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Rituais fúnebres no islã: notas sobre as comunidades muçulmanas no Brasil

Death rituals in Brazil’s Muslim communities

Resumo

Concepções e rituais associados à morte ocupam uma importante dimensão nas diferentes construções da tradição islâmica, criando não apenas sentido/orientação a respeito do fim inevitável da vida física, mas também canais para afirmação pública de crenças e pertencimentos religiosos para muçulmanos em diferentes contextos históricos e culturais. Seguindo nesta direção, o artigo pretende abordar concepções e práticas associadas à morte no islã, tendo como foco os rituais de preparação e o destino final do corpo do morto. O universo etnográfico em que esta pesquisa se baseia compreende as comunidades muçulmanas do Rio de Janeiro e Paraná, em diferentes momentos de trabalho de campo (2012 a 2014). Com isso, espera-se explorar como objetos e espaços funerários fazem o “morto muçulmano” em contextos nos quais o islã ocupa uma posição de minoria religiosa, como no Brasil.

Palavras-chave
islã; morte; objetos funerários; muçulmanos no Brasil

Abstract

Religious conceptions and rituals surrounding death occupy an important dimension in Islamic tradition. They are channels through which Muslims in different historical and cultural contexts publicly affirm their religious belongings. This article explores how Islamic rituals surrounding death are performanced by Muslims in Brazil, focusing on the ways in which the bodies are prepared and buried in local Muslim cemetery. The ethnographic data is based on fieldwork conducted in two Muslim communities in Brazil, between 2012 and 2014. Thus, the article aims to analyze how objects and funerary spaces make the “Muslim dead” in contexts in which Islam plays a minority role in the religious field, as in Brazil.

Keywords
Islam; death; funerary objects; Muslims in Brazil

Distintos modos de codificação e construção da tradição islâmica produzem uma pluralidade de formas de interpretar e vivenciar o islã nos diversos contextos históricos e culturais em que muçulmanos e suas instituições participam. Neste artigo, pretendo abordar essa questão por um ângulo pouco explorado na literatura antropológica sobre o islã no Brasil, que é o de compreender as dinâmicas que envolvem as identidades religiosas dos muçulmanos a partir da análise de objetos e espaços funerários que fazem o “morto muçulmano”. O próprio corpo do morto, nesse sentido, será o objeto focal desta proposta. Com isso, espero contribuir para o debate acerca das relações entre religião e materialidade, ressaltando formas materiais de expressão do sagrado nos ritos funerários islâmicos. Estes, por sua vez, permitem a criação de um senso de pertencimento e de inscrição do islã no campo religioso brasileiro.

Em linhas gerais, a presença do islã no Brasil pode ser identificada em três diferentes e descontínuas narrativas. A primeira se refere aos mouriscos (muçulmanos portugueses convertidos forçadamente ao cristianismo), que aqui aportaram ainda nos momentos iniciais da colonização feita por Portugal. Já a segunda remonta ao período da escravidão, em que muçulmanos foram trazidos de áreas africanas islamizadas1 1 Segundo os relatos de ‘Abdurahman al-Baghdadi al-Dimachqi, um especialista religioso (‘alim) otomano que chegou ao país em 1866, os muçulmanos africanos se concentravam nas cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Recife, onde realizavam, ainda que de modo privado, rituais religiosos como as orações de sexta-feira e o jejum no mês do Ramadan (Pinto 2010a:202-3). Sobre a organização e a dinâmica da vida religiosa dos escravos muçulmanos no Brasil, ver também os trabalhos de João José Reis (2003) e Alberto da Costa Silva (2004). 1.

Por fim, em variados momentos do século XX, acompanhando os fluxos da imigração árabe para o país. Nesse processo ocorreu a organização das diferentes comunidades e instituições muçulmanas no campo religioso brasileiro (Montenegro 2013MONTENEGRO, Silvia & BENLABBAH, Fatiha (Orgs.). (2013), Muçulmanos no Brasil: Comunidades, Instituições, Identidades. Rosário: Universidad Nacional de Rosario Editora.; Pinto 2010aPINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. (2010a), Islã: religião e civilização, uma abordagem antropológica. Aparecida: Santuário.)2 2 Estudos acadêmicos sobre a imigração árabe no Brasil apontam para a diversidade dos aspectos sociais e culturais que envolveram os processos de construção identitária e de inserção desses imigrantes na sociedade local (Pinto 2010b; Karam 2007). Em linhas gerais, a chegada aqui de imigrantes de fala e cultura árabe provenientes do Oriente Médio iniciou-se nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, e era composta majoritariamente por cristãos. Já a imigração de árabes muçulmanos para o Brasil cresceu a partir da década de 1970, em decorrência dos conflitos na região de origem (guerras envolvendo Israel e países árabes, assim como a guerra civil libanesa). Em termos de pertencimento religioso, as comunidades árabes no Brasil apresentam uma configuração bastante plural, sendo compostas por denominações cristãs (católicos romanos, maronitas, melquitas, gregos-ortodoxos) e muçulmanas (sunitas, xiitas, alauítas e druzos). Sunitas e xiitas são as maiores vertentes do islã. Os processos de diferenciação doutrinal e ritual entre essas duas comunidades ocorreram ao longo do tempo, ficando mais evidentes a partir dos séculos IX e X. Apesar de compartilharem, em linhas gerais, os cinco pilares do islã (Testemunho de fé, orações, jejum, zakat (espécie de dízimo) e a peregrinação a Meca), elas guardam algumas diferenças na forma de conceber a revelação. O sunismo baseia suas doutrinas e rituais no Alcorão e nas tradições relativas à vida do Profeta Muhammad (Sunna), com a interpretação e aplicação das doutrinas religiosas sendo administradas por especialistas religiosos. Já o xiismo baseia o seu sistema doutrinário e ritual no texto corânico e na mensagem esotérica dos Imams (descendentes de Maomé pela linha de Ali e Hussein), sendo os detentores das funções jurídicas e religiosas aqueles que têm, na hierarquia religiosa, o título de ayatollah ou marja (fonte de inspiração). Na tradição do xiismo duodecimano, os 12 imams teriam recebido diretamente do Profeta conhecimentos esotéricos e mundanos que os possibilitariam guiar os fiéis, por isso, são tidos como fontes de veneração e como modelos de moralidade e perfeição, funcionando como um elo infalível entre Deus e os homens. Neste sentido, a devoção aos imams é parte da vida religiosa dos xiitas e entendida como meio para se conquistar a salvação. Tais concepções contribuíram para o desenvolvimento de diferentes aspectos doutrinais e rituais em cada uma das vertentes, além de outras ramificações internas. Sobre o assunto, ver Pinto 2010a. .

A maioria das instituições islâmicas no Brasil, como mesquitas, sociedades beneficentes, centros culturais, mussalas (salas de oração), escolas e cemitérios, está concentrada em grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Goiânia, Curitiba, Foz do Iguaçu, Porto Alegre, Salvador, Recife, entre outros, seguindo as linhas de concentração demográfica dos muçulmanos, de acordo com os dados do Censo de 2010 (IBGE).

O Censo aponta para a existência de 35.167 muçulmanos no Brasil, indicando um aumento de 29% do número de adeptos do islã em relação ao Censo anterior (2000). Esses resultados foram alvos de críticas por parte de algumas instituições ligadas ao islã no país, para as quais o número “real” de fiéis extrapolaria os dados oficiais (Pinto 2013b______. (2013b), “Islã em números: os muçulmanos no Censo Demográfico de 2010”. In: F. Teixeira & R. Menezes (Orgs.). Religiões em movimento: o Censo de 2010. Petrópolis: Vozes.)3 3 Para uma análise sobre os muçulmanos e o Censo de 2010, ver Pinto 2013b. . Para a Federação das Associações Muçulmanas no Brasil (FAMBRAS), por exemplo, haveria 1.482.760 muçulmanos em território nacional, vinculados a diferentes instituições4 4 Instituição criada em 1979 com o objetivo de “fortalecer as associações muçulmanas e a divulgação do islã no Brasil”. Dados retirados da página oficial da instituição: http://www.fambras.org.br/pt/Oislam/PopulacaoIslamica – Acessado em 29/04/15. .

Além das disputas numéricas em torno da presença e visibilidade dessa expressão religiosa como minoria no campo religioso brasileiro, é importante ressaltar que as comunidades e instituições muçulmanas no Brasil se estruturaram de diferentes modos ao longo do tempo, ganhando contornos sociológicos e religiosos específicos nas formas de pertencimento ao islã. A vinculação mais geral da presença muçulmana no país à imigração árabe vinda do Oriente Médio marcou o imaginário local a esse respeito, produzindo diferentes tensões e dilemas identitários nas formas de codificar, apresentar e experienciar a religião por muçulmanos “com” ou “sem” origem étnica árabe no contexto brasileiro (Montenegro 2013aMONTENEGRO, Silvia. (2013a), “Des-etnificação e Islamização: A identidade muçulmana na comunidade do Rio de Janeiro”. In: S. Montenegro & F. Benlabbah (Orgs.). Muçulmanos no Brasil: Comunidades, Instituições, Identidades. Rosário: Universidad Nacional de Rosario Editora.).

Desse modo, se num primeiro momento as instituições islâmicas no Brasil foram criadas por e para imigrantes muçulmanos árabes e seus descendentes, articulando a transmissão dos valores religiosos islâmicos à ideia de uma etnicidade árabe, pode-se dizer que, principalmente a partir da década de 1990, esse cenário se tornou mais complexo através da abertura de algumas comunidades muçulmanas para atividades voltadas à divulgação do islã no contexto local. Esse fator contribuiu para um crescente número de brasileiros sem ascendência árabe que se convertem ao islã, produzindo importantes transformações nas dinâmicas identitárias que envolvem essa religião no Brasil5 5 Para as dinâmicas que envolvem a conversão de brasileiros ao islã, ver os textos da coletânea organizada por Sílvia Montenegro e Fatiha Benlabbah (2013). Outro aspecto a ser ressaltado e que atravessa vários dos textos do referido livro é o emprego das categorias “conversão” e “reversão” para classificar aqueles que adotaram o islã como religião em algum momento de sua trajetória pessoal. O emprego do termo “reversão” está pautado em uma interpretação de que todos os seres humanos nascem muçulmanos, mas alguns se desviam no caminho. Quando optam pelo islã como doutrina religiosa, eles retornam à religião original. Sobre o assunto, ver o capítulo de Francirosy Campos Barbosa Ferreira (2013). Neste artigo, emprego os termos “convertido” e “nascido muçulmano” (para designar àqueles pertencentes a famílias muçulmanas e que foram socializados no islã ainda crianças) no intuito de manter os termos empregados por meus interlocutores para classificarem a si próprios e aos outros membros da comunidade, em diferentes momentos e contextos de pesquisa – Rio de Janeiro (2005; 2011 a 2014) e Paraná (2012 a 2013). .

No Rio de Janeiro, por exemplo, cerca de 85% dos membros da comunidade muçulmana são de brasileiros sem ascendência árabe. Apesar das diferentes motivações e trajetórias de conversão dessas pessoas ao islã, o processo de socialização nas doutrinas e práticas rituais islâmicas que recebem envolve uma forma específica de codificação religiosa, produzida na referida comunidade, a qual se pauta na universalidade da Revelação (Chagas 2013______ . (2013), “Um chamado ao islã: os cursos de religião na comunidade sunita do Rio de Janeiro”. In: S. Montenegro; F. Benlabbah (Org.). Muçulmanos no Brasil: comunidades, instituições e identidades. Rosario: Universidad Nacional de Rosario Editora., 2012CHAGAS, Gisele Fonseca. (2012), “Preaching for Converts: Knowledge and Power in the Sunni Community in Rio de Janeiro”. In: P. G. H. da Rocha Pinto; B. Dupret; T. Pierret; K. Spellman-Poots (Orgs.). Ethnographies of Islam: Ritual Performances and Everyday Practices. Edinburgh: Edinburgh University Press.). Já em comunidades muçulmanas do Paraná, como em Foz do Iguaçu, não há maiores preocupações por parte das lideranças religiosas locais em fazer atividades de divulgação do islã para não muçulmanos. Como as comunidades muçulmanas de Foz do Iguaçu (sunita e xiita) são formadas majoritariamente por árabes e seus descendentes, as formas de vivenciar o islã naquele contexto são produzidas, em linhas gerais, como parte da identidade étnica árabe de seus membros e de sua “herança cultural” (Pinto 2013a______. (2013a), “Imigrantes e convertidos: etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no Brasil”. In: S. Montenegro & F. Benlabbah (Orgs.). Muçulmanos no Brasil: comunidades, instituições, identidades. Rosário: Universidad Nacional de Rosario Editora.).

Na produção antropológica sobre o islã no Brasil, datada, sobretudo, a partir dos anos 2000, podemos encontrar análises que mostram como as diferentes questões doutrinais, rituais e identitárias expostas acima organizam a vida religiosa das comunidades muçulmanas no país, assim como as diversas arenas locais, nacionais e transnacionais em que estão envolvidas. No entanto, ao nos determos apenas nos estudos que abordam os diferentes rituais islâmicos, como festas religiosas, orações e abluções, casamentos etc., há poucas abordagens que tomam a morte e as práticas rituais a ela associadas como ponto de análise6 6 Há um Trabalho de Conclusão de Curso de graduação em Enfermagem, de Mariana de Araújo da Costa Brasileiro (2009) que estuda os processos de morte e o morrer envolvendo pacientes muçulmanos e seus familiares no Brasil. O trabalho aborda, em linhas gerais, os cuidados paliativos com pacientes muçulmanos e os procedimentos com o corpo, em caso de morte. .

Ao longo dos anos em que venho conduzindo trabalho de campo em comunidades muçulmanas no Brasil, interessada fundamentalmente nas diferentes arenas de produção, transmissão e circulação de conhecimento religioso, notei que diversas concepções a respeito da morte e do morrer, junto a diferentes mobilizações da escatologia islâmica, ocupavam um papel central nos discursos de meus interlocutores muçulmanos (com ou sem origem árabe), como parte de suas identidades religiosas.

Desse modo, comecei a investir num projeto de pesquisa, ainda em andamento, sobre as formas pelas quais muçulmanos no Brasil produzem e transmitem conhecimento religioso articulado à morte a partir de diferentes arenas rituais e pedagógicas. Como os rituais funerários islâmicos são realizados no Brasil? Quais são os objetos e espaços mobilizados nesse tipo de ritual? Há diferenças nas percepções e práticas rituais entre nascidos muçulmanos e convertidos? Como cemitérios e túmulos muçulmanos contribuem para a inscrição do islã na paisagem local? No que segue, tentarei responder, parcialmente, a algumas dessas indagações tomando como ponto de partida o sistema de objetos e espaços funerários que fazem o morto muçulmano.

“Fazendo o morto muçulmano”

Nas diferentes tradições islâmicas, a morte pode ser classificada como um rito de passagem através do qual o muçulmano entraria em estágio liminar até o Dia do Julgamento Final. A crença nesse Dia e na vida após a morte é um dos elementos centrais da escatologia islâmica. Para a maioria dos muçulmanos, então, a vida terrena (duniya) é percebida como transitória, como parte de um longo processo de preparação que os conduzirá à vida eterna (akhirah) no paraíso (jannah).

De acordo com o Alcorão, as recompensas ou punições divinas a serem recebidas pelos crentes após o Julgamento Final dependerão de como eles vivenciaram as prescrições religiosas. Tais recompensas e punições são vivamente descritas através de passagens que podem evocar para o leitor imagens, sensações e emoções. O paraíso, por exemplo, é descrito a partir de belos jardins com árvores frutíferas e água fresca correndo em abundância. Já o inferno é o oposto, lugar de tormentas eternas onde o corpo dos condenados é punido de diferentes formas, em um cenário composto por labaredas de fogo e uma fonte com água fervente, a qual nunca sacia a sede (De Chatêl 2009:276DE CHÂTEL, Francesca. (2009), “Bathing in Divine Waters: Water and Purity in Judaism and Islam”. In: T. Tvedt; T. Oestigaard (Orgs.). A History of Water, v. 2. London: I. B. Tauris.). O corpo do muçulmano, nessa perspectiva, pode ser considerado como uma importante arena nas quais as recompensas ou punições divinas serão inscritas.

De forma mais ampla, a crença de que todos voltarão à vida em seus corpos no Dia do Juízo Final faz com que a cremação ou outras formas de destino final do corpo que não o seu enterro sejam entendidas pelas diferentes tradições islâmicas como uma prática proibida aos muçulmanos. Na literatura produzida por especialistas religiosos, por exemplo, há interpretações que recomendam que, em casos de amputação de algum órgão do corpo, o mesmo seja enterrado. Também deve-se proceder assim com fetos, em casos de aborto (espontâneo ou induzido)7 7 Há um debate entre teólogos muçulmanos sobre a questão do aborto induzido e as condições para sua realização. Com base nos textos canônicos da religião, a ideia é a de que a alma (ruh) só entraria no feto após 120 dias da concepção, ou seja, aos 4 meses de gestação. A partir de então, o feto passaria a ser concebido como “uma vida”. Com base nessa assertiva, em linhas gerais, diferentes concepções sobre quais seriam as condições para um aborto induzido foram elaboradas pelos especialistas religiosos muçulmanos. Há interpretações de juristas (fuqaha) que asseguram o direito da mulher abortar (a) em casos de violência sexual, (b) em casos em que a gestação apresente riscos de morte para a genitora e (C) em casos de má formação do feto. Para tais casos, é obrigatório que o aborto ocorra antes dos 120 dias de gestação. Aborto induzido após os 120 dias de gestação, quando a alma já habitaria o corpo, é considerado proibido pela maioria dos especialistas religiosos contemporâneos. Assim, é preciso analisar tais questões a partir dos contextos em que são acionadas. A lei islâmica (shari’a) não deve ser pensada como um código fixo, mas a partir de sua adaptabilidade aos diferentes contextos históricos e sociais (Pinto 2010a:93). Para uma discussão sobre o aborto em uma sociedade muçulmana, ver Gürsoy (1996). Para uma leitura sobre como essa questão é abordada em homepages de muçulmanos sem formação religiosa, no Brasil, ver http://www.amulhernoislam.com/2011/03/o-aborto-no-islam.html – Acessado em 15/11/14. .

No islã, as regras rituais que envolvem o tratamento do corpo morto buscam sua força normativa nos textos sagrados da tradição islâmica, aqui entendida conforme definição de Talal Asad como “discursos que visam instruir os praticantes a respeito do propósito e da forma correta de uma determinada prática que, precisamente porque foi estabelecida, têm uma história” (Asad 1986:14______. (1986), The Idea of an Anthropology of Islam. Washington: Georgetown University.). As diferentes construções da tradição islâmica, nesse sentido, encontram sua legitimidade a partir da produção de uma ortodoxia que, constituída em relações de poder específicas, pretendem regular as práticas e os discursos dos agentes religiosos (idem).

Assim, a pluralidade de formas de se interpretar e vivenciar o islã em diferentes contextos históricos e culturais fez com que detalhes que envolvem a preparação ritual do corpo do morto e o seu destino final fossem constantemente trazidos ao debate ao longo da história islâmica, seja por especialistas em jurisprudência islâmica (fiqh), seja por muçulmanos leigos. Nesse campo de debates e disputas, em que construções da tradição religiosa são mobilizadas acionando ortodoxias específicas, podemos incluir temas variados, como por exemplo, o tipo de tecido que envolverá o corpo do morto, formas tumulares a serem adotadas e quais devem ser evitadas, como realizar funerais muçulmanos em contextos de minorias religiosas etc.

Em sociedades europeias, por exemplo, em que a presença de muçulmanos é identificada com múltiplos processos migratórios envolvendo diferentes arenas de negociação e de conflitos políticos e simbólicos em torno de demandas por reconhecimento de direitos e de pertencimento religioso, questões relativas à morte e ao enterro do corpo são mobilizadas pelas comunidades muçulmanas de modos distintos. Se por um lado a obtenção de licenças para a construção de cemitérios muçulmanos pode singularizar uma suposta “identidade muçulmana” frente à sociedade englobante, por outro, as fronteiras rituais e doutrinais nas formas de se interpretar o islã podem assumir configurações mais ou menos porosas, dependendo do contexto.

Nesse sentido, das disputas e acomodações envolvendo as formas com que os rituais funerários devam ser conduzidos a partir de diferentes elaborações da tradição islâmica às requisições para que o corpo do morto seja enviado para ser enterrado no seu suposto “lugar de origem” (Gerdien 1996GERDIEN, Jonker. (1996), “The Knife’s Edge: Muslim Burial in the Diaspora”. Mortality: Promoting the Interdisciplinary Study of Death and Dying, v. 1, n. 1: 27-43.; Venhorst 2011VENHORST, Claudia et. al. (2011), “Re-imagining Islamic Death Rituals in a Small Town Context in the Netherlands: Ritual Transfer and Ritual Fantasy”. Jaarboek voor liturgieonderzoek, n. 27: 169-187.), os rituais funerários islâmicos são enfatizados como direito e como sinal de consideração à memória da pessoa morta, além de entendidos como uma obrigação coletiva que recai sobre a comunidade dos fiéis.

Os rituais islâmicos dispensados ao corpo do morto só devem ser praticados por e para muçulmanos, havendo uma classificação específica sobre que ação ritual deve ser realizada, de acordo com as condições da morte e da pessoa em questão8 8 Existe uma ampla literatura sobre questões que envolvem a morte e seus rituais no islã produzida tanto por especialistas religiosos quanto por leigos. Para cada “tipo” de morte e “pessoa” (crianças, mortos em combate, peregrinos em Meca etc.) há prescrições rituais específicas a respeito da preparação do corpo, das orações a serem feitas, dentre outras. Neste texto, a abordagem ritual se refere a muçulmanos que, de acordo com a perspectiva dos meus interlocutores, morreram em situações ditas “normais” (doença, morte natural e outras) e não “excepcionais” (conflitos ou peregrinação). Para um texto didático direcionado ao público muçulmano, ver Brahami (2005). O livro traz quadros explicativos, com desenhos indicando o passo a passo do ritual. Para uma perspectiva xiita, ver García (s/d). Sobre o assunto, também há muitos blogs e homepages em língua portuguesa, tanto vinculados à instituições quanto a indivíduos muçulmanos. . A preparação ritual do corpo do morto envolve um sistema de objetos, substâncias e preces. Além disso, as recomendações a respeito dos modos e locais de sepultamento devem ser observadas por aqueles que participarão (família, amigos, vizinhos, líderes religiosos, dentre outros) nos rituais, uma vez que esta é uma obrigação ritual coletiva. Essas pessoas, junto com o sistema de coisas mobilizado no ritual de acordo com as prescrições religiosas, fazem o corpo do morto muçulmano.

Regras rituais estabelecendo como proceder nesta tarefa de preparação do corpo do morto se pautam nos textos corânicos, nas hadiths e também na jurisprudência (fiqh). No entanto, dada a complexidade das informações trazidas pela literatura especializada, muitas vezes as lideranças religiosas das comunidades se encarregam de produzir materiais explicativos simplificados sobre o assunto, além de realizarem cursos sobre como proceder nesses rituais, como fui informada por uma das lideranças religiosas da mesquita sunita do Rio de Janeiro.

Em 2012, durante trabalho de campo realizado na comunidade muçulmana de Curitiba, visitei um amplo espaço localizado no andar inferior da mesquita local, dividido em duas salas. Na maior havia poltronas e cadeiras distribuídas ao longo das paredes. Dois enormes painéis retratando paisagens bucólicas decoravam o ambiente: árvores, flores, lagos, montanhas em uma alusão ao paraíso, tal como este pode ser imaginado a partir das várias descrições sobre sua beleza nos textos canônicos do islã. A sala é utilizada para receber os familiares do morto e outros membros da comunidade enquanto o corpo é preparado na outra sala menor, de forma reservada.

Na sala menor existe uma grande bancada de granito sobre a qual o corpo do morto é acomodado. Um chuveiro, uma maca, uma pequena mesa para guardar os materiais utilizados na lavagem e preparação do corpo (algodão, cânfora, gaze, sidr), além de uma prateleira com toalhas dobradas completam o ambiente. Esses objetos são manipulados por poucos membros da referida comunidade muçulmana, os quais são publicamente reconhecidos pelos demais como tendo conhecimento religioso necessário a respeito de como proceder durante esse ritual, além de serem pessoas que, de acordo com meus interlocutores, observam os valores islâmicos na vida cotidiana. Na concepção desses muçulmanos, aqueles que desempenham esse papel ritual de preparar os corpos, recebem méritos que lhes serão revertidos no momento de sua morte e de seu julgamento perante Deus.


Mesa com os materiais utilizados no ritual de preparação do corpo, Curitiba, janeiro de 2012


Bancada sobre a qual o corpo do morto é colocado, Curitiba, janeiro de 2012

Noções de pureza/impureza organizam vários rituais islâmicos. O corpo do crente, nesse sentido, é a principal arena na qual a produção ritual de pureza e impureza é inscrita. As cinco orações diárias, por exemplo, devem ser precedidas de abluções (wudu’), as quais implicam lavar partes do corpo (mãos, braços até os cotovelos, rosto, boca, nariz, orelhas e pés), seguindo uma ordem de execução e repetição, iniciada sempre do lado direito. Se no intervalo entre as orações esse estado de pureza corporal for rompido, como no caso de haver contatos com fluidos corporais (sangue, urina, sêmen etc.), tal como prescrito nas normas islâmicas, a ablução deve ser refeita.

Em caso de morte, faz-se uma espécie de ablução maior, envolvendo a lavagem completa do corpo (ghusl). Em geral, o muçulmano responsável pelo ritual também faz abluções antes e depois de preparar o morto, atividade que deve conduzir com uma boa intenção (niyya). Separações entre gêneros também são observadas na preparação do corpo. De acordo com as concepções dos muçulmanos com quem tive contato nas diferentes comunidades muçulmanas, mulheres e homens devem ter seus corpos preparados por muçulmanos de gêneros iguais aos seus. A exceção é o fato de o marido poder banhar a mulher morta e vice-versa. Em caso de bebês e crianças, as regras de lavagem e posterior envolvimento do corpo por um lençol não é exigida. Neste caso, a definição de criança na literatura religiosa especializada se refere, em geral, àquela que ainda não atingiu a puberdade (menstruação para meninas e surgimento de pêlos pubianos nos meninos). Todavia, tais definições de puberdade não são fixas, devendo ser analisadas nos contextos em que são mobilizadas. Após a preparação do corpo, segue-se uma oração fúnebre pelo morto. Se for mulher, o líder da oração (imam) se posiciona próximo à parte central do corpo. Se o morto for homem, sua posição é próxima à cabeça.

A preparação do corpo se inicia logo após detectada e declarada a morte. Tira-se a roupa do morto, cobrindo-se apenas suas partes íntimas com um tecido. Depois, diferentes movimentos são feitos com as mãos, pressionando levemente seu abdômen, para que os fluidos restantes saiam do seu corpo. Segundo meus interlocutores que desempenham essa atividade, o corpo e as secreções exalam um cheiro muito forte, podendo causar náuseas e ânsia de vômito. Como isso anularia a própria ablução e atrasaria o ritual, que precisa ser feito o mais rápido possível desde que se cumpram todas as etapas, é preciso que o preparador do corpo tenha autocontrole e a intenção de cumprir a atividade pela graça de Deus. Sobre o assunto, algumas posições teológicas defendem o uso de incensos para reduzir o odor, já outras são contra o uso de qualquer essência que não tenha como alvo o próprio corpo do morto. O tempo do ritual varia de acordo com a condição física do corpo (se não há feridas e cortes, por exemplo). Todas as secreções e fluidos corporais precisam ser estancados.

Em seguida, faz-se uma ablução no morto e depois seu corpo é lavado por inteiro, com água e sabão. A lavagem é sempre iniciada pelo lado direito, e depois é feita no lado esquerdo. De acordo com interpretações religiosas mais difundidas, o corpo deve ser lavado uma ou três vezes, sempre em número ímpar, conforme me explicou um dos líderes religiosos da comunidade sunita do Rio de Janeiro. Na última água do banho, colocam-se essências (cânfora, sidr ou outra que não tenha álcool em sua composição). Essa mistura de água e ervas específicas só é utilizada em caso de morte. Folhas de sidr, por exemplo, não existem no Brasil, mas são comuns no Oriente Médio. Assim, algumas de minhas interlocutoras muçulmanas de origem árabe me informaram que trazem essas folhas das viagens que fazem para o Líbano, ou ganham de parentes e amigos que moram ou viajam para lá. Já para alguns membros da comunidade do Rio de Janeiro, brasileiros convertidos e sem ascendência árabe, a cânfora é a essência mais usada e, segundo eles, já bastaria para a mistura. A cânfora é citada no Alcorão e em diferentes tradições atribuídas ao Profeta.

Perfumam-se também as partes do corpo que o muçulmano utilizava para realizar as orações. Com isso, mãos, testa, joelhos e pés são áreas importantes nessa ação ritual. A preocupação com o cheiro do corpo pode ser articulada a duas motivações. A primeira refere-se ao fato de o perfume estar associado à limpeza e pureza, ao Profeta e, em última instância, ao sagrado. É comum, por exemplo, muçulmanos se referirem ao Profeta pelo perfume de rosas que ele exalava. Já a segunda pode ser vinculada à crença islâmica de ressurreição do corpo e, logo, o desejo de que ele esteja de acordo com as normas religiosas.

Nessa direção, para a maioria dos muçulmanos, ter o direito assegurado de que seu corpo e seu enterro sejam preparados conforme rituais funerários islâmicos assume uma importante dimensão. No caso de muçulmanos brasileiros convertidos sem ascendência árabe, e que não sejam casados com pessoas da mesma religião, essa questão, muitas vezes, é “uma angústia”, de acordo com a declaração de uma jovem muçulmana brasileira que vive no Rio de Janeiro. Ela, assim como outros muçulmanos convertidos com os quais tenho contato, são os únicos muçulmanos de suas famílias e precisam confiar nelas para que suas opções religiosas sejam respeitadas até depois da morte. Lideranças das mesquitas do Rio de Janeiro e de Curitiba me informaram que, no caso de brasileiros convertidos, alguns estão optando por fazer declarações e registrá-las em cartório. No documento, atestam que são muçulmanos e que têm o direito de serem enterrados de acordo com as prescrições islâmicas. Isso evitaria casos de famílias não muçulmanas que não aceitam a conversão de algum de seus membros, não respeitando sua decisão pela forma de enterro islâmico. Situações assim já aconteceram no Rio de Janeiro, conforme me foi relatado por um dos meus interlocutores. A família do morto, nesse caso, não contatou a comunidade muçulmana da qual ele fazia parte para comunicar o falecimento, dando-lhe um enterro cristão.

Questões envolvendo rituais de preparação e enterro do corpo do morto também podem canalizar conflitos e expressar ambiguidades sobre seus significados entre os diferentes atores que deles participam, inclusive em contextos nos quais práticas rituais funerárias são influenciadas por perspectivas islâmicas. Em contextos europeus contemporâneos, a morte de imigrantes muçulmanos e seus descendentes de diferentes grupos étnicos pode provocar tais sentimentos de angústia nos familiares que vivem em seus países de origem. Gerdien Jonker (1996)GERDIEN, Jonker. (1996), “The Knife’s Edge: Muslim Burial in the Diaspora”. Mortality: Promoting the Interdisciplinary Study of Death and Dying, v. 1, n. 1: 27-43., neste sentido, destaca que vários funerais de imigrantes muçulmanos que são feitos na Alemanha são filmados e fotografados a pedido dos familiares, ou como desejo manifestado em vida pelo morto. O material é enviado para os familiares como “prova” de que o corpo foi preparado e enterrado conforme prescrito pelas normas religiosas, dando-lhes “conforto” em saber que o corpo do ente falecido não foi cremado.

Para finalizar o ritual, enrola-se o corpo do morto em tecido branco (kafan), geralmente algodão (que pode ser lençol), o qual também é perfumado com essências. O corpo de um homem pode ser enrolado em até três peças do tecido. Para as mulheres, recomendam-se cinco tecidos, deixando seus cabelos soltos, partidos ao meio. Os tecidos são arrumados uns sobre os outros em uma mesa ou bancada, e o corpo é colocado sobre eles. O corpo, então, é envolvido seguindo uma ordem: o primeiro tecido é dobrado sobre o corpo, iniciando pelo lado direito e finalizando pelo esquerdo. Tal procedimento é repetido com os outros tecidos. Terminada essa arrumação, os tecidos são amarrados nas extremidades do corpo. Este ritual de arrumação do corpo é igual para a mulher, com exceção de que seu corpo pode ter mais tecidos para ser envolvido, como ressaltado acima. Os tecidos são comprados por familiares ou amigos. Porém, não há impedimentos doutrinais de que, enquanto vivos, muçulmanos possam, eles próprios, comprar o tecido em que desejam ser envolvidos, nem a obrigação de que os tecidos sejam totalmente novos. Contudo, eles precisam estar limpos. Há casos de peregrinos que vão à Meca e trazem de lá suas próprias mortalhas. Feito o corpo do morto muçulmano, ele já pode ser colocado em um caixão e levado para o cemitério/sepultura.

A comunidade muçulmana de Curitiba, composta majoritariamente por árabes e seus descendentes, se singulariza no campo das comunidades muçulmanas no Brasil por reunir sunitas e xiitas no cotidiano ritual de sua única mesquita, como por exemplo, nos sermões e orações. Assim, diferente de outras comunidades religiosas que definem suas identidades e instituições a partir de pertencimentos específicos ao islã xiita ou sunita, a de Curitiba “(...) produziu um consenso interpretativo ancorado em entendimentos doutrinários e práticas rituais compartilhados. Esta estratégia permitiu a incorporação de valores e práticas da cultura árabe na cosmologia religiosa [elaborada localmente]” (Pinto 2013a:236______. (2013a), “Imigrantes e convertidos: etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no Brasil”. In: S. Montenegro & F. Benlabbah (Orgs.). Muçulmanos no Brasil: comunidades, instituições, identidades. Rosário: Universidad Nacional de Rosario Editora.), fator que contribui para a produção de uma identidade religiosa articulada a um pertencimento étnico.

Um dos meus interlocutores, brasileiro xiita com ascendência árabe, afirmou que na referida comunidade as divergências doutrinais e rituais existentes entre sunitas e xiitas são, de certa forma, minimizadas em relação à ideia mais ampla de que todos são muçulmanos. Nesse sentido, um grande painel com a imagem da Caaba e de peregrinos muçulmanos em Meca se destaca no interior da mesquita, podendo ser percebido como um recurso mnemônico de que todos pertencem ao mesmo sistema religioso e de que a comunidade local reflete a própria diversidade do islã.

No entanto, de acordo com meu interlocutor, as formas de pertencimento ao islã podem fazer diferença para alguns membros da referida comunidade em contextos específicos, como no caso dos rituais funerários. Em uma conversa, um dos responsáveis locais, de origem árabe e xiita e que desempenha o papel ritual de preparar os mortos para o enterro, relatou um episódio no qual prepararia o corpo de um muçulmano sunita, membro da comunidade local. A família do morto, de acordo com meu interlocutor, teria feito objeção a que ele praticasse o ritual, preferindo contatar um líder religioso sunita, residente em outro município, para realizar os rituais no corpo do falecido. No entanto, para a maioria dos muçulmanos locais com quem conversei sobre o assunto, essas tensões não são comuns e que, em geral, quando se trata de um morto sunita, membros dessa vertente auxiliam meu interlocutor xiita na preparação do corpo.

No contexto de Curitiba, os rituais de lavagem do corpo são feitos da mesma forma para xiitas e sunitas, variando apenas em relação a algumas preces funerárias específicas a cada uma das correntes de pertencimento ao islã. Já no Rio de Janeiro, em que a pesquisa foi conduzida na comunidade sunita, meus interlocutores afirmaram seguir as orientações de acordo com os preceitos normativos do islã na preparação do corpo do morto e que desconhecem, por exemplo, se existem práticas específicas xiitas para esse ritual.

Rituais fúnebres, no sentido aqui proposto, têm uma dimensão pedagógica, pois coloca em contexto concepções religiosas que são reafirmadas e materializadas através de objetos rituais, principalmente do corpo. Mas por conta disso, também são arenas de disputas e conflitos entre conhecimentos e práticas religiosas distintamente produzidas a partir de diferentes formas de se imaginar e experienciar o islã pelos muçulmanos, como demonstrado no exemplo etnográfico acima de como fazer o morto muçulmano. A centralidade desses ritos na vida religiosa dos meus interlocutores, nos leva a examinar outras formas de sua expressão que conectam materialmente o morto, já feito, nesta e na outra vida: os cemitérios.

Enterrando o morto: os cemitérios muçulmanos

A existência de cemitérios exclusivamente muçulmanos no Brasil remonta a década de 1980, sendo construídos em Guarulhos (São Paulo) e em Curitiba (Paraná). Já em outras comunidades muçulmanas, como as de Florianópolis e de Foz do Iguaçu, os muçulmanos são sepultados em cemitérios cristãos, mas numa área especial reservada a eles, geralmente adquirida pela comunidade/instituição local. Já no Rio de Janeiro, os líderes da comunidade recomendam, de forma geral, que os muçulmanos sejam enterrados em cemitérios parques, como o Jardim da Saudade, localizado em Sulacap. A compra de um terreno para a construção de um cemitério islâmico no Rio de Janeiro está nos planos da instituição local.

Em 2012, visitei um dos cemitérios exclusivamente muçulmanos existentes no Brasil. Localizado em um bairro afastado9 9 Optei por não identificar o nome e a local do cemitério em questão. O trabalho aqui apresentado é parte de um projeto de pesquisa mais amplo, financiado pela FAPERJ, na modalidade de bolsa de pós-doutorado (2011-2014). , o cemitério ocupa uma grande área verde, na qual os túmulos estão harmonicamente distribuídos, lado a lado. Embora haja um padrão estabelecido para as formas tumulares, ele pode nos revelar diferentes imaginações sobre as estéticas funerárias adotadas pela comunidade. Na parte mais antiga do cemitério, aqui considerada como aquela que recebeu os primeiros sepultamentos, ainda na década de 1980, os túmulos são feitos em granito em tons que variam entre cinza, marrom e bege, numa arquitetura tumular parecida com a usada em cemitérios do Oriente Médio, principalmente Síria e Líbano, países de origem de vários membros daquela comunidade. Após a construção deste espaço ritual que conecta ao sagrado islâmico, familiares de muçulmanos enterrados em outros cemitérios fizeram transferência de seus restos mortais para o cemitério muçulmano. De acordo com meus interlocutores, tal prática não é recomendada nas fontes normativas do islã que versa sobre os rituais fúnebres, mas em situações diaspóricas e em contextos em que o islã não é a principal comunidade religiosa, há espaços de manobra para que determinadas práticas religiosas sejam localmente negociadas e organizadas pelos agentes religiosos. Nesse caso, os restos mortais ocupam jazigos menores.

Já a outra parte do cemitério, ocupada com as sepulturas mais recentes, foi elaborada segundo estética dos cemitérios parques, seguindo um “modelo” arquitetônico funerário mais contemporâneo, inclusive no Brasil. Nelas, de acordo com as prescrições islâmicas, os corpos são sepultados diretamente na terra, sem o uso de caixões, e de forma que a cabeça do morto fique direcionada à Meca. Os caixões são usados apenas para transportar o morto; em geral, da mesquita ao cemitério, e depois são doados para instituições de assistência social para serem reutilizados.

No entanto, por conta da legislação brasileira a respeito dos lençóis freáticos, esta prática de enterrar o corpo diretamente na terra não é permitida pelas agências reguladoras, exceto em casos em que haja cuidados técnicos específicos, como no caso dos cemitérios exclusivamente muçulmanos. Em outros contextos, como no Rio de Janeiro, é possível que, em algumas situações, o sepultamento do corpo seja feito em caixão aberto, de acordo com informações obtidas junto aos muçulmanos locais.


Sepulturas localizadas no “setor antigo” do cemitério muçulmano, maio de 2013

Sobre os túmulos, são colocadas placas de identificação do morto. Feitas em granito escuro, elas trazem escrito em cor dourada o nome e sobrenome, datas de nascimento (simbolizada por uma estrela) e de morte (simbolizada por uma lua crescente) do muçulmano ali enterrado. Acima desta identificação, estão escritas (em língua árabe) as frases corânicas “Em nome de Deus, o clemente, o misericordioso” (“bismillah al-rahman al-rahim”) e “E toda alma provará da morte” (“kul nafs dha’iqa al-mawt”). Em algumas placas, retratos dos falecidos são fixados, além de epitáfios de familiares contendo uma pequena biografia do morto e os sentimentos de alegria por tê-lo em vida e a dor/saudade pela perda. Combinações que conectam a pessoa e a sepultura, a vida e a morte, ao islã e à eternidade.

Com relação à estética das formas tumulares, segundo meus interlocutores, embora existam recomendações religiosas para que não haja túmulos que possam expressar qualquer elemento que faça sugestão de distinção social entre os mortos, nem sempre os limites dessas expressões são consensuais10 10 Essa questão também é investida de disputas teológicas ao longo da história do islã. Túmulos de santos muçulmanos ou de personagens ligados à história da religião são visitados em várias sociedades muçulmanas, inclusive em contextos contemporâneos, estando inseridos em circuitos de peregrinação local, nacional e transnacional. Logo, interpretações e mecanismos de inclusão e exclusão de elementos estéticos funerários, nesse caso, devem ser observados e problematizados em contexto. . Na visita que fiz ao cemitério, por exemplo, pude perceber que em vários túmulos havia jarros de flores, alguns com flores de plástico. Meu interlocutor se queixou com o zelador do cemitério sobre muitas coroas de flores depositadas sobre um único túmulo. A ideia contida em sua fala era a de que o cemitério não deveria parecer com um cemitério cristão, no qual, segundo ele, tem flores e “coisas” em excesso sobre os túmulos.

Os cemitérios cristãos, na concepção de meu interlocutor, além de conter túmulos em estilos arquitetônicos suntuosos, também são decorados com imagens de santos e anjos em formas humanas, práticas de representação que, segundo ele, não estão de acordo com a doutrina islâmica. Tais práticas destoariam, então, dos significados da morte no islã, que prega a igualdade de todos e a simplicidade dos túmulos, de acordo com sua opinião.



Sepulturas mais recentes do cemitério muçulmano, maio de 2013

Assim como os cemitérios cristãos, os cemitérios muçulmanos se configuram como um espaço do sagrado em que ideias e valores sobre vida e morte são materializadas e tornadas públicas tanto para os muçulmanos como para os não muçulmanos. Atentar para essas formas materiais de expressão do islã no contexto brasileiro nos permite perceber os diferentes pontos de acomodação e de distanciamento que são criados entre as diferentes perspectivas religiosas presentes no Brasil. A estética do cemitério muçulmano aqui analisado, nesse sentido, se é elaborada em contraponto a um suposto “modelo cristão”, por outro lado, também segue algumas características presentes nesses cemitérios, como no caso da utilização de fotos nos túmulos ou de placas narrando a biografia do morto (Motta 2009MOTTA, Antonio. (2009), “Formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 71: 73-93.).

À guisa de conclusão

Seguindo diferentes percursos teóricos e metodológicos, a literatura antropológica voltada para estudos sobre religião aponta para a multiplicidade de formas pelas quais diferentes tradições religiosas, em diversos contextos históricos e culturais, produzem, transmitem e circulam significados sobre a vida, a morte e a relação dos vivos com os mortos. Tais concepções são, na maioria das vezes e num sentido amplo, ritualizadas e materializadas em objetos, substâncias e espaços que, ao mesmo tempo em que são criados e transformados pelos agentes religiosos, também podem transformá-los.

Desde o seminal trabalho de Robert Hertz (1960[1907])HERTZ, Robert. (1960[1907]), Death and the Right Hand. Glencoe: The Free Press. à abordagens mais contemporâneas sobre a morte e seus rituais, o corpo do morto é tomado como uma das arenas privilegiadas da atenção antropológica, seja em análises de rituais e tratamentos funerários a ele dispensados, seja em abordagens voltadas para compreender como diferentes fenômenos da vida social (movimentos migratórios, transnacionalização religiosa, conflitos político-religiosos, dentre outros) afetam, reforçam ou provocam transformações culturais relacionadas a morte (Venhorst 2011VENHORST, Claudia et. al. (2011), “Re-imagining Islamic Death Rituals in a Small Town Context in the Netherlands: Ritual Transfer and Ritual Fantasy”. Jaarboek voor liturgieonderzoek, n. 27: 169-187.; Motta 2009MOTTA, Antonio. (2009), “Formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 71: 73-93.).

Nesse sentido, este artigo procurou abordar concepções e práticas associadas à morte no islã, tendo como foco de análise os rituais de preparação e o destino final do corpo do morto. Para tanto, o caminho aqui proposto foi o de acompanhar o corpo do morto nos diferentes rituais a que ele é submetido, explorando como diferentes objetos e espaços funerários fazem o “morto muçulmano” no contexto brasileiro, onde as expressões do islã são minoritárias.

Tendo como ponto de partida analítica a ideia de que os objetos têm uma dimensão pedagógica no sentido em que nos ajudam “a aprender como agir da forma apropriada” (Miller 2010:83MILLER, Daniel. (2013), Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.) e que, com isso, “dá contorno e forma à ideia de que os objetos fazem as pessoas” (idem), procurei alargar essa discussão focando no corpo do morto muçulmano. Como um objeto (Mauss 2003:407MAUSS, Marcel. (2003), Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify.), esse corpo ocupa um papel central nos rituais funerários islâmicos e é transformado em uma arena em que diferentes concepções religiosas, técnicas, coisas, objetos, lugares e pessoas são inscritas. Agindo em conjunto, tais elementos fazem e afirmam o corpo do morto como um corpo muçulmano. Ao mesmo tempo, esse mesmo corpo muçulmano, morto, transforma as pessoas, objetos, técnicas, coisas, concepções religiosas e lugares com os quais ele entra em contato de diferentes maneiras, como descritos nos exemplos etnográficos anteriores. Acompanhar a trajetória do corpo do morto muçulmano, desde sua preparação ao enterro em um cemitério muçulmano, foi a intenção desta discussão.

As comunidades e instituições muçulmanas no Brasil estão passando por importantes transformações em suas configurações internas e externas, contribuindo, ainda que de forma sutil, para diversificação do campo religioso brasileiro, tanto através de mecanismos para a divulgação do islã objetivando conversões de brasileiros, quanto através da sua inscrição na paisagem religiosa local e na memória coletiva da comunidade, criando um sentimento de permanência e de pertencimento, um lugar, para seus membros em um contexto em que o islã é minoria religiosa (Pinto 2015______. (2015), “Conversion, Revivalism, and Tradition: the Religious Dynamics of Muslim Communities in Brazil”. In: M. del M. L. Narbona et. al. Crescent over Another Horizon: Islam in Latin America, The Caribbean and Latino USA. Austin: University of Texas Press.).

Os cemitérios muçulmanos, nesse sentido, são expressões materiais do sagrado que contribuem para a visibilidade destas comunidades sendo importantes marcadores tanto da identidade do imigrante muçulmano que faz do Brasil sua terra escolhida para viver e morrer, quanto do brasileiro convertido que faz a escolha pelas concepções islâmicas através das quais terá seu corpo e túmulo preparados no momento da morte. Através dos cemitérios e das diferentes perspectivas estéticas e doutrinais que os orientam e os conectam com o sagrado em diferentes momentos históricos, podemos ver não apenas as mudanças nas formas de interpretar e praticar as ideias religiosas que são materializadas em corpos, túmulos, lápides, decoração etc., mas também perceber as mudanças que ocorrem no próprio campo religioso brasileiro. Religião e materialidade, no sentido aqui proposto, são inseparáveis do ponto de vista etnográfico.

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Notas

  • 1
    Segundo os relatos de ‘Abdurahman al-Baghdadi al-Dimachqi, um especialista religioso (‘alim) otomano que chegou ao país em 1866, os muçulmanos africanos se concentravam nas cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Recife, onde realizavam, ainda que de modo privado, rituais religiosos como as orações de sexta-feira e o jejum no mês do Ramadan (Pinto 2010a:202-3PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. (2010a), Islã: religião e civilização, uma abordagem antropológica. Aparecida: Santuário.). Sobre a organização e a dinâmica da vida religiosa dos escravos muçulmanos no Brasil, ver também os trabalhos de João José Reis (2003)REIS, João José. (2003), Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês. São Paulo: Companhia das Letras. e Alberto da Costa Silva (2004)COSTA E SILVA, Alberto. (2004), “Comprando e vendendo Alcorões no Rio de Janeiro do século XIX”. Estudos Avançados, v. 18, n. 50: 285-294..
  • 2
    Estudos acadêmicos sobre a imigração árabe no Brasil apontam para a diversidade dos aspectos sociais e culturais que envolveram os processos de construção identitária e de inserção desses imigrantes na sociedade local (Pinto 2010b______. (2010b), Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro: Viva.; Karam 2007KARAM, John T. (2009), Um outro arabesco: etnicidade sírio-libanesa no Brasil neoliberal. São Paulo: Martins Fontes.). Em linhas gerais, a chegada aqui de imigrantes de fala e cultura árabe provenientes do Oriente Médio iniciou-se nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, e era composta majoritariamente por cristãos. Já a imigração de árabes muçulmanos para o Brasil cresceu a partir da década de 1970, em decorrência dos conflitos na região de origem (guerras envolvendo Israel e países árabes, assim como a guerra civil libanesa). Em termos de pertencimento religioso, as comunidades árabes no Brasil apresentam uma configuração bastante plural, sendo compostas por denominações cristãs (católicos romanos, maronitas, melquitas, gregos-ortodoxos) e muçulmanas (sunitas, xiitas, alauítas e druzos). Sunitas e xiitas são as maiores vertentes do islã. Os processos de diferenciação doutrinal e ritual entre essas duas comunidades ocorreram ao longo do tempo, ficando mais evidentes a partir dos séculos IX e X. Apesar de compartilharem, em linhas gerais, os cinco pilares do islã (Testemunho de fé, orações, jejum, zakat (espécie de dízimo) e a peregrinação a Meca), elas guardam algumas diferenças na forma de conceber a revelação. O sunismo baseia suas doutrinas e rituais no Alcorão e nas tradições relativas à vida do Profeta Muhammad (Sunna), com a interpretação e aplicação das doutrinas religiosas sendo administradas por especialistas religiosos. Já o xiismo baseia o seu sistema doutrinário e ritual no texto corânico e na mensagem esotérica dos Imams (descendentes de Maomé pela linha de Ali e Hussein), sendo os detentores das funções jurídicas e religiosas aqueles que têm, na hierarquia religiosa, o título de ayatollah ou marja (fonte de inspiração). Na tradição do xiismo duodecimano, os 12 imams teriam recebido diretamente do Profeta conhecimentos esotéricos e mundanos que os possibilitariam guiar os fiéis, por isso, são tidos como fontes de veneração e como modelos de moralidade e perfeição, funcionando como um elo infalível entre Deus e os homens. Neste sentido, a devoção aos imams é parte da vida religiosa dos xiitas e entendida como meio para se conquistar a salvação. Tais concepções contribuíram para o desenvolvimento de diferentes aspectos doutrinais e rituais em cada uma das vertentes, além de outras ramificações internas. Sobre o assunto, ver Pinto 2010aPINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. (2010a), Islã: religião e civilização, uma abordagem antropológica. Aparecida: Santuário..
  • 3
    Para uma análise sobre os muçulmanos e o Censo de 2010, ver Pinto 2013b______. (2013b), “Islã em números: os muçulmanos no Censo Demográfico de 2010”. In: F. Teixeira & R. Menezes (Orgs.). Religiões em movimento: o Censo de 2010. Petrópolis: Vozes..
  • 4
    Instituição criada em 1979 com o objetivo de “fortalecer as associações muçulmanas e a divulgação do islã no Brasil”. Dados retirados da página oficial da instituição: http://www.fambras.org.br/pt/Oislam/PopulacaoIslamica – Acessado em 29/04/15.
  • 5
    Para as dinâmicas que envolvem a conversão de brasileiros ao islã, ver os textos da coletânea organizada por Sílvia Montenegro e Fatiha Benlabbah (2013)MONTENEGRO, Silvia & BENLABBAH, Fatiha (Orgs.). (2013), Muçulmanos no Brasil: Comunidades, Instituições, Identidades. Rosário: Universidad Nacional de Rosario Editora.. Outro aspecto a ser ressaltado e que atravessa vários dos textos do referido livro é o emprego das categorias “conversão” e “reversão” para classificar aqueles que adotaram o islã como religião em algum momento de sua trajetória pessoal. O emprego do termo “reversão” está pautado em uma interpretação de que todos os seres humanos nascem muçulmanos, mas alguns se desviam no caminho. Quando optam pelo islã como doutrina religiosa, eles retornam à religião original. Sobre o assunto, ver o capítulo de Francirosy Campos Barbosa Ferreira (2013)FERREIRA, Francirosy Campos Barbosa. (2013), “Observando o islã em São Paulo: nascidos e revertidos ao Islã”. In: S. Montenegro; F. Benlabbah (Orgs.). Muçulmanos no Brasil: comunidades, instituições e identidades. Rosario: Universidad Nacional de Rosario Editora.. Neste artigo, emprego os termos “convertido” e “nascido muçulmano” (para designar àqueles pertencentes a famílias muçulmanas e que foram socializados no islã ainda crianças) no intuito de manter os termos empregados por meus interlocutores para classificarem a si próprios e aos outros membros da comunidade, em diferentes momentos e contextos de pesquisa – Rio de Janeiro (2005; 2011 a 2014) e Paraná (2012 a 2013).
  • 6
    Há um Trabalho de Conclusão de Curso de graduação em Enfermagem, de Mariana de Araújo da Costa Brasileiro (2009)BRASILEIRO, Mariana de Araújo da Costa. (2009), O paciente e a família muçulmana no processo de morte e o morrer: uma revisão da literatura. São Paulo: Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Enfermagem, UNIP. que estuda os processos de morte e o morrer envolvendo pacientes muçulmanos e seus familiares no Brasil. O trabalho aborda, em linhas gerais, os cuidados paliativos com pacientes muçulmanos e os procedimentos com o corpo, em caso de morte.
  • 7
    Há um debate entre teólogos muçulmanos sobre a questão do aborto induzido e as condições para sua realização. Com base nos textos canônicos da religião, a ideia é a de que a alma (ruh) só entraria no feto após 120 dias da concepção, ou seja, aos 4 meses de gestação. A partir de então, o feto passaria a ser concebido como “uma vida”. Com base nessa assertiva, em linhas gerais, diferentes concepções sobre quais seriam as condições para um aborto induzido foram elaboradas pelos especialistas religiosos muçulmanos. Há interpretações de juristas (fuqaha) que asseguram o direito da mulher abortar (a) em casos de violência sexual, (b) em casos em que a gestação apresente riscos de morte para a genitora e (C) em casos de má formação do feto. Para tais casos, é obrigatório que o aborto ocorra antes dos 120 dias de gestação. Aborto induzido após os 120 dias de gestação, quando a alma já habitaria o corpo, é considerado proibido pela maioria dos especialistas religiosos contemporâneos. Assim, é preciso analisar tais questões a partir dos contextos em que são acionadas. A lei islâmica (shari’a) não deve ser pensada como um código fixo, mas a partir de sua adaptabilidade aos diferentes contextos históricos e sociais (Pinto 2010a:93PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. (2010a), Islã: religião e civilização, uma abordagem antropológica. Aparecida: Santuário.). Para uma discussão sobre o aborto em uma sociedade muçulmana, ver Gürsoy (1996)GÜRSOY, Akile. (1996), “Abortion in Turkey: A Matter of State, Family or Individual Decision”. Social Science & Medicine, v. 42, n. 4: 531-542.. Para uma leitura sobre como essa questão é abordada em homepages de muçulmanos sem formação religiosa, no Brasil, ver http://www.amulhernoislam.com/2011/03/o-aborto-no-islam.html – Acessado em 15/11/14.
  • 8
    Existe uma ampla literatura sobre questões que envolvem a morte e seus rituais no islã produzida tanto por especialistas religiosos quanto por leigos. Para cada “tipo” de morte e “pessoa” (crianças, mortos em combate, peregrinos em Meca etc.) há prescrições rituais específicas a respeito da preparação do corpo, das orações a serem feitas, dentre outras. Neste texto, a abordagem ritual se refere a muçulmanos que, de acordo com a perspectiva dos meus interlocutores, morreram em situações ditas “normais” (doença, morte natural e outras) e não “excepcionais” (conflitos ou peregrinação). Para um texto didático direcionado ao público muçulmano, ver Brahami (2005)BRAHAMI, Mostafa. (2005), Les rites funéraires em Islam. Lyon: Tawhid.. O livro traz quadros explicativos, com desenhos indicando o passo a passo do ritual. Para uma perspectiva xiita, ver García (s/d)GARCÍA, Sheij Husein Abd al Fatah. (s/d), Usos funerários islámicos: prontuario practico de acuerdo com la tradición jurisprudencial de la escuela doctrinal y legal Ya’fari. Biblioteca Islámica Ahlul al Bait. Disponível em: http://www.islamchile.com/libros/Libros/pdf/l007.pdf – Acessado em 20/06/14.
    http://www.islamchile.com/libros/Libros/...
    . Sobre o assunto, também há muitos blogs e homepages em língua portuguesa, tanto vinculados à instituições quanto a indivíduos muçulmanos.
  • 9
    Optei por não identificar o nome e a local do cemitério em questão. O trabalho aqui apresentado é parte de um projeto de pesquisa mais amplo, financiado pela FAPERJ, na modalidade de bolsa de pós-doutorado (2011-2014).
  • 10
    Essa questão também é investida de disputas teológicas ao longo da história do islã. Túmulos de santos muçulmanos ou de personagens ligados à história da religião são visitados em várias sociedades muçulmanas, inclusive em contextos contemporâneos, estando inseridos em circuitos de peregrinação local, nacional e transnacional. Logo, interpretações e mecanismos de inclusão e exclusão de elementos estéticos funerários, nesse caso, devem ser observados e problematizados em contexto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    Nov 2014
  • Aceito
    Abr 2015
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