica, e contra a polarização entre ideologização da ciência e obscurantismo, Menezes Direito afirmou ser a pluralidade a marca de sociedades livres. Reconhecendo a existência de valores religiosos, vários insistiram no caráter científico de sua argumentação acerca da conceituação dos embriões e das CTEH, ou enfatizaram a argumentação técnica jurídica para chegar a seu voto. Apenas Eros Grau admitiu que valores religiosos estavam presentes em sua formação pessoal, mas prometeu resposta técnica. A ministra Carmem Lúcia dirigiu a devoção ao país: o Brasil é minha religião" e a Constituição é minha Bíblia". Essa comparação remete a Durkheim (1989), repetindo a ideia de que valores laicos da nação sucedem os religiosos. Cezar Peluso reconhece que: pretensas concepções científicas e de posturas racionais se confundem [...] com a adesão apaixonada das crenças religiosas" (Brasil 2008a:12 §4)23 23 Transcrição do voto do ministro Cezar Peluso no julgamento da ADI-3510. . Foi possível constatar a presença de sentimentos relativos a verdades transcendentes de ambos os lados.

O sagrado na religião corresponde ao inviolável no direito disse em seu voto o relator, o ministro Carlos Britto (Brasil 2008a:26). Além de a vida humana ser inviolável, logo, sagrada, houve referências por 3 ministros (Carlos Britto, Carmem Lúcia e Ricardo Lewandowski) à declaração da UNESCO sobre o genoma humano, que propõe a intangibilidade do patrimônio genético humano. Noções de vida sagrada no embrião remetem às abordagens de Mauss (2003) e de Durkheim (1989) sobre o poder contido em objetos mágicos. Durkheim (1970) já havia apontado o indivíduo como objeto de culto nas sociedades ocidentais modernas, hipótese que reflete a afirmação do indivíduo como valor (Dumont 1992). Em seguida, sacraliza-se a natureza biológica humana, conforme se vê nas declarações do genoma como patrimônio da humanidade e a as leis protetoras do embrião. Um ponto em comum no processo judiciário da ADI 3510 foi a recusa tanto na petição, como na audiência pública e no julgamento no STF em assumir a própria posição como de origem religiosa. Isso mostra a prevalência do dado científico como condição para se ganhar o debate público em um Estado laico.

As descrições do debate no Legislativo e no Judiciário centram-se na importância da Igreja Católica ou de pessoas alinhadas à sua orientação. No debate parlamentar, constatou-se a presença de deputados evangélicos. Esses relatos omitem outro grupo que se posicionou publicamente. Os espíritas representados pela Associação Médico-Espírita do Brasil têm posição contrária à pesquisa com células-tronco embrionárias, conforme a Carta de Princípios do V Congresso Médico-Espírita", de 28/05/2005, posição pública assumida pouco depois da aprovação da Lei de Biossegurança pelo Congresso Nacional. Mesmo admitindo o maior potencial das células embrionárias, eles argumentam a partir dos riscos, da falta de respeito ao embrião, da ideia que não se pode interromper uma vida (a do embrião) em favor de outra, e apoiam as pesquisas com células-tronco adultas24 24 Trecho da Carta de Princípios", disponível em: http://www.amebrasil.org.br/html/bio_textos.htm#celulas – acesso em 16/08/2010. .

O debate sobre antecipação de parto de anencéfalo pode revelar outros aspectos dessa controvérsia sobre o estatuto de embriões e fetos.

Aborto – a ADPF 54: antecipação de parto de anencéfalo

A audiência pública sobre a ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 no Supremo Tribunal Federal é outro exemplo de evento relacionado ao debate público sobre o direito à vida no qual os agentes religiosos têm atuação significativa, embora a hegemonia seja dos atores oriundos do campo científico. Serão aqui analisados os argumentos usados na audiência pública no STF de instrução sobre a ADPF 54 referente à antecipação terapêutica de parto de anencéfalo.

A anencefalia decorre de uma falha no desenvolvimento do embrião quando não se fecha o tubo neural. O feto que se desenvolver não apresenta os hemisférios cerebrais e a parte remanescente do encéfalo fica exposta, sem a cobertura de ossos ou pele. São conhecidos vulgarmente como bebês sem cérebro. Muitas vezes a gestação não chega a termo, e quando isso ocorre, o bebê na maior parte dos casos nasce morto ou tem sobrevida inferior a 24 horas (Fernandes 2007; Fernández et al. 2005). O discurso biomédico constrói a anencefalia como anomalia incompatível com a vida, tese questionada pelo movimento antiaborto.

A Confederação Nacional de Trabalhadores da Saúde propôs a ADPF 54 ao Supremo Tribunal Federal para assegurar às gestantes de feto anencefálico o direito de se submeterem à antecipação terapêutica de parto, e garantir aos médicos o direito de realizar esse procedimento, uma vez atestada essa anomalia incompatível com a vida, sem necessidade de autorização prévia judicial (Fernandes 2007).

O relator da ADPF 54, ministro Marco Aurélio Mello, em 2004, deferiu medida liminar reconhecendo o direito da gestante à antecipação terapêutica de parto de anencéfalo em 1º de julho de 2004, medida que foi revogada pelo plenário do Supremo em 20 de outubro do mesmo ano com sugestão de se convocar uma audiência pública para esclarecimento. Atribuiu-se a demora do relator para convocar a audiência pública à postura de aguardar a decisão final do STF sobre a ADI 3510 que autorizou o uso de embriões excedentes de reprodução assistida para a produção de células-tronco, julgamento encerrado em 29 de maio de 200825 25 O ministro relator admitiu ter esperado o resultado da ADI 3510 no programa televisivo Márcia Peltier Entrevista" (Rede CNT) veiculado em 16 de abril de 2012. .

A audiência pública da ADPF 5426 26 Agradeço a Debora Diniz e a ONG Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, por terem me facilitado o acesso à transcrição das quatro sessões da audiência.

Na audiência pública da ADPF 54, houve nítida oposição entre expositores de linha pró-escolha, tese defendida pela ADPF 54 com respeito à gestação de anencéfalo, e outros pró-vida. Ambos os lados acionaram tópicos oriundos do discurso dos direitos humanos.

As quatro sessões da audiência foram realizadas nos dias 26 e 28 de agosto, e 4 e 16 de setembro de 2008, quando foram ouvidos 27 expositores, sendo 11 pró-vida e 16 pró-escolha. Cada palestrante teve 15 minutos para falar. Dos 11 expositores pró-vida, 3 compareceram na qualidade de especialistas (2 em ginecologia e obstétrica e 1 em pediatria e neurologia pediátrica) e os demais representaram 6 entidades e associações. Duas entidades religiosas se manifestaram do lado pró-vida: pela CNBB, 2 representantes dividiram o tempo (Luiz Antônio Bento, Assessor Nacional da Comissão Episcopal para a Vida e a Família da CNBB e Paulo Silveira Martins Leão Júnior também presidente da União dos Juristas Católicos da Arquidiocese do Rio de Janeiro), e pela Associação Médico-Espírita do Brasil, 2 também dividiram o tempo (Irvênia Luíza de Santis Prada e Marlene Rossi Severino Nobre). Falaram representantes da Associação Pró-Vida e Pró-Família (Rodolfo Acatauassú Nunes) e da Frente Parlamentar em Defesa da Vida (deputado federal Luiz Bassuma), do Movimento Nacional da Cidadania em Defesa da Vida – Brasil Sem Aborto (Lenise Aparecida Martins Garcia), da Associação para o Desenvolvimento da Família (Ieda Therezinha do Nascimento Verreschi). Os especialistas foram: Cínthia Macedo Specian, (especialista em pediatria, com habilitação em neurologia pediátrica), Dernival da Silva Brandão (especialista em ginecologia e obstetrícia), Elizabeth Kipman Cerqueira (especialista em ginecologia e obstetrícia).

Entre os 16 que se manifestaram pró-escolha, 2 eram autoridades públicas: o ministro da saúde José Gomes Temporão e a ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e também presidente do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), Nilcéa Freire, e um terceiro compareceu na qualidade de especialista em ginecologia e obstetrícia, mas também de autoridade pública, o deputado federal José Aristodemo Pinotti. Houve cinco representantes de ONGs: Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Debora Diniz, antropóloga e professora da UnB), Escola de Gente – Comunicação em Inclusão (Cláudia Werneck), Rede Feminista de Saúde (Lia Zanotta Machado, antropóloga e professora da UnB), CEPIA (Jacqueline Pitanguy, também pelo CNDM), e Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos (Eleonora Menicucci de Oliveira, professora de saúde coletiva da UNIFESP). Representantes de associações científicas e conselhos profissionais se manifestaram pró-escolha: Conselho Federal de Medicina – CFM (Roberto Luiz D'Ávila), Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia – FEBRASGO (Jorge Andalaft Neto), Sociedade Brasileira de Medicina Fetal (Heverton Neves Pettersen), Sociedade Brasileira de Genética Médica (Salmo Raskin), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência: SBPC (Thomaz Rafael Gollop), Associação Brasileira de Psiquiatria (Talvane Marins de Moraes). Houve dois representantes de entidade religiosa entre os pró-escolha: pela Igreja Universal do Reino de Deus falou o pastor Carlos Macedo de Oliveira, e a coordenadora Maria José Fontelas Rosado Nunes apresentando a ONG Católicas pelo Direito de Decidir.

Em termos de categoria profissional, salienta-se a predominância dos médicos: eram 16, dentre os 27 expositores. Tal composição contrasta com a ocorrida na audiência pública da ADI 3510: foram convocados 22 expositores, sendo metade de cada lado. Na audiência da ADI 3510, não compareceram na qualidade de representantes de associações científicas ou profissionais, nem como integrantes de ONGs ou movimentos sociais, mas como peritos quase todos da área biomédica com forte presença de especialistas em bioética entre opositores ao uso de embriões.

Alguns especialistas foram expositores em ambas as audiências públicas de instrução da ADI 3510 e da ADPF 54. Do lado favorável à ADPF 54 e à pesquisa com embriões, compareceu Debora Diniz da ONG Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e, do lado oposto, Lenise Aparecida Martins Garcia presidente do Movimento Nacional de Cidadania em Defesa da Vida – Brasil sem Aborto", Rodolfo Acatauassú Nunes presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, e a médica Elizabeth Kipman Cerqueira.

É possível delinear núcleos temáticos a partir das diferentes exposições, núcleos em que os argumentos se apresentam várias vezes de forma simétrica, mas que revelam sua origem em uma configuração comum de valores. Os temas listados são: vida; a relação entre vida, anencefalia e morte encefálica; condição humana; dignidade; autonomia/escolha; deficiência física, eugenia, graus de anencefalia; descrição técnica da anencefalia; direito à vida; direito da gestante/família; outros direitos; o contraste entre aborto e antecipação terapêutica de parto; risco materno e sofrimento; laicidade do Estado. De modo geral, os questionamentos giraram em torno do caráter de ser humano vivo do feto anencefálico e do mesmo ser ou não dotado de direitos.

Comento aqui primeiramente as colocações dos expositores da primeira sessão da audiência pública de 26/08/2010, dedicada aos representantes das religiões, acrescida dos depoimentos de outros expositores dos quais se constatou relação com entidades religiosas como a Igreja Católica ou a CNBB (não foram identificadas outras) que se apresentaram em sessões distintas. Também em outra sessão ocorreu o depoimento do deputado federal Luiz Bassuma, presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida, adepto do espiritismo kardecista.

Na sessão voltada para os representantes das religiões (26/08), Luiz Antônio Bento, Assessor Nacional da Comissão Episcopal para a Vida e a Família da CNBB pretendeu falar de uma perspectiva cristã. Ele declarou que: A vida de cada indivíduo não é apenas um bem pessoal inalienável, mas também um bem social. Portanto, é um bem social que pertence a todos, e a sociedade tem a obrigação de promover e de defender esses direitos da pessoa humana, do feto que está com uma anomalia" (Brasil 26/08/2008b:4)27 27 Na seção A audiência pública da ADPF 54", as citações literais são retiradas da transcrição, divididas segundo o dia da sessão em que falou o expositor. . O fato de uma deficiência, de uma anomalia, não diminui ou nega a dignidade de uma pessoa" (idem). Para ele, o valor intrínseco da vida não poderia ser julgado por sua deficiência. Defende a condição humana do feto anencefálico em virtude da presença do genoma humano e por haver chance de nascimento com vida. O outro representante da CNBB, Paulo Silveira Martins Leão Júnior, é presidente da União dos Juristas Católicos da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Ele distinguiu as situações de anencefalia e de morte encefálica pela variedade de condições da primeira que vai de formas menos graves às mais graves. Esse é um dado estabilizado na ciência e não há de ser retrucado" (idem:10). Ambos equiparam a anencefalia à condição de deficiência física e negam a tese da anomalia incompatível com a vida.

Rodolfo Acatauassú Nunes (representante da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família) é médico. Para ele, a criança com anencefalia que está respirando não está em morte encefálica. Ele defende a tese de um núcleo de consciência primitivo estar presente em parte mais baixa entre o diencéfalo, o mesencéfalo e o tronco encefálico, portanto, abaixo do córtex. Por isso não se poderia aquilatar com certeza o grau de relação dessa criança com o mundo exterior.

Irvênia Luíza de Santis Prada (Associação Médico-Espírita), com base em estudos da filogenia, afirma que a consciência no anencéfalo apenas não se expressa pela ausência de córtex. Não se trata de uma consciência primitiva, mas é a consciência de um ser humano.

A neurociência vem demonstrar [...] que o anencéfalo tem substrato neural para desempenho de funções vitais e delegação com a consciência, o que contra-indica o aborto desse feto e a disponibilização do anencéfalo recém-nascido para transplante de órgãos (Brasil 26/08/2008b:29).

Marlene Rossi Severino Nobre, a segunda representante é presidente da Associação Médico-Espírita Internacional e da Associação Médico-Espírita do Brasil. Ela descreve a teoria do livro A caixa preta de Darwin [teoria do design inteligente]28 28 Essa teoria pretende provar que a célula e estruturas complexas (e por extensão a própria vida) teriam sido planejadas" por uma inteligência superior", com base no argumento da impossibilidade estatística de sua formação pelo acaso. . A vida assim, como nós estamos falando, é um bem outorgado, é um bem indisponível. E isso não é a religião que está dizendo; é a ciência" (idem:30). Questionada pelo advogado da ação, dr. Luís Roberto Barroso, se concordava com a letalidade de 100% na anencefalia, Marlene Nobre responde: Concordo, sim, mas como coloquei: a vida do anencéfalo sobrepõe qualquer direito do ser já formado – no caso, a mãe. A vida é um bem fundamental. A vida é um bem outorgado. É a ciência que nos diz" (idem:31).

Nessa sessão com representantes de movimentos religiosos, assumiram posições pró-escolha a ONG Católicas pelo Direito de Decidir e a Igreja Universal do Reino de Deus. Maria José Fontelas Rosado Nunes (Católicas pelo Direito de Decidir) afirmou a importância do Estado laico: muitos dos argumentos contrários à liberdade de decisão das mulheres no campo reprodutivo, embora se apresentem como oriundos de um campo laico, científico, são, na verdade, a expressão de uma doutrina e de uma moral religiosa específica" (Brasil 26/08/2008b:22). Defendeu o direito de decisão sobre a gravidez como uma questão de dignidade humana e o recurso à própria consciência" como parte da tradição cristã.

O bispo representante da IURD Carlos Macedo de Oliveira defendeu o laicismo do Estado" e a liberdade de culto (Brasil 26/08/2008b:11). Criticou a sociedade como tradicionalmente machista" e afirmou que o aborto de anencéfalo diz respeito predominantemente à saúde e ao direito da mulher.

Deus dá a todo ser humano o livre arbítrio. Defendemos que, nesses casos, deva prevalecer o desejo da mulher que passa ou venha a passar por esse drama. São elas que passam pelo habitual desconforto da gravidez, e, talvez, nenhum de nós consiga dimensionar os agravos de uma gravidez acometida por anencefalia e que, por força da lei, a mulher estaria ou está penalizada a carregar durante nove meses alguém que ela não terá a felicidade de ver crescer e de ter vida extra-uterina (idem:12).

Ressalta que descriminalizar não é tornar obrigatório, por isso a descriminalização desse tipo de aborto não deveria esbarrar nas radicalizações conceituais ou religiosas" (idem). A atitude de contestação pública das posições oficiais do magistério católico pela IURD já foi identificada há tempos (Machado 2000). Verifica-se uma posição mais aberta quanto a aborto e planejamento familiar por parte do bispo Edir Macedo, seu principal líder (Gomes 2009b).

O deputado Luiz Bassuma (presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida Contra o Aborto) falou na sessão de 28/08, composta por especialistas e por representantes da sociedade civil. Citando da Constituição o direito inviolável à vida, ele equipara a condição do anencéfalo ao que está definido na convenção dos direitos das pessoas com deficiência. Ele argumenta que esse tipo de aborto é eugênico e semelhante à eutanásia de idosos. Bassuma é autor de projeto que criminaliza o aborto em caso de estupro. Indagado pelo subprocurador-geral da República, dr. Mário Gisi, se a afirmação que nenhum ente pode deixar de ser respeitado faz referência aos seres humanos ou a todos seres vivos, Bassuma compara com a proteção ao ovo de tartaruga: destruir um ovo de tartaruga leva à prisão porque o animal sofre risco de extinção. Pede coerência quanto ao respeito ao direito à vida de um ser humano, que é [...], muito mais complexo e muito mais importante que uma tartaruga " (Brasil 28/08/2008b:30).

Na mesma sessão, falou Lenise Aparecida Martins Garcia, presidente do Movimento Nacional da Cidadania em Defesa da Vida – Brasil Sem Aborto. Ela argumentou a partir da variabilidade da anencefalia. Citou dados estatísticos de sobrevivência: 1% de 3 meses ou mais. Referindo-se ao caso de Marcela de Jesus reputada como anencéfalo que sobreviveu por um ano e oito meses, a expositora argumenta que se o diagnóstico de anencefalia de Marcela é questionável, muito mais difícil será um diagnóstico dentro do útero. Considera o anencéfalo um deficiente. Informações distorcidas levariam gestantes a optar pelo aborto. Ela invoca a igualdade perante à lei prevista pela Constituição.

A partir do momento em que começamos a abrir brechas, a dizer que uma vida, porque fragilizada, não merece ser vivida, não tem o direito de ser vivida, nós entramos em um campo ético, de uma ética de oportunismo, de uma ética utilitarista, em lugar da ética da dignidade humana, a que embasa a nossa Constituição (Brasil 28/08/2008b:50).

Na sessão de 4/09, falou Ieda Therezinha do Nascimento Verreschi da Associação para o Desenvolvimento da Família, endocrinologista, professora associada da disciplina de endocrinologia da Escola Paulista de Medicina e chefe do laboratório de esteroides29 29 Integrante da comissão de bioética da CNBB, embora não tenha declarado. . Ela considera o anencéfalo uma vida humana sob ameaça e remete ao juramento hipocrático de respeito pela vida humana. Ela chama o processo gestacional de unidade feto-placentária".

O acolhimento proposto pelo Sistema de Saúde tem de ser seguido por uma opção de acolhida, de fato, do nascituro, acolhida, de fato, da mãe doente, porque a unidade feto-placentária – que é única e tem um componente doente – tem de ser respeitada, e essa criança, se tiver uma afecção muito permanente, vai morrer no momento do parto (Brasil 4/09/2008b:26).

Assinala-se mais uma vez o englobamento da gestante pelo feto, tópico comum nos debates sobre o direito à vida.

Dernival da Silva Brandão (especialista em ginecologia e obstetrícia, presidente da comissão de bioética da Academia Fluminense de Medicina)30 30 Ele é um dos autores do livro Vida: o primeiro direito da cidadania, que fundamentou os argumentos do procurador geral da República na petição para a ADI 3510. criticou o uso do termo antecipação de parto em vez de aborto e afirmou que esse tipo de gestação não causa mais risco que uma gestação gemelar. Ele questiona o aborto terapêutico: A ciência técnica deve se colocar sempre a favor da vida e do bem-estar do ser humano no seu direito inquestionável de nascer e existir, princípio solenemente consagrado em todos os atos médicos" (Brasil 4/09/2008b:55). Comparou a situação do anencéfalo com a de pessoas em estado vegetativo.

Na última sessão, de 16/09, Elizabeth Kipman Cerqueira (especialista em Ginecologia e Obstetrícia, professora adjunta, diretora do Centro Interdisciplinar de Estudos Bioéticos do Hospital São Francisco) foi a expositora. Ela perguntou:

O que importa na discussão da liberação do aborto em gestação de anencéfalos? Quem está importando: o feto ou a mulher? O feto – disso nós já temos certeza. Sinceramente, nós temos que ser cientistas. Já foi provado [...] que dentro do útero [...] não é possível determinar a morte encefálica. Quem fala isso está passando por cima de critérios científicos (Brasil 16/09/2008b:1).

Considerou que o aborto prejudicava mais a mãe do que a continuidade da gestação de anencéfalo. Exibiu filmes com dois depoimentos de gestantes de anencéfalos que resolveram levar a termo o nascimento (inclusive da mãe da Marcela") e de uma terceira que fez o aborto e apresentava problemas emocionais. Ela responsabilizou o Estado por permitir à mulher pensar que pode fazer aborto diante de uma gestação indesejada.

Alguns pontos se salientam na argumentação desses expositores relacionados a instituições religiosas: a líder do grupo Católicas pelo Direito de Decidir e o bispo da IURD, único evangélico assumido nesse debate, defendem a autodeterminação da mulher para definir a continuidade da gravidez. Os depoimentos dos demais representantes aqui analisados têm como ponto comum a defesa da vida fetal considerada sagrada, o que é associado com a defesa do direito desse feto à vida, feto este considerado um ser humano pleno, que encarna o os valores do indivíduo segundo Dumont (1992), em particular o da autonomia. Nesse sentido, a gestante é englobada pelo feto que ela porta: é uma unidade feto-placentária" doente. Outro ponto defendido nos depoimentos é fundamentar na argumentação científica a noção metafísica da vida como um bem outorgado por Deus. Ambos os lados argumentam com a dignidade humana referida a diferentes sujeitos: os que encaram o sofrimento da mulher e os que a atribuem ao feto anencefálico.

A audiência pública da ADPF 54 estabeleceu um contexto mais plural de consulta às religiões que a audiência pública e o julgamento da ADI 3510. Emergiram representantes de outras confissões, embora as pessoas ligadas à orientação do magistério católico estivessem em maior número e obtivessem a convocação para se manifestar não apenas na sessão para as religiões. Muitas vezes esse laço com a instituição religiosa não é revelado. Gomes (2009a) analisa a posição de outras igrejas no tocante à legislação do aborto, além da IURD, duas igrejas do protestantismo histórico de missão, a Igreja Metodista e a Igreja Presbiteriana do Brasil, fizeram documentos públicos a respeito, o que revela diversidade no campo. A última aceita apenas o aborto terapêutico, já a metodista, além dos casos previstos em lei, admite o procedimento nos casos de inviabilidade de sobrevivência do feto. O debate com respeito ao direito à vida não é monolítico como levaria a crer a oposição de religião e ciência parece indicar. Por outro lado, a centralidade da cobertura da mídia na opinião da Igreja Católica encobre outras perspectivas dentro do campo religioso, posturas às vezes afinadas com a Igreja, às vezes em aberta contestação de sua doutrina. É necessário que a investigação antropológica e sociológica venha a cobrir esses lapsos.

Considerações finais

Uma das principais características das sociedades modernas é a imposição da convivência em um mesmo espaço político de uma pluralidade de concepções de mundo e formas de vida. Montero assinala que até recentemente a Igreja Católica foi capaz de produzir os nexos simbólicos e institucionais mediadores de diversas eticidades" nas sociedades de matriz histórica europeia (2009:205). O direito cumpre atualmente o papel de instituição mediadora que foi prerrogativa da religião cristã, contudo a autora afirma que as religiões ainda são parte importante das dinâmicas simbólicas que, em sociedades como as nossas, modulam a experiência vivida e os processos de socialização" (Montero 2009:5). O presente artigo, através da análise do debate público nos âmbitos legislativo e judiciário sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias e sobre aborto de anencéfalo, confirma a importância das religiões nas disputas sobre a regulamentação na esfera do Direito e sobre os sentidos, particularmente com referência à vida como valor.

A comparação dos diferentes eventos revela distintos atores religiosos que, ora se associam, ora competem entre si. No tocante às instituições, há hegemonia da Igreja Católica, sempre presente, capaz de inserir seus representantes em posições estratégicas, além de ser referência obrigatória na cobertura desses temas pela mídia. Quanto aos atores sociais, outros agentes religiosos tornam-se visíveis: os evangélicos e os espíritas. Os parlamentares evangélicos, no contexto das votações da Lei de Biossegurança no Congresso Nacional, mostram-se inicialmente um bloco coeso: praticamente todos, assim como a bancada católica e quase toda a casa rejeitam as pesquisas com células-tronco embrionárias nas duas primeiras votações do projeto da Câmara dos Deputados em 2004. Contudo na votação final da Lei de Biossegurança, na Câmara, em 2005, há uma virada parcial nas posições de evangélicos e de católicos na Câmara, enquanto no Senado um número menor de religiosos apresenta resistência às pesquisas com embriões humanos. Essa mudança de posição se deveu à bem sucedida estratégia dos cientistas defensores do uso de células-tronco embrionárias humanas em apresentar o argumento lixo ou remédio" em audiência pública ocorrida no Senado. Nela foram apresentadas em termos pragmáticos as alternativas quanto ao destino dos embriões congelados, que poderiam contribuir para a pesquisa e futuras terapias de diversas doenças com enfermos, ou perder sua efetividade ao permanecer eternamente congelados, ou ainda ser descartados. Na votação final na Câmara, mais da metade dos parlamentares evangélicos aprova o artigo 5º, que permite a extração de células-tronco de embriões humanos em dadas condições. Os parlamentares das denominações com o maior número de representantes, caso da Assembleia de Deus e da Igreja Universal do Reino de Deus, têm comportamentos opostos: quase todos os assembleianos permanecem conforme a primeira votação e vários discursam equiparando os embriões congelados a crianças ou a seres humanos (Cesarino 2006), o que contrasta com os deputados da IURD que passam a aprovar o artigo 5º e a produção das células-tronco embrionárias humanas.

Ainda com respeito a atuações distintas dos agentes religiosos, em contraste com a audiência da ADI 3510, no contexto da audiência pública sobre a ADPF 54, abriu-se espaço para a fala de diversos representantes religiosos que se manifestaram na sessão específica ou em outras. Estavam presentes evangélicos: um porta-voz da IURD defendeu o direito de escolha das mulheres gestantes de fetos anencefálicos quanto à antecipação de parto. O grupo Católicas pelo Direito de Decidir, segmento dissidente da orientação do Vaticano com respeito à sexualidade e direitos reprodutivos, fez o mesmo. As duas representantes espíritas na audiência da ADPF 54 não apenas afirmaram a existência de vida humana desde a concepção, o que seria comprovado pela ciência segundo a argumentação apresentada, mas também uma delas defendeu a teoria do design inteligente em termos de fato científico estabelecido. Os exemplos citados questionam o diagnóstico dos religiosos em termos de um coletivo homogêneo dotado de unidade de opinião. Não se verificou a atuação destes como um grupo monolítico: são identificadas dissidências por membros de uma mesma instituição religiosa (Católicas pelo Direito de Decidir), existem alianças ocasionais em torno de um objetivo (exemplo da união dos parlamentares cristãos contra o substitutivo de Aldo Rebelo, na Câmara), e há rivalidades e disputas no espaço público (IURD contra a Igreja Católica; assembleianos marcando uma posição mais conservadora identificada com o movimento pró-vida na votação final na Câmara dos Deputados em contraste com os iurdianos.

Outro aspecto interessante na descrição dessa sequência de eventos é a ocultação do vínculo religioso, em particular no exemplo dos peritos convocados para a audiência pública de instrução da ADI 3510, mas também na audiência da ADPF 54. Em ambos os casos a presente pesquisa localizou esse tipo de pertencimento. A estratégia parece ser usada para se obter credibilidade no debate público, conforme se constata no depoimento à imprensa do jurista autor da ADI 3510: fiz tudo à luz do direito", e na ênfase de vários especialistas em demonstrar que sua argumentação é científica e não religiosa. Trata-se de um exemplo do que afirma Montero quanto às estratégias para produção de visibilidade e legitimidade, quando os agentes religiosos têm que agir publicamente, eles se veem obrigados a aprender, em cada situação específica, a gramática e a semântica relacionada ao modo de organização de cada cultura pública em particular" (Montero 2012:176). No contexto pesquisado, o comportamento de ocultação do vínculo confessional ou de afirmar o caráter científico de suas colocações denota a restrição ao discurso religioso como emissor de verdades em um Estado laico por um lado. Por outro lado, a argumentação religiosa se traveste de científica ou jurídica, mas não deixa de existir no núcleo de valores que fundamenta o debate. Para análise dessa disputa de sentidos, segue-se a sugestão de Montero:

É analiticamente mais produtivo trazer para o centro do problema o modo pelo qual as diferentes visões de mundo entram em comunicação e disputam os sentidos a respeito do mundo social e subjetivo. Uma etnografia dos processos de reflexibilidade e disputa sobre as diferenças permitiria compreender os consensos provisórios que dão certa estabilidade a distinções particulares produzidas em determinados contextos, entre o nós e o eles (2009:204).

Com respeito à atuação desses atores religiosos, reconhece-se a tensão entre a religião como formadora de valores e o vínculo dessas associações e indivíduos à instituição. Constatam-se vários modos de atuação possíveis: alguns sujeitos são veículos para interferência direta da instituição de pertencimento, enquanto outros fundamentam-se em valores religiosos que levam a decisões contrárias às orientações oficiais propagadas pela instituição. Além disso, certas vezes a militância atua para reforçar as diretrizes oficiais. O consenso dos parlamentares ligados à IURD favorável à pesquisa com células-tronco embrionárias humanas na segunda votação foi fruto de orientação institucional, mas pode representar a afirmação do traço modernizante do pentecostalismo de terceira onda face ao pentecostalismo tradicional. A permanência dos parlamentares ligados à Assembleia de Deus na perspectiva pró-vida pode resguardar a posição dessa igreja no campo religioso, associada à defesa dos valores tradicionais.

Considerando os diferentes eventos aqui analisados, a dita defesa da vida", vem unir os dois aspectos dos debates sobre pesquisa com células-tronco embrionárias, e sobre aborto de anencéfalos, polêmicas estas que tiveram dinâmicas sociais distintas, envolveram atores diferentes, porém foram marcados por forte presença de atores religiosos. A disputa sobre as investigações com células-tronco embrionárias diz respeito ao campo científico e da saúde no Brasil, enquanto o debate sobre antecipação de parto de anencéfalo envolve diretamente a reprodução humana e o questionamento sobre os direitos das mulheres. Em ambos os casos, a defesa da vida humana embrionária ou fetal, no contexto de laboratório ou dentro do útero, convida a participação de segmentos do campo religioso no debate. Se a recusa ao aborto e à manipulação de embriões humanos em experimentos tem fundamento transcendente na tese de defesa da vida, esse ponto de vista não é unanimidade entre os religiosos, tendo se constatado que vários se posicionaram em função de outros valores ligados à autonomia pessoal.

Para fins de análise, indo além da abordagem sobre os agentes religiosos envolvidos, é necessário considerar os valores implicados. O móvel principal dessa disputa diz respeito ao valor da vida humana. Esse tópico aparece na discussão sobre a pesquisa com embriões humanos, quando se opôs o direito do embrião à vida e de não ser tratado como objeto (ponto que apareceu entre os juízes do Supremo, no Legislativo e entre os especialistas com inclinação pró-vida) à prerrogativa de enfermos usufruírem dos possíveis resultados da pesquisa, ou seja, o direito a uma vida melhor na recuperação de sua saúde. Na audiência pública da ADPF 54, os expositores contenderam de um lado sobre o direito à vida do feto anencefálico e sua definição como deficiente físico, e do outro com o argumento da inviabilidade desse ente e do sofrimento da gestante. Em expressão da ideologia individualista (Dumont 1992), alguns religiosos reivindicam a autonomia da mulher, enquanto outros mostraram a autonomia do feto anencefálico ou mesmo do embrião humano no laboratório. Nos diversos eventos analisados, paira a pergunta sobre a que se atribui o caráter de sagrado.

Nos debates sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias e sobre o aborto de anencéfalo, é questionado se os embriões de laboratório e os fetos anencefálicos é pessoas, com todos os direitos e deveres daí advindos. A representação em todos esses casos é claramente a de indivíduo segundo Dumont (1992), o ser a-social, desconectado de qualquer relação. O apagamento da figura materna dá-se em função da ênfase no feto ou no embrião: a gestante é designada de unidade feto-placentária", ou se pergunta quem importa se é o feto anencefálico ou a mulher e se responde em favor dele. Embora a mulher porte o embrião em seu útero, simbolicamente ela é englobada. Trata-se de um exemplo de cismogênese complementar (Bateson 1958) de modo que quanto mais se constrói a condição humana do feto, menos se considera o caráter de sujeito da grávida, que é equiparada a um suporte para a manutenção da vida do primeiro.

A participação de cientistas nas audiências com peritos no Legislativo e no Judiciário revela a importância das falas autorizadas pela ciência para construir verdades sobre o estatuto de entes distintos, definindo-os ou não como humanos. Foram encontrados integrantes do campo científico (no segmento da biomedicina) com diferentes posições sobre o tema, alguns dos quais com claros vínculos a instituições religiosas e seus apoiadores, caso das especialistas da Associação Médico-Espírita, e de vários indicados pela CNBB. Isso revela o diálogo entre as definições transcendentes oriundas do campo religioso e a linguagem imanente, materializada na biologia, do discurso científico. Montero traz uma reflexão a partir da análise de Habermas sobre religião e a esfera pública com a finalidade de dar conta desse diálogo de linguagens de origem distinta e seus diferenciais de poder:

Entre a vida selvagem" da esfera pública e os procedimentos formais dos corpos políticos há, para o autor [Habermas], uma demarcação institucional, filtros das vozes de Babel no fluxo da comunicação pública que só deixam passar contribuições seculares". Ainda assim, a força das falas religiosas continuará a exercer seu direito de linguagem persuasiva na esfera pública enquanto outras linguagens mais convincentes para expressar um certo tipo de experiência não forem convencionadas (Montero 2009:212).

Verificou-se na análise dos eventos a força das falas religiosas e seu deslizamento ou tradução ora para a linguagem jurídica ora para a linguagem científica. Lévi-Strauss afirmou: É nos conceitos biológicos que residem os últimos vestígios de transcendência de que dispõe o pensamento moderno" (1982:52). Nas situações aqui analisadas, constatou-se o debate sobre o valor sagrado da vida como bem ou como dom, a defesa do direito à vida de entes embrionários e fetais, a mescla entre argumentação de caráter jurídico e biológico inspirada em valores religiosos. Nesse sentido, os vestígios de transcendência presentes nos conceitos biológicos revelam valores religiosos que o discurso da laicidade e o modelo da secularização tentam expulsar como anacronismos ou sobrevivências de períodos ultrapassados.

Fontes jurídicas

Sites consultados

Jornais consultados

Notas

Recebido em abril de 2012

Aprovado em janeiro de 2013

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  • FREITAS, Silvana. (06/03/2008), Juiz católico adia decisão sobre embrião: ministro Menezes Direito pede vista de processo no Supremo que decidirá se pesquisa com célula-tronco pode continuar. Três ministros declaram voto a favor da Lei de Biossegurança, que deve voltar a ser apreciada no STF nas próximas semanas". Folha de S. Paulo, Ciência, p. A20.
  • 1
    Transcrição da audiência pública de instrução da ADI 3510 (Brasil 2005b:2).
  • 2
    Transcrição da audiência pública da ADPF 54, sessão de 16/09 (Brasil 2008b:1).
  • 3
    Baseado na comunicação O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: o dilema dos valores religiosos em um Estado laico" apresentada na mesa redonda MR13 – Religião, direitos humanos e espaço público: reflexões sobre temas morais controversos no 35º Encontro Anual da Anpocs, em 2011. O artigo resulta do projeto Do aborto à pesquisa com com células-tronco embrionárias: o estatuto de embriões e fetos e o debate sobre direitos humanos no Brasil", financiado com auxílio APQ-1 da FAPERJ.
  • 4
    O presente artigo omite o tema dos transgênicos e da organização de instituições técnicas responsáveis pela biossegurança. Remeto à descrição competente feita por Cesarino (2006).
  • 5
    Segundo Cesarino (2006), a CNBB escreveu diretamente a senadores, solicitando que fosse mantido o texto da Câmara que vedava a pesquisa com embriões.
  • 6
    Os embriões de reprodução assistida são congelados por volta do 3º dia após a fertilização
    in vitro, caso não sejam transferidos para o útero. Seria necessário cultivá-los até o estágio de blastocisto no 5º ou 6º dia para a obtenção das células-tronco embrionárias pluripotentes extraídas da massa celular interna que daria origem ao corpo do embrião.
  • 7
    Foram expositores três cientistas da área biomédica, um médico e formador de opinião e um filósofo e professor de bioética, além do Senador Tião Viana, doutor em medicina tropical.
  • 8
    Nova resolução do CFM 1.957/2010 foi publicada em janeiro de 2011, e a única alteração a esse respeito foi prever a criopreservação apenas dos embriões viáveis. A resolução do CFM 2.013/2013, publicada no Diário Oficial da União em 9/05/2013, permite descartar os embriões criopreservados por mais de 5 anos, se for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança". Nesse sentido, a última resolução supera a Lei de Biossegurança, que autorizava o uso para pesquisa apenas dos embriões congelados por três anos no momento de aprovação da lei, ou os já congelados que completassem três anos. Supera também a regra anterior, pois permite o descarte após cinco anos, enquanto antes o destino, que não a doação, seria o congelamento por tempo indefinido.
  • 9
    A chance de gestação por meio da fertilização
    in vitro é muito reduzida caso se transfira para o útero apenas um embrião por vez. Para aumentar a eficácia da técnica, produz-se um número maior de embriões e recomenda-se a transferência de no máximo quatro, a fim de evitar a gravidez múltipla. Os demais podem ser congelados para uso futuro do casal.
  • 10
    Devo agradecer a meu assistente de pesquisa Felipe Lamim pelo auxílio no levantamento das votações e elaboração das tabelas que permitiram obter essas conclusões. A identificação dos parlamentares católicos é mais difícil, pois, enquanto se encontram listas de parlamentares evangélicos (principalmente após a constituição da Frente Parlamentar Evangélica em 2003), a massa dos parlamentares é católica não praticante. Uma pequena minoria militante de parlamentares católicos atua para colocar em pauta a agenda da Igreja e há os provenientes das pastorais populares. A fonte principal para identificação desses católicos mais ativistas, além de buscas na Internet, foram as listas da Pastoral Parlamentar Católica, obtidas por meio de um assessor do gabinete do deputado José Linhares, coordenador da pastoral.
  • 11
    Machado (2006) relata que houve orientação do Conselho de Bispos da IURD para votar a favor do artigo 5º que autorizava a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas.
  • 12
    Havia apenas 3 senadores evangélicos, e o terceiro não estava presente à votação.
  • 13
    Nesta seção, as citações referem-se à transcrição da audiência pública da ADI 3510.
  • 14
    O ex-procurador Cláudio Fonteles foi designado de franciscano que recrutou cientistas ligados à Igreja Católica para deporem". Indagado se movera a ação devido à sua ligação com a Igreja Católica, ele respondeu: fiz tudo à luz do Direito". Rafael Garcia & Laura Capriglione. Fonteles acusa cientista de ter viés judaico".
    Folha de S. Paulo, sáb, 21 abr. 2007, Ciência p. A20.
  • 15
    A Plataforma Lattes representa a experiência do CNPq na integração de bases de dados de Currículos, de Grupos de pesquisa e de Instituições em um único Sistema de Informações". Portal do CNPq:
    Sobre a Plataforma Lattes. Disponível em:
    http://lattes.cnpq.br/ – acesso em 07/01/2012.
  • 16
    Uma neurocientista, embora não trabalhasse diretamente com células-tronco, era pesquisadora chefe da principal instituição pública de reabilitação no país, onde havia projetos de pesquisa básica e clínica com células-tronco. Todos os demais tinham envolvimento direto em pesquisa básica ou clínica. O levantamento dos currículos ocorreu em agosto de 2007.
  • 17
    A bolsa de produtividade em pesquisa é destinada aos pesquisadores que se destacam entre seus pares, valorizando sua produção científica segundo critérios normativos, estabelecidos pelo CNPq, e específicos, pelos Comitês de Assessoramento (CAs) do CNPq" Cf. RN-016/2006:
    Bolsas individuais no país. Disponível em:
    http://www.cnpq.br/web/guest/view/-/journal_content/56_INSTANCE_0oED/10157/100343#16061 – acesso em 07/01/2011. 3 Tinham bolsa de produtividade em pesquisa 1A, 2 tinham 1B e 1 tinha bolsa de produtividade 2. Avalio a produção dos sem bolsa pelo número de publicações em periódicos científicos em agosto de 2007: 18 artigos, 24 artigos, 37 artigos, 54 artigos e 80 artigos (média: 42,6).
  • 18
    Os 9 expositores com currículo Lattes tinham a seguinte produção de artigos em periódicos científicos: 2, 5, 7, 7, 11, 11, 26, 50 (média 14,8 artigos). Um era autor de 3 livros, mas não tinha artigos em periódico científico.
  • 19
    Evento promovido pela Pastoral Universitária do Regional Leste 1 da CNBB em julho de 2005. Cf. o boletim eletrônico da CNBB: Boletim Notícias – Nº20 (1825) de 16 abr. 2005. Disponível em:
  • 20
    Rachel Aisengart Menezes informou-me do livro.
  • 21
    Silvana Freitas. Juiz católico adia decisão sobre embrião: ministro Menezes Direito pede vista de processo no Supremo que decidirá se pesquisa com célula-tronco pode continuar. Três ministros declaram voto a favor da Lei de Biossegurança, que deve voltar a ser apreciada no STF nas próximas semanas".
    Folha de S. Paulo, 6 mar. 2008, Ciência, p. A20.
  • 22
    O ministro do STF Carlos Alberto Menezes Direito foi conselheiro da União de Juristas Católicos do Estado do Rio de Janeiro (Ujucarj). Cf. a diretoria na página da Ujucarj, disponível em:
    http://juristascatolicosrj.org/diretoria.html – acesso em 05/04/2009. Existem associações desse tipo em diversos estados.
  • 23
    Transcrição do voto do ministro Cezar Peluso no julgamento da ADI-3510.
  • 24
    Trecho da Carta de Princípios", disponível em:
  • 25
    O ministro relator admitiu ter esperado o resultado da ADI 3510 no programa televisivo Márcia Peltier Entrevista" (Rede CNT) veiculado em 16 de abril de 2012.
  • 26
    Agradeço a Debora Diniz e a ONG Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, por terem me facilitado o acesso à transcrição das quatro sessões da audiência.
  • 27
    Na seção A audiência pública da ADPF 54", as citações literais são retiradas da transcrição, divididas segundo o dia da sessão em que falou o expositor.
  • 28
    Essa teoria pretende provar que a célula e estruturas complexas (e por extensão a própria vida) teriam sido planejadas" por uma inteligência superior", com base no argumento da impossibilidade estatística de sua formação pelo acaso.
  • 29
    Integrante da comissão de bioética da CNBB, embora não tenha declarado.
  • 30
    Ele é um dos autores do livro
    Vida: o primeiro direito da cidadania, que fundamentou os argumentos do procurador geral da República na petição para a ADI 3510.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      Abr 2012
    • Aceito
      Jan 2013
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