Os textos que compõem o número permitem-nos produzir um jogo interessante entre sentidos do religioso e formas de mobilidade. Partindo dos três eixos temáticos que propusemos para articular a apresentação dos trabalhos (Mídia, Circuitos e Novos Olhares sobre o Catolicismo), a variedade das situações analisadas nos leva do Acre ao Japão, do Rio de Janeiro a Miami, de Juazeiro do Norte a Belém do Pará, passando ainda por Bom Jesus do Pirapora. Em cada um desses eixos temáticos, o religioso ganha um sentido matizado, fruto dos contextos e das conjugações no interior das quais este é analisado.
Nos trabalhos de Carly Machado e Glória Miguel, que focalizam religião e mídia, principalmente a mídia evangélica, surge a questão da produção de mediações culturais e políticas. As autoras chamam atenção para a presença de redes que atravessam domínios variados: aqueles transnacionais, mas também circuitos que atravessam barreiras culturais, seculares, religiosas e políticas. Ambos os textos se debruçam sobre um aspecto ainda pouco valorizado na constituição do religioso: a mídia na sua dimensão sonora, capaz de criar fronteiras e elaborar mediações específicas. Como enfatiza Gloria Miguel, as redes de emissoras radiofônicas, responsáveis pela elaboração de territórios sonoros e transnacionais, reconfiguram os campos evangélicos e católicos bem como efetivam a produção cultural de fronteiras no âmbito latino-americano, a partir de Miami. Carly Machado chama atenção para a ocupação sonora como estratégia religiosa e estatal para o controle de certos territórios no Rio de Janeiro.
Quanto aos textos nos quais a análise de circuitos se mostrou particularmente relevante (de Veronique Boyer; de Carlos Steil e Raquel Sonemann; de Regina Yoshie Matsue e Mário Henrique Ogasavara), destacam-se as dinâmicas associadas a passagens, sejam estas de pessoas por lugares, de pessoas por religiões, de escalas locais para escalas regionais e/ou globais. Veronique Boyer em um minucioso trabalho etnográfico coloca em relevo o profundo entrelaçamento entre a trajetória religiosa de um migrante nordestino que foi para a Amazônia para trabalhar nos seringais e as dificuldades variadas que enfrentou no regime de exploração secular na região, conhecido também como cativeiro, na expressão destacada por Otávio Velho. Deste entrelaçamento resultou um deslocamento espacial e também simbólico no seu percurso, já que a busca da graça e da prosperidade é o que o move o antigo seringalista e lhe "permite recomeçar em outro lugar" em um movimento sem fim. O recomeço é também o tema da etnografia de Yoshie Matsue e Mário Henrique Ogasavara, que trata dos descendentes de japoneses no Brasil que foram em busca de trabalho na terra de seus ancestrais. As tentativas de acomodação, de um lado, à vida no Japão pelos migrantes (que passa muitas vezes pela religião) e, de outro, da igreja japonesa no Brasil, engendraram adaptações e renovações tanto religiosas quanto culturais em todas as práticas e pessoas envolvidas nestes trânsitos complexos entre fronteiras culturais, religiosas e sociais. Carlos Steil e Raquel Sonemann tratam por sua vez da Mística Andina responsável pela elaboração de um circuito de outro gênero. Neste, a busca de um modo de vida andino por parte de indivíduos provenientes de uma classe média urbana é o meio de se atingir a espiritualidade. Esta pode ser alcançada através de viagens turístico-espirituais, que colocam em relação com o "ocidente urbano" o que seria a cultura dos indígenas e a espiritualidade própria desta tradição idealizada e comercializada pelo turismo religioso. Segundo os autores, "a idealização de uma vida natural, recorrente no movimento ecológico, ganha, na Mística Andina, um sentido e uma expressão espiritual e religiosa". Mudanças corporais, de alimentação, de educação demonstram a forte presença de uma nova sensibilidade na relação consigo mesmo e com a natureza alcançada por meio deste novo circuito de mobilidade e de frequentação.
O texto de Heraldo Maués busca relacionar dois movimentos valorizados entre as práticas católicas, a peregrinação e a romaria. Destaca como imagens, santos e pessoas estão diferencialmente envolvidos nos percursos que efetuam nos caminhos da romaria e da peregrinação. As peregrinações em jogo, tratadas a partir de observações em Bom Jesus do Pirapora e em Belém do Pará, não são as dos romeiros, mas as das imagens de Jesus e de Maria, respectivamente, colocadas em circulação pelos peregrinos humanos, que as carregam, corporificando o sagrado e sacralizando os corpos. Circuitos em que imagens e pessoas se deslocam alterando o sentido atribuído ao corpo, ao sacrifício e à geografia da mobilidade católica.
Já o texto de Kátia Medeiros e Cecília Mariz toma por foco a dimensão institucional de um movimento carismático que sempre guardou uma certa reserva quanto à hierarquia eclesial. A interpretação de uma "crise" do movimento (o afastamento de seu fundador da liderança e a nomeação de bispos para orientar sua gestão) em suas repercussões locais, em uma casa masculina da Toca de Assis no Rio de Janeiro, é o objetivo do artigo. A análise dos discursos dos membros sobre "a crise" assinalam o efeito de continuidade produzido por determinadas categorias, como "maturidade", "humildade" "Providência Divina" e "purificação", que contribuem para estabelecer o sentido da permanência no grupo e para atribuir coerência às mudanças que, por sua vez, já atingiram profundamente a própria hierarquia católica.
Roberta Campos e Joaquim Nascimento Jr. nos levam a Juazeiro do Norte para encontrar Nossa Senhora como Deus-Mãe e relativizar o senso comum de uma "ordem masculina" sustentada pelo marianismo. Ao seguirem o viés aberto pela antropóloga inglesa Maya Mablin, de enfatizar as relações entre as concepções de amor materno e de ágape cristão, os autores exploram a possibilidade de que o marianismo opere justamente em sentido inverso, como uma ruptura, ou como uma limitação à dominação masculina. Através do caso de uma senhora, os autores exploram a dinâmica contestatária que ela imprime à sua prática também por ela identificada como feminista.
Este número é dedicado a Clara Mafra, nossa colega na editoria de Religião & Sociedade, de importância fundamental na vida da revista, que faleceu de maneira abrupta e prematura em julho de 2013. Sua relevância neste e em outros universos pode ser vislumbrada nos depoimentos de Patricia Birman, Otávio Velho, Joel Robbins, Ramon Sarró e Ruy Llera Blanes. São lembranças que, compartilhadas, permitem-nos guardar com carinho sua memória.
Editorial
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Jan 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013