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Editorial

Religião & Sociedade neste número publica um conjunto de textos que chegaram à revista atendendo a uma convocação intitulada “Religião e política em outros termos”. Os “outros termos” invocados na proposta que acompanhou a convocação dizem respeito às formas pelas quais podemos pensar a própria relação entre religião e política. Afinal, se religião e política em algum modo de coordenação são praticamente onipresentes no mundo contemporâneo, pensar a sua relação torna-se um problema de primeira ordem. Nessa linha, os editores apostaram na pergunta: como tratar de religião e política sem considerá-las como esferas definidas de antemão e extrinsecamente uma à outra? Sugerimos, entre outras possibilidades para enfrentar tal pergunta, conceitos como “jurisdição”, “soberania”, “espacialidade” e “visibilidade”; propostas que apelam a uma antropologia dos objetos ou a uma sociologia dos agentes; problematizações históricas acerca das próprias concepções e fronteiras de “religião” e “política”. Eram, de fato, provocações, pois o que nos interessava sobretudo era chegar a um conjunto variado de abordagens e temas, variado o suficiente para alimentar a reflexão sobre múltiplas possibilidades de relacionar religião e política. É por essas razões que esperamos estar contribuindo para instituir sempre “outros termos” mesmo quando se trata de retomar antigas questões e insistir em realidades já conhecidas.

O texto de Bruce Kapferer, originalmente publicado em 2002 e traduzido especificamente para inclusão neste número, é um exercício criativo de reflexão para além dessas conceptualizações clássicas. Através de um debate acerca da “modernidade” da feitiçaria no Sri Lanka, Kapferer argumenta que, assumindo um carácter cosmológico e gerador de significados imbuídos nos processos sociais, a feitiçaria revela precisamente uma condição de irredutibilidade semântica que certamente dificulta o trabalho do antropólogo obcecado pelas lógicas significativas, mas ao mesmo tempo lhe permite ir além de uma análise representacional acerca das cosmologias que lhe são implícitas.

O texto que abre o conjunto de artigos inéditos sobre religião e política, de Maria das Dores Campos Machado, lança novos dados sobre o envolvimento de religiosos na política institucional no Brasil, mais especificamente as percepções políticas e as iniciativas de líderes carismáticos e pentecostais para a formação de quadros políticos. A pesquisa de Machado destaca a capacidade de organização, formação de novos quadros e mobilização política de evangélicos pentecostais e carismáticos católicos. Carbonelli, em seguida, apresenta-nos situação semelhante, ao discutir o papel assumido por pastores evangélicos na execução de políticas públicas, especificamente a assistência social em bairros populares da região metropolitana de Buenos Aires. O autor dá destaque a um pastor evangélico, que é ao mesmo tempo “militante kirchnerista, referente barrial, representante del Estado”, apontando como essas identidades, longe de entrarem em contradição, se condensam e se potencializam. Nesse caso, a religião é um fenômeno político, e a política passa pela religião.

Tamimi Arab concluiu em 2015 seu doutorado na Holanda acerca das mesquitas e seu lugar no espaço social. No texto aqui traduzido, o autor oferece-nos uma visão diacrônica, recuperando o modo como as procissões foram tratadas, tomando como referência uma lei do século XIX. Isso permite desenvolver uma discussão acerca do estatuto do catolicismo na Holanda, abordado em suas dimensões espaciais: a construção de templos, o badalar de sinos e a realização de rituais públicos. Tamimi Arab argumenta, a propósito desse estatuto do catolicismo, que teria ocorrido uma passagem da proibição à assimilação (como mostra o espetáculo público da Paixão que vem acontecendo nos últimos anos), sugerindo que algo semelhante poderia se passar com os muçulmanos na Holanda.

O texto de Guillermo Martín-Sáiz também aborda o Islã num contexto de pluralismo e hegemonias cristãs e/ou seculares e minorias religiosas. Partindo do estudo de caso da presença do movimento transnacional Tablighi Jama’at em Barcelona, Espanha, o autor oferece-nos uma etnografia dos dilemas e debates que se produzem na vida de muçulmanos inseridos num contexto de mobilidade, circulação e vida urbana. Aqui, apercebemo-nos de que a corrente pietista que os caracteriza não só incorpora uma vertente teo-ideológica, mas também responde a problemas decorrentes da experiência de desigualdade e discriminação que os muçulmanos conhecem enquanto residentes no espaço europeu. Aparece então como mecanismo de “reconstrução” num contexto público de acesso e participação desigual.

Em seguida, temos dois textos que tratam da participação de religiosos em instâncias e controvérsias políticas. Lilian Sales enfoca as audiências públicas que ocorreram no âmbito do Supremo Tribunal Federal brasileiro a propósito da interrupção da gravidez de fetos com anencefalia e do uso de embriões humanos para fins de pesquisa científica. Já Roberta Campos, Eduardo Gusmão e Cleonardo Mauricio Junior tratam em seu artigo dos embates que opõem duas figuras públicas importantes no cenário brasileiro contemporâneo, encenando um embate entre defensores de direitos sexuais e da liberdade religiosa. Ambos os textos levantam discussões valiosas sobre a presença de atores e argumentos religiosos em debates públicos, relacionados diretamente ao Estado e suas leis; sobre sua relação com atores e argumentos de natureza científica e jurídica, colocando em questão essas definições; sobre disputas que colocam em jogo o que seja vida e o que seja direito. Assim como no texto de Tamimi Arab, tais discussões envolvem diretamente os temas da laicidade e do secularismo, as formas como se configuram no Brasil e o campo contingente de posições em conflito.

Guillermo Barón traz-nos um estudo de caso pouco explorado e de certa forma “contraintuitivo” no que diz respeito à opinião pública: a relação entre a esquerda movimentária e movimentos católicos, em particular aqueles associados ao cristianismo de libertação, na Argentina da década de 1980. Através do estudo de caso de discursos ecumênicos e editoriais jornalísticos da época, o autor identifica uma “matriz ideológica cristã” no seio da “esquerda social”, através de conceitos circulantes de utopia, messianismo, modernidade etc. Por outro lado, abordando um contexto temporal e geograficamente vizinho ao anterior, Miguel Ángel Mansilla, Luis Orellana e Wilson Muñoz buscam, em seu texto, complexificar o quadro relacionado ao envolvimento de evangélicos/protestantes com a política no período da ditadura chilena. Analisam os pronunciamentos de entidades e lideranças religiosas em dois momentos, que contrastam na sua posição em relação ao regime de Pinochet.

O texto de Catarina Morawska Vianna também aborda a relação entre catolicismo, política e movimentos sociais, embora neste caso através da componente do ativismo cristão e da continuidade e/ou ruptura com modelos seculares de “trabalho social”. Para a sua discussão, a autora invoca o caso interessante da Catholic Agency for Overseas Development (CAFOD), o seu trabalho com crianças de rua no Brasil na década de 1990 e a sua relação com doadores financeiros internacionais. De maneira instigante, o artigo revela como os mecanismos de angariação financeira apelam inteligentemente a uma componente emocional por parte dos futuros e possíveis doadores, de uma forma análoga aos discursos moralizantes utilizados pelas organizações desenvolvimentistas seculares. Ainda no campo da cooperação internacional e da ajuda para o desenvolvimento, o texto de Maria Macedo Barroso complementa os textos anteriores com uma abordagem aos projetos de missionação protestante em “contexto indígena”, tendo como ponto de análise os casos brasileiro e argentino e as suas ramificações internacionais (da Noruega à Coreia do Sul). A autora revela como neste processo o que está em causa são ainda os problemas da “tradução”, “interculturalidade” e também “desenvolvimento” que, em última instância, transformam a teologia e a prática da missionação numa dinâmica de geopolítica transnacional.

No texto que encerra o conjunto de artigos sobre “religião e política”, esses termos assumem sentidos difusos, sendo este efeito algo deliberadamente provocado pelos autores, Fátima Tavares e Carlos Caroso. O quadro em que se situa sua discussão é o panorama religioso da Ilha de Itaparica, na região de Salvador, Bahia, Brasil. Apesar do predomínio do candomblé de egun, modalidade específica de religião afro-brasileira, os autores destacam a presença de outras modalidades de candomblé, recuperando para isso estudos que se desenrolaram algumas décadas atrás. No presente, o texto busca discutir a relação diferencial desses candomblés com os lugares, o que se evidencia quando festas religiosas são observadas. A política, assim, traduz-se na presença dessas expressões religiosas em espaços públicos, incluindo aí as práticas que envolvem dimensões terapêuticas.

Ao conjunto de artigos do dossiê somam-se quatro contribuições submetidas ao fluxo contínuo da revista. Em sua investigação sobre o trabalho missionário, João Rickli inverte o foco de atenção reflexiva, habitualmente centrado nas populações alvo da atuação missionária, para o local de “origem” onde as ações são formuladas e financiadas: uma Igreja. A partir de uma etnografia na Igreja Protestante da Holanda, o autor explora os modos pelos quais compromissos religiosos abstratos como a doação do dízimo se materializam em eventos rituais concretos nos quais entra em cena o pilar fundamental da experiência protestante do mundo missionário: a “negociação da alteridade”.

Maria Angelica Defago e José Manuel Faúndes examinam a emergência de organizações da sociedade civil denominadas Provida na Argentina voltadas para a defesa de uma agenda conservadora e restritiva dos direitos sexuais e reprodutivos. Muito embora ligadas a denominações religiosas, a atuação dessas ONGs Provida no universo das políticas sexuais e reprodutivas tende a embaralhar as posições clássicas que oporiam argumentos seculares, acionados por coletivos feministas e LGBTI, e argumentos religiosos, acionados por membros de hierarquias religiosas majoritariamente católicas e evangélicas. Os autores demonstram que, ao pretender falar de um lugar civil (não religioso), mas mantendo-se alinhadas com diretrizes religiosas, tais organizações lançam mão de um “secularismo estratégico” em grande medida eficaz para sua legitimação no debate democrático.

Cristina Maria de Castro apresenta uma reflexão sobre a presença do islamismo no Brasil como religião minoritária a partir da prática feminina do uso do hijab, o véu muçulmano. Com base em relatos de muçulmanas imigrantes e convertidas de diferentes cidades do Brasil, a autora sublinha a relação entre percepções negativas sobre o porte do véu e a escolha pelo seu uso de forma contínua, parcial ou mesmo por não usá-lo.

Sandra Sá Carneiro e Márcia Pinheiro analisam o processo de patrimonialização do Cais do Valongo na cidade do Rio de Janeiro, considerado o principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil, tomando como eixo central as disputas em torno dos sentidos religiosos atribuídos ao local. Se de um lado o poder público promove uma patrimonialização “laica” focada nos sentidos estritamente histórico-culturais do Valongo, de outro, movimentos sociais e entidades religiosas defendem a indivisibilidade religiosa e cultural da “herança africana”.

Duas resenhas também compõem o número. A primeira, de Bernardo Curvelano Freire sobreLa Fable Mystique, de Michel de Certeau (Gallimard, 2013), obra póstuma na qual a mística é abordada tanto como um espaço crítico polifônico de produção de linguagem, de escuta e de sentido do mundo, quanto como uma ciência. Na sequência, temos a resenha de Eduardo Dullo, sobre a obra The Slain God, de Timothy Larsen (Oxford University Press, 2014), apresenta os principais pontos abordados pelo autor em sua pesquisa sobre as relações entre antropólogos britânicos consagrados e o cristianismo que professavam.

Registramos com pesar o falecimento, em 8 de setembro de 2015, de Lísias Nogueira Negrão. Lísias foi professor do Departamento de Sociologia da USP e coordenador do Centro de Estudos da Religião, parceiro do ISER na publicação de Religião & Sociedade. Uma nota mais detalhada será divulgada no próximo número.

Emerson Giumbelli, Ruy Blanes e Paola Lins de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015
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