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Fundando um axé: reflexões sobre o processo de construção de um terreiro de candomblé

Constructing an axé: reflections on the process of building a candomblé terreiro

Resumo

Este trabalho tem o objetivo de empreender uma investigação preliminar sobre o processo de fundação dos terreiros de candomblé, partindo das narrativas etnográficas de um estudo de caso em que pude acompanhar a transformação de uma adepta em mãe de santo. O texto se desdobra em três eixos principais, abrangendo a construção material da casa de santo, o seu sentido ritual e espiritual, assim como a sua inserção na esfera legal/jurídica enquanto associação religiosa. A intenção é mostrar que essas dimensões são interligadas, tocando também em questões de ordem econômica, política e no debate sobre propriedade nos terreiros de candomblé.

Palavras-chave
candomblé; terreiro; construção; axé; legalização

Abstract

This work aims to undertake a preliminary investigation about the foundation process of candomblé terreiros, starting from ethnographic narratives of a case study where I could see the transformation of an adept in mother of saint. The text unfolds in three main areas, including the material construction of the terreiro, your ritual and spiritual sense as well as their inclusion in the legal / juridical sphere as a religious association. The intention is to show that these dimensions are interconnected, also approaching issues of political, economic order and the debate about property in candomblé.

Keywords
candomblé; terreiro ; construction; axé ; legalization

Introdução

Este artigo se apresenta como uma análise inicial sobre alguns aspectos relacionados à fundação de terreiros de candomblé, a partir de um estudo de caso realizado em trabalho anterior1 1 Trata-se da dissertação de mestrado A pessoa é para o que nasce: um estudo sobre mudança de status e relações de poder no candomblé, apresentada em 2014 ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ). . Mais especificamente, pretende-se abordar a construção de um terreiro como um processo que abrange desde a edificação e arquitetura específicas – o que exige uma série de procedimentos rituais e uma estética característica – até o seu sentido espiritual enquanto morada dos deuses e espaço dotado de força sobrenatural. Além disso, esse processo também inclui questões de esfera jurídica, tais como a legalização dos templos – medida que envolve a criação de um status de organização religiosa por meio de um Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) público.

As narrativas etnográficas que fundamentam as questões aqui propostas são oriundas de uma longa pesquisa realizada em um terreiro cuja edificação se iniciou há mais ou menos cinco anos. A referida casa de candomblé localiza-se no município de Maricá, cidade litorânea da Região dos Lagos, no estado do Rio de Janeiro. Sua construção está associada à carreira religiosa de Carla2 2 São fictícios os nomes dos interlocutores citados neste artigo. , a mãe de santo que, antes de se tornar chefe de terreiro, ocupou o cargo de equede 3 3 No candomblé, os filhos de santo que não possuem a capacidade de entrar em transe são alocados nas posições/cargos de ogã e equede. O posto de equede é dado às mulheres que não são possuídas pelos orixás, mas que são responsáveis por cuidar dos deuses manifestados nos filhos de santo, desempenhando, também, outras tarefas de cunho ritual, de organização e manutenção da casa de santo. Já os ogãs são encarregados de atividades civis e religiosas, formando um grupo que, além de proteger a casa em termos políticos e econômicos, também executa funções rituais importantes. . Sem entrar em detalhes sobre como essa mudança de posição hierárquica e de status4 4 Tomo como referência a perspectiva weberiana que analisa status como um modelo de distribuição do poder social e, portanto, como aspecto simbólico ligado à desigualdade e à dominação. Para Max Weber (2001), status tem a ver com a avaliação de superioridade e inferioridade e com a posição social de grupos com direitos e deveres específicos numa determinada escala estamental. No caso da família de santo, há certos tipos de status considerados inatos e outros que são concedidos. A posição de equede, nesse esquema, seria a de um status inato, de alguém que não possui a capacidade de ser possuída. No entanto, essas posições, apesar de serem fixadas numa espécie de estratificação social, podem ser flexibilizadas de acordo com o contexto e como os adeptos se utilizam de estratégias e constroem interpretações variadas para esses tipos de mudança. se deu e o que ela representa no sistema religioso do candomblé, o fato é que a abertura de seu próprio terreiro foi um dos efeitos dessa mudança5 5 O processo de tornar-se mãe de santo da personagem referida neste texto é o tema principal da dissertação que desenvolvi – cujo intuito foi analisar como se deu essa passagem de posição hierárquica e de status, assim como o processo de construção do terreiro. Mudanças como essa – em que equedes e ogãs passam a liderar casas de candomblé – não são novidade entre o povo de santo. Entretanto, não deixam de desencadear conflitos e controvérsias, sendo também um tipo de constrangimento em meio a esse circuito religioso marcado por disputas de poder e legitimidade. .

Assim, a casa de Mãe Carla já passou por várias transformações e, há cerca de dois anos, foi registrada como uma associação religiosa. Como é de costume em terreiros recém-abertos, Mãe Carla conta com a colaboração de seu pai de santo, que a auxilia na celebração de rituais importantes, bem como com a assistência de familiares e amigos próximos. O terreiro também conta com a ajuda das primeiras filhas de santo de Carla e de sua filha carnal, Bianca, que já fez três anos de iniciada.

Como o título sugere, a expressão “fundar um axé” tem como um de seus significados a própria edificação do terreiro e sua consolidação em meio ao povo de santo. De modo geral, como analisa Opipari (2009)OPIPARI, Carmen. (2009), O candomblé: imagens em movimento. São Paulo: Edusp., axé é um termo com múltiplos sentidos no universo dos cultos. Tanto na literatura sobre as religiões afro-brasileiras, quanto no cotidiano dos terreiros, a palavra aparece em diversas expressões, podendo designar desde uma espécie de poder ou força impessoal que permeia objetos, plantas e relações humanas, até fazer referências a locais e coisas sagradas, tais como as fundações do terreiro e as porções específicas de animais sacrificiais. Além dos significados associados à ideia de poder sobrenatural, “o termo axé é utilizado para designar a Casa de candomblé, seu conjunto de adeptos, seus costumes e, por extensão, sua modalidade de culto ou Nação” (Opipari 2009:86OPIPARI, Carmen. (2009), O candomblé: imagens em movimento. São Paulo: Edusp.). Assim, a noção de axé possui em si certo caráter coletivo que integra coisas, pessoas e divindades num mesmo plano, estabelecendo relações de propriedade que não são exclusivas a um indivíduo. Como recurso analítico, parto da separação de três eixos principais – o espiritual, o material e o jurídico – para demonstrar como a fundação do espaço sagrado do terreiro opera em níveis que se interconectam e participam (Bastide 2009BASTIDE, Roger. (2009), “Ensaio de uma epistemologia africana (iorubá)”. In: R. Bastide. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras.) de uma mesma realidade. Nesse sentido, fundar um axé é dar inicio ao processo que envolve a construção de uma casa de santo em sua totalidade, o que também não deixa de evidenciar a atuação das divindades e espíritos na política dos seres humanos (Goldman 2003______. (2003), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia”. Revista de Antropologia, n. 46, v. 2: 445-476.).

Logo, uma casa de candomblé depende da relação entre intervenção divina e as atividades laborais e cotidianas dos seres humanos, estabelecendo vínculos duradouros de lealdade, confiança e devoção entre seus membros e estruturando a família de santo, com suas normas e regras, além de cargos e posições definidos. Veremos que essa construção não pode ser pensada em separações entre o material/profano e o espiritual/sagrado, mas sim como um todo que envolve múltiplas dimensões e registros. Além disso, um ponto fundamental que se pretende discutir é a importância de se acessar a esfera pública e jurídica para a consolidação dos terreiros e as relações contidas na circunscrição desses espaços – o que esbarra no debate sobre propriedade nos terreiros de candomblé.

“A fazenda de Atori”: o início de um axé

Para Mãe Carla, o começo de todo axé é determinado pelas entidades e orixás como uma exigência ou uma “missão” dada ao sacerdote: “ninguém funda um axé como se abre uma loja. É preciso ser escolhido para essa missão”6 6 As falas citadas ao longo do artigo foram extraídas de entrevistas e declarações públicas realizadas nos dias 18/08/ 2012, 30/03/2013 e 06/09/2014, no terreiro alvo da análise. . Por sua vez, essa escolha tem a ver com o fato de o iniciado ter ou não o cargo de líder de terreiro7 7 A questão da escolha no candomblé já foi extensamente analisada pela bibliografia e está ligada às formas pelas quais as divindades atuam no plano terreno no sentido de impor os seus desígnios. Como analisou Patrícia Birman, a relação dos filhos de santo com a esfera sobrenatural “não é pensada como um lugar de livre opção mas como aquele que é tentativamente imposto, o que permite que as pessoas construam certas faixas de negociação” (Birman 1996:96). Sendo assim, a escolha de um filho de santo para ser chefe de terreiro é visualizada através do jogo de búzios e tem a ver tanto com as determinações divinas, quanto com as circunstâncias terrenas da religião. De modo geral, para se tornar um pai ou uma mãe de santo – e consequentemente construir e/ou liderar um terreiro – é preciso passar por uma trajetória hierárquica específica no candomblé, que compreenderia, necessariamente, a condição de iaô – ou seja, do recém-iniciado que é possuído pelos deuses. Durante a vivência religiosa, o iaô passaria por um lento processo de aprendizagem e amadurecimento ritual até chegar à posição de ebome – que é aquele que já completou sete anos de iniciação, tendo realizado suas obrigações rituais. Os ebomes são considerados pais e mães de santo em potencial, pois já teriam conhecimento suficiente para abrir suas próprias casas e iniciar novos iaôs. Como explica Costa Lima (2004), o status de ebome subentende a capacidade e o preparo para ocupar outros postos, de mando e de prestígio, na hierarquia da casa. Contudo, esse caminho muitas vezes não é direto. Nem todos os ebomis serão líderes de terreiro e nem todos os líderes de terreiro foram ebômins – como é o caso de Mãe Carla. A liderança de uma casa de santo sempre será alvo de disputas e negociações com as mais diversas explicações entre os filhos de santo e não está atrelada necessariamente ao contexto de sucessão. , bem como com a necessidade desse escolhido de construir seu próprio templo. “Quando eu cheguei no candomblé, a casa de santo já estava pronta. Eu tive que construir a minha própria casa porque eu não herdei um axé”. “Fundar um axé”, portanto, é diferente de “herdar um axé” – já que a herança, a partir da sucessão, relaciona-se com a continuidade de uma tradição e de uma linhagem de santo que já foi consolidada8 8 Sobre a possibilidade de herdar ou fundar uma casa de santo, é difícil dizer até que ponto seria preferível uma ou outra opção. Na literatura, esse tema está ligado ao sistema de descendência, liderança e sucessão nos terreiros de Candomblé e à tendência estrutural à fragmentação desses templos. Geralmente, a fundação de uma casa é consequência de um processo de ruptura entre grupos originários de um mesmo terreiro – processo atribuído à própria história daqueles que seriam os primeiros terreiros de candomblé, o Axé do Gantois e o Axé Opó Afonjá, oriundos da Casa Branca. Como analisou Maggie (2001), é no momento da sucessão de um líder de terreiro que as crises e cisões entre os grupos se tornam mais evidentes, desencadeando muitas vezes a fragmentação da família de santo. No entanto, a fundação de uma casa de candomblé também pode ocorrer sem uma necessária ruptura com o terreiro anterior. É o caso, descrito na nota 6, dos ebomes que recebem o cargo de líderes de terreiro e que atuam como difusores do axé inicial, contando com a ajuda ritual e política de seus pais de santo. A fala de Mãe Carla sobre esse assunto, contudo, deixa supor que fundar uma casa de santo seria sempre a opção mais difícil já que ao pai ou à mãe de santo caberia a tarefa de construir e desenvolver toda uma estrutura que requer não só bens econômicos, mas habilidades no que tange à formação da família de santo e ao reconhecimento político e religioso do templo. .

Após saber que tinha o cargo de ialorixá, Carla começou a cogitar a possibilidade de abrir sua própria casa de santo. Nesse período, ela e seu marido, Paulo, principal ogã do terreiro, haviam comprado um pequeno terreno em um loteamento na cidade de Maricá: “Logo que a gente veio para esse loteamento ficamos naquela esperança. A gente tinha comprado o último sítio, beirando o morro. Morávamos ali na esquina, pagando 500 reais de aluguel”. Obstinado a edificar o barracão, Paulo queria deixar a casa em que viviam de aluguel e construir um pequeno “barraco” provisório para morarem no terreno comprado e, assim, economizarem dinheiro.

Nesse meio tempo, eles notaram outro terreno vizinho já com uma casa construída e toda vez que passavam em frente ao portão da propriedade o ogã comentava: “se eu tivesse dinheiro, comprava essa casa”. Por sua vez, era sempre repreendido pela mãe de santo: “pare de loucura! A gente não tem um centavo no bolso! Como vamos comprar essa casa?”.

Passado alguns dias, em meio ao “matagal” do terreno que já havia sido comprado pelo casal, Carla “virou” com seu orixá. Ele – a divindade – deveria determinar o local onde seria construído o barracão: “Ele veio, mas falava comigo de um jeito que eu não entendia. Foi quando, de repente, foi embora e quem surgiu foi um encantado”, disse Paulo. Esse encantado passou a ser o erêda mãe de santo, sendo responsável por transmitir as mensagens do orixá9 9 De modo geral, os orixás são entendidos como forças da natureza e mediadores entre os homens e o deus supremo Olorum. Diferente dos espíritos da umbanda, são deuses mais distantes do mundo terreno e a linguagem ritual é o iorubá. Por conta disso, a comunicação com os seres humanos é majoritariamente realizada pela intermediação do jogo de búzios – sistema divinatório pelo qual as divindades determinam procedimentos rituais – e dos erês – entidades infantis que atuam como mensageiros dos orixás. Via de regra, os momentos em que os orixás falam são muito específicos e especiais – tais como na cerimônia do orunkó, em que o orixá do noviço revela seu nome diante do público. Nessas ocasiões, sua fala é quase sempre monossilábica e em tom baixo. Assim, o caso de Mãe Carla – em que o orixá veio, tentando dizer onde queria que o terreiro fosse construído – pode causar estranheza àqueles que vêm no jogo de búzios o instrumento de comunicação a ser acionado nessas horas. . “Ele chegou dizendo que tinha vindo trazer um recado: era pra gente ficar calmo que tudo ia dar certo”. Depois disso, entraram em contato com o dono do sítio que tanto queriam, dispostos a fazer um acordo: “nós trocamos uma quitinete que a gente tinha no centro de Niterói pela casa. Foi assim que a gente conseguiu”.

O casal afirma que essa troca só foi possível graças à intervenção divina de Oxaguiã – orixá dono da cabeça da mãe de santo – que mobilizou uma entidade local – o erê chamado de Atori – para ser seu mensageiro.

Depois disso, Atori começou a vir mais vezes, mas ele não tinha nome ainda. Até que chegou a irmã de Carla dizendo que tinha sonhado que o nome dele era Atori. E ficou: Atori. Ele é o dono disso aqui, é o proprietário chefe. Isso aqui tudo era uma fazenda e ele trabalhava aqui como escravo (...). Mas, ele não é um egum, ele é um encantado. Encantado é uma pessoa que continua aqui, só que ele não tem carga, não tem mais perna, tem que andar pela perna dos outros, mas ele não é egum. Egum são aquelas pessoas que ficam vagando por aí, que não conseguiram encontrar a luz. Ele não. Ele tem luz própria. E ele é daqui mesmo. É um ser que morou aqui, que viveu aqui e que estava aqui quando meu Pai passou e pegou ele; adotou ele como filho..

A transformação do encantado em erê da mãe de santo – fato que marca o início do processo de edifição do terreiro – nos mostra a relação íntima e dinâmica entre divindades, entidades e adeptos no cotidiano das decisões e realizações do mundo terreno, como também evidencia o carácter plástico dessas categorias/entidades. Ressalta-se que não é comum a concepção de encantado de que fazem uso, nem a transformação desta entidade em erê, tal como foi narrado. Em meio aos cultos afro-brasileiros, diz-se que um encantado é um tipo de ser que passou pela experiência do encantamento sem ter morrido propriamente e o culto dessas divindades estaria associado, principalmente, ao Tambor de Mina e à Pajelança.

Na Pajelança, os encantados são entendidos como seres “normalmente invisíveis às pessoas comuns e que habitam ‘no fundo’, isto é, numa região abaixo da superfície terrestre, subterrânea ou subaquática, conhecida como ‘encante’” (Maués e Villacorta 2004:17MAUÉS, Raymundo Heraldo; VILLACORTA, Gisela Macambira. (2004), “Pajelança e encantaria amazônica”. In: R. Prandi (Org.). Encantaria brasileira: o livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas.). Por sua vez, no Tambor de Mina “os encantados são espíritos de pessoas que um dia viveram e que não morreram, mas se ‘encantaram’, passando a existir no mundo ‘visível’, do qual retornam ao mundo dos homens no corpo de seus iniciados, em transe ritual” (Prandi e Souza 2004:217-18PRANDI, Reginaldo; SOUZA, Patrícia Ricardo de. (2004), “Encantaria de Mina em São Paulo”. In: R. Prandi (Org.). Encantaria brasileira: o livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas.).

Na fala do ogã Paulo, a definição do que eles entendem ser os encantados é confusa. Por um lado, o encantado não seria um egum – espírito “sem luz” de alguém que teria morrido. Por outro, porém, ele dá a impressão de se tratar de uma entidade parecida com os espíritos cultuados nas giras de Umbanda10 10 O contexto ritual do terreiro em questão é dotado de uma intensa relação entre o culto dos orixás, realizado nas cerimônias do Candomblé, e os rituais de Umbanda, promovidos periodicamente em louvor a determinadas entidades. Em artigo anterior (Evangelista, 2015), abordo como essa interseção se dá, sobretudo, no âmbito da possessão, fazendo das giras de umbanda uma espécie de “escola da possessão” cuja função é melhor adequar o corpo dos filhos de santo para o momento em que devem “manifestar” seus orixás. – cuja função seria a de mediar a relação entre o orixá e a mãe de santo tanto no que tange aos assuntos de ordem ritual, quanto da micropolítica da casa de santo.

No entanto, é preciso considerar esses tipos de agenciamento de entidades como parte do que Goldman (1984)GOLDMAN, Marcio. (1984), A possessão e a construção ritual da pessoa no candomblé. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ. chamou de processo de construção/fabricação da pessoa no candomblé. Orixás e filhos de santo se constroem mutuamente e devem ser encarados não como individualidades, mas como multiplicidades. Além disso, como também observou (Opipari (2009)OPIPARI, Carmen. (2009), O candomblé: imagens em movimento. São Paulo: Edusp., o conjunto de entidades que habita a cabeça da pessoa iniciada – enredo/carrego de santo – se estende para além dos orixás, abrangendo outras divindades que participam cotidianamente da vida dos adeptos como eguns, exus, caboclos e erês. Para a autora, a feitura de santo é vista como uma aliança que envolve “margem de manobra na manipulação de seus componentes espirituais, assim como reinterpretações criadoras que dela decorrem” (Opipari 2009:181OPIPARI, Carmen. (2009), O candomblé: imagens em movimento. São Paulo: Edusp.).

Nesse sentido, a fabricação da pessoa também tem a ver com as formas e papéis atribuídos às divindades e pelos quais elas se apresentam, como também com as elaborações cosmológicas realizadas em cada terreiro e por cada adepto. A chegada de Atori, nesse caso, conectou processos de construção concomitantes, perpassando tanto a fundação do terreiro, quanto à fabricação da mãe de santo enquanto tal. Vale ressaltar que o próprio nome dado ao erê – Atori – também denomina a vara de madeira carregada por Oxaguiã, sendo muitas vezes utilizado para referenciar entidades relacionadas a esse orixá.

Portanto, para que o terreiro seja um axé é preciso congregar e movimentar energias e poderes impessoais de toda sorte. Para isso, deve-se contar com o gerenciamento divino, bem como com a fabricação de orixás, pessoas e entidades diversas. Autores como Bastide (2009)BASTIDE, Roger. (2009), “Ensaio de uma epistemologia africana (iorubá)”. In: R. Bastide. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras. e Santos (2002)SANTOS, Juana Elbein. (2002), Os nagô e a morte: pàde, àsèsè e o culto de Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 11ª ed. já analisaram a existência de um sistema complexo de objetos e elementos minerais, vegetais e animais que compõem essa construção energética de acordo com as qualidades e necessidades de cada casa, assim como dos santos que dela fazem parte. Diz-se que determinadas coisas antigas – que circularam bastante ou fizeram parte de muitas vivências – são objetos que têm muito axé. No contexto em questão, o fato de terem encontrado um terreno onde supostamente haveria existido uma fazenda escravista reforçaria ainda mais o axé da casa e a missão espiritual da mãe de santo – haja vista as intensas relações e heranças que a escravidão negra remonta.

“Agora chega, vamos tocar a obra!”: a construção da casa de todos os santos

O terreiro de candomblé é um conjunto arquitetônico específico – com um padrão de edificação mais ou menos característico11 11 Geralmente, as casas de santo são pintadas de branco e possuem um grande pote de barro – o porrão – em cima do muro ou do portão principal. Possuem também símbolos ou objetos que caracterizam o orixá patrono do terreiro, assim como ferramentas, cores e enfeites que distinguem os quartos de santo. Logo à entrada, deve estar o assentamento de Exu – aquele que rege as passagens –, prosseguido pelo assentamento de Ogum – responsável pela proteção da casa. Os assentamentos de um terreiro são um conjunto formado por determinados objetos e elementos que abrigam a força de uma dada divindade e que são consagrados aos deuses de acordo com suas características. São depositados em lugares e recintos específicos de uma casa de santo. Ao ar livre devem estar os locais destinados a determinados orixás que “vivem no tempo” – tais como Ossaim, Bessém, Iroco, entre outros. Além disso, todo terreiro deve ter uma cumeeira consagrada a um determinado orixá. A cumeeira é o ponto central da energia do terreiro, colocada na parte mais alta do barracão – podendo ser em um poste, pilar de madeira ou em cavidades projetadas do teto. – onde forças e energias divinas atuam de modo a criar e perpetuar o vínculo com os seres humanos. Sodré (1988)SODRÉ, Muniz. (1988), O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes. destaca o aspecto cultural e coletivo dos terreiros como associações litúrgicas organizadas que têm como propósito a recriação e manutenção de determinadas heranças e representações rituais, simbólicas e morfológicas de origem africana. A própria construção e disposição espacial do terreiro teriam a ver com essa recriação, representando os principais locais e regiões onde teriam se originado os cultos dos orixás. É um lugar público que, em princípio, é aberto a todos que o procuram, possuindo também instalações para a habitação permanente ou esporádica de integrantes da comunidade religiosa.

Por ser a morada dos deuses do panteão – com locais, objetos, elementos e símbolos próprios de cada orixá – a casa de candomblé está sujeita, desde as suas fundações, a certas regras e procedimentos da liturgia, bem como a um determinado estilo que a caracteriza enquanto tal. Na literatura, geralmente identificam esse estilo como oposto à estética e à arquitetura urbanas.

Para Santos (2002)SANTOS, Juana Elbein. (2002), Os nagô e a morte: pàde, àsèsè e o culto de Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 11ª ed., por exemplo, o terreiro se dividiria em dois ambientes opostos. O primeiro seria o “espaço urbano” composto pelas construções de uso público e privado – os quartos consagrados aos orixás; o quarto destinado à reclusão dos neófitos; a camarinha; os banheiros; a cozinha e o salão onde ocorrem as festas públicas. O segundo seria reservado à “natureza” – compreendendo uma pequena reserva com árvores, plantas e ervas de uso ritual e até pequenas fontes e córregos de água limpa. Vogel, Mello e Barros (1993:34)______. (1993), A galinha d’Angola: Iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas. também mencionam o “aspecto campestre” dos terreiros, resultante da relação entre a aparência simples do espaço e a presença de árvores, plantas e animais.

O arranjo do conjunto; as paredes brancas com portas e janelas pintadas de verde e azul; a relação dos espaços construídos com os canteiros do jardim e os frondosos sombreados do quintal; tudo, enfim, se conjuga para dar ao ilê esse ar de roça, tão familiar nos terreiros de candomblé.

A casa de santo de Mãe Carla fica num território acidentado. Cercada por pequenas montanhas rochosas, sítios e fazendas, a região possui uma extensa cobertura vegetal típica da Mata Atlântica – característica que, inclusive, é sobrevalorizada pelos adeptos do terreiro no intuito de ressaltar certa atmosfera de afastamento e isolamento rural, mesmo estando a poucos metros da rodovia e dos centros urbanos da cidade. Sua residência está na parte superior e mais íngreme do sítio, enquanto o barracão e os vários quartinhos destinados à moradia e trânsito de pessoas e de divindades foram construídos à frente, na região mais baixa.

Na parte externa do barracão, do lado esquerdo, verificam-se os quartos de Exu – havendo uma separação entre o quarto destinado ao orixá Exu, cultuado nos rituais do Candomblé, e o quarto designado aos exus e às pombagiras da Umbanda. Do lado direito, estão dispostos os quartos de Ogum, Omolu e Oxóssi e, logo atrás, a cozinha e os quartos de hóspedes. Um pequeno corredor leva aos fundos do terreiro, onde se encontram a árvore sagrada das Iamis 12 12 As Iamis são consideradas ancestrais femininas à magia. São também chamadas de “feiticeiras” e “donas dos pássaros”. e o pequeno pátio reservado às giras de umbanda, realizadas esporadicamente.

O salão onde são realizadas as cerimônias públicas é localizado de frente ao portão de entrada, no centro do terreiro. Com piso e paredes brancas, portas e janelas de madeira e telhado com vista para a paisagem, o espaço se caracteriza por um estilo rústico, enfeitado com flores da estação e tecidos de cores que variam conforme a celebração. No centro do barracão – ponto de encontro entre a cumeeira e o axé “plantado”13 13 Durante a construção de um barracão, é necessário enterrar no centro e nas bases de sua fundação arquitetônica um conjunto de elementos vegetais, minerais e animais que materializam o axé específico de cada casa de santo. Daí o termo “axé plantado”, como referência a esse procedimento. – há um grande vaso de cerâmica que também recebe adornos de acordo com os rituais. Na lateral esquerda, situam-se os quartos de Oxalá, de Xangô e das Iabás 14 14 Termo dado aos orixás femininos, tais como Iemanjá, Oxum e Iansã. ; e, na lateral direita, um extenso assento de concreto demarca o lugar da plateia. Aos convidados ilustres, são reservadas cadeiras mais confortáveis junto à mãe de santo, ao lado do pejí – altar reservado à orquestra do Candomblé, coordenada pelos ogãs. Por sua vez, o sabají – camarim das festas e quarto onde os integrantes do terreiro se arrumam e preparam seus orixás – e o roncó – local destinado à reclusão dos iaôs durante o processo de iniciação – localizam-se atrás do pejí, sendo os quartos mais recolhidos do recinto.

Em meio a condicionantes estéticas e rituais que fazem parte do processo de fabricação de pessoas, divindades e do próprio espaço enquanto materialidade dotada de axé, o processo de fundação de um terreiro também depende de uma série de objetos e circunstâncias que evidenciam a integração de elementos muitas vezes tidos como exteriores a vida religiosa. Sobre isso, destaca-se a importância do dinheiro como elemento crucial. A disponibilidade e obtenção de bens econômicos é um dos fatores decisivos na construção de um terreiro, possibilitando e até determinando esse processo.

Discutindo a relação entre religião e dinheiro, Vogel, Mello e Barros (1987)VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antônio S.; BARROS, José Flávio P. de. (1987), “A moeda dos orixás”. Religião e Sociedade, n. 2, v. 14: 4-17. asseveraram a importância da economia na cosmologia ritual do candomblé. O consumo religioso, nessa perspectiva, revela preferências, necessidades, escolhas e expectativas que têm a ver com a construção da identidade dos próprios orixás. Por sua vez, Baptista (2006)BAPTISTA, José Renato de C. (2006), Os deuses vendem quando dão: um estudo sobre os sentidos do dinheiro nas relações de troca no candomblé. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ. afirma que a relação de reciprocidade entre deuses e homens no candomblé – assim como nos atos religiosos em geral – não passa por uma separação rígida entre a economia capitalista e uma relação “pura” de dom e contradom. Nesse sentido, o dinheiro é também dádiva necessária às relações de troca com os orixás. De outra parte, Sansi Roca (2009)SANSI ROCA, Roger. (2007), “Dinheiro vivo: Money and Religion in Brazil”. Critique of Anthropology, n. 27, v. 3: 319-339. aponta o lugar de destaque do dinheiro na vida cotidiana das religiões no Brasil, enfatizando o poder de agência dos objetos e sua relação com a noção de “pessoa distribuída” de Alfred Gell. Nessa via, o autor analisa como o dinheiro integra pessoas e divindades, sendo parte de uma rede de relações em que orienta a agência espiritual do axé no candomblé (Sansi Roca 2009:323SANSI ROCA, Roger. (2007), “Dinheiro vivo: Money and Religion in Brazil”. Critique of Anthropology, n. 27, v. 3: 319-339.).

Conforme Dantas (1979)DANTAS, Beatriz Góis. (1979), “A organização econômica de um Terreiro de Xangô”. Religião e Sociedade, n. 4: 181-191. e Silverstein (1979)SILVERSTEIN, Leni M. (1979), “Mãe de todo mundo: modos de sobrevivência nas comunidades de candomblé da Bahia”. Religião e Sociedade, n. 4: 143-169. já indicaram, uma das principais atribuições de uma mãe de santo é o controle e o gerenciamento dos recursos humanos e materiais em meio ao grupo de culto, sendo também responsável pela captação desses bens através da prestação de serviços rituais – que vão desde ritos de culto às divindades até a resolução de problemas da vida cotidiana. O êxito e a eficiência na prestação desses serviços lhe confere, por sua vez, maior autoridade perante a comunidade religiosa, assim como destaque frente às demais casas.

O ogã e a mãe de santo em questão são casados desde 2007 e possuem uma situação financeira estável: ela é funcionária pública e ele é militar reformado. Quando se conheceram, ambos estavam afastados de suas casas de candomblé até que, depois da mudança de status de Carla, decidiram somar forças para a construção do barracão partindo de seus próprios recursos. Assim, o terreiro começou a ser erguido em 2010 no mesmo local onde passaram a morar: “quando viemos pra cá, em novembro de 2009, nós não tínhamos nem ideia de como íamos construir o barracão, porque a gente tinha acabado de comprar esse sítio e não tínhamos mais dinheiro”.

Depois da difícil compra da casa e do terreno, Mãe Carla relata uma verdadeira odisseia para conseguir construir o barracão: “eu ganhava dois mil reais por mês e fiz uma prestação de mil e quinhentos para pagar em cinco anos o terreno e a casa. Juntando o meu salário com o dele dava pra gente pagar, pagar a luz e sobrar um pouquinho para as compras”.

Em janeiro do ano seguinte, “apareceu um homem aqui. Paulo já o conhecia de candomblé e ele queria jogar, porque ele queria se confirmar 15 15 Rito em que ogãs e equedes, após passarem por um período de recolhimento – espécie de iniciação –, têm seus cargos confirmados pelo orixá que os suspendeu ou indicou. : era ogã”. Carla o levou para jogar os búzios e os deuses comunicaram que ele deveria ser recolhido em seu terreiro. Mesmo diante das mudanças e obras ainda por fazer, a mãe de santo teve de levá-lo para um quarto que havia no terreno, mas que ainda não era usado: “foi lá onde o recolhemos. Aí, meu pai começou a plantar as coisas [os axés] e pintamos o quarto de Exu. Alugamos uma lona, uma tenda, e aí foi o primeiro candomblé”.

Depois disso, Carla pensou em “fazer uma pausa” para terminar a construção: “a gente já tinha feito esse ogã. Queríamos dar um tempo, porque tinha que ter dinheiro”. No intuito de prosseguir com as obras do barracão, ela fez um empréstimo de quarenta mil reais na Caixa Econômica Federal – pelo Construcard – a pagar em parcelas mensais:

Eu pagava quase 600 reais por mês. Contudo, quando chegou março, Paulo teve um aumento na aposentadoria dele e o meu salário triplicou. Tivemos uma gratificação corrigida do governo. Fizemos o telhado, o galpão de madeira, tudo devagar, coisa para dois ou três anos. Os meses posteriores – fevereiro e março – foram dedicados à obra. O Construcard deu para bastante coisa, mas não para tudo.

Em abril, “chegaram duas mulheres aqui na minha varanda pedindo ajuda e eu jogava búzios aqui na sala. E aí eu pensei em como eu ia recolher esse povo”. O barracão ainda estava “no esqueleto”:

fizemos um roncó ali atrás, porque não tinha lugar. Não tinha cozinha, não tinha nada aqui em baixo. Aí, fizemos essa parte aqui de trás, o telhado já estava todo no lugar. Quando acabaram de colocar o telhado, meu pai de santo veio para me ajudar a recolher o primeiro barco 16 16 O termo barco de iaô denomina o grupo dos que se iniciam em conjunto. Suas dimensões são variáveis, podendo abranger um grupo de mais de vinte neófitos até apenas uma pessoa. É a partir do barco que se faz a primeira hierarquização dos seus membros na carreira iniciática. Por se tratar de um terreiro ainda recém-criado, os barcos de iaô são compostos, em sua maioria, por uma ou duas pessoas, nunca excedendo o número máximo de quatro pessoas até hoje. Isto porque há pouca gente para cuidar dos neófitos reclusos, assim como pela ocorrência de iniciações imprevistas. . Não tinha porta, não tinha janela e minha angústia crescia. Agora chega, vamos tocar a obra, pensei.

Porém, em junho do mesmo ano – 2010 – Paulo teve problemas de saúde que o deixaram hospitalizado. “Ele teve que se internar e fazer uma cirurgia no coração. Quase morreu”. Segundo a mãe de santo, a doença estava relacionada a certos deveres espirituais que deveriam ser cumpridos. Dentre esses, a obrigação de 21 anos de confirmação era imprescindível:

foi um corre-corre danado pra botar ele pra dentro em julho. Ele tomou obrigação de 21 anos aqui no barracão, mesmo ele sendo de outra casa. De lá pra cá, eu ainda não consegui parar pra fazer só a obra. Desde 2010 já deve ter saído uns 13 barcos. Se não tivesse entrado tanta gente nesse meio tempo a obra já estaria pronta.

Fora os imprevistos rituais que fazem parte do dia a dia do terreiro, a grande dificuldade da mãe de santo é conseguir dinheiro para as festas e funções 17 17 Função se refere ao ciclo de atividades rituais do calendário litúrgico do candomblé. Cada terreiro possui um calendário ritual próprio, que varia de acordo com a orientação cosmológica da casa e, ao longo do ano, são realizadas cerimônias públicas em louvor a determinados deuses. As festas públicas do candomblé são o auge desse processo ritual – em que a comunidade se reúne para trabalhar no terreiro e para realizar as obrigações aos deuses que devem ser celebrados. dos orixás e, ao mesmo tempo, angariar fundos para avançar com as construções e finalizações da obra do barracão. Apesar de terem sido iniciados mais de 13 barcos, a casa dispõe de um número reduzido de contribuintes assíduos. Muitos dos filhos feitos não pagaram pela iniciação, alguns não retornaram ou passaram a frequentar a casa esporadicamente. Consequentemente, a maior parte das contas de manutenção e ampliação das obras acaba ficando a cargo da própria mãe de santo.

Mesmo assim, “pela força dos orixás”, a mãe de santo conseguiu quitar a dívida do empréstimo bancário:

no final de 2011, ainda faltava uns três anos de Construcard para pagar. Um dia, fui ver o meu contracheque e a Caixa Econômica não tinha descontado o pagamento. Pensei: o que será que aconteceu? E liguei pra Caixa. Porém, eles disseram que não havia nenhuma dívida. Perguntei: mas, como não tem dívida? E eles responderam: É que a senhora foi sorteada numa campanha da Caixa Seguros. E eu nem sabia o que era isso! A Caixa Seguros sorteou alguns participantes do Construcard e absorveu a minha dívida. Então, na Caixa Econômica minha dívida era zero, porque eles quitaram o meu empréstimo. Isso foi a força dos orixás! Ninguém acreditou quando eu disse da dívida, nem a minha gerente. Dos quase 30 mil reais que estava devendo, precisei pagar apenas dois mil e setecentos reais. Porque eu já paguei muitos seguros na Caixa, títulos de capitalização etc. Aí eles anistiaram os juros.

Para minimizar os déficits no orçamento e capitalizar dinheiro para o barracão, Carla passou a cobrar “chão” – taxa para a execução dos procedimentos rituais de iniciação – para iniciar os novos membros do terreiro e a alugar – por 150 reais mensais – um dos quartos destinados à acomodação dos filiados e convidados importantes. Além disso, também realiza eventos festivos de tempos em tempos.

Acionando contatos e relações pessoais com alguns sambistas e agentes culturais da região, ela organiza bingos, feijoadas, rifas e rodas de samba, usando o espaço cedido por uma escola de samba de Niterói – por intermédio de uma importante filha de santo da casa. A mãe de santo distribui tarefas e metas para a venda de ingressos e de rifas entre seus filhos, que também são responsáveis pela arrumação e limpeza do local. Assim, esses eventos possuem uma importância estratégica tanto para a arrecadação de recursos, quanto para a divulgação do terreiro, já que o público alvo não se restringe ao povo de santo: “a gente procura tudo mundo que pode colaborar. Família, amigos, conhecidos. Não precisa ser do santo. Quem gosta de um samba e de tomar uma cervejinha vai gostar e pode ajudar”.

“Não somos fundo de quintal, temos CNPJ”: a legalização dos terreiros e suas implicações

O direito à liberdade de reunião, de culto e de liturgia está previsto na Constituição Federal e é a base da igualdade de todas as religiões perante a lei. No entanto, para que esse direito seja devidamente assegurado, as comunidades religiosas precisam estar organizadas em forma de associação. Para funcionar legalmente, o templo religioso – que pode ser um imóvel próprio ou alugado – precisa de alvará de funcionamento expedido pela prefeitura do município onde esteja situado.

Em 2012, o Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com apoio da Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro (SUPERDIR), lançou a Cartilha para a legalização de casas religiosas de matriz africana com o objetivo de auxiliar lideranças religiosas no que tange aos procedimentos necessários à institucionalização de seus terreiros. De acordo com o documento, a legalização das casas de candomblé é parte importante de um processo que visa à valorização das expressões culturais de matriz africana, ao combate à intolerância religiosa e ao racismo e à ampliação da cidadania.

Além de ser um passo fundamental no âmbito das lutas e ações sociais dos chamados “povos de matrizes africanas”, a legalização dos terreiros também é responsável por formalizar a existência das casas de santo como templos religiosos perante o Estado – o que implica a possibilidade de acesso a uma série de políticas públicas. Por sua vez, essa existência legal coloca em evidência a questão da propriedade nos terreiros de candomblé e o caráter simultaneamente privado e público do território em questão.

No caso de Mãe Carla, a participação ativa dos orixás e das entidades associada aos recursos e à iniciativa pessoal da mãe de santo e de seu marido caracteriza todo o processo de construção do terreiro. Desde a escolha do local para a edificação até o perdão da dívida do empréstimo bancário, esse processo revela como não faz sentido a separação entre o que seria a esfera do mundo profano dos homens e o espaço considerado das formas e divindades sagradas.

Com relação ao domínio da propriedade, portanto, a posse do local por humanos e não humanos já se mostra clara desde o aparecimento de Atori como entidade protetora e antiga residente do terreno – apesar de, em termos jurídicos, o mesmo ser considerado uma propriedade privada. A transformação de uma propriedade particular num terreiro de candomblé instaura uma necessária coletivização – ainda que informal – do espaço, tanto por se tratar de uma comunidade religiosa que pressupõe o uso coletivo do local, quanto por estabelecer vínculos entre pessoas e divindades através da circulação do axé. Porém, sob o ponto de vista legal, o uso coletivo do lugar não é suficiente para o seu reconhecimento enquanto associação religiosa – com certo grau de alienação da propriedade da terra. Dessa forma, é preciso que a casa de santo seja legitimada, tanto entre a comunidade religiosa – enquanto família de santo pertencente à uma tradição de culto – quanto no âmbito estatal – enquanto templo religioso com direitos e deveres.

Diante disso, há aqui um ponto já discutido por alguns autores em outros contextos – tais como Carrier (1998)CARRIER, James G. (1998), “Property and Social Relations in Melanesian Anthropology”. In: C. Hann (Ed.). Property Relations: Renewing the Anthropological Tradition. Cambridge: Cambridge University Press. e Strathern (2006)STRATHERN, Marilyn. (2006), O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora Unicamp. – que é a oposição entre a noção de propriedade privada ligada ao conceito de indivíduo – caracterizando a relação de posse em termos de exclusividade – e as concepções nativas sobre a propriedade – que têm a ver com a ideia de uma coletividade – de homens, coisas edivindades – que se estende no tempo e que, portanto, estabelece relações de posse que podem ser consideradas inclusivas 18 18 A ideia de propriedade inclusiva proposta por esses autores se caracteriza, de modo geral, pela crítica ao uso da noção de indivíduo – ocidental – como norteador das relações de posse entre pessoas e objetos. Investigando as relações de troca e a concessão do uso da terra na Melanésia, Carrier utiliza o conceito para definir um determinado tipo de relação com a terra em que a sua posse reflete vínculos baseados no dom e no contradom entre pessoas e ancestrais. Nesse contexto, a terra aparece como pertencente a um ancestral ao mesmo tempo em que é transferida ao uso de seus sucessores por laços de parentesco ou de ancestralidade, mediante relações de troca simbólica. Por sua vez, Strathern discute a questão da propriedade inclusiva/exclusiva na medida em que critica determinadas leituras, precisamente a de Lissete Josephides, sobre a produção e alienação das coisas nas terras altas da Nova Guiné. A autora vai contra o argumento de Josephides quando esta afirma que no contexto da Nova Guiné – em comparação com a economia capitalista onde a produção das coisas oculta relações sociais – a alienação ocorre no momento da troca e não no da produção. Através de uma perspectiva que enfatiza a forma e não substância das coisas, Strathern assevera que o argumento sobre a alienação só funciona se for acionada uma noção de propriedade exclusiva ocidental, o que não se verificaria no contexto em questão. Os objetos, nesse sentido, seriam evidências de que pessoas agiram. Sendo assim, nem a “pessoa” seria um “indivíduo”, nem os objetos podem ser alienados de “um indivíduo”, pois nunca se constituíram enquanto tal. .

O que acontece é que as normas jurídicas que orientam as formas pelas quais se categorizam os terreiros e demais instituições religiosas dialogam com a noção de indivíduo que permeia o nosso modo de vida ocidental. Assim, embora a legalização dos terreiros seja parte fundamental do processo de fundação e construção dos mesmos – na medida em que insere as casas de santo numa forma legítima de existência pública, garantindo-lhes certa proteção e reconhecimento enquanto propriedade coletiva –, o idioma jurídico, calcado na noção de indivíduo, ainda deixa em suspenso a possibilidade de retorno ou a coexistência do caráter privado da terra, opondo comunidade religiosa e herdeiros individuais.

A partir de 2012, a mãe de santo iniciou o processo de reconhecimento público do terreiro, dando entrada no registro legal da casa e adquirindo um CNPJ de instituição religiosa sem fins lucrativos. Logo, o imóvel que possuía o status de propriedade privada, após a legalização, passa a ser considerado uma espécie de instituição filantrópica, com garantia de isenção de impostos, acesso a políticas sociais e proteção estatal.

O fato de os terreiros de candomblé serem construídos a partir dos esforços e bens pessoais de seus sacerdotes já foi apontado por Dantas e retomado por Baptista (2008)______. (2008), “Não é meu, nem é seu, mas tudo faz parte do axé: algumas considerações preliminares sobre o tema da propriedade de terreiros de candomblé”. Religião e Sociedade, n. 28, v. 2: 138-155. para discutir o tema da propriedade nas casas de culto. A posse dos imóveis é vista pela autora como exemplo de como a mãe de santo se ocupa das funções econômicas do terreiro, a tal ponto de não haver como separar os bens do grupo de culto dos seus bens particulares.

Já Baptista faz uma analise sobre a difícil relação entre propriedade individual e coletiva no candomblé, valendo-se do debate antropológico acerca da noção de propriedade. Para ele, a definição de propriedade inclusiva proposta por Carrier seria uma saída interessante para pensar as relações entre pessoas e objetos no contexto do Candomblé, na medida em que se pode observar como determinadas circunscrições individuais não necessariamente retiram a qualidade coletiva de alguns objetos – e da própria posse da terra – debatendo também o confronto entre o aspecto jurídico da propriedade e seu uso prático. Nessa abordagem, o autor retoma a noção coletiva de axé para defini-la como uma forma de propriedade que pode ser considerada inclusiva, na medida em que “a circunscrição [dos] objetos, pessoas e da terra como parte do axé, de uma força imaterial que perpassa todas as coisas pertencentes ao sistema religioso, estabelece uma forma de propriedade coletiva, centrada na posição de um dono “temporário”” (Baptista 2008:144______. (2008), “Não é meu, nem é seu, mas tudo faz parte do axé: algumas considerações preliminares sobre o tema da propriedade de terreiros de candomblé”. Religião e Sociedade, n. 28, v. 2: 138-155.).

Serra (2005)______ (2005), “Monumentos negros: uma experiência”. Afro-Ásia, n. 33: 169-205., analisando o processo de alienação do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho – primeiro terreiro tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – relata o embate jurídico entre a comunidade religiosa e o proprietário oficial, cuja família era detentora de vastas extensões de terra na cidade de Salvador. Embora lhe reconhecessem a ocupação secular do local e o registro de associação civil sem fins lucrativos, a comunidade não possuía o título de posse da terra. Por conta disso, a comunidade estava perdendo cada vez mais espaço, ficando à mercê das exigências e interesses do proprietário até que se iniciou a luta de repercussão nacional em prol do tombamento.

Por sua vez, Baptista ressalta que, apesar das políticas de tombamento e alienação pelas quais os terreiros se transformariam em patrimônio histórico e bem cultural, grande parte dos terreiros ainda seriam propriedades juridicamente individuais. Essa situação instauraria um problema, pois embora as casas de culto em seu uso cotidiano sejam propriedades coletivas – pertencentes à comunidade, com atividades específicas – não haveria nenhum dispositivo legal que pudesse impedir uma eventual mudança de finalidade caso seus herdeiros jurídicos assim o desejassem. Portanto, a perpetuação das atividades religiosas estaria sempre comprometida por um possível desentendimento entre os filhos de santo e os herdeiros consanguíneos do chefe religioso com relação à situação de ocupação do terreno.

Sobre a questão da sucessão e perpetuação da casa de santo, Mãe Carla já confessou ter tido essa preocupação antes de iniciar a filha carnal Bianca, um ano antes da obtenção do CNPJ: “Eu estava preocupada com o futuro, porque mesmo que a pessoa seja dona juridicamente do espaço, quem não é feito vai ficar excluído, vai ficar do lado de fora. Aí, vai ser usada a força jurídica, mas e a parte espiritual? Vai acabar!” Ainda que seja um consenso e uma prerrogativa a ideia de que a casa de candomblé é um espaço coletivo e sagrado, o terreiro não deixa de ser propriedade da mãe de santo e de sua família carnal.

Na cartilha para a legalização dos terreiros, não há menção direta sobre o tema da propriedade, mas sobre os direitos constitucionais exercidos pelas casas institucionalizadas. Dentre esses direitos, destaca-se: a autonomia para nomear e preparar seus sacerdotes; a manutenção dos locais destinados aos cultos; a criação de instituições humanitárias ou de caridade; a elaboração e divulgação de publicações; a solicitação e recebimento de doações voluntárias; a realização de atividades religiosas em locais de acesso público; a isenção de impostos (tais como o Imposto Predial Territorial Urbano – IPTU; Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS; Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA).

Os sacerdotes também podem ser reconhecidos como ministros religiosos, o que lhes permite: serem inscritos na previdência social; celebrarem casamentos e emitirem o certificado da cerimônia; prestarem assistência religiosa em locais de internação coletiva; serem presos em cela especial; serem sepultados no próprio templo; receberem visto temporário no caso de sacerdotes estrangeiros.

Para Mãe Carla, a importância da institucionalização se dá por duas razões principais. Primeiro, porque é uma forma de alcançar distinção em relação aos seus pares, bem como proteção, visibilidade e legitimidade social.

Como temos sido vítimas de ataques de intolerância é importante a legalização para proteger o terreiro. Ele se torna um prédio intocável, preservado pela lei. É uma segurança jurídica imprescindível, porque se você tiver infringindo a lei do silêncio, por exemplo, e seu vizinho der parte de você na delegacia, alguém vem e manda interromper a cerimônia. Mas, se você for um sacerdote legalizado terá um horário de silêncio a cumprir e ninguém vai mandar parar às 9 horas da noite porque está incomodando: não, eu não sou fundo de quintal, eu tenho CNPJ e conheço os meus direitos. Meu horário expira tal hora. E tem mais: não precisamos mais inventar um atestado médico para que um iaô possa ficar de licença para se iniciar. Agora a gente pode dar uma declaração de fundo jurídico justificando o afastamento por motivos espirituais.

Sob esse aspecto, o que a legalização dos terreiros tenta promover é justamente a equiparação jurídica entre as religiões de matrizes africanas – com destaque para o candomblé e para a umbanda – e as demais instituições religiosas historicamente privilegiadas no Brasil. Há também a tendência de se estabelecer as especificidades desses templos que, até pouco tempo, não tinham espaço no registro oficial:

Hoje, a Constituição já aprova o nomenclatura ‘terreiro’ no nosso registro, porque antes a gente tinha que colocar ‘centro espírita’. Também temos que usar o termo africano Egbé – que significa ‘sociedade’ – para nomear as casas de candomblé. Não pode mais ser ‘Ilê Axé de alguma coisa’, tem que começar com Egbé Ilê.

Em segundo lugar, a legalização se apresenta como uma fonte estratégica de recursos financeiros, políticos e simbólicos. A partir do registro da casa de culto, a comunidade religiosa pode ter acesso a vários benefícios e políticas públicas de auxílio e de ação afirmativa.

O CNPJ é importante pra gente acessar os nossos direitos como povo de matriz africana. A partir desse CNPJ a gente já pode requerer o CadÚnico aqui pro terreiro. O CadÚnico é um cadastro nacional e povos de matrizes africanas estão incluídos nele. Tem uma lista de 12 itens que eu nem sabia que tínhamos direito, até mesmo ajuda de custo para universitários. Tem também um abono na conta de luz, o próprio bolsa família, bolsa escola, minha casa, minha vida, vale gás, enfim. Hoje eu posso ter 5 famílias cadastradas, moradoras desta instituição, beneficiarias desses programas.

Recentemente, Mãe Carla participou de um treinamento sobre os mecanismos, responsabilidades e benefícios da legalização. O curso teve duração de oito meses e foi organizado por uma ialorixá de São Gonçalo, como parte de um projeto que tem financiamento da Petrobrás: “Hoje temos informações que não tínhamos. Nunca ouvimos falar em povos de matrizes africanas, então a gente tem que captar isso aí. Temos que saber legalizar e cumprir com os nossos deveres”. Mãe Carla também frequentou reuniões realizadas pelo Centro de Tradições Afro-Brasileiras (CETRAB) do Rio de Janeiro, a fim de conseguir do governo o benefício de três cestas básicas por mês para a alimentação do terreiro.

Sendo assim, a institucionalização dos terreiros fomenta a circulação do povo de santo e de suas demandas políticas no espaço público. Os sacerdotes e filhos de santo são estimulados a expandir suas redes de contato e relacionamento, a participar e desenvolver projetos sociais, bem como a adotar uma determinada identidade cultural negra. Por outro lado, isso não significa dizer que os terreiros de candomblé já não tenham intensa movimentação na esfera pública. Não é de hoje a mobilização dos sacerdotes em busca da legalização de seus terreiros e de maior liberdade religiosa. O estabelecimento de relações estratégicas do ponto de vista econômico e político faz parte da história da religião19 19 Muitas das iniciativas lideradas por sacerdotes e intelectuais ligados aos terreiros de candomblé da Bahia em torno da defesa da liberdade religiosa podem ser encontradas nas analises de Dantas (1988) e Serra (1995). . Portanto, construir uma casa de santo também implica dialogar com grupos e movimentos sociais, disputar e cooptar pessoas, coisas e recursos, defender e negociar visões sobre a própria definição do que é o candomblé e como praticam.

De outra parte, a obtenção de um CNPJ exige certo domínio dos códigos e dos procedimentos burocráticos por parte dos sacerdotes, além do controle fiscal/financeiro da instituição. Por isso, “tudo deve ser contabilizado. A gente não declara o imposto de renda, mas temos que ter um livro-caixa para poder prestar contas à Receita Federal”. A formação legal da instituição religiosa tem como primeira etapa a inserção do terreiro no idioma jurídico/burocrático do Estado, através da constituição de uma diretoria e de um estatuto. Para isso, é necessária a convocação de uma reunião geral na comunidade para a deliberação desses cargos e de um regimento interno que deve ser registrado em uma ata.

A gente tem que formar uma diretoria composta de presidente, vice-presidente, diretor financeiro, tesoureiro e secretário. Para cada membro dessa diretoria tem que abrir uma firma no cartório e autenticar a assinatura. Tem que fazer uma ata também, que é a conclusão do que foi determinado na reunião, na formação desse estatuto. Essa ata deve ser registrada em cartório e você espera 30 dias para recebê-la de volta. Feito isso, você vai à Receita Federal e agenda o requerimento do CNPJ e espera mais 30 dias para eles fazerem uma verificação na sua documentação. Depois disso, na internet, você responde ao questionário – que é um requerimento minucioso da organização religiosa, que não pode ser uma ONG, nem uma Associação.

Apesar das isenções de impostos, os dirigentes devem pagar as taxas cobradas pelos serviços de cartório imprescindíveis à legalização. Conforme Mãe Carla, o registro de uma ata, por exemplo, pode custar em torno de 280 a 300 reais fora o preço da abertura de firma para os componentes da diretoria. Deve-se pagar, também, pelos honorários de um contador e de um advogado caso não procurem uma defensoria pública. Além disso, há uma série de multas para as casas que não fizerem devidamente todas as declarações fiscais periódicas após a institucionalização.

Tem o INSS [Instituto Nacional de Segurança Social], o Ministério do Trabalho, a Receita Federal. Tem que fazer declaração de imposto de renda, declaração de RAIS [Relação Anual de Informações Sociais], declaração de nada consta da Caixa Econômica Federal. Isso tudo anualmente. Nada disso é pago, mas se você não fizer será multado e as multas são altas. Eu, por exemplo, tive que pagar 420 reais por dois anos porque não declarei ao Ministério do Trabalho que não possuía nenhum funcionário a serviço do terreiro.

Com a legalização, o terreiro de Mãe Carla adquiriu o status de instituição religiosa com práticas filantrópicas, perdendo seu valor comercial: “O terreno não pode mais ser vendido. Se, no futuro, a minha filha não quiser dar continuidade, vai ter que fazer disso uma creche, uma escola pública e não um empreendimento. Porque o documento em cartório não vai ser mudado”. E isso se estende para todos os bens duráveis e não duráveis adquiridos com o CNPJ da casa de santo: “Eu posso comprar um carro com o CNPJ da instituição, mas não posso vendê-lo. Para mim, ainda é vantagem, já que eu não pago IPVA, nem imposto da certidão da venda no DETRAN [Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro]”.

No entanto, a ialorixá ainda detém a posse e o gerenciamento do espaço. A institucionalização do terreiro não retira totalmente o caráter privado da terra. Há uma gradação, em termos jurídicos, entre o público e o privado e, no caso desse terreiro, a obtenção do CNPJ não o transforma automaticamente em um bem público – cuja posse pertence ao Estado. A mãe de santo explica que havia a possibilidade de tornar o terreno um bem público em situações de catástrofe: “a gente tinha a opção de transformar o terreiro num bem público para servir de abrigo quando o governo precisasse. Em 2010, quando teve aquela tragédia do Morro do Bumba, nós oferecemos o lugar para os desabrigados”. Contudo, ela também aponta para a questão do descompasso entre o cotidiano de uma casa de santo e os imperativos jurídicos que lhe são impostos:

Eu preferi não torná-lo bem público porque quando você dispõe o prédio para o governo, eles podem fazer uso do espaço na hora em que acharem necessário e, às vezes, essa hora pode ir de encontro ao momento de uma função religiosa. Aí tem a ambiguidade de você ceder para um bem público, mas também ter que cumprir um ato religioso.

Diante disso, percebe-se que o nexo entre o processo de fundação da casa de santo – com a materialização das relações entre deuses e homens – e a sua institucionalização se dá na medida em que a legalização instaura mais uma modalidade de existência do templo religioso – com características e idioma burocrático específico. Essa linguagem jurídica tem o intuito de aproximar, em termos de reconhecimento social, as religiões afro-brasileiras da outras religiões que gozam de maior legitimidade. Porém, essas mesmas normas jurídicas articulam com noções alheias ao pensamento e à estrutura que organiza as casas de santo – centradas na força dinâmica e coletiva do axé. Ao mesmo tempo em que confere certo caráter coletivo a uma propriedade juridicamente privada, a legalização não impede a possibilidade do acionamento da noção de propriedade individual em casos de conflito e disputas pela posse da terra – possibilidade esta também comentada por Batista quanto à legalização e ao tombamento dos terreiros.

Considerações finais: “o candomblé não é só atabaque”

Após as cerimônias públicas e em meio aos trabalhos e funções, Mãe Carla costuma fazer uma espécie de “sermão” aos filhos e adeptos da casa, alertando para as demandas e necessidades mensais do terreiro. Em um desses sermões, ela discursou sobre o propósito da religião dos orixás:

A religião não dá emprego nem trabalho pra quem não estuda e não procura. A religião serve para a nossa proteção, nosso esteio na hora do desespero. Não é para pagar empréstimo consignado (como eu tenho), não é para pagar o carnê das Casas Bahia ou o aluguel atrasado (...). O candomblé não é só atabaque, liturgia... é também trabalho (...). Se puderem contribuir com qualquer coisa para a casa, para as oferendas dos santos, contribuam. Pode ser com um saco de cimento para as obras, pode ser com mantimentos, com esteira para os iaôs que serão recolhidos, enfim.

Se retomarmos sua fala anterior – quando relata como conseguiu quitar a dívida do empréstimo bancário destinado à construção do barracão – perceberemos que o que seria considerado uma ambiguidade em torno dos limites estabelecidos entre o espiritual e o material, mostra, na verdade, como essa dicotomia não encontra respaldo no cotidiano das religiões de matriz africana. Enquanto no primeiro relato a mãe de santo exalta a força dos orixás para agir no plano econômico – de modo a fazer com que a dívida contraída fosse abolida –, nesse último ela assevera que não é esse o objetivo da religião. Quer dizer, o culto aos orixás não deve ser utilizado para conseguir benefícios ou vantagens materiais, mas essas são circunstâncias passíveis de acontecer caso seja necessário.

Mesmo assim, a mãe de santo não vê nessas afirmativas uma contradição, já que “a religião dos orixás abrange tudo: desde depenar galinhas e trabalhar na obra do barracão até a feitura e realização dos rituais. Em tudo, os nossos orixás estão presentes”. Sendo assim, embora a intenção do artigo não tenha sido a de elaborar uma análise sobre as estruturas de pensamento das religiões de matriz africana – tal como Bastide – a ideia de que “a estrutura mítica, que é essencialmente simbólica – a estrutura social, que é a da complementaridade dos encargos sacerdotais –, a estrutura mental, enfim, não constituem senão uma mesma realidade em jogo” (Bastide 2009:263BASTIDE, Roger. (2009), “Ensaio de uma epistemologia africana (iorubá)”. In: R. Bastide. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras.); mostra-se importante para pensar as relações que enlaçam divindades, seres humanos e demais coisas que fazem parte do mundo no contexto de fundação de um terreiro de candomblé.

Ao longo deste texto, destaquei que a existência de uma casa de santo implica a articulação de três esferas principais – as quais foram separadas aqui como estratégia metodológica. São elas: a esfera espiritual ou sobrenatural; a esfera da materialidade ou das coisas e a esfera legal ou pública. Tomando como referência a casa de Mãe Carla, desde o seu mito de origem, a questão financeira é muito presente, assim como a atuação do plano espiritual para a concretização material do barracão. A participação ativa dos deuses e entidades em todo o processo é fundamental, pois “a força dos orixás faz acontecer. Eles ajudam a gente a ajudar os outros. Tudo se resolve e o dinheiro sempre aparece”.

De outra parte, o êxito da fundação, além de estar subordinado ao arcabouço ritual, também dependerá da habilidade do sacerdote em obter e administrar recursos humanos, políticos e econômicos. Daí a importância da inserção de pessoas para o preenchimento do quadro de filiados, do estabelecimento de relações com outros terreiros, dos eventos criados para divulgação da casa e arrecadação de dinheiro, da captação de políticas públicas a partir da legalização.

A mãe de santo comenta que “fundar um axé é muito difícil. Não é só levantar quatro paredes e um telhado em cima. É um passo a passo, é um dia depois do outro, é tudo o que acontece no seu cronograma e você não espera”. Assim, embora seja um projeto mais ou menos planejado, a construção de um terreiro vai sempre lidar com condicionantes e fatores imponderáveis. Por isso, é um processo que requer paciência e estratégia e que envolve muitos riscos, dentre eles a própria subsistência financeira de seus dirigentes.

O terreiro também precisa existir enquanto associação religiosa, o que exige a sua inserção num determinado idioma jurídico. Viu-se que a legalização das casas de candomblé – a partir da criação de um CNPJ – permite aos templos o acesso a certos direitos – essenciais na luta por igualdade racial e religiosa e na consolidação e subsistência dos terreiros – mas também requer o conhecimento e o cumprimento de um conjunto de procedimentos burocráticos. Tais procedimentos – lentos e onerosos – incluem a utilização de nomenclaturas específicas, prestações de contas, registros em cartório, relatórios e declarações periódicas, dentre outros. Logo, como disse Mãe Carla: “o líder de terreiro não pode mais só administrar o culto. O sacerdote que só faz isso está ultrapassado”.

A noção de axé, como princípio que perpassa todas as coisas pertencentes ao sistema religioso, estabelece uma forma de propriedade que pode ser considerada inclusiva – em que a posse dos objetos e do próprio território em questão se dá coletivamente entre pessoas, orixás e entidades diversas. No entanto, essa coletivização não altera necessariamente o status jurídico da posse individual desses mesmos objetos – decorrendo daí o ponto de partida para os conflitos sobre a propriedade nos terreiros.

Diante disso, a legalização das casas de candomblé é uma importante medida de interferência na circunscrição do espaço e dos bens materiais do terreiro. O registro do prédio através do CNPJ lhe confere caráter de instituição pública, apesar de manter status privado dos imóveis. Há a perda do valor comercial do terreno e dos bens adquiridos pela associação religiosa, assim como o incentivo à maior participação das comunidades nos debates políticos e espaços públicos. No entanto, apesar de ser um recurso legal que visa à preservação dos terreiros, a legalização não impede possíveis reações e disputas jurídicas para reaver direitos de propriedade – principalmente em contextos de sucessão e valorização comercial do entorno.

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  • WEBER, Max. (2001), Metodologia das ciências sociais São Paulo: UNICAMP.

Notas

  • 1
    Trata-se da dissertação de mestrado A pessoa é para o que nasce: um estudo sobre mudança de status e relações de poder no candombléEVANGELISTA, Daniele Ferreira. (2014), A pessoa é para o que nasce: um estudo sobre mudanças de status e relações de poder no Candomblé. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, UERJ., apresentada em 2014 ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).
  • 2
    São fictícios os nomes dos interlocutores citados neste artigo.
  • 3
    No candomblé, os filhos de santo que não possuem a capacidade de entrar em transe são alocados nas posições/cargos de ogã e equede. O posto de equede é dado às mulheres que não são possuídas pelos orixás, mas que são responsáveis por cuidar dos deuses manifestados nos filhos de santo, desempenhando, também, outras tarefas de cunho ritual, de organização e manutenção da casa de santo. Já os ogãs são encarregados de atividades civis e religiosas, formando um grupo que, além de proteger a casa em termos políticos e econômicos, também executa funções rituais importantes.
  • 4
    Tomo como referência a perspectiva weberiana que analisa status como um modelo de distribuição do poder social e, portanto, como aspecto simbólico ligado à desigualdade e à dominação. Para Max Weber (2001)WEBER, Max. (2001), Metodologia das ciências sociais. São Paulo: UNICAMP., status tem a ver com a avaliação de superioridade e inferioridade e com a posição social de grupos com direitos e deveres específicos numa determinada escala estamental. No caso da família de santo, há certos tipos de status considerados inatos e outros que são concedidos. A posição de equede, nesse esquema, seria a de um status inato, de alguém que não possui a capacidade de ser possuída. No entanto, essas posições, apesar de serem fixadas numa espécie de estratificação social, podem ser flexibilizadas de acordo com o contexto e como os adeptos se utilizam de estratégias e constroem interpretações variadas para esses tipos de mudança.
  • 5
    O processo de tornar-se mãe de santo da personagem referida neste texto é o tema principal da dissertação que desenvolvi – cujo intuito foi analisar como se deu essa passagem de posição hierárquica e de status, assim como o processo de construção do terreiro. Mudanças como essa – em que equedes e ogãs passam a liderar casas de candomblé – não são novidade entre o povo de santo. Entretanto, não deixam de desencadear conflitos e controvérsias, sendo também um tipo de constrangimento em meio a esse circuito religioso marcado por disputas de poder e legitimidade.
  • 6
    As falas citadas ao longo do artigo foram extraídas de entrevistas e declarações públicas realizadas nos dias 18/08/ 2012, 30/03/2013 e 06/09/2014, no terreiro alvo da análise.
  • 7
    A questão da escolha no candomblé já foi extensamente analisada pela bibliografia e está ligada às formas pelas quais as divindades atuam no plano terreno no sentido de impor os seus desígnios. Como analisou Patrícia Birman, a relação dos filhos de santo com a esfera sobrenatural “não é pensada como um lugar de livre opção mas como aquele que é tentativamente imposto, o que permite que as pessoas construam certas faixas de negociação” (Birman 1996:96BIRMAN, Patricia. (1996), “Cultos de possessão e pentecostalismo no Brasil: passagens”. Religião e Sociedade, n. 17, v. 1-2: 90-122.). Sendo assim, a escolha de um filho de santo para ser chefe de terreiro é visualizada através do jogo de búzios e tem a ver tanto com as determinações divinas, quanto com as circunstâncias terrenas da religião. De modo geral, para se tornar um pai ou uma mãe de santo – e consequentemente construir e/ou liderar um terreiro – é preciso passar por uma trajetória hierárquica específica no candomblé, que compreenderia, necessariamente, a condição de iaô – ou seja, do recém-iniciado que é possuído pelos deuses. Durante a vivência religiosa, o iaô passaria por um lento processo de aprendizagem e amadurecimento ritual até chegar à posição de ebome – que é aquele que já completou sete anos de iniciação, tendo realizado suas obrigações rituais. Os ebomes são considerados pais e mães de santo em potencial, pois já teriam conhecimento suficiente para abrir suas próprias casas e iniciar novos iaôs. Como explica Costa Lima (2004)COSTA LIMA, Vivaldo. (2004), “Organização do grupo de candomblé: estratificação, senioridade e hierarquia”. In: C. E. M. de Moura (ed.). Culto aos orixás: voduns e ancestrais nas religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas., o status de ebome subentende a capacidade e o preparo para ocupar outros postos, de mando e de prestígio, na hierarquia da casa. Contudo, esse caminho muitas vezes não é direto. Nem todos os ebomis serão líderes de terreiro e nem todos os líderes de terreiro foram ebômins – como é o caso de Mãe Carla. A liderança de uma casa de santo sempre será alvo de disputas e negociações com as mais diversas explicações entre os filhos de santo e não está atrelada necessariamente ao contexto de sucessão.
  • 8
    Sobre a possibilidade de herdar ou fundar uma casa de santo, é difícil dizer até que ponto seria preferível uma ou outra opção. Na literatura, esse tema está ligado ao sistema de descendência, liderança e sucessão nos terreiros de Candomblé e à tendência estrutural à fragmentação desses templos. Geralmente, a fundação de uma casa é consequência de um processo de ruptura entre grupos originários de um mesmo terreiro – processo atribuído à própria história daqueles que seriam os primeiros terreiros de candomblé, o Axé do Gantois e o Axé Opó Afonjá, oriundos da Casa Branca. Como analisou Maggie (2001), é no momento da sucessão de um líder de terreiro que as crises e cisões entre os grupos se tornam mais evidentes, desencadeando muitas vezes a fragmentação da família de santo. No entanto, a fundação de uma casa de candomblé também pode ocorrer sem uma necessária ruptura com o terreiro anterior. É o caso, descrito na nota 6, dos ebomes que recebem o cargo de líderes de terreiro e que atuam como difusores do axé inicial, contando com a ajuda ritual e política de seus pais de santo. A fala de Mãe Carla sobre esse assunto, contudo, deixa supor que fundar uma casa de santo seria sempre a opção mais difícil já que ao pai ou à mãe de santo caberia a tarefa de construir e desenvolver toda uma estrutura que requer não só bens econômicos, mas habilidades no que tange à formação da família de santo e ao reconhecimento político e religioso do templo.
  • 9
    De modo geral, os orixás são entendidos como forças da natureza e mediadores entre os homens e o deus supremo Olorum. Diferente dos espíritos da umbanda, são deuses mais distantes do mundo terreno e a linguagem ritual é o iorubá. Por conta disso, a comunicação com os seres humanos é majoritariamente realizada pela intermediação do jogo de búzios – sistema divinatório pelo qual as divindades determinam procedimentos rituais – e dos erês – entidades infantis que atuam como mensageiros dos orixás. Via de regra, os momentos em que os orixás falam são muito específicos e especiais – tais como na cerimônia do orunkó, em que o orixá do noviço revela seu nome diante do público. Nessas ocasiões, sua fala é quase sempre monossilábica e em tom baixo. Assim, o caso de Mãe Carla – em que o orixá veio, tentando dizer onde queria que o terreiro fosse construído – pode causar estranheza àqueles que vêm no jogo de búzios o instrumento de comunicação a ser acionado nessas horas.
  • 10
    O contexto ritual do terreiro em questão é dotado de uma intensa relação entre o culto dos orixás, realizado nas cerimônias do Candomblé, e os rituais de Umbanda, promovidos periodicamente em louvor a determinadas entidades. Em artigo anterior (Evangelista, 2015______. (2015), “‘Dando satisfação’ aos espíritos de Umbanda: ‘desenvolvimento’ e possessão num terreiro de Candomblé” In: M. Contins; V. Penha-Lopes; C. S. M. Rocha (ed.). Religiosidade e performance: diálogos contemporâneos. Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ.), abordo como essa interseção se dá, sobretudo, no âmbito da possessão, fazendo das giras de umbanda uma espécie de “escola da possessão” cuja função é melhor adequar o corpo dos filhos de santo para o momento em que devem “manifestar” seus orixás.
  • 11
    Geralmente, as casas de santo são pintadas de branco e possuem um grande pote de barro – o porrão – em cima do muro ou do portão principal. Possuem também símbolos ou objetos que caracterizam o orixá patrono do terreiro, assim como ferramentas, cores e enfeites que distinguem os quartos de santo. Logo à entrada, deve estar o assentamento de Exu – aquele que rege as passagens –, prosseguido pelo assentamento de Ogum – responsável pela proteção da casa. Os assentamentos de um terreiro são um conjunto formado por determinados objetos e elementos que abrigam a força de uma dada divindade e que são consagrados aos deuses de acordo com suas características. São depositados em lugares e recintos específicos de uma casa de santo. Ao ar livre devem estar os locais destinados a determinados orixás que “vivem no tempo” – tais como Ossaim, Bessém, Iroco, entre outros. Além disso, todo terreiro deve ter uma cumeeira consagrada a um determinado orixá. A cumeeira é o ponto central da energia do terreiro, colocada na parte mais alta do barracão – podendo ser em um poste, pilar de madeira ou em cavidades projetadas do teto.
  • 12
    As Iamis são consideradas ancestrais femininas à magia. São também chamadas de “feiticeiras” e “donas dos pássaros”.
  • 13
    Durante a construção de um barracão, é necessário enterrar no centro e nas bases de sua fundação arquitetônica um conjunto de elementos vegetais, minerais e animais que materializam o axé específico de cada casa de santo. Daí o termo “axé plantado”, como referência a esse procedimento.
  • 14
    Termo dado aos orixás femininos, tais como Iemanjá, Oxum e Iansã.
  • 15
    Rito em que ogãs e equedes, após passarem por um período de recolhimento – espécie de iniciação –, têm seus cargos confirmados pelo orixá que os suspendeu ou indicou.
  • 16
    O termo barco de iaô denomina o grupo dos que se iniciam em conjunto. Suas dimensões são variáveis, podendo abranger um grupo de mais de vinte neófitos até apenas uma pessoa. É a partir do barco que se faz a primeira hierarquização dos seus membros na carreira iniciática. Por se tratar de um terreiro ainda recém-criado, os barcos de iaô são compostos, em sua maioria, por uma ou duas pessoas, nunca excedendo o número máximo de quatro pessoas até hoje. Isto porque há pouca gente para cuidar dos neófitos reclusos, assim como pela ocorrência de iniciações imprevistas.
  • 17
    Função se refere ao ciclo de atividades rituais do calendário litúrgico do candomblé. Cada terreiro possui um calendário ritual próprio, que varia de acordo com a orientação cosmológica da casa e, ao longo do ano, são realizadas cerimônias públicas em louvor a determinados deuses. As festas públicas do candomblé são o auge desse processo ritual – em que a comunidade se reúne para trabalhar no terreiro e para realizar as obrigações aos deuses que devem ser celebrados.
  • 18
    A ideia de propriedade inclusiva proposta por esses autores se caracteriza, de modo geral, pela crítica ao uso da noção de indivíduo – ocidental – como norteador das relações de posse entre pessoas e objetos. Investigando as relações de troca e a concessão do uso da terra na Melanésia, Carrier utiliza o conceito para definir um determinado tipo de relação com a terra em que a sua posse reflete vínculos baseados no dom e no contradom entre pessoas e ancestrais. Nesse contexto, a terra aparece como pertencente a um ancestral ao mesmo tempo em que é transferida ao uso de seus sucessores por laços de parentesco ou de ancestralidade, mediante relações de troca simbólica. Por sua vez, Strathern discute a questão da propriedade inclusiva/exclusiva na medida em que critica determinadas leituras, precisamente a de Lissete Josephides, sobre a produção e alienação das coisas nas terras altas da Nova Guiné. A autora vai contra o argumento de Josephides quando esta afirma que no contexto da Nova Guiné – em comparação com a economia capitalista onde a produção das coisas oculta relações sociais – a alienação ocorre no momento da troca e não no da produção. Através de uma perspectiva que enfatiza a forma e não substância das coisas, Strathern assevera que o argumento sobre a alienação só funciona se for acionada uma noção de propriedade exclusiva ocidental, o que não se verificaria no contexto em questão. Os objetos, nesse sentido, seriam evidências de que pessoas agiram. Sendo assim, nem a “pessoa” seria um “indivíduo”, nem os objetos podem ser alienados de “um indivíduo”, pois nunca se constituíram enquanto tal.
  • 19
    Muitas das iniciativas lideradas por sacerdotes e intelectuais ligados aos terreiros de candomblé da Bahia em torno da defesa da liberdade religiosa podem ser encontradas nas analises de Dantas (1988)______. (1988), Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal. e Serra (1995)SERRA, Ordep. (1995), Águas do rei. Petrópolis: Vozes..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    Out 2014
  • Aceito
    Abr 2015
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