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O Apará e seu corpo

The Apará and his Body

Resumos

Este trabalho volta-se para um movimento religioso conhecido como Vale do Amanhecer, que surge no final dos anos 1960 em Brasília e marca-se por um intenso sincretismo religioso, agregando elementos do catolicismo, espiritismo, religiões afro-brasileiras e Nova Era. Os adeptos desse movimentos são reconhecidos como médiuns, com dois tipos distintos: o Apará, que incorpora as entidades espirituais; e o Doutrinar, que não incorpora, porém comanda os rituais. Nossa análise recaí sobre o primeiro tipo, mais especificamente sobre a relação entre seu corpo e o pertencimento religioso, tomando por base os dados obtidos por meio de pesquisa etnográfica, principalmente durante um ritual denominado "Trono".

Vale do Amanhecer; Nova Era; corpo e religião; incorporação


This paper turns towards a religious movement known as the Sunrise Valley, which appears in late 1960 in Brasilia and is marked by an intense religious syncretism, incorporating elements of Catholicism, spiritism, african-Brazilian religions and New Age. The adherents of this movement are recognized as mediums, with two distinct types: the Apará, which incorporates the spiritual entities, and the Doutrinador, that not incorporates but commands the rituals, our analysis is about the first type, more specifically on the relationship between his body and the religious belonging, based on the data obtained through ethnographic research, especially during a ritual called "Trono".

Vale do Amanhecer; New Age; Body and Religion; Incorporation


O Apará e seu corpo1 1 Uma versão preliminar desse trabalho foi apresentada durante a XVII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina.

The Apará and his Body

Amurabi Oliveira

Universidade Federal de Santa Catarina - Florianópolis Santa Catarina - Brasil

RESUMO

Este trabalho volta-se para um movimento religioso conhecido como Vale do Amanhecer, que surge no final dos anos 1960 em Brasília e marca-se por um intenso sincretismo religioso, agregando elementos do catolicismo, espiritismo, religiões afro-brasileiras e Nova Era. Os adeptos desse movimentos são reconhecidos como médiuns, com dois tipos distintos: o Apará, que incorpora as entidades espirituais; e o Doutrinar, que não incorpora, porém comanda os rituais. Nossa análise recaí sobre o primeiro tipo, mais especificamente sobre a relação entre seu corpo e o pertencimento religioso, tomando por base os dados obtidos por meio de pesquisa etnográfica, principalmente durante um ritual denominado "Trono".

Palavras-chave: Vale do Amanhecer, Nova Era, corpo e religião, incorporação.

ABSTRACT

This paper turns towards a religious movement known as the Sunrise Valley, which appears in late 1960 in Brasilia and is marked by an intense religious syncretism, incorporating elements of Catholicism, spiritism, african-Brazilian religions and New Age. The adherents of this movement are recognized as mediums, with two distinct types: the Apará, which incorporates the spiritual entities, and the Doutrinador, that not incorporates but commands the rituals, our analysis is about the first type, more specifically on the relationship between his body and the religious belonging, based on the data obtained through ethnographic research, especially during a ritual called "Trono".

Keywords: Vale do Amanhecer, New Age, Body and Religion, Incorporation.

Introdução

O fenômeno da Nova Era - NE - apresenta-se como um emaranhado complexo de difícil apreensão, de modo que diversos pesquisadores têm buscado delimitá-lo (D'Andrea 1999), muitas vezes como um movimento de "sensibilização espiritual" (Siqueira 2003), compartilhando alguns pressupostos, como a ideia de que estamos entrando em um novo tempo, marcado por profundas alterações na

[...] maneira de pensar, sentir, agir e relacionar-se uns com os outros, com a natureza e com a esfera do sobrenatural. De uma forma geral, essas transformações são entendidas no sentido de um reequilíbrio entre pólos - corpo/mente, espírito/matéria, masculino/feminino, ciência/tradição etc. - até então opostos e em conflito (Magnani 2000:10).

Para Amaral (1999b), a NE seria justamente essa possibilidade de se utilizar dos mais diversos elementos culturais retirando-os de seus contextos originais, ressignificando-os e utilizando-os performaticamente para determinada finalidade.

Neste universo plural da NE inicialmente o diálogo com as religiosidades populares era tênue no Brasil (Magnani 2006). Todavia, podemos perceber uma crescente interface que se dá de forma difusa pelos diversos movimentos que compõe a NE (Guerriero 2009). Neste trabalho buscarei explorar alguns aspectos de uma religião que assenta suas práticas na articulação entre a religiosidade popular e a NE, produzindo um verdadeiro "caldeirão de sincretismo" (Cavalcante 2000), no qual elementos do catolicismo, espiritismo kardecista e religiões afro-brasileiras encontram-se com seres intergalácticos, princesas, mantras e referências às mais diversas culturas, como a azteca, maia, chinesa, grega etc. Estou me referindo ao Vale do Amanhecer - VDA.

Ainda que pesquisadores como Carvalho (1999:9) apontem que este movimento "[...] continua fiel a um certo estilo de religiosidade popular brasileira de corte tradicional, não mantendo conexões com os estilos de Nova Era", apresento aqui outra leitura, compartilhada por pesquisadores como Siqueira (2013) ao indicar que o VDA, em verdade, compõe o universo plural da NE ao mesmo tempo que o expande ao elaborar uma síntese religiosa que tanto articula elementos que já se faziam presentes na NE quanto outros oriundos das religiosidades populares; amplia ainda a abrangência em termos de público predominante ao envolver sujeitos oriundos de camadas populares, o que contrasta com o predomínio das classes médias na NE "tradicional"; e, por fim, ao contrário do que é recorrente na NE, marcada pelas religiosidades do self (D'Andrea 2000), o Vale elabora uma ênfase na comunidade religiosa, distinguindo-se daquilo que Amaral (1999b) denominou de "comunidades sem essência". Sendo assim, compreendo o Vale como continuidade e, ao mesmo tempo, ruptura dentro do movimento NE, sendo melhor apreendido, em minha interpretação, por meio do conceito de New Age Popular (Oliveira 2009)2 2 Segundo a definição de Oliveira (2009:39): "[...] uma nova releitura, a partir de um contexto social próprio, de práticas e tradições culturais originadas no Brasil e no exterior - entre as quais, a umbanda, elementos da religiosidade afro-indígena, o espiritismo kardecista e o catolicismo popular, principalmente - nos moldes típicos da New Age, que recria aspectos culturais - como os rituais, principalmente os de possessão, das religiões populares no Brasil, além do aspecto estético - , que até então, não haviam sido enfatizados pelo movimento". .

Em termos históricos, o VDA começa a tomar forma nos anos 1950 a partir da figura de Neiva Chavez Zelaya3 3 Para uma melhor análise da biografia de Tia Neiva, vide o trabalho de Reis (2008). (1925-1985), mais conhecida como Tia Neiva, em Planaltina, cidade satélite de Brasília. Ela passa a ter visões - a partir dos 33 anos - de uma entidade denominada Pai Seta Branca, que teria reencarnado inúmeras vezes na Terra. Uma delas teria sido a São Francisco de Assis, e, em sua última encarnação, um índio tupinambá conhecido como Seta Branca que, não podendo mais reencarnar, entra em contato com Neiva para preparar a humanidade para o Novo Milênio, o que seria operacionalizado pelo trabalho de caridade, que consiste na oferta de bens espirituais, especialmente a cura desobsessiva4 4 Refere-se à cura de males causados por espíritos pouco evoluídos espiritualmente, que estejam próxima à pessoa doente, causando-lhe perturbações diversas, obsediando-o, o que só é possível devido ao fato de haver uma afinidade vibracional entre os dois. . Essa entidade é a principal presente no amplo panteão do VDA. Sua imagem por vezes se confunde com o próprio Jesus Cristo (Mello 1999), do qual ele seria o "Sétimo Raio". Carvalho (1999:8), ao se referir ao legado de Tia Neiva, pontua que

Exercitando intensamente sua criatividade mitológica e ritualística, ela procedeu a realizar uma leitura espírita de uma quantidade de outras tradições religiosas, dentro de uma linha básica que também pode ser considerada umbandista, ou afro-brasileira, na medida em que a entidade principal cultuada no Vale do Amanhecer é um Caboclo (espírito ligado às matas e que representa o poder espiritual indígena, mestiço e, por extensão, de qualquer brasileiro) chamado Seta Branca. Essa entidade poderia pertencer facilmente ao panteão dos cultos afro-brasileiros tradicionais, como a Jurema, a pajelança, a macumba, além da umbanda; por outro lado, pode ser igualmente interpretada como uma figura cristã, na medida em que Seta Branca é descrito também como um avatar de São Francisco de Assis.

Juntamente com Mário Sassi (1921-1995), segundo marido de Tia Neiva, que ela conhece quando já estava dedicada a atividade mediúnica, formou uma verdadeira liderança bicéfala no Vale, tendo em vista que a ela caberia o papel de líder carismática, e a ele o de sistematizador racional da doutrina (Galinkin 2008).

Após a morte da fundadora, em 1985, ocorre uma expansão no número de templos, espalhando-se pelo Brasil e em mais sete países5 5 Os pa íses que possuem templos do VDA fora do Brasil são Alemanha, Bolívia, Estados Unidos, Guiana Inglesa, Inglaterra, Portugal e Trindade e Tobago. Na análise de Vasquéz e Alves (2013) acerca do templo do Vale em Atlanta, nos Estados Unidos, eles apontam o papel central que os migrantes brasileiros tiveram na difusão do movimento, bem como o terreno fértil encontrado pelo movimento nesse novo cenário social. O movimento ofereceria um senso cósmico de propósito e missão, como também um discurso terapêutico. Essas chaves analíticas podem ser interessantes não apenas para pensar a profusão do movimento pelo mundo, mas também pelo Brasil, dada a ampliação do número de templos pelos diversos estados brasileiros, e em Pernambuco em particular, que já conta com quase 50 templos dos mais variados tamanhos. , passando o comando do movimento para as mãos de quatro "trinos"; o viúvo de Tia Neiva, Mário Sassi (Trino Tumuchy); o filho clarividente Gilberto Chaves Zelaya (Trino Ajarã); e os adeptos Nestor Sabatovicz (Trino Arakém) e Michel Hanna (Trino Sumanã). Atualmente, apenas os filhos encontram-se à frente. Às duas filhas de Tia Neiva couberam alguns poucos encargos secundários na doutrina6 6 Os adeptos afirmam enfaticamente que o VDA n ão é uma religião, mas sim uma doutrina. Apesar de não ficar exatamente claro para os não adeptos essa distinção eles costumam dar o seguinte exemplo: o Vale é uma doutrina, o kardecismo é uma religião. Essa referência ao kardecismo é emblemática, tendo em vista que muitos dos fundamentos existentes no Vale são oriundos claramente dessa religião, e os próprios adeptos assumem a proximidade com esta ao indicarem que a maior parte daqueles que hoje se encontram no VDA provieram do kardecismo. . Notoriamente, o processo de sucessão mostra-se como um momento desafiador para qualquer movimento religioso, tendo em vista que:

Mesmo quando conseguem sobreviver à perseguição, os novos movimentos religiosos enfrentam uma nova crise quando os seus fundadores morrem. Se a figura central tiver agido como centro carismático da religião, é de crer que o movimento venha a definhar após sua morte. Muitas vezes é isso que acontece. Mas muitos movimentos sobrevivem a esta crise de liderança e aumentam mesmo de direção após a morte do fundador. Esta situação parece acontecer quando há líderes sucessivos suficientemente determinados para continuar com a obra ou para glorificar o nome do fundador. No entanto, a sucessão é um obstáculo muito importante, especialmente quando o fundador morre sem tornar evidentes as suas preferências. Se o seguidores não aceitarem o novo líder escolhido ou aquele que manifesta a sua autoridade, então o movimento pode desfazer-se em vários grupos rivais ou simplesmente desaparecer (Fisher 1999:96-97).

Apesar do fato de que no VDA Tia Neiva ter deixado claramente quem seriam aqueles os quais deveriam lhe suceder, sendo ela a líder carismática do movimento, após a sua morte o processo de rotinização do carisma mostrou-se complexo, cabendo nesse contexto um papel central às entidades espirituais:

Eles agora substituem o líder carismático, orientam médiuns ou pacientes e os conduzem aos rituais adequados. Isto implica dizer que: as comunicações particulares que ocorriam à época de Tia, agora são realizadas pelos Pretos Velhos. Além do mais, como as soluções dos problemas dos pacientes ou dos adeptos serão encontradas também na participação dos ritos, isto implica dizer que eles devem se manter institucionalizados para a obtenção da cura (Marques 2009:31-32).

Essas entidades manifestam-se por meio dos médiuns de incorporação denominados Aparás, que, devido a essas características diferenciam-se dos Doutrinadores7 7 Esta denomina ção de doutrinar para o médium que não incorpora é também no espiritismo kardecista (Prandi 2012), religião que possui uma significativa influência sobre a formulação doutrinária do Vale. , médiuns cuja incorporação não ocorre mas que realizam a mediação entre as entidades espirituais e os Aparás e que são os responsáveis por comandar e organizar os rituais religiosos do VDA. Em todo o caso, ainda que essa tipologia mediúnica seja pensada no processo de classificação dos sujeitos, ela não se mostra estanque, mas sim fluida.

Buscarei nesse breve trabalho realizar uma reflexão em torno do corpo do Apará e de como ele se apresenta como um importante elemento de construção para a composição de seu pertencimento religioso. Partirei principalmente do processo de incorporação vivenciado no trabalho8 8 Os diversos rituais realizados nesse movimento s ão denominados de "trabalhos" pelos adeptos. denominado Trono9 9 O ritual do Tronco ocupa uma centralidade dentre os rituais do VDA tendo em vista que é por meio dele que os pacientes podem realizar uma consulta direta com os Caboclos e Pretos-velhos, bem como é nesse ritual que são indicados os próximos que devem ser realizados para completar o tratamento espiritual necessário. . Apesar do incremento da produção acadêmica acerca do Vale nos últimos anos, o que inclui uma internacionalização dessa que pode ser atestada por meio dessa que pode ser atestada por meio de trabalhos como os de Holston (2008), Vásquez e Alves (2013), Hayes (2013), proponho-me a adentar numa dimensão ainda pouco explorada pelos pesquisadores ao me voltar para a dimensão corporal, ainda que trabalhos como Oliveira (2011) tenham desenvolvido um esforço inicial para se pensar a relacao entre corpo e pertencimento religioso. Minha preocupação, através da descrição etnográfica, é realizar uma análise do corpo do Apará, visando compreender a relação entre sujeito, corpo e comunidade religiosa e, principalmente, demonstrar a minha hipótese de que o corpo do Apará durante o processo de incorporaçãoo marca-se por ser um encontro de biografias, envolvendo a trajetória do médium e da(s) entidade(s) incorporada(s).

Entendo que a dimensão da corporeidade é fundamental para o movimento NE em geral, não à toa pode-se mesmos falar em uma religiosidade terapêutica, que age principalmente no e a partir do corpo (Tavares 2012). Os dados aqui apresentados originam-se de uma pesquisa etnográfica realizada nos templos de São Lourenço da Mata e Dois Irmãos (Recife), ambos em Pernambuco, entre os anos de 2009 e 2011, que será melhor contextualizada no tópico seguinte.

O trabalho de campo, o Vale e alguns sonhos

Como os trabalhos envolvendo o Vale fora de Brasília não são recorrentes, considero relevante esclarecer ao leitor o contexto da pesquisa de campo, cuja duração total foi dois anos e meio, e foi realizada em dois núcleos que são profundamente interligados, havendo um intenso fluxo de médiuns entre eles.

Utilizando-se do banco de teses da CAPES, podemos verificar a existência de poucos trabalhos sobre o VDA, cuja imensa maioria desenvolveu suas pesquisas junto ao templo de Brasília - apenas Coelho (2006) e Oliveira (2007) haviam realizados até então pesquisas em outros templos. Afora essa questão, chamou minha atenção o fato de que em Pernambuco encontramos atualmente o maior número de templos do Brasil, havendo quase 50, que variam significativamente em termos de tamanho e de estrutura. Porém, ainda não havia pesquisas sistematizadas sobre o VDA nesse estado, a única exceção é um trabalho publicado por Medeiros (1998), que realizou uma investigação junto ao templo de Olinda.

Pernambuco foi um dos primeiros estados a possuir um templo do VDA fora de Brasília. Já no ano de 1977, foi fundado um templo em Olinda, o que já foi apontado pela pesquisa de Galinkin (2008) realizada no final dos anos 1970. Até os anos de 1980, Olinda foi a única cidade em Pernambuco a possuir um templo do VDA, porém, em 1986, é fundado mais um, formado por médiuns que pertenciam originalmente a esse núcleo no bairro de Tejipió em Recife. Tal templo também encontra-se em atividade, mas, aparentemente, perdeu visibilidade dentro do âmbito local, em especial após a fundação, em 1989, do templo em Dois Irmãos, localizado no "Sítio dos Pintos", também em Recife.

Apesar de o templo de Dois Irmãos localizar-se em uma das maiores regiões metropolitanas do país, em uma região periférica, o mesmo possui ares bucólicos com traços rurais cujo nome é "Sítio dos Pintos". Na região do templo há casas de alguns adeptos que, em sua maioria, foram aqueles que colaboraram na sua fundação. Como há uma forte simbiose entre o espaço físico e o desenvolvimento dos rituais, pois cada um deles demanda um espaço próprio, a área total é vasta, o que inclui estacionamento para carros, algumas lanchonetes, um espaço para as crianças, vestiário e banheiros masculinos e femininos; uma pequena loja que vende objetos ligados ao Vale, como CDs com os mantras, imagens das entidades espirituais etc., um local para o conserto das vestimentas; além de espaços dedicados exclusivamente às atividades mediúnicas - dois deles são abertos, ainda que apenas um seja coberto -, e um grande galpão fechado (o qual os adeptos se referem por vezes como templo) onde encontramos o maior fluxo de pessoas, dado que no seu interior ocorrem diversas atividades mediúnicas, especialmente as mais corriqueiras como "Trono", "Passe", "Cura" etc.

Tendo aproximadamente cerca de 3000 médiuns, sendo a metade considerada ativa, isto é, a que participa regularmente dos rituais, o templo de Dois Irmãos é apontado como o mais ativo fora de Brasília. Segundo os adeptos, o maior movimento, tanto em número de médiuns quanto o de pessoas em busca dos serviços espirituais, ocorre nos finais de semana e, por isso, meu trabalho de campo se desenvolveu principalmente nesses dias, ainda que, de segunda a sexta-feira, por haver movimento menos, as entrevistas com os médiuns eram mais viáveis.

O crescimento do templo, nesses mais de 20 anos de existência, levou a uma demanda por mais espaço físico, pois o incremento de um maior número de atividades ritualísticas demandou mais espaço, em especial, para a execução dos trabalhos de Quadrante e da Estrela Candente. No caso do ritual do Quadrante, necessitou-se da construção de um lago artificial, cercado por imagens das Princesas Encantadas10 10 No panteão do VDA há sete Princesas Encantadas: Janaína, Iracema, Jurema, Iramar, Juremár, Jandaia e Jandara. Destas, apenas as três primeiras cumprem missão com os doutrinadores, segundo informações fornecidas pelos adeptos em entrevistas. entidades espirituais presentes no imaginário do VDA - e por Iemanjá 11 11 Ainda que seja essa uma das entidades mais conhecidas das religi ões afro-brasileiras, no Vale ela é ressignificada. Em verdade, há um intenso processo de reinvenção das entidades presentes no campo afro que são incorporadas nesse movimento, o que Medeiros (1998) interpretou como um verdadeiro "embranquecimento" das entidades. , que se localiza no centro do lago. Devido a tanto, esse espaço também é conhecido como "lago das princesas", "lago de Iemanjá". O templo de São Lourenço da Mata é o único no país, fora a sede em Brasília, que realiza o ritual do Quadrante, o que implica na existência de um templo bastante amplo que, ainda segundo os adeptos, em tamanho, se compara apenas com a sede em Brasília.

O templo localiza-se em uma região rural, às margens da BR-408, na altura do km 91. Ao adentrar nele, a diferença em termos de espaço é notória. Há um amplo espaço para estacionamento de carros; também uma lanchonete e um pequeno restaurante, que se tornam espaços para conversas diversas, girando em torno principalmente da doutrina do VDA. O vestiário é menor que aquele existente no templo de Dois Irmãos, e não há um espaço próprio para crianças, nem loja para compra de objetos ligados ao Vale.

A impressão que fica é que, de fato, os dois templos se complementam em termos de espaço físico. No caso de São Lourenço da Mata, o que chama atenção são os locais destinados aos rituais mais "espetaculares", por assim dizer. Não à toa que o templo propriamente dito, onde ocorrem os rituais mais recorrentes nos templos do Vale, têm pouco destaque, pois a gênese desse novo núcleo se liga diretamente à possibilidade de realização dos rituais da Estrela Candente e Quadrante.

No que diz respeito ao ritual da Estrela Candente, ocorre tanto nos templos de Olinda, quanto no de São Lourenço da Mata, sendo os únicos no país a realizarem esse ritual - fora o a sede em Brasília12 12 Primeiramente foi autorizado o funcionamento da Estrela Candente no templo de Olinda, no ano de 2004, e, posteriormente, no ano de 2005, foi inaugurado o templo de S ão Lourenço da Mata, contando já com a Estrela Candente. . Devido à especificidade do ritual, muitos adeptos, de diversos templos no Nordeste, veem a Pernambuco para participar do mesmo. É um ritual complexo, que demanda um grande número de médiuns para a sua realização, de tal modo, que, além da estrutura física, necessita-se de um corpo mediúnico grande e ativo para a sua manutenção. Normalmente, não ocorre em dias de semana, pois são dias de menor movimento, logo, torna-se inviável a sua realização, devido ao reduzido número de médiuns se comparado ao volume que se apresenta nos finais de semana. Apesar de ser um templo maior, ainda disponibiliza um número menor de rituais, pois seu espaço físico ainda está em processo de consolidação.

O templo de São Lourenço da Mata nasce, portanto, a partir de uma demanda por espaço físico, com fins ritualísticos. O que o leva a ter uma dinâmica bastante particular, pois, os adeptos que desenvolvem as atividades neste núcleo são, em geral, os mesmos que participam das atividades do templo de Dois Irmãos. Apesar da distância geográfica existente entre os dois templos, por mais que se situem dentro da região metropolitana de Recife, eles se mantém conectados. Um dos elementos fundamentais para tal coesão encontra-se na liderança carismática exercida pelo Mestre Carlos Magno, que está a frente dos dois templos.

Apesar de ambos os templos terem horários fixos para a realização dos rituais, que demanda, via de regra, a mobilização de um grande número de adeptos, durante essas atividades encontrei inúmeros médiuns dispersos pelos diversos espaços do templo, socializando, muitas vezes discutindo questões relativas a doutrina, ou mesmo se organizando para o próximo ritual.

Participei, em meu trabalho de campo, dos rituais ofertados pelo Vale, realizando por diversas vezes consultas com as entidades espirituais, e, entre um ritual e outro, conversava com os adeptos e não adeptos, de tal modo que não comecei a realizar as entrevistas logo no começo de minha incursão em campo, preferi tornar-me mais um, em um primeiro momento, me familiarizando com a paisagem, ao mesmo tempo que aqueles que compunham a paisagem também se familiarizavam comigo.

Minha imersão em campo foi intensa. Passei a sonhar com o VDA, com sua liturgia. Por diversas vezes sonhei que estava me consultando com as entidades. Nos sonhos, eu nunca era pesquisador, mas apenas mais um em busca dos serviços espirituais. Em um deles cheguei a receber um convite para me tornar médium. Sem embargo minha vivência de pesquisa não implicou em uma conversão religiosa, porém, decididamente, o Vale passou a integrar meu referencial de mundo.

Optei por realizar as entrevistas no espaço dos templos, no momento em que os adeptos estavam com suas indumentárias, em que estavam no "clima" do VDA. Tornei-me um assíduo frequentador dos templos pesquisados, especialmente o de São Lourenço. Apenas no ano de 2010, no mês de janeiro, passei a frequentar o templo de Dois Irmãos. Este possuía seu maior movimento aos domingos, e, aquele, aos sábados; no entanto, todos realizavam rituais durante a semana, ainda que com um movimento consideravelmente mais baixo.

As entrevistas, de modo geral, eram livres, seguindo um único norte: a história dessas pessoas, seus percursos no Vale do Amanhecer. No total, entrevistei 15 médiuns de incorporação, dos quais 12 eram mulheres, e três homens; 10 médiuns doutrinadores, sendo sete homens e três mulheres; e mais oito pacientes, dos quais seis eram mulheres e dois homens, cujos nomes não serão revelados ao longo deste trabalho. Nesse trabalho trago algumas entrevistas que tocaram de forma mais enfática a dimensão corporal, aspectos que me chamaram a atenção e que demandaram uma reflexão posterior de minha parte, pois naquele momento o corpo não era meu foco de investigação, porém emergiu como um dado empírico significativo.

Em termos socioculturais, o grupo era relativamente homogêneo, em sua maioria não tinham ensino superior e boa parte era oriunda do espiritismo kardecista. Segundo um dos médiuns que entrevistei, essa era a origem de "90%" dos médiuns do Vale, havendo ainda outros que eram católicos e protestantes antes de participarem desse movimento. Nenhum deles se declarou como oriundo de uma religião afro-brasileira. Esse conjunto de narrativas era bastante convergente, o que pode indicar a eficácia do processo de socialização efetivado pelo movimento.

O Vale e seus médiuns13 13 Considerando os limites desse trabalho seria invi ável uma análise pormenorizada acerca da estrutura e organização social e religiosa do VDA, de tal modo que para uma melhor análise dessa questão vide os trabalhos de Reis (2008), Cavalcante (2011) e Oliveira (2013b).

Ainda que não pretendamos adentrar no histórico do Vale, é pertinente apontar alguns marcos significativos de sua gênese e desenvolvimento que se ligam diretamente ao percurso biográfico de Tia Neiva, e em sentido mais amplo às transformações sociais e econômicas vivenciadas no Brasil no decorrer dos anos 1960 e 1970, como nos indica o trabalho de Hayes (2013).

Sintetizando a trajetória do movimento, Oliveira (2013b) indica como fundamental o contato de Tia Neiva com Mãe Neném, com que fundou a União Espiritualista Seta Branca - UESB - em 1959, na Serra do Ouro, próximo a Alexânia (GO), que demarcou uma aproximação com o espiritismo kardecista. Porém, esse embrião do Vale se desfaz em 1964, ano que se muda para Tanguatinga, e, no ano seguinte, conhece Mário Sassi, que se torna não apenas seu companheiro, como sistematizador intelectual da doutrina. Porém,

Apenas no ano de 1969 [, é que] o movimento fixa-se espacialmente de forma definitiva nos arredores de Planaltina, cidade satélite de Brasília, onde hoje se localiza o templo mãe do VDA. Neste interstício temporal, muitas fatos ocorreram, sendo o mais significativo, a expansão ocorrida com o VDA fora de sua sede, em especial após o período da morte de Tia Neiva, quando o movimento passa a ser coordenado pelos sucessores de Tia Neiva, Mário Sassi e os filhos da Clarividente, com um destaque especial para o papel exercido pelo primogênito da mesma, Gilberto Chaves Zelaya, mais conhecido como Trino Ajarã, no processo de expansão da doutrina, contanto hoje com mais de 600 templos pelo Brasil e em mais sete países (Oliveira 2013b:143).

Saindo dos aspectos mais históricos - que devido aos limites e ao ponto central deste trabalho não serão explorados detalhadamente - e focando na dimensão etnográfica, destaco que, ao adentrar no templo do VDA, os olhos logo ficam inebriados com a intensidade das cores e do brilho das vestimentas dos adeptos, em especial das mulheres, que se denominam Ninfas. Suas vestes marcam-se pelos véus coloridos, a presença de lantejoulas, e em cada uma há um conjunto de símbolos referente à falange espiritual a qual a médium14 14 Assim como no kardecismo (Cavalcanti 1983) no VDA h á a crença de que todos são médiuns, e que potencialmente podem se comunicar com o sobrenatural. se vincula. Para as mulheres, há 22 possibilidades de falanges: grega, cigana tagana, cigana aganara, franciscana, madalena, nityama, muruaicy, samaritana, maia, madrucha, agulha ismênia, yuricy sol, yuricy lua, roxana, dharmon-orxinto, jaçanã, ariana, naraima, niatra, aponara, caiçara e tupinambá15 15 Listagem completa dispon ível em: http://valedoamanhecer.com/falanges/ - consultado em 27/05/14. ; no caso dos homens, denominados Jaguares16 16 Ainda que nos termos oficiais da doutrina "jaguar" seja um título que refere-se também as mulheres depois da segunda iniciação, de tal modo que o complementar de "ninfa" equivaleria a "mestre", observamos em nosso trabalho de campo que os sujeitos simplificavam essa classificação, adotando "jaguar" como uma denominação genérica para os médiuns da doutrina do sexo masculino, e "ninfa" para os do sexo feminino. Isso implica em dizer que por mais que haja uma doutrina estabelecida os sujeitos ressignificam e operacionalizam os diversos elementos presentes nela de forma bastante plural. , há apenas duas possibilidades: príncipes ou magos. Estes se utilizam em sua maioria de longas capas marrons, que seriam uma referência a São Francisco de Assis. Porém, ainda que houvesse dentro da estrutura doutrinária do Vale outras possibilidades de vestimentas rituais, no trabalho de campo realizado, isso se configurava exceção17 17 A capa marrom n ão é comum a todos os homens, não é só do uniforme de uma falange específica mas é individual do jaguar doutrinador quando não trabalha com falange. , e a maioria dos homens que eram adeptos utilizavam as capas marrons, além do conjunto de símbolos referente a sua falange. Claramente o aspecto visual da vestimenta dos adeptos é um dos principais elementos que demarca a produção do pertencimento dos médiuns ao movimento. Segundo Oliveira (2007:89):

Não resta dúvida de que o vestuário no Vale do Amanhecer ocupa lugar central no que diz respeito à história e à identidade do grupo. Pode ser pensado como um cenário móvel que interage com todos os espaços da comunidade, interfere na movimentação dos corpos e estetiza um cotidiano, envolvido numa atmosfera sacra, que transita, também, no profano e corrobora para a auto-afirmação da Doutrina Vale do Amanhecer. A indumentária dá condições e possibilita a manipulação de energias nas práticas cotidiano-ritualísticas da comunidade.

Não há como desvincular a atmosfera do VDA das indumentárias, que ainda possuem outros símbolos. Talvez o principal deles seja aquele que distingue o Apará do Doutrinador, que se encontra afixado em uma faixa nas cores amarela e roxa que os médiuns utilizam desde o seu processo de iniciação, quando suas vestes ainda são brancas. Esse símbolo distintivo também se encontra nas capas e coletes utilizados.

As indumentárias possibilitam a localização dos sujeitos no espaço social, bem como apontam para a distinção entre o sagrado e o profano, uma vez que os adeptos não se utilizam destas em seu cotidiano. Geralmente eles chegam com suas roupas ordinárias e se trocam nos vestiários existentes. Nesse momento, deixam de ocupar o papel que lhes cabe na vida corriqueira e passam a assumir outra persona. São agora príncipes, magos e ninfas. Pode-se dizer que a partir desse momento passa a operar uma transformação nos médiuns, que se completa no ritual. Em minha interpretação, esse cenário se aproxima da lógica que Maggie (2001) encontrou ao investigar um terreiro de umbanda, indicando que haveria duas formas de estruturação da realidade: uma primeira, que denominou de código do santo; e, uma segunda, chamada de código burocrático. A primeira pressupunha uma ruptura entre a vida de dentro e de fora do terreiro, de modo a existir uma inversão da hierarquia social no terreiro; ao passo que a segunda marcava-se por uma continuidade que apontava para a aceitação dos critérios de prestígio social para a organização do poder no terreiro. Assim como no trabalho de campo realizado por Maggie (2001), encontrei no VDA uma interpenetração entre essas duas lógicas, ainda que haja uma preponderância da primeira. Nesse sentido, a relação que os médiuns estabelecem com o mundo espiritual, de maior ou menor proximidade, tanto por meio da incorporação como da doutrinação, mostra-se como um importante elemento de hierarquização social dentro da comunidade religiosa, que se substancia também por meio de símbolos presentes nas indumentárias dos médiuns - que indicam a posição que estes ocupam na hierarquia social (e espiritual) presente no movimento -, de modo que possam se reconhecer mutuamente e melhor se organizar nos rituais, já que as diversas posições ocupadas nos vários trabalhos que ocorrem no VDA são preenchidas de acordo com a classificação espiritual do sujeito.

Essa dinâmica do Vale se operacionaliza por meio da oferta de bens espirituais, mais especificamente a cura desobsessiva (Galinkin 2008; Oliveira 2010), que é totalmente gratuita, e tanto visa tratar as doenças espirituais quanto as materiais, ainda que quando se trate de uma doença material seja recomendado aos pacientes18 18 Paciente no Vale é todo aquele que vai ao templo em busca dos serviços espirituais, incluindo aí os médiuns que ocasionalmente vão as templos para receber o tratamento espiritual, ao invés de ofertá-lo. que continuem com o tratamento da medicina convencional. Nesses casos normalmente é apontado que a doença também possui uma causa espiritual não identificada pelo sistema biomédico, e como nos indica Csordas (2008:45): "o importante aqui é que as técnicas seculares são subordinadas ao significado religioso". Podemos perceber que não há para os adeptos uma separação total entre matéria e espírito, ambos estão intimamente relacionados, sendo esse um pressuposto relevante para entender a dinâmica terapêutica do VDA, pois tanto a compreensão de doença quanto de cura só faz sentido ante a indissociabilidade entre essas duas esferas.

Um dos elementos fundamentais para que o médium oferte a cura espiritual é que ele esteja trajando as roupas do Vale, uma vez que a utilização de uma determinada indumentária enquadra-se nas estratégias sociais de manipulação que pretendem:

[…] modelar os corpos no intuito de fazer de cada um deles uma incorporação do grupo (corpus corporatum in corpore corporato, como dizem os canonistas) e a instituir entre o grupo e o corpo de cada um de seus membros uma relação de "possessão" quase mágica, uma relação de "complacência somática", sujeição pela sugestão que mantém os corpos e os faz funcionar como uma espécie de autônomo coletivo (Bourdieu 2007b:177).

Deve-se reconhecer que a elaboração do pertencimento ao grupo perpassa a construção do corpo que, longe de ser um dado evidente, é fruto de um contínuo trabalho social (Le Breton 2009), que envolve as indumentárias religiosas, de modo que toda a lógica existente no VDA torna-se visceralmente dependente dos corpos dos sujeitos envolvidos, seja a partir dos médiuns ou dos pacientes. Pode-se inferir aqui que há uma íntima relação entre corpo, pertencimento e cura.

No caso dos pacientes, o corpo é um importante elemento para compreender as motivações que os levam até o templo do Vale, pois são recorrentes os relatos que atribuem a busca pelos serviços espirituais do VDA devido a dores pelo corpo, dificuldades para engravidar, doenças diversas, havendo uma clara busca pela construção de novos significados a serem atribuídos às experiências corporais. Nesse sentido, concordo com Csordas (2008) ao indicar que a cura espiritual não leva o sujeito a um estado anterior ao da doença, mas sim a um novo estado, por meio da atribuição de novos significados às diversas aflições que levam os sujeitos a buscar tais tratamentos.

Alguns paciente mostram-se temerosos no primeiro contato com o movimento, tendo em vista que, para além da pluralidade de cores e símbolos, a presença de elementos das religiosidades afro-brasileiras cria um certo receio por parte de alguns que chegam ao VDA, o que é oriundo das próprias relações ambivalentes construídas historicamente na sociedade brasileira com respeito às religiões afro-brasileiras, que produzem um temor que ocorre de forma concomitante ao reconhecimento da eficácia de suas ações (Maggie 1992). Por outro lado, há no Brasil uma verdadeira "cultura dos espíritos" (Aubrée e Laplantine 2009), que possibilita aos sujeitos compreender como eficazes os rituais religiosos que envolvem a comunicação com entidades espirituais e que os mesmos poderiam ter uma ação no plano material, o que envolveria seus corpos. Há a elaboração de um sentimento ambivalente de estranhemento e identificação, ou seja, o Vale demarca ao mesmo tempo continuidade e ruptura com relação às experiências religiosas anteriores daqueles que o procuram (Oliveira 2013c).

Segundo entrevistas realizadas com aqueles já iniciados na doutrina, um número significativo de adeptos do Vale são oriundos do espiritismo, o que possibilita uma familiaridade com a consulta mediúnica e com a crença na capacidade de intervenção de "Espíritos de Luz" vindos do "Astral Superior" de forma positiva no plano espiritual e material. Tal como no kardecismo, acredita-se no VDA que

Os espíritos de luz, por força de sua posição privilegiada na escala evolutiva, sabem mais da vida e do Universo do que os que ainda vivem na Terra, este planeta de purgação, e do que os espíritos sofredores. Para a cura dos males provocados pelos espíritos sofredores, os viventes podem contar com a sabedoria dos espíritos de luz que se encontram em missão na Terra (Prandi 2012:81).

Essa premissa mostra-se fundamental inclusive para compreendermos a complexa relação estabelecida com os cultos afro-brasileiros, pois, ainda que entidades típicas desses se façam presentes no Vale, elas não são interpretadas pelos adeptos como pertencentes ao universo do candomblé ou da umbanda, sendo a classificação de tais entidades como "Espíritos de Luz" fundamental para essa diferenciação.

O público predominante é formado por pessoas oriundas de camadas populares. Tanto com relação aos médiuns quanto aos pacientes (Cavalcante 2000; Galinkin 2008; Oliveira 2009). Isso faz com que haja uma relação singular na percepção do próprio corpo (Bourdieu 2007a), bem como na forma como aciona aos diversos sistemas de cura para formular uma nova experiencia corporal (Boltanski 1984; Rabelo 2008), de modo a criar uma trajetória singular que recorre a diversos agentes sociais postos no campo da cura, muitas vezes sendo o sistema biomédico aquele que possui menor ressonância entre tais sujeitos, cujas explicações mostram-se insatisfatórias.

Ao adentrar um pouco mais no VDA, pode-se observar os espaços reservados para os rituais que se realizam a céu aberto. No entanto, o local no qual ocorre a maior movimentação é o que seria um templo propriamente dito, que por fora se assemelha a um galpão, mas que por dentro encontra-se subdividido em vários espaços, onde em cada um ocorre um tipo de ritual, uma vez que há uma forte simbiose entre o espaço físico e o universo místico religioso do Vale. Logo no início há um ou mais de um médium denominado de "recepcionista" para auxiliar aqueles que chegam, que explica algumas regras de comportamento19 19 H á uma especial atenção para a forma como os pacientes devem se vestir. É proibido o uso de camisetas, roupas decotadas ou muito curtas. No caso das mulheres, quando chegam com uma saia ou short considerado inapropriado, sugere-se que a paciente se utilize de uma saia fornecida pelos próprios adeptos, reservada para este tipo de situação. , bem como conduz o paciente para o local de espera. Via de regra o primeiro trabalho pelo qual o paciente passa é o Trono.

O processo de disposição corporal é um importante elemento classificador no Vale, tendo em vista que não há uma mistura de corpos entre pacientes e médiuns, eles devem ocupar espaços distintos no templo. Aos pacientes, cabe aguardar o início das atividades do Trono em bancos de alvenaria coloridos, localizados de frente ao espaço onde ocorrerá o ritual, composto por vários bancos de madeira nas cores amarelo e vermelho, e ao fundo uma imagem que lembra a bandeira japonesa do Sol Nascente. Concomitante a isso outras atividades ocorrem, como no espaço da Mesa Evangélica, que é em formato triangular e ao redor da qual os médiuns organizam-se em duplas, sendo um Apará e um Doutrinador, àquele cabe incorporar um espírito sofredor, e a este doutriná-lo, convencê-lo a seguir os princípios de Cristo do amor, caridade e perdão.

Também nesse momento muitos médiuns passam por uma grande imagem do Pai Seta Branca e se prostram. Alguns, além disso, param e realizam orações, ou deixam pedidos por escrito aos pés da imagem. Alguns pacientes que frequentam o templo há mais tempo também fazem o mesmo. Estes demonstram claramente possuir mais intimidade com esse espaço, circulando mais livremente, ainda que não possam ingressar nos lugares exclusivos dos médiuns nos quais os rituais20 20 Isto é possível uma vez que a utilização dos serviços espirituais ofertados pelo Vale não implica na necessidade de assumir compromissos religiosos com o movimento, o paciente pode permanecer anos nessa condição, sem que haja conversão. são realizados.

O cheiro forte de incenso misturado com os cânticos ouvidos ao fundo lembra o rito católico, porém esse aspecto contrasta com as paredes coloridas, as imagens de princesas encantadas, caboclos, pretos-velhos, ciganos etc. Também nesse momento um conjunto de médiuns, como em procissão, dá voltas no interior do templo. É a única atividade ritual na qual observamos a participação de crianças, ainda que haja no templo de Dois Irmãos um espaço para elas, que me parece ter tanto uma função lúdica como doutrinal. As letras dos cânticos fazem referência a um amplo panteão de entidades que compõem o imaginário religioso do Vale. As músicas são entoadas pelos médiuns, mas também há uma gravação ao fundo que demarca o tempo do ritual. Esses cânticos são denominados mantras, e seriam responsáveis por uma ligação entre os médiuns e o mundo espiritual.

Quando os trabalhos estão prestes a se iniciar, os médiuns organizam-se em duplas, sempre um Apará e um Doutrinador, podendo ser um homem e uma mulher, que seria a formação preferencial, já que as energias se complementariam; mas também é possível ser dois homens. No processo de incorporação, há uma distinção significativa entre homens e mulheres, enquanto estas podem incorporar entidades masculinas e femininas, aqueles só incorporam entidades ,masculinas. Apesar de ser possível um arranjo formado por dois homens é proibido que qualquer ritual ocorra por meio de uma dupla de mulheres, o que nos remete à reprodução dos modelos de dominação estabelecido nas relações de gênero, presentes na sociedade envolvente (Oliveira 2013a).

Afora as duplas, um médium doutrinar torna-se encarregado de "abrir os trabalhos", invocando os espíritos de Luz para participarem do ritual. Há geralmente outro Doutrinador, ou mais de um, para auxiliar na condução e organização dos pacientes, instruindo-os sobre os procedimentos, indicando que devem sentar-se ao lado do Apará, dizer seu nome e idade, colocando as mãos abertas e juntas para que a entidade possa abençoá-lo21 21 Como bem nos aponta Leloup (1998:124) as m ãos são dotadas de um vasto simbolismo, uma vez que "Através das mãos comunicamos nossa energia, nosso coração. Mas também, através das nossas mãos, podemos comunicar algo maior que nós e que não nos pertence". O que deve ser considerado ao interpretarmos as recomendações dadas aos pacientes. e, principalmente, mentalizar Jesus Cristo.

Para aquele que chega pela primeira vez, o ritual mostra-se tenso, pois o Apará passa a se contorcer, ao passo que o Doutrinador mantém sua postura firme alternando-se entre sentar ao lado do outro médium e ficar por traz dele repetindo as palavras ritualísticas, por vezes estalando os dedos, e continuamente a seguinte frase é repetida: "Ó, obatalá! Ó, obatalá! Ó, obatalá Entrego, neste instante, mais esta ovelha para o teu redil". Quando a entidade se apresenta, ele a avisa que está na casa de Pai Seta Branca, agradecendo sua disponibilidade em participar do trabalho.

Aos pacientes cabe aguardar ansiosamente, em silêncio, sem cruzar as pernas, para não atrapalhar a energia conforme os médiuns instruem antes do início do ritual. Como há o atendimento de um número significativo de crianças e idosos em idade avança, que tendem a vir com acompanhantes, ressalta-se que todos devem seguir as mesmas regras, ainda que não estejam ali para realizar consultas. Cria-se todo um ambiente que predispõe os sujeitos a se envolverem em uma atmosfera emocional. Há de se ressaltar que, mesmo nos casos daqueles que procuram o templo pela primeira vez, observamos uma predisposição na crença de que o que é realizado naquele espaço é capaz de intervir em seus problemas, sejam eles referentes à saúde, ao trabalho, à família, ou ainda de ordem emocional ou espiritual, mesmo que não estejamos aqui nos referindo a uma trajetória linear, já que o mais recorrente é que os sujeitos passem por diversos sistemas simbólicos, o que lhes leva a compor um sistema interpretativo próprio dos problemas que lhes afligem.

Ainda que nem todos os pacientes apontem uma crença delimitada claramente em torno dos preceitos religiosos do VDA, encontramos entre eles, no entanto, uma certeza compartilhada de que é possível a intervenção do plano espiritual sobre outros planos, como o biológico e o social, o que poderia ser operacionalizado por diversos canais de comunicação, sendo o Vale um deles.

Os médiuns que entrevistei, em sua maioria, narraram uma trajetória similar, tendo o primeiro contato com o VDA na condição de pacientes, alguns rapidamente se converteram, outros só realizaram esse feito após anos vindo como pacientes, assim como no espiritismo (Prandi 2012). No Vale, a dimensão terapêutica apresenta um importante papel na reprodução da religião, ao arregimentar novos adeptos. Essa passagem nos é elucidada da seguinte forma segundo uma médium Apará de 54 anos:

Médium - Que uma coisa é você dever, sem saber nada. Outra coisa é você tomar conhecimento, sabendo de tudo. É a mesma coisa, eu comparo assim: você tá desempregado e deve numa loja, aí... o dono nunca chega junto de você pra cobrar porque você tá desempregado, aí você vai fazer o que sem ter dinheiro pra pagar? No dia que você se emprega a primeira coisa que o dono faz é 'Olha aqui, tá trabalhando, paga o que você me deve'. É a mesma coisa com os espíritos cobradores, quando você é leigo e não sabe de nada ele nunca lhe cobra nada. Não tem coisa melhor do que a época que você passa como paciente. Aí quando você assume a doutrina, aí vem as cobranças, depois que eu entrei na doutrina, acontece isso, acontece aquilo outro na minha vida, porque agora tem como pagar, trabalhando, né?

Entrevistador - Você passou muito tempo como paciente?

Passei seis anos. Consegui muuuita coisa, mas muuuita coisa. Mas eu consegui depois, Graças a Deus, muita coisa também. Mas muito mais quando eu era paciente, porque quando a gente é paciente só vem pedir, né? Chega aqui no Preto-Velho pra pedir 'Eu quero, eu quero, eu quero', e agora você não pode mais pedir, você tem que doar. Só dando que se recebe.

O que se pode perceber é que o processo de socialização é fundamental para a conversão religiosa, não à toa, o tratamento espiritual envolve a vivência de diversos trabalhos ofertados pelo templo, que possibilita ao paciente a familiarização com o panteão e a linguagem desse movimento religioso, e também com a forma de operar o pensamento. No final das contas, a passagem de paciente para médium indica a plenitude da cura espiritual, já que o trabalho de caridade estaria ligado à possibilidade de evolução espiritual nessa e nas próximas vidas. Como nos indica Silva da Silveira (2002:105) ao analisar a cura no VDA:

No caso daqueles que se tornaram realmente da Doutrina, a cura acontece através de uma completa ressocialização, dentro dos valores e símbolos da seita. De pacientes, que se purificam dos males e das dívidas kármicas das vidas passadas, tornam-se novos médiuns, capazes de aliviar o sofrimento dos novos pacientes do Vale.

O pertencimento ao movimento vai sendo construído por meio da vivência nos rituais religiosos. De qualquer forma, pode-se notar que há uma profunda heterogeneidade com relação ao público atendido, havendo desde aqueles que procuram o templo esporadicamente, ou uma única vez, até outros pacientes que se tornam habitués, frequentando por anos nessa condição, sem que com isso se assuma uma nova identidade religiosa, o que se encontra em consonância com a forma como estão organizadas estas identidades na modernidade, em que se pode pertencer a uma religião sem crer, ou ainda crer sem pertencer (Hervieu-Léger 2008), ao que nos parece tais habitués se enquadram neste último caso.

Desse modo, a construção do pertencimento religioso dos adeptos passa necessariamente por uma dimensão corporal, sendo o caso dos Aparás emblemáticos nesse cenário, ainda que a distinção entre Aparás e Doutrinadores não seja estanque, tendo em vista que um médium pode passar de uma categoria para outra, movido por razões diversas.

Corpo e incorporação

Como já foi indicado, o Apará diferencia-se do Doutrinador por ser aquele responsável pela incorporação, tanto dos espíritos de Luz, que podem ser caboclos, pretos-velhos e médicos, quanto dos cobradores. Sua participação mostra-se fundamental nos rituais do Vale, tendo em vista que este médium é um canal de comunicação entre este mundo e o mundo espiritual, servindo tanto aos demais médiuns quanto aos pacientes que ali chegam e buscam realizar consultas.

Antes de se tornarem Aparás, há um processo de iniciação que implica em um "desenvolvimento mediúnico", no qual o membro da doutrina passa a conhecer seus fundamentos, bem como busca descobrir o tipo de mediunidade do qual é portador. É importante ressaltar que apesar de não haver explicitamente uma busca por adeptos, via de regra os médiuns não devem convidar pacientes para integrarem a doutrina, pois caberia a eles tomar tal iniciativa. Há relatos que indicam que durante uma consulta mediúnica com um caboclo ou preto-velho, a entidade revela que a origem do problema do paciente está na necessidade de desenvolver sua mediunidade. Entende-se aqui que o trabalho mediúnico é uma forma de caridade, em um duplo sentido, pois colabora com o paciente e com o espirito cobrador, que evolui espiritualmente. Esse trabalho possibilitaria a amenização da dívida cármica22 22 Assim como no kardecismo, bem como em outras religi ões presentes no universo da NE, o VDA acredita no processo de reencarnação, e, por conseguinte, na existência do carma e na necessidade de sua superação, do pagamento das dívidas oriundas de outras vidas. que os sujeitos carregam.

Também durante o desenvolvimento espiritual os médiuns incorporam os elementos próprios que compõem os referenciais simbólicos da doutrina do amanhecer, o que em meu entender encontra-se tensionada entre a forte influência do kardecismo e das religiões afro-brasileiras, ainda que essas sejam vivenciadas muito mais no nível na performance. O que é reforçado pela negação da identidade afro e o consequente embranquecimento das entidades espirituais (Oliveira 2011a). Os adeptos se utilizam de alguns elementos para distinguir os caboclos e pretos-velhos existentes no Vale daqueles da umbanda, o que está prescrito na doutrina do movimento, como pode ser observado por meio do livro O que é o Vale do Amanhecer?, de autoria de Mário Sassi (1979:54), onde tais questões são esclarecidas da seguinte maneira:

O Vale só trabalha e aceita auxílio de espíritos que já atingiram o estágio da Luz, que já superaram a faixa cármica, que estão acima do bem e do mal conforme conceito da Terra. Tais espíritos, no Vale chamados de Mentores, se apresentam com as roupagens que proporcionam melhor resultado no seu trabalho através dos Médiuns. Por isso eles usam os 'macacões' de Pretos Velhos ou os 'penachos' dos Caboclos. Mesmo assim esses espíritos dispensam o 'personalismo' habitual dessas figuras e jamais interferem no livre-arbítrio dos espíritos encarnados. Também não fazem uso de objetos, bebidas, charutos etc. pois seu trabalho é iniciático.

A Doutrina do Amanhecer não é Umbanda, Candomblé, Quimbanda, Kardecismo, Induísmo, Teosofia ou Catolicismo. É apenas uma Doutrina com sentido Universal com base no Sistema Crístico.

Considerando tais aspectos, e tendo em vista as observações realizadas durantes as consultas mediúnicas, devo reconhecer que as entidades espirituais no Vale ocupam um lugar muito mais voltado para o aconselhamento e conforto emocional e espiritual, ainda que seja recorrente o caso de pacientes e adeptos que relatam terem passado por consultas que relevaram fatos que se confirmaram posteriormente.

Os Aparás tendem a se apresentar mais próximos do polo das religiões afro-brasileiras, o que se dá pelo entrelaçamento entre médium e entidade, de modo que o desenvolvimento mediúnico nesse caso implica na apreensão de uma nova "gramática corporal"23 23 Tomamos aqui de empr éstimo essa expressão da pesquisa de Pólvora (1995), que indica a existência de uma "gramática corporal batuqueira", por meio da qual se expressão tanto as simbologias e hierarquias espirituais do terreiro, quanto a própria organização social da casa. , por meio da qual se expressam os elementos simbólicos apreendidos no processo de imersão nessa doutrina religiosa, e mais que isso, durante a incorporação há o surgimento de uma nova persona oriunda da confluência entre médium e entidade.

A incorporação transparece também uma tensão entre o polo das religiões afro-brasileiras e o espiritismo kardecista. Quando buscamos compreender o grau de consciência do médium nesse processo, pois, como nos indica Camargo (1973), as primeiras tendem a possuir um transe inconsciente; as do segundo, consciente; no Vale, segundo os médiuns, o transe é semiconsciente, o que nos aponta para a posição singular que essa religião ocupa no campo das religiões mediúnicas, tensionada entre esses dois polos.

No momento anterior ao desenvolvimento dos rituais, não há uma distinção explicita entre Aparás e Doutrinadores, apenas a insígnia que remete aos tipos de mediunidade é que os diferenciam. No mais, as classificações relativas ao tipo de falange espiritual a qual se filiam, bem como à distinção entre Ninfa e Jaguar se sobrepõem a essa. A partir do momento em que os rituais se iniciam é que há uma diferenciação mais clara entre os dois tipos de médiuns, onde se pode perceber mais explicitamente a elaboração de um habitus próprio ao Apará, resultante de uma inscrição social em seu corpo (Mauss 2003; Bourdieu 2009).

Quando o ritual do Trono inicia suas atividades, assim como outros que estão mais focados na incorporação, a postura corporal do médium e sua expressão facial modificam-se substancialmente. Passa a se contorcer, especialmente os músculos faciais. Repetidamente o médium faz referência a uma ampla gama de entidades, sempre com os seguintes dizeres "Salve (nome da entidade) nas Graças de Deus!", que se segue de três batidas no peito esquerdo executadas com a mão direita. No momento em que o médium repete "E graças a Deus! Graças a Deus! Graças a Deus!". As batidas no peito podem ser mais ou menos intensas, a depender de fatores que remetem à entidade - pois os caboclos tendem a realizar batidas mais fortes e gritos mais estridentes que os pretos-velhos -, como também ao médium, o que inclui, principalmente, idade, saúde física e tempo na doutrina.

A relação entre saúde física e a incorporação mostra-se como um elemento determinante que não aparece explicitamente na doutrina do Amanhecer. Em um relato de uma médium de 52 anos encontramos elementos para perceber essa relação, bem como a fluidez entre os diferentes tipos de mediunidade.

Entrevistador - Você é Apará ou Doutrinador?

Médium - Olhe eu já fui Doutrinador por sete anos, passei a Apará, passei cinco ano como Apará, e agora faz três meses que voltei pra ser Doutrinador. Por causa de um problema de saúde agora, um problema cardíaco, aí num podia mais trabalhar como Apará, aí voltei a ser Doutrinador.

Segundo os adeptos, essa relação entre a saúde física do Apará e sua mediunidade se deve ao fato de que a puxada24 24 Segundo os adeptos, essa é a técnica que o médium doutrinar se utiliza para que a entidade após incorporada fique "presa" ao Apará, de modo que a doutrinação possa ser realiza de forma ininterrupta. realizada é muito "forte", dado que ela se refere ao processo de incorporação dos espíritos sofredores, o que demanda o pleno vigor físico do médium. Os Aparás entrevistados relatam um profundo cansaço ao término dos trabalhos, o que é bastante notório: terminam o ritual suados, ofegantes na maioria dos casos, como se o corpo refletisse o intenso trabalho espiritual. Porém, pode haver casos em que a incorporação não mais ocorra, ou seja, o corpo não responde mais como um corpo de um Apará. Isso se passou com uma médium de 46 anos que entrevistamos, em seu relato elas nos conta que "[E] então chegou o tempo de eu não tá incorporando, aí o caboclo, cadê o caboclo? Aí quando eu olhava eu via uma pessoa, aí trabalhava sem caboclo, sem caboclo...".

Nesse caso, a passagem de Apará para Doutrinador se deu devido a razões não explicadas claramente pela médium, ainda que ela indique que em uma consulta com uma preta-velha já havia sido anunciado que a sua vida passaria por grandes mudanças, e nesse conjunto ela inclui também essa alteração na sua mediunidade que, por coincidência, segundo a adepta, se seguiu também de uma mudança de falange.

Durante o processo de incorporação os trejeitos típicos de caboclos e pretos-velhos são reproduzidos pelos médiuns, de maneira fac-símile a que ocorre na umbanda, em que fica evidente a fragilidade física dos pretos-velhos, que seria compensada pela profunda sabedoria dessas entidades, contrastada com a força dos caboclos (Ortiz 1999; Cancone 2004). Entretanto, a incorporação dos Aparás não se limita a uma repetição de trejeitos já estabelecidos, ainda que esse componha a performance vivenciada. Cada médium elabora sua incorporação particular, na qual ocorre um verdadeiro encontro de biografias, na medida em que os elementos que compõem a performance incluem tanto aqueles que se referem à história da entidade, quanto à história de vida do médium, seu tempo de pertencimento a doutrina, sua vivência religiosa anterior, sua compreensão do que é um caboclo ou um preto-velho, a relação que estabelece com o paciente no processo de consulta etc.

Essa questão se torna ainda mais complexa ante ao que Holston (1999) coloca, ao indicar o fato de que os membros no movimento mantêm relações com outros grupos religiosos, implicando na incorporação de outros sistemas de crenças que são reinterpretados ante a doutrina do VDA. Portanto, trata-se de um fluxo cultural contínuo, que anima esse encontro biográfico ao qual me refiro aqui.

Essa possibilidade de pensar a incorporação e, consequentemente, a dimensão corporal como um encontro de biografias rompe com a concepção moderna de corpo que "[...] implica que o homem esteja separado do cosmo, separado dos outros, separado de si mesmo" (Le Breton 2011:71), pois ao elaborar uma performance que envolve sua trajetória e a da entidade, há um encontro com a comunidade, uma vez que a narrativa em torno dos Espíritos de Luz são coletivas antes de tudo. O corpo é um espaço de reencontro entre o sujeito e a comunidade. É por meio dele que o Apará indica seu grau de envolvimento com os demais membros do grupo social ao qual pertence. Nesse sentido, a incorporação não é apenas um estado espiritual mas, sobretudo, um estado social. O corpo é por excelência o principal instrumento de afirmação do pertencimento religioso do Apará (Oliveira 2011b).

Uma voz mais autêntica, em que seu timbre remete imediatamente à entidade incorporada, uma batida no peito mais enfática, um estalar de dedos mais estridente, são elementos que diferenciam os médiuns, apontando para a hierarquia espiritual e social existente. Notadamente, aqueles que há mais tempo estão na doutrina tendem a produzir uma performance mais "verdadeira", o implica em muitos casos no reconhecimento de uma maior eficácia nos serviços espirituais prestados.

No rosto dos médiuns por vezes escorre o suor, os músculos da face contorcidos indicam mais que um desconforto, apontam para a construção do "eu". Nesse momento não se trata apenas de possuir um corpo, mas de ser um corpo. A experiência corpórea é uma dimensão constituída a partir das experiências subjetivas e coletivas do indivíduo, relacionando-se não só com vínculos sociais aos quais ele está ligado, como também ao que um dia lhes deram sustentação, uma vez que as experiências religiosas anteriores exteriorizam-se na incorporação, ex-espíritas e ex-católicos, por exemplo, apresentam uma incorporação sensivelmente distinta. Enquanto que os oriundos do espiritismo kardecista tendem a apresentar um maior controle sobre o próprio corpo, o que é valorizado na incorporação que ocorre no espiritismo no Brasil (Cavalcanti 1983), aqueles que provém do catolicismo apresentam uma performance mais "emotiva", como se o corpo pertencesse mais à entidade que ao médium, o que nos parece remeter aos fluxos existentes no Brasil entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras.

No caso do ritual do Trono, há um segundo momento no qual o Espírito de Luz deixa o corpo do médium. Agora são os cobradores do paciente, oriundos de outras vidas, que são incorporados pelo médium. Sua expressão facial muda, assim como sua voz e sua postura corporal. A linguagem também se altera e as bênçãos e conselhos dão lugar a ameaças e gargalhadas, que via de regra indicam a impossibilidade de realização dos anseios do paciente. Desenvolve-se então um diálogo entre entidade, já incorporada, e o médium doutrinador, que tenta convencê-la a evoluir espiritualmente, e que um passo fundamental para tanto seria o perdão daquele que teria lhe magoado/ferido em uma vida anterior - no caso o paciente. E a este cabe pedir por perdão a seus cobradores, cujo número é variável. Observamos casos de um até seis cobradores junto a um único paciente.

Apesar de ser um momento do ritual bastante tenso, marcado muitas vezes por um pranto copioso por parte de alguns pacientes, o que é observado por aqueles que serão os próximos a serem atendidos, devemos reconhecer que essa é uma etapa fundamental para o desenvolvimento do processo de cura espiritual promovido pelo movimento, pois, como nos indica Amaral (1999a:186) ao se referir às práticas terapêuticas na NE "é o sofrimento, causado pelo medo, que deve ser vencido e enfrentado como condição da transformação desejada".

Ao término da incorporação dos cobradores, o Apará passa uma sensação de alívio, sua respiração continua ofegante, mas aos poucos volta ao normal, o que demarca o início de uma nova incorporação, novamente de um Espírito de Luz, que finaliza a consulta indicando os próximos tratamentos espirituais que devem ser seguidos pelo paciente, que pode lhe levar ao contato com outras entidades, como no caso do ritual da Cura no qual o paciente é atendido por médicos incorporados, em um modelo símile ao que é recorrente no espiritismo.

Braustein e Pépin (2001:187) apontam que na nossa sociedade contemporânea "o corpo foi desmembrado, e as suas diferentes partes funcionam independentemente, regidas por um sistema hierárquico fundado numa matemática da mensuração". Entretanto, há que se reconhecer que esse não é um processo linear, pois o que se observa no caso dos adeptos do VDA é uma busca contínua em torno da reintegração entre corpo e espírito/mente enquanto elemento fundamental para a constituição do sujeito. Ser um Apará é, por excelência, ser um aparelho, nos dizeres dos adeptos, que, enquanto tal, está a serviço da comunidade religiosa e dos demais, exercendo seu trabalho de caridade.

Em torno desses apontamentos são elucidativas as questões trazidas pelo paradigma do embodiment (Csordas 1990), na medida em que reconhecem o corpo como sujeito e agente da/na cultura, e essa cultura como corporificada. O caso do VDA mostra-se, nesse sentido, emblemático, pois me é claro que não seria possível pensar a formulação desse universo místico-esotérico fora da dimensão corporal. É por meio do corpo que o Apará se localiza socialmente, demarca seu espaço, elabora seu pertencimento religioso e possibilita a ligação entre a comunidade religiosa e o mundo espiritual, o que constitui e reforça os laços sociais existentes. Ainda nessa seara, são pertinentes as questões trazidas por Rabelo (2011:26), ao apontar que

O termo corporeidade (embodiment) pode ser enganoso se servir apenas para destacar o fato (sem dúvida importante) de que os significados, identidades, emoções e valores (tudo que, sendo da ordem dos sujeitos, tradicionalmente caberia na rubrica de um fato ideal ou de uma representação, seja coletiva ou individual) são também profundamente ancorados no corpo. Isso porque, como lembra Ingold (2001), tal abordagem pode ter como resultado apenas ampliar ou redefinir a noção de subjetividade. Superar a dicotomia entre sujeito e objeto envolve conduzir a análise não só em direção a uma redefinição do subjetivo pela mediação do corpo, mas também rumo a uma reflexão que recupere os nexos entre corpos, lugares e coisas na dinâmica da experiência social. Isso envolve colocar seriamente a pergunta: o que é mesmo o corpo de que estamos falando? Conforme vimos nos exemplos aqui evocados, o corpo não é uma entidade fechada ou separada do seu entorno por contornos bem definidos. Estende-se para fora, abre-se aos lugares e sintoniza-se às coisas e pessoas que constantemente o solicitam. Incorpora objetos e, não raro, é incorporado a séries de objetos. Seu alcance e suas fronteiras são móveis - não preexistem à ação ou ao movimento, mas definem-se nele.

O corpo deve ser encarado, portanto, como algo aberto a uma multiplicidade de agenciamentos, que envolve nesse caso tanto o médium, quanto as entidades, os pacientes e os demais membros que compõem a comunidade religiosa. Do momento da chegada ao templo, passando pela utilização das vestimentas ritualísticas, até a incorporação, há uma profunda transformação que implica na definição de quem é esse sujeito. No trabalho de Campos (2013:63-64) sobre os Ave de Jesus, ela afirma que "olhando para eles, vemos a Bíblia performada, corporificada, materializada em seus corpos, roupas, casas, práticas e palavras". De modo similar, ao olhar para os adeptos do Vale vejo um determinado ethos sendo performado, elaborado a partir de uma complexa bricolagem cultural, também corporificado em suas múltiplas dimensões.

Ao contorcer seu corpo, seus músculos faciais, ao estalar os dedos, modificar seu timbre vocal e as palavras utilizadas, ao pedir que os pacientes mentalizem Jesus Cristo, e incorporem tanto um Espírito de Luz, em um primeiro momento para dar as bênçãos, e posteriormente um cobrador que está obsediando aquela pessoa, para que possa ser doutrinado e evoluir espiritualmente, em todos esses momentos o Apará afirma, por meio do seu corpo, o seu pertencimento à comunidade religiosa. E por meio de sua afirmação ele possibilita também construir o pertencimento do outro, que lê seus gestos, sua "gramática corporal". A capacidade de interpretar o corpo do Apará, desse modo, pode ser entendida também dentro do processo de elaboração e afirmação do pertencimento religioso de quem busca os serviços espirituais do VDA.

Considerações finais

Ao longo desse breve trabalho almejei explorar um aspecto que me parece fundamental para compreender o fenômeno religioso: o corpo. Partindo do caso do Apará no VDA, podemos chegar a implicações mais amplas sobre essa relação, tendo em vista que toda experiência social é essencialmente corporal (Bourdieu 2007b).

O Apará no Vale não apenas possui um corpo, ele é o próprio corpo, compreendido aqui como uma experiência social, construída não apenas por um sujeito, mas por múltiplos que se colocam envolvidos numa construção intersubjetiva. Pois o que o corpo do Apará é dependente não apenas dele, mas também da comunidade religiosa na qual ele está envolvido, sua relação com essa própria comunidade, do paciente que interage com ele na consulta espiritual, e da entidade incorporada que possui uma história própria.

Indico aqui que a incorporação pode ser pensada como um encontro de biografias, envolvendo a trajetória do médium e da entidade espiritual. Contudo, devemos reconhecer esse encontro é ainda mais plural, pois o corpo é um encontro de biografias de todos aqueles sujeitos que circulam pelo Vale. Os movimentos, gestos e expressões do Apará estão diretamente ligados à compreensão que a comunidade religiosa e o paciente têm sobre o médium, o processo de incorporação e o mundo social e espiritual, o que se complexifica ainda mais quando pensamos o revezamento entre Espíritos de Luz e Cobradores no corpo do Apará, que nesse sentido pode ser pensado também como um espaço de disputa entre os múltiplos agenciamentos, representando, em última instância, uma síntese moral dos valores compartilhados pela comunidade religiosa. O corpo do Apará é, portanto, uma síntese do VDA, que nos possibilita a compreensão de toda a trajetória e dinâmica desse movimento, o que por sua vez nos dá elementos significativos para pensarmos o idiossincrático universo religioso brasileiro.

Notas

Recebido em dezembro de 2013

Aprovado em maio de 2014

Amurabi Oliveira (amurabi_cs@hotmail.com)

Doutor em Sociologia (UFPE) e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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  • 1
    Uma versão preliminar desse trabalho foi apresentada durante a XVII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina.
  • 2
    Segundo a definição de Oliveira (2009:39): "[...] uma nova releitura, a partir de um contexto social próprio, de práticas e tradições culturais originadas no Brasil e no exterior - entre as quais, a umbanda, elementos da religiosidade afro-indígena, o espiritismo kardecista e o catolicismo popular, principalmente - nos moldes típicos da New Age, que recria aspectos culturais - como os rituais, principalmente os de possessão, das religiões populares no Brasil, além do aspecto estético - , que até então, não haviam sido enfatizados pelo movimento".
  • 3
    Para uma melhor análise da biografia de Tia Neiva, vide o trabalho de Reis (2008).
  • 4
    Refere-se à cura de males causados por espíritos pouco evoluídos espiritualmente, que estejam próxima à pessoa doente, causando-lhe perturbações diversas, obsediando-o, o que só é possível devido ao fato de haver uma afinidade vibracional entre os dois.
  • 5
    Os pa íses que possuem templos do VDA fora do Brasil são Alemanha, Bolívia, Estados Unidos, Guiana Inglesa, Inglaterra, Portugal e Trindade e Tobago. Na análise de Vasquéz e Alves (2013) acerca do templo do Vale em Atlanta, nos Estados Unidos, eles apontam o papel central que os migrantes brasileiros tiveram na difusão do movimento, bem como o terreno fértil encontrado pelo movimento nesse novo cenário social. O movimento ofereceria um senso cósmico de propósito e missão, como também um discurso terapêutico. Essas chaves analíticas podem ser interessantes não apenas para pensar a profusão do movimento pelo mundo, mas também pelo Brasil, dada a ampliação do número de templos pelos diversos estados brasileiros, e em Pernambuco em particular, que já conta com quase 50 templos dos mais variados tamanhos.
  • 6
    Os adeptos afirmam enfaticamente que o VDA n ão é uma religião, mas sim uma doutrina. Apesar de não ficar exatamente claro para os não adeptos essa distinção eles costumam dar o seguinte exemplo: o Vale é uma doutrina, o kardecismo é uma religião. Essa referência ao kardecismo é emblemática, tendo em vista que muitos dos fundamentos existentes no Vale são oriundos claramente dessa religião, e os próprios adeptos assumem a proximidade com esta ao indicarem que a maior parte daqueles que hoje se encontram no VDA provieram do kardecismo.
  • 7
    Esta denomina ção de doutrinar para o médium que não incorpora é também no espiritismo kardecista (Prandi 2012), religião que possui uma significativa influência sobre a formulação doutrinária do Vale.
  • 8
    Os diversos rituais realizados nesse movimento s ão denominados de "trabalhos" pelos adeptos.
  • 9
    O ritual do Tronco ocupa uma centralidade dentre os rituais do VDA tendo em vista que é por meio dele que os pacientes podem realizar uma consulta direta com os Caboclos e Pretos-velhos, bem como é nesse ritual que são indicados os próximos que devem ser realizados para completar o tratamento espiritual necessário.
  • 10
    No panteão do VDA há sete Princesas Encantadas: Janaína, Iracema, Jurema, Iramar, Juremár, Jandaia e Jandara. Destas, apenas as três primeiras cumprem missão com os doutrinadores, segundo informações fornecidas pelos adeptos em entrevistas.
  • 11
    Ainda que seja essa uma das entidades mais conhecidas das religi ões afro-brasileiras, no Vale ela é ressignificada. Em verdade, há um intenso processo de reinvenção das entidades presentes no campo afro que são incorporadas nesse movimento, o que Medeiros (1998) interpretou como um verdadeiro "embranquecimento" das entidades.
  • 12
    Primeiramente foi autorizado o funcionamento da Estrela Candente no templo de Olinda, no ano de 2004, e, posteriormente, no ano de 2005, foi inaugurado o templo de S ão Lourenço da Mata, contando já com a Estrela Candente.
  • 13
    Considerando os limites desse trabalho seria invi ável uma análise pormenorizada acerca da estrutura e organização social e religiosa do VDA, de tal modo que para uma melhor análise dessa questão vide os trabalhos de Reis (2008), Cavalcante (2011) e Oliveira (2013b).
  • 14
    Assim como no kardecismo (Cavalcanti 1983) no VDA h á a crença de que todos são médiuns, e que potencialmente podem se comunicar com o sobrenatural.
  • 15
    Listagem completa dispon ível em:
    http://valedoamanhecer.com/falanges/ - consultado em 27/05/14.
  • 16
    Ainda que nos termos oficiais da doutrina "jaguar" seja um título que refere-se também as mulheres depois da segunda iniciação, de tal modo que o complementar de "ninfa" equivaleria a "mestre", observamos em nosso trabalho de campo que os sujeitos simplificavam essa classificação, adotando "jaguar" como uma denominação genérica para os médiuns da doutrina do sexo masculino, e "ninfa" para os do sexo feminino. Isso implica em dizer que por mais que haja uma doutrina estabelecida os sujeitos ressignificam e operacionalizam os diversos elementos presentes nela de forma bastante plural.
  • 17
    A capa marrom n ão é comum a todos os homens, não é só do uniforme de uma falange específica mas é individual do jaguar doutrinador quando não trabalha com falange.
  • 18
    Paciente no Vale é todo aquele que vai ao templo em busca dos serviços espirituais, incluindo aí os médiuns que ocasionalmente vão as templos para receber o tratamento espiritual, ao invés de ofertá-lo.
  • 19
    H á uma especial atenção para a forma como os pacientes devem se vestir. É proibido o uso de camisetas, roupas decotadas ou muito curtas. No caso das mulheres, quando chegam com uma saia ou short considerado inapropriado, sugere-se que a paciente se utilize de uma saia fornecida pelos próprios adeptos, reservada para este tipo de situação.
  • 20
    Isto é possível uma vez que a utilização dos serviços espirituais ofertados pelo Vale não implica na necessidade de assumir compromissos religiosos com o movimento, o paciente pode permanecer anos nessa condição, sem que haja conversão.
  • 21
    Como bem nos aponta Leloup (1998:124) as m ãos são dotadas de um vasto simbolismo, uma vez que "Através das mãos comunicamos nossa energia, nosso coração. Mas também, através das nossas mãos, podemos comunicar algo maior que nós e que não nos pertence". O que deve ser considerado ao interpretarmos as recomendações dadas aos pacientes.
  • 22
    Assim como no kardecismo, bem como em outras religi ões presentes no universo da NE, o VDA acredita no processo de reencarnação, e, por conseguinte, na existência do carma e na necessidade de sua superação, do pagamento das dívidas oriundas de outras vidas.
  • 23
    Tomamos aqui de empr éstimo essa expressão da pesquisa de Pólvora (1995), que indica a existência de uma "gramática corporal batuqueira", por meio da qual se expressão tanto as simbologias e hierarquias espirituais do terreiro, quanto a própria organização social da casa.
  • 24
    Segundo os adeptos, essa é a técnica que o médium doutrinar se utiliza para que a entidade após incorporada fique "presa" ao Apará, de modo que a doutrinação possa ser realiza de forma ininterrupta.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Ago 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      Dez 2013
    • Aceito
      Maio 2014
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