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Novos contornos da sociologia da religião?

BENDER, Courtney; CADGE, Wendy; LEVITT, Peggy; SMILDE, David. Religion on the Edge: De-centering and Re-centering the Sociology of Religion. 2013. Oxford University Press, New York: 297

Em 2007, nos jardins do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, durante a reunião da American Sociological Association, um grupo de pesquisadores/professores reuniu-se para uma conversa, seguida de encontros vários, cujo esforço culminou na coletânea Religion on the Edge. Com a proposta ousada de descentrar concepções que têm espaço praticamente assegurado na sociologia da religião, o questionamento de quatro arestas (barreiras?) orienta, em maior ou menor medida, todos os capítulos. A primeira fronteira criticada é a da generalização do caso particular dos Estados Unidos, que culmina na produção de teorias universais equivocadas. A segunda é a da naturalizada centralidade do cristianismo e, consequentemente, do protestantismo em suas múltiplas facetas, a despeito da representação numérica global deste. A terceira é a da visão consolidada, e frequentemente errônea, das congregações como lócus principal de expressão e autoridade religiosas. Por último, o foco é a perspectiva extremamente otimista que se adotou quanto à religião, decorrente das batalhas para justificar os estudos do tema para além das noções de que a religião é um ópio, uma forma de violência ou uma falsa consciência.

Os primeiros sete capítulos traçam uma abordagem eminentemente teórica, que começa com Manuel Vásquez voltando aos pais fundadores da sociologia para argumentar que a constituição da religião enquanto categoria se caracterizou pela pretensa contribuição positiva para a autonomia, a agência e o bem-estar dos indivíduos, e pela ideia, por sinal protestante, de que a religião seria um conjunto de crenças ou representações coletivas reguladoras da ação social. O argumento central de Vásquez é que a sociologia da religião ainda não passou por uma sistemática avaliação de suas bases epistemológicas. No capítulo dois, David Smilde trata a religião a partir da inserção na sociologia da cultura. Passando pelas críticas levantadas pelas teorias feministas, pelos estudos pós-coloniais e pela etnografia moderna, ele defende: que se abandone o foco exclusivista da cultura religiosa como estrutura autônoma e passe a pensá-la como meio de agência; que se olhe a religião em termos de discursos, rituais, culturas e práticas religiosas cotidianas, indo além das perspectivas cristocêntricas; e que se aceite que a religião tem contradições que lhe são inerentes, não devendo ser vista como um sistema cultural ou uma ordem moral racionalizada.

Já no capítulo três, Ateş Altinordu argumenta que apesar do legado de Weber para a sociologia da religião, há muitos estudos atuais que, diferentemente do que propôs o autor, não realizam comparações. Defendendo abordagens histórico-comparativas (entre religiões e regiões), e pondo em diálogo dados da segunda metade do século XIX e do final do século XX, Altinordu postula que considerar distintos contextos aumenta a variabilidade, permite identificar singularidades e mecanismos gerais e leva à formulação de teorias cujo escopo de validação é mais amplo. No quarto capítulo, Michal Pagis aciona a discussão sobre o self, a fim de chamar a atenção para a importância da dimensão corporal, invertendo a lógica de que as crenças teológicas determinam as práticas religiosas; a sugestão dada é que ocorre justamente o contrário. Concentrando-se no estudo da meditação budista Vipassana, o foco é dirigido à consciência dos próprios sentimentos corporais, à interação com os corpos dos outros e ao engajamento físico com os objetos materiais.

A seguir, Paul Lichterman trata do modelo analítico padrão – o do ator religioso, que divide as pessoas entre aquelas que possuem ou não uma religião. Ele mostra que esse raciocínio simplifica em demasia as diferenças no autoentendimento que as pessoas têm sobre suas próprias práticas de fé e, como alternativa, propõe o “modelo pragmático”, que considera as ações e as identidades situadas. De inspiração goffmaniana, esse modelo não pressupõe a religião como crenças silenciosas, mas sim como padrões de comunicação, permitindo perguntar como as pessoas criam espaços sociais para expressar a religiosidade. Através dele, é possível ainda entender quais performances envolvendo a fé são mais ou menos aceitáveis, analisando em que medida elas facilitam a vida pública.

No capítulo seis, Courtney Bender discute os diferentes aspectos do pluralismo religioso nos Estados Unidos, tendo em vista o debate sobre a secularização. Retomando as concepções de Locke e Rousseau sobre religião civil, ela trata da competição no mercado religioso, da esfera pública multirreligiosa (envolvendo, por exemplo, imigrantes e suas religiões) e da dimensão do congregacionalismo propriamente dito. No capítulo sete, Peggy Levitt faz um roadmap conceitual sobre como as pessoas – imigrantes, peregrinos, estudantes – e as tecnologias – mensagens de texto no celular, transmissão digital de cultos e missas, etc. – transportam objetos e ideias religiosas, e como estes se relacionam com as religiões que já estão assentadas em determinado contexto. A autora advoga pela necessidade de os estudiosos levarem em conta esses trânsitos e fluxos, incorporando-os nas análises atuais (o que incluiria a revisão das categorias religião e etnicidade). A partir do capítulo oito, ainda que sem perder o rigor teórico, o livro volta-se aos casos propriamente empíricos.

Dawne Moon, por exemplo, explorando a noção de self de Mead e de Martin Buber, e acionando o conceito de mundo da vida de Habermas, examina o modo como os judeus americanos compreendem e experimentam o antissemitismo e os debates sobre homossexualidade, levantados na Igreja Metodista Unida dos Estados Unidos. Wendy Cadge, por sua vez, investiga a presença do religioso em organizações seculares. Estudando as capelas de hospitais, ela mostra como o espaço e os objetos das religiões são negociados. Vê-se um aumento, não sem tensão, da tendência à flexibilização, de modo que esses locais se tornam cada vez menos marcados pelas fronteiras simbólicas que separam os diferentes credos. Geneviève Zubrzycki segue a mesma trilha ao se voltar à relação entre identidade nacional, religião, secularização e pluralismo no Canadá. Ela não se refere à dinâmica congregacional, mas a como a religião está engajada na sociedade a partir do questionamento sobre até que ponto as regras se tornam menos rígidas com vistas a atender às requisições religiosas.

Kelly Chong, a partir de um recorte de gênero, trata o modo como a religião é imaginada e experimentada pelas pessoas em seus contextos diários. Ela observa a complexidade com que as evangélicas coreanas se apropriam da fé, ressaltando as dimensões disciplinares, muitas vezes desconsideradas pela literatura que se dedica à lived religion. Por fim, Jacqueline Hagan aborda um movimento de refúgio (sanctuary movement), fruto de redes religiosas transnacionais, que, ao protegerem os migrantes mexicanos e da América Central que se destinam aos Estados Unidos, questionam e desafiam a moralidade das políticas fronteiriças. A autora mostra que os imigrantes recebem suporte social, espiritual e psicológico de movimentos que acabam por advogar por direitos, e monitorar e contestar as práticas regulamentadoras das imigrações.

Após os doze capítulos, os organizadores concluem o livro dizendo que se algo interessa nos estudos de sociologia da religião é o modo como a religião afeta uma série de outros fenômenos, como a economia, as artes, a saúde e a política. Nesse sentido, em vez de trazerem uma revisão das teorias sociológicas já elaboradas, o que eles fazem é apresentar uma nova geração de pesquisas que dizem avançar os pressupostos anteriores a partir da exposição dos perímetros da disciplina e de seu conjunto recente de questões e preocupações. Defendem, em suma: 1) que se aprofunde a contextualização (cabe especificar com rigor o espaço, o período e o contexto histórico no qual a pesquisa é produzida); 2) que se repense a relação entre religião e crença, passando a compreender que a religião desempenha uma miríade de papéis, atividades, autoridades e experiências; 3) que se estude a religião em seu movimento, conexões, circulações e mudanças – traduzindo de forma livre, sugere-se: “vá atrás da religião aonde ela for” (:290); e 4) que a pesquisa seja feita nas bordas, nas fronteiras (que o modus operandi seja a interdisciplinaridade e a consideração genuína de religiões e lugares não tradicionais, rumando para além das perguntas já elaboradas).

Embora o fio condutor da obra seja claro, algumas limitações são facilmente identificáveis. Há capítulos como o cinco e o sete, que acabam por apresentar novos modelos de análise, ainda que o livro como um todo não tenha essa pretensão. Mas essas ferramentas são realmente importantes? Não é possível dizer. São necessários estudos mais aprofundados. Outro ponto se refere ao uso de referenciais teóricos dos mais diversos, não necessariamente de bases compatíveis. Embora isso esteja longe de ser um problema, faz pensar o quanto seria mais interessante e útil se houvesse ao menos um capítulo fazendo um balanço teórico-metodológico da sociologia da religião. Permaneço indagando ainda se, a despeito de toda a defesa politicamente correta da inclusão dos fenômenos religiosos e dos modos de pensar para além dos Estados Unidos, haveria de fato uma aceitação no mundo acadêmico “de centro” de autores e abordagens (e não apenas de estudos de casos) tidos como “periféricos”.

Uma inspiração inegável da coletânea, todavia, é a produção intelectual conjunta, que é muito bem articulada. Trata-se, portanto, de um livro que nos apresenta os novos contornos da sociologia da religião? Talvez sim, se entendermos por isso o jeito contemporâneo de se investigar tal fenômeno de interesse. Por outro lado, é possível que o livro permaneça apenas como uma das extremidades da área, como, ironicamente, seu próprio título sugere.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    Mar 2016
  • Aceito
    Maio 2016
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