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Atos rituais: eventos, agências e eficácias no Candomblé

Ritual acts: events, agencies and effectiveness in Candomblé

Resumo

Os atos rituais no Candomblé desempenham importante papel em criar as condições pragmáticas para a transmissão da memória religiosa. É objetivo deste artigo mostrar como gestos performados (oferendas, limpezas, interditos rituais, etc.) mobilizam as características dos Orixás e dos signos do destino (Odus), motivando a adesão do adepto à dimensão simbólica do culto. Nestas interações de cunho ritual, objetos, alimentos, lugares, etc., perdem as conotações normais de uso e ganham uma saliência cognitiva e uma eficácia simbólica. Almeja-se, assim, determinar como a prática ritual permite a emergência de uma realidade sui generis, notadamente, de uma biografia paradoxal do adepto, acasalada com a intencionalidade das entidades (Orixás, Odus, etc.), eficácias especiais e categorias mitológicas.

Palavras-chave
Candomblé, , , ,; simbolismo; ritual; eficácia; pragmatismo

Abstract

Ritual acts in Candomblé have an important role to create the pragmatic conditions for the transmission of religious memory. The purpose of this paper is to describe how performing gestures (offerings, purifications, ritual prohibitions, etc.) mobilize the characteristics of the Orishas and of the signs of destiny (Odus) and motivate the allegiance of the adept to the symbolic dimension of worship. During ritual interaction, objects, foods, places, etc., are disconnected from their normal contexts of use and they reach a new cognitive value and a symbolic efficacy. Therefore, we aim to determinate how a sui generis reality emerges, notably, a paradoxical biography of the adept, mated with the intentionality of entities (Orishas, Odus, etc.), special efficacies of elements, and mythological categories.

Keywords
Candomblé; symbolism; ritual; efficacy; pragmatism

Introdução

Parte da reflexão deste artigo refere-se a como, no Candomblé, a eficácia de objetos e elementos naturais é mobilizada durante gestos rituais que ganham, assim, um papel importante na comunicação de evocações simbólicas, podendo constituir as condições pragmáticas mínimas para a transmissão de símbolos inerentes ao culto. Como afirma Severi, as memórias sociais podem ser representadas através da narração de uma série de histórias; todavia, é no âmbito dos rituais que certas imagens são construídas de modo complexo, e elas, em vez de representar, fazem “presentes” realidades de uma forma irrefutável e dificilmente comunicáveis fora desses mesmos contextos rituais (Severi 2000SEVERI, Carlo. (2000), "Cosmologia, Crise e Paradoxo. Da Imagem de Homens e Mulheres Brancos na Tradição Xamânica Kuna". Mana ‒ Estudos de Antropologia Social, vol. 6, n° 1: 121-155.:148). No caso do Candomblé da Bahia1 1 Dados provenientes do campo da minha pesquisa de doutorado e pós-doutorado efetuado na Bahia em terreiros de Candomblé Nagô (Keto e Ijexà). Agradeço imensamente ao povo de santo pelo acolhimento. Agradeço igualmente Fátima Tavares pelo apoio e carinho durante a pesquisa de pós-doutorado. O período de pesquisa nos terreiros de Candomblé desenvolveu-se entre 2005 e 2014. A tese foi defendida em 2009 com o título Entre mythe et Corps: les quizilas dans le Candomblé du Brésil. Das publicações sobre o ritual, ressalto aqui “L’efficacité des passions: sensibilité et identité chez l’initié au Candomblé” (Etnográfica, Lisboa, vol. 17, n° 3: 437-456, 2013) e “Revisitando os tabus: as cautelas rituais do povo-de-santo” (Religião e Sociedade, vol. 32, n° 2: 170-192, 2012). , objeto desta pesquisa, certos gestos e atos rituais, rotuláveis como “mágico-religiosos” pela eficácia implícita, são, de fato, capazes de comunicar “presenças” e transmitir memórias sociais. Para os adeptos do Candomblé, os gestos e os atos eficazes (interditos ou prescritos) associados a relações de culto são inúmeros; portanto, eventos insólitos (ou percebidos como tais) podem ser considerados reveladores de agências invisíveis mobilizadas por gestos humanos2 2 Nos casos analisados, há tanto linguagens corpóreas, isto é, gestos simbólicos, quanto atos específicos de cunho ritual. Embora haja diferença entre as noções de “atos” e “gestos”, no campo analisado, gestos simbólicos e atos eficazes (interdições ou prescrições) compõem variavelmente os contextos ritualísticos observados; portanto, optamos por manter ambos os termos. A terminologia coincide com aquela usada num ensaio de Pierre Smith (1979), que será analisado mais adiante, em que o autor utiliza, alternativamente, os termos “gestos” e “atos” para tratar de interditos rituais. .

Este trabalho propõe-se ensaiar caminhos de análise de atos e gestos que, não atendendo às metas utilitárias, implicam conteúdos semânticos não totalmente compreensíveis, pois aludem a representações contraintuitivas3 3 Trata-se de um termo que faz parte da teoria cognitivista da religião, que tem em Boyer (2001) um dos seus maiores representantes. Boyer afirma que o seu termo central, “contraintuitivo” (para definir conceitos religiosos), é técnico e não significa totalmente estranho, excepcional ou extraordinário; notadamente, ele deve contradizer informações fornecidas por categorias ontológicas (2001:65). Segundo Boyer, para que sejam memoráveis, os conceitos devem ser “minimamente contraintuitivos”, ou seja, devem ser familiares em alguns aspectos, mas não em outros (seres com sentimentos humanos, mas invisíveis, etc., presentes nas religiões, remeteriam, por exemplo, a esses tipos de noções). No tocante às categorias ontológicas, vale também ressaltar que, neste artigo, o termo “objeto” é usado no seu sentido comum, sabendo que o conceito antropológico acarreta um debate sobre a distinção coisa/objeto (Ingold 2012). Para o conceito de agência, pode se fazer referência a Strathern (2006) e à ideia de relações construídas em ação. sobre objetos e elementos, capazes de colapsar oposições natureza/cultura, objetos/sujeitos, impessoal/pessoal, eventos/agências, entre outras. As noções contraintuitivas compõem arranjos simbólicos que promovem eficácias incomuns de ações e gestos (considerados geralmente anódinos) e emergem nas práticas rituais associadas à interpretação e ao controle de acontecimentos existenciais. O conceito cognitivista de contraintuitividade é, neste ensaio, aproveitado segundo uma abordagem do ritual de tipo pragmático (Halloy 2004HALLOY, Arnaud. (2004), "Présentation". Systèmes de pensée en Afrique noire, Le rite à l'œuvre, n° 16: 5-8.:5) que pretende chegar até a própria ação transformativa do ritual (como ela controla, transforma, ameniza, etc.), aludindo tanto a interações especiais, quanto a maneiras de comunicar realidades religiosas evocando dimensões simbólicas.

O artigo apresenta inicialmente uma discussão teórica sobre as eficácias simbólicas de atos geralmente rotulados como mágico-religiosos; numa segunda parte, é considerada a interpretação de eventos cuja saliência acarreta, eventualmente, a atribuição de uma agência sobre-humana, dirimindo incertezas e confirmando agências, segundo práticas específicas de adivinhação; num terceiro momento, serão consideradas práticas rituais associadas ao desvendamento do destino nas quais agentes invisíveis (Orixás, Odus) são promotores de eventos. O contexto ritual é aquele de um ambiente religioso marcado, por um lado, pela inferência de significados de eventos (num contexto geralmente divinatório) e, por outro, pela suposição de transformações eficazes realizadas por ações e gestos que implicam conexões específicas entre eventos e agências, objetos e sujeitos, etc.4 4 Vale ressaltar que autores da “virada ontológica”, embora segundo variações teóricas específicas, tentam definir alternativas às oposições ocidentais natureza/cultura (ver Descola 2005; Viveiros de Castro 2002). Descola (2005), na sua teoria do animismo, opta pela superação da oposição objeto/sujeito, derivante da citada oposição natureza/cultura, por meio da análise de continuidades e descontinuidades nos “existentes” (tanto objetos como sujeitos) entre “exterioridades” e “interioridades”. A perspectiva cognitivista, por sua vez, é bastante diferenciada nos seus representantes. Num recente debate com Descola e Viveiros de Castro, Martin Fortier, opta pelo conceito de “estilos cognitivos”, mantendo firme a presença de um certo corte universal natureza/cultura, embora mais ou menos acentuado segundo as variações culturais (Fortier 2014). Este trabalho não pretende desenvolver esse debate, mas somente indicar como as questões inerentes à eficácia simbólica, que implicitamente colapsam a oposição natureza/cultura, interessam de modo geral aos estudos sobre ritual, religião e terapêuticas tradicionais (ver Tavares & Bassi 2012).

Considerando teorias

No famoso estudo intitulado The Golden Bough (1922FRAZER, James. (1922), The Golden Bough. London: Macmillan.), Sir James FrazerFRAZER, James. (1888), "Taboo". Encyclopaedia Britannica, 9ª ed., t. XXIII. Edimbourg: A. And, C. Black. alegava que os ritos mágicos seriam uma projeção ingênua na natureza e nos seus elementos de associações de ideias, notadamente dos dois princípios de semelhança (ou similitude) e contiguidade (ou contágio). Os gestos cotidianos seriam assim associados a poderes especiais capazes de promover a boa sorte ou evitar perigos, com uma eficácia similar à aplicação de leis naturais. O argumento de uma eficácia objetiva relativa aos elementos e objetos encontra-se como complemento da elaboração teórica da magia simpática de Frazer. Define-se, deste modo, a questão, longamente debatida na literatura antropológica clássica sobre culturas exóticas, relativa aos atos “mágico-religiosos” eficazes na mediação de forças sobre-humanas antropomorfas ou de poderes impessoais do tipo do mana (ver Mead 1937MEAD, Margaret. (1937), "Taboo". Encyclopaedia of the social science, vol. XIII. New York: Ed. Seligman. :502; Steiner 1980STEINER, Franz. (1980), Tabù. Torino: Boringhieri.:156).

A superação do hábito de definir gestos rituais recorrendo ao conceito de um “poder mágico-religioso” ou, ainda, às teorias de forças místicas mediadoras (mana) caracteriza um trabalho de Pierre Smith, dedicado à eficácia simbólica de ações interditas (1979). Trata-se de explicação da eficácia que corresponde a uma postura intelectual duplamente articulada: pretende ligar a particularidade do poder automático que se supõe habitar gestos (interditos, notadamente) a uma função simbólica; e pretende descartar teorias de tipo do mana, pois a ideia de uma força mística mediadora de eficácias, frequentemente citada em trabalhos etnológicos, esconde, em lugar de esclarecer, o dispositivo simbólico em questão5 5 Na utilização da noção exótica (da Melanésia), é manifesta a tendência a uma explicação circular: é mágico porque tem mana; tem mana e, portanto, é mágico. Como veremos mais adiante com Severi (2004), há uma dificuldade intrínseca na análise semântica da noção de mana e afins. . Em exemplos africanos (Ruanda), Smith (1979SMITH, Pierre. (1979), "L'efficacité des interdits". L'Homme, vol. XIX, n° 1: 5-47., 1991______. (1991), "Interdit". In: P. Bonte & M. Izard (dir.). Dictionnaire de l'Ethnologie et de l'Anthropologie. Paris: Presses Universitaires de France.) analisa gestos interditos nos afazeres cotidianos dos ruandeses. Em Ruanda, por exemplo, tirar o leite das vacas fumando cachimbo é interdito (imiziro), isto é, inapropriado e de mau augúrio, sendo a consumação do tabaco uma evocação contrária e incompatível à abundância esperada do leite; é também evitada a aproximação entre o leite e o orvalho (líquido “magro” e fugaz) (Smith 1991:383). Considerados capazes de produzir automaticamente os eventos negativos que evocam, certos gestos (mas também atos linguísticos) devem ser tratados segundo uma perspectiva ritualística, pois atos aparentemente anódinos parecem ter uma eficácia transformadora: “uma mãe não deve exortar o bebê a dormir, dizendo ‘durma rápido’, pois o sono evoca a morte”; “uma mulher não deve sentar nos pilares da entrada do recinto de casa quando o marido viaja, pois ela provocaria o desaparecimento dele, sugerindo, de fato, estar barrando a entrada e se opondo magicamente ao retorno dele” (Smith 1979:25-28)6 6 Se, por um lado, com o respeito a certos interditos são esconjurados perigos (a escassez do leite, a morte do neném, etc.), por outro, os eventos naturais insólitos (amahano) são vistos pelo ruandês como indícios de infortúnios. Segundo uma relação evocativa, a natureza e as dimensões da vida social se encontrariam, portanto, em continuidade: “para o ruandês o fluxo da vida mantém entre natureza e sociedade uma harmonia profunda que não pode ser tocada, assim que tudo o que é insólito numa dessas dimensões é o signo de uma perturbação general” (Smith 1979:20). .

A ambição de Smith é aquela de devolver a esse dispositivo simbólico uma razão própria, em um plano em que a realidade é subsidiária ao pensamento: associações mentais de tipo “mágico”, contrariando saberes racionais e ações utilitárias (que não faltam aos ruandeses), seriam bem-sucedidas em mobilizar, por meio de atos contextualizados, o próprio pensamento, estimulando a sensibilidade simbólica. As condutas prescritas e proscritas, pelas evocações que carregam, tornam-se, assim, “linhas de pensamento” (Smith 1979:6). Reconsiderando, desta forma, a “mágica” dos gestos no âmbito de uma pedagogia nativa, Smith enfatiza a importância dos atos para a transmissão do simbolismo7 7 Segundo Smith, os interditos (imiziro), assim com outros gestos “mágicos”, não estariam avassalados a uma errada concepção da realidade, mas à produção de simbolismo: “os imiziro convidam o pensamento simbólico a desfrutar das atividades e das realidades que existem em primeira instância numa dimensão utilitária e racional” (Smith 1979:43). Como indica ainda o autor, a exploração utilitária de objetos e situações não é comprometida, o simbolismo se contentando ser ativado em momentos pontuais e contextos altamente definidos. .

A definição de Smith de uma função simbólica do interdito apoia-se, de fato, no conceito de evocação (Sperber 1974SPERBER, Dan. (1974), Le Symbolisme en general. Paris: Hermann.) e alega que ações comuns (o ato de fumar durante a ordenha, de sentar nos pilares da entrada durante a viagem do cônjuge, de exortar o bebê a dormir, etc.) podem ter uma eficácia negativa automática por acasalar incompatibilidades. No casos citados, perde-se o aspecto familiar do comportamento e a sua meta original (fumar como atividade prazerosa, sem interferir na ordenha; acalmar ninando, sem interferir no estado vital do neném); em contrapartida, ganha-se uma densidade simbólica (e, se diria hoje, segundo novas abordagens ao simbolismo, uma saliência cognitiva). Os comportamentos associados aos interditos são esvaziados desses escopos óbvios e tornam-se veículos da função simbólica se ancorando cognitivamente à atenção contra perigos: há incompatibilidade perigosa entre o ato de fumar, que evoca uma diminuição (a consumação do tabaco), e a esperança da abundância do leite presente no ato de ordenhar; há incompatibilidade entre os cuidados dedicados ao recém-nascido, ser extremamente vulnerável, e a exortação do sono, que evoca a incerteza da morte, etc.

As evocações de azares no âmbito de ações rituais citadas por Smith nos levam a considerar os trabalhos sobre os rituais que apresentam uma captura cognitiva apoiando-se sobre dispositivos comportamentais de vigilância contra perigos. Segundo Boyer e Liénard (2006)8 8 Boyer e Liénard definem como os comportamentos individuais, estereotipados e compulsórios, divorciados das metas comuns (goal-demotion), seriam parte do aprendizado infantil de atitudes de vigilância contra perigos (2006:13); refloresceriam, eventualmente, durante momentos vulneráveis do ciclo vital (no pós-parto, em especial); e concederiam uma certa trégua aos pacientes de transtornos obsessivos compulsivos – notadamente, atos repetidos evitariam pensamentos ameaçadores intrusivos (Boyer e Liénard 2006:passim). Tais comportamentos ganhariam, intuitivamente, uma aceitação em consequência de serem originados de atitudes de vigilância úteis para a sobrevivência. , os comportamentos ritualísticos, marcados por “ações estereotipadas, rigidez, repetição e falta aparente de uma motivação racional” (:1), teriam uma relação com os sistemas de precaução contra o perigo (hazard-precaution system ou HPS). Os comportamentos ritualísticos desse tipo estariam presentes em muitos rituais de cunho religioso como “subprodutos” desses dispositivos comportamentais (Boyer & Liénard 2006)9 9 Segundo Boyer e Liénard (2006), em muitos rituais “culturais”, ao mesmo tempo que perigos são evocados, atos repetidos são executados obrigatoriamente, impondo uma estrutura protetora por meio de uma definição rígida do comportamento, do espaço, etc. Portanto, segundo os autores, a ativação de HPS seria o que faz certos comportamentos ritualizados compulsórios e convincentes. .

O interesse dessa teoria encontra-se, sobretudo, no conceito de goal demotion: uma sequência de atos, uma vez esvaziada da finalidade original, pode desencadear sistemas de motivação adaptáveis às funções simbólicas partilháveis (Chiera 2013CHIERA, Alessandra. (2013), "La mente rituale. Dalla nascita del rito all'origine delle istituzioni". RIFL/SFL: 253-265. )10 10 A transmissão de evocações simbólicas analisadas por Smith certamente remete a precauções contra perigos capazes de captar atenção por meio de comportamentos obrigatórios divorciados da meta original segundo incompatibilidades não comuns (fumar e ordenhar; ninar e morrer). . Seguindo essa trilha, deveríamos encontrar como processos rituais oferecem condições de comunicação de representações simbólicas cuja saliência cognitiva (e contraintuitividade implícita na perda da meta habitual) seja socialmente comunicável. Carlo Severi (2004), em diálogo com as teorias cognitivas, propõe uma adaptação da noção de contraintuitividade à análise pragmática dos rituais, destacando como as representações de cunho simbólico precisam de contextualizações particulares para ser transmitidas. Como comunicar, por exemplo, aquelas noções complexas conhecidas na antropologia da religião como “mana”, “alma”, “duplo”, evocadoras de poderes especiais e que, de forma durável, carregam com sucesso uma certa contraintuitividade, cujo conteúdo é demasiado vago, contraditório ou complexo para ser expresso fora de um contexto específico de eficácia? Segundo Severi, a persistência no tempo de noções desse tipo não é explicável meramente pelo conteúdo contraintuitivo, mas pela inserção em contextos de comunicação ritual, em que a contraintuitividade é socialmente definida. Com efeito, “em muitas situações importantes, uma representação culturalmente bem-sucedida é uma representação contraintuitiva formulada dentro de condições contraintuitivas de comunicação” (Severi 2004:817, tradução nossa). Promovendo uma abordagem pragmática do ritual, Severi adota o conceito de “condensação ritual”, sendo este o núcleo efetivo das transformações em pauta. Referindo-se a conclusões de uma pesquisa (Houseman & Severi 1994HOUSEMAN, Michael; SEVERI, Carlo. (1994), Naven ou Le donner à voir. Paris: CNRS Éditions/Éd. la Maison des sciences de l'homme.) sobre o ritual Naven dos Itamul da Nova Guiné, Severi descreve como uma das conclusões do estudo que:

[...] a identidade de cada participante é construída, dentro do contexto ritual, a partir de uma série de conotações contraditórias (uma pessoa sendo, por exemplo, de uma só vez uma mãe e uma criança, um sobrinho e uma esposa, etc.). Este processo, de transformação simbólica, realizada através da ação, que temos chamado de condensação ritual, dá à comunicação ritual uma forma particular que a distingue de interações comuns da vida cotidiana (Severi 2004:818, tradução nossa).

Direciona-se, assim, o foco da análise para as interações, colocando as noções cognitivistas (a contraintuitividade dos símbolos marcados por condenações, notadamente) no âmago das relações implicadas no trabalho simbólico dos rituais. Vimos nos interditos ruandeses que o plano cognitivo de evocações funestas é caracterizado por uma ativação simultânea de planos diversos, uma “condensação”, por exemplo, entre a diminuição do tabaco durante o ato de fumar e o risco de escassez do leite no plano da ordenha – os gestos assim ritualizados devendo constituir o contexto para aprimorar, segundo Smith, a “destreza” simbólica dos ruandeses11 11 Evidentemente, como ressalta o próprio Smith, esses atos familiares e anódinos são geralmente inócuos e levados de modo despreocupado no dia a dia, já que evocam perigos somente em certos contextos e segundo associações específicas (fumar tabaco normalmente não impede a abundância do leite, e pode-se fumar em vários momentos perto das vacas sem provocar diminuição alguma, a evocação negativa concernindo somente os momentos da ordenha e da produção do leite; a exortação a dormir alude à morte somente quando se trata de recém-nascidos, etc.). . Já Severi indica como contextos rituais complexos conotam condensações de papéis sociais favorecendo transformações e comunicando identidades simbólicas. A perspectiva de uma captura cognitiva por meio de gestos e interações de cunho ritual convida a considerar a relevância de uma comunicação de símbolos efetuada em ação. Com efeito, segundo uma orientação pragmática, pode-se olhar os contextos que permitem veicular a eficácia dos símbolos. Neste trabalho espera-se elucidar, de acordo com essa perspectiva, certos aspectos da comunicação da eficácia inerente aos gestos e processos rituais no Candomblé.

Eventos: os indícios de desafetos

Nos terreiros de Candomblé uma interpretação simbólica é sempre possível na avaliação da origem de acidentes ou azares de tipo variado. A eficácia de um interdito (quizila) relativo às preferências cromáticas dos orixás12 12 Sobre as características e as idiossincrasias dos Orixás, ver Cossard-Binon (1970, 1981), Lépine (1981), Augras (1987), Beniste (2002), Bassi (2012, 2013). , por exemplo, fez desandar a costura de uma saia litúrgica, como me explicou, numa entrevista, ebome13 13 Filha de santo com mais de sete anos de iniciação e com os rituais (obrigações) de confirmação cumpridos. Regina:

Eu pertenço a uma qualidade de Nanã que tem que usar roupa clara, não sei por quê, talvez porque eu tenha feito a minha santa Nanã junto com Oxalá que aceita apenas a cor branca. Mas, quando ainda era yawo, eu decidi comprar um tecido azul escuro, porque eu fiquei com vontade de usar uma saia desta cor e achava que podia porque as outras filhas de Nanã usavam cores escuras assim. Mas o corte da saia não deu certo! Era quizila mesmo... (entrevista com ebome Regina, 09/2012).

Em geral, azares desse tipo são acolhidos como confirmações de antipatias do santo que devem ser respeitadas14 14 Várias características dos orixás parecem derivar de um sistema de classificação, que permite associar os orixás aos diferentes âmbitos da natureza (Goldman 1987:98). Descontinuidades entre os orixás podem ser veiculadas, por exemplo, por meio de abstinências alimentares dos filhos de santo, resultantes das homólogas oposições entre domínios dos orixás. Segundo essa lógica, os filhos das águas (filhos de Iemanjá e Oxum) evitam comer crustáceos ou peixes, os filhos de Nanã evitam caranguejo, sendo a lama o elemento dela, etc. Como indica Goldman (1987:100), enquanto protagonistas de mitos, os orixás assumem características, nomes e interditos particulares, apresentando diferentes “qualidades” que podem ser enxergadas como diferentes aspectos de uma mesma “energia” (ou essência), que se expressa de forma singular nos acontecimentos míticos. . O caso do incidente do corte da saia é, portanto, passível de uma validação a posteriori de uma incompatibilidade. A antipatia articula-se como especificidade da qualidade de Nanã que, por motivos particulares, determinados durante a feitura de santo, aceita somente cores claras, apesar desse orixá aceitar em geral o azul e o lilás. Regina trata o azar da saia como indício confirmatório da singularidade do seu orixá. As interpretações de Regina são comparáveis às formas de adivinhação “secundária” (Zempléni 1995ZEMPLÉNI, Andras. (1995), "How to say things with assertive acts?". In: G. Bibeau; E. Corin (eds.). Beyond textuality. Berlin: Mouton de Gruyter.) que confirmam os enunciados do jogo formalizado (o jogo de búzios). De forma côngrua com a lógica divinatória (Sindzingre 1991SINDZINGRE, Nicole. (1991), "Divination". In: P. Bonte & M. Izard (orgs.). Dictionnaire de l'Ethnologie et de l'Anthropologie. Paris: Presses Universitaires de France.; Sabbatucci 1989SABBATUCCI, Dario. (1989), Divinazione e cosmologia. Roma: Il Saggiatore.), é possível pensar como certas eficácias negativas dos gestos e dos objetos mediam intencionalidades a serem desvendadas.

No caso do Candomblé, as eficácias dos elementos contribuem para a definição da identidade do filho de santo, a partir de suas relações com energias invisíveis cujas intenções se manifestam por meio de objetos visíveis. Para além de um plano representacional, eventos específicos, isto é, reações negativas do corpo (notadamente intolerâncias aos alimentos), podem ser associados à eficácia de um orixá, tornando-se indício de uma agência15 15 Como ressalta Todorov, os processos de simbolização não se encaixam num quadro coerente de representações: “a relação metonímica agente-ação é mais importante que a relação metafórica entre a imagem e o ser representado. Um certo desenho não faz sentido se não é inciso (ação) naquele objeto particular: adquire um sentido por meio de uma relação metonímica de lugar” (Todorov 1991:305, tradução nossa). . Esse tipo de relação metonímica com o orixá mostra, também, que os significados são promulgados em ação. As materialidades e seus componentes (elementos, substâncias, cores, etc.) provocam eventos e mediam agências; vice-versa, os eventos, sondados simbolicamente, são evocativos de identificações relacionais com os orixás e outras entidades.

Incidentes variados – notadamente transtornos alimentares, alergias, intolerâncias, enjoos, sensações ruins, etc. – precipitam situações de incertezas sobre as qualidades dos orixás e tornam-se indícios que devem ser interpretados. Exemplos desse tipo são inúmeros: podemos citar a filha de santo que afirma sempre ter tido alergia a abacaxi e aponta ter descoberto, depois da iniciação, que o transtorno depende do seu segundo orixá, Omolu, que tem quizila dessa fruta. Esses sintomas são indícios objetivos de presenças que devem ser conhecidas ou reconhecidas. De fato, dimensões objetivas – alimentos, cores, artefatos, elementos naturais, lugares, etc. – são postas, durante os gestos e nos processos rituais, em continuidades com as componentes subjetivas dos orixás: gostos e desgostos, afetos e desafetos.

No corpus mítico podem-se procurar histórias que relatam aventuras e desventuras, comportando relações entre orixás e os existentes que suscitaram sentimentos positivos ou negativos (simpatias ou antipatias). Sendo a relação de culto atuada, e não unicamente figurada e representada, ela se determina para além do plano metafórico, tendo nos gestos e na corporeidade do próprio filho de santo o lugar privilegiado de expressão do evento revelador de presenças; como nos casos citados, os gostos e desgostos do orixá, mesmo se conhecidos de antemão, adquirem um sentido confirmatório quando experimentados (por exemplo, na sensibilidade do corpo, nas alergias, etc.). De maneira similar aos casos descritos por Smith, gestos eficazes precipitam eventos, participando ao mesmo tempo de processos (inacabáveis) de desvendamento da qualidade do orixá, cuja definição não é isenta de dúvidas a serem obviadas (cada “qualidade” de orixá tem suas idiossincrasias que devem ser conhecidas ou confirmadas).

O conhecimento e o respeito às antipatias dos orixás (das diferentes qualidades) são importantes na relação positiva de culto, pois acautelam contra um perigo de perda de um poder protetor, afastando-se os orixás dos corpos e lugares a eles incompatíveis. Os enunciados em pauta (como no caso da filha de santo que comenta o corte azarado da saia litúrgica) são colocados num contexto de cunho ritual (os gestos rituais cotidianos de terreiro com objetos litúrgicos, oferendas, etc.) que evoca uma realidade interativa e relacional (Houseman 2006______. (2006), "Relationality". In: J. Kreinath, J. Snoek, M. Stausberg (eds.). Theorizing Rituals. Classical Topics, Theoretical Approaches, Analytical Concepts, Annotated Bibliography. Leiden: Brill.) com as entidades cuja identidade deve ser definida. No caso do Candomblé, nas práticas rituais, objetos e artefatos (comidas e bebidas, notadamente), sonoridades e cores acarretam uma certa dimensão intencional e subjetiva, pois evocam, do ponto de vista cromático, gustativo, olfativo e auditivo, preferências e idiossincrasias das entidades. Assim, uma rede de interações entre humanos e sobre-humanos é mediada pelos “rastros” sensoriais e emocionais dos orixás cujas existências e personalidades no passado mítico saturaram elementos e artefatos de uma dimensão sensorial e emocional.

De forma similar aos interditos ruandeses citados, os gestos dos filhos de santo são eficazes: eles fazem atuar as qualidades dos orixás. Há, assim, uma “presentificação” da entidade sobrenatural, que, de certo modo, é produto das práticas rituais, existindo por meio delas (Albert 2009ALBERT, Jean-Pierre. (2009), "Le surnaturel: un concept pour les sciences sociales?". Archives de sciences sociales des religions, n° 145: 147-159.), isto é, sua eficácia é mobilizada através de gestos rituais. As atividades rituais mobilizam elementos e pressupõem continuidades entre eventos e agências, pois os orixás participam das propriedades de outros “existentes” (elementos e artefatos) e atuam por meio deles. A vocação dos processos rituais de produzir realidades por meio de manipulação de objetos, criando uma continuidade entre as dimensões “internas” (disposições emocionais e intencionais) e “externas” (corpo, elementos, substâncias e artefatos) (Descola 2005), aparece nos casos citados nos quais diversas disposições dos orixás emergem a partir de gestos rituais. Embora essas continuidades possam ser contempladas fazendo referência a uma ontologia específica, deve-se ressaltar que há um trabalho simbólico ritualmente circunstanciado, pois somente em determinados contextos rituais (de adivinhação secundária de tipo confirmatório) são conferidas eficácias aos atos – é assim que uma teoria interativa e situacional parece ganhar proeminência.

A partir da iniciação, os gestos dos filhos de santo ganham uma eficácia notável, especialmente quando entram em contato com materialidades mediadoras dos próprios orixás cultuados. Um contexto de conexão é duplamente articulado: entre o subjetivo e o objetivo (humano e não humano) e entre subjetividades diferentes (humanos e sobre-humanos). Segundo um registro mítico altamente evocativo, os elementos ou artefatos são considerados nos atos de cunho ritual dos iniciados para além do normal uso quotidiano, adquirindo saliência cognitiva e uma eficácia referida à relação de culto em que vão atuando. O registro mítico chamado em causa nas práticas rituais e divinatórias justifica, entre outras coisas, as dimensões naturalísticas dos orixás recuperando, contemporaneamente, a dimensão cosmológica dos humanos. Realidades múltiplas e paradoxais, comunicadas durante os gestos que carregam, assim, uma dimensão “pedagógica” no tocante do simbólico (Smith 1979).

O tempo do mito e a eficácia dos elementos

No horizonte cosmológico do Candomblé, os eventos no tempo atual não são considerados totalmente ex novo. Eles podem ser previstos e estão potencialmente presentes nas dinâmicas dos elementos que agem como princípios desencadeadores. De fato, a interpretação dos eventos através do jogo de búzios mobiliza poemas (ese) que concernem vários protagonistas dos mitos. No jogo, sinais específicos correspondem aos oráculos, chamados de Odu, isto é, as mensagens de Orunmilá, o Orixá associado à adivinhação (Beniste 1999:20)16 16 O jogo de búzios revê dezesseis odus principais, oráculos, determinados pela configuração dos dezesseis búzios na mesa do jogo (abertos ou fechados): por cada odu certos orixás se fazem presentes. Os orixás falam nos odus – por exemplo, numa configuração de nove búzios abertos, respondem aos quesitos os orixás Iansã ou Iemanjá, etc. Ver Bascom (1969), Lacourse (1981), Bastide & Verger (1981), Braga (1988), Beniste (1999), Aquino (2004). . O povo de santo refere-se ao Odu como o “caminho” da pessoa, evocando assim um dinamismo existencial e uma biografia. Com efeito, os poemas (ese), que transmitem conteúdos mitológicos em forma de parábolas, fazem referência aos acontecimentos primordiais. Como escreve Beniste:

As parábolas versam sobre casos de como eram certas figuras mitológicas – homens, mulheres, animais, pássaros ou plantas –, como reagiram diante de diversas situações e quais os resultados de suas ações. Em outras palavras, as histórias ou mitos representam as experiências das pessoas que viveram no passado e as deduções que puderam ser tiradas para enfrentar as indagações da situação em questão. Assim, o registro de acontecimentos primordiais foi encerrado naquilo que chamamos de Odu como forma de preservação e exemplos futuros (1999:20).

No tempo primordial, portanto, acontecimentos envolveram os protagonistas dos mitos e os elementos do mundo, produzindo eventos “protótipos”; consequentemente, inferências repousam sobre um analogismo possível entre as situações do presente e aquelas do passado mítico, no qual se encontram elementos já qualificados com características e eficácias. Na geomancia, categorias de eventos associados às agências (orixás, eguns, etc.) e a elementos do mundo constituem um referencial operatório objetivo para o controle ritual do destino pessoal. Vale ressaltar a dimensão espacial dos potenciais acontecimentos, disseminados nas eficácias dos elementos e lugares do mundo. Para melhor compreender a eficácia das práticas rituais, deve ser considerada a juntura da noção de “caminho traçado” (como é também chamado o “Odu”) com a dimensão temporal e paradigmática do mito. No jogo de búzios, na busca desses determinismos, o pai/mãe de santo (exercendo a função de adivinho) desvenda os signos do destino (Odus), mobilizando eventos míticos analógicos à situação atual da pessoa (Aquino 2004). Indica-se, assim, que os eventos atuais são, de alguma forma, o resultado de agências desvendáveis e acontecimentos objetiváveis – que podem ser ritualmente controlados com gestos relacionados aos objetos e elementos que os evocam.

Essa dimensão ritualística dos elementos a partir da noção de Odu desafia fortemente as descontinuidades entre os planos objetivo e subjetivo, apresentando continuidades entre evento e essência (Bastide 1973BASTIDE, Roger. (1973), "Le principe d'individuation". La notion de personne en Afrique noire, n° 544, Colloques internationaux du CNRS, Octobre 1971, Paris. ) e propondo específicas composições espaço-temporais. De fato, os acontecimentos primordiais (eventos protótipos) fazem-se presentes numa dimensão espacial e “geográfica”, isto é, eles se encontram virtualmente nas eficácias dos elementos envolvidos nos próprios acontecimentos míticos e, portanto, são sempre, ao mesmo tempo, passados e presentes ou, melhor, atemporais e deslocados nos efeitos latentes das materialidades. Na realidade, como já ressaltado, a noção de destino nos obriga a renunciar a várias das nossas dicotomias habituais (passado/presente, tempo/espaço, evento/essência, etc.). Uma ebome, conversando sobre os Odus (signos de destino), comenta assim o mito sobre a viagem infeliz do orixá Oxalá até o reino de Xangô: “Os dezesseis Odus são príncipes e eles têm uma família. Eles são o destino. Os orixás também estão sujeitos ao destino. Vemos isso quando os orixás não têm escutado o adivinho. Oxalá, por exemplo, começou uma viagem memorável para o reino de Xangô: o babalaô (adivinho) lhe tinha advertido que sua viagem seria lamentável” (entrevista com ebome Nancy de Oxalá, 08/2008).

Narrativas como essas mobilizam protótipos de eventos (a viagem malsucedida, neste exemplo) que podem nortear ações. Vale ressaltar que a categoria de Odu é ela mesma paradoxal, se olhada segundo uma perspectiva linear do tempo, pois não somente evoca um passado, mas objetiva um espaço “político”, isto é, regências, já que os signos do destino são concebidos como príncipes primordiais que ocupam e dominam lugares do mundo com as próprias linhagens. A partir da combinação espaço-temporal assim delineada, define-se também uma combinação das exterioridades materiais com as interioridades (intencionalidades e afetos). Pensados como regências personificadas do universo (“eles são os príncipes”, diz a interlocutora), as mensagens associadas aos Odus podem ser consideradas como as “ferramentas” para desvendar agências atrás de eventos. Esse envolvimento no destino compreende, assim, uma cartografia que, embaralhando as distinções entre espaço e tempo, estabelece continuidades entre fatos humanos e acontecimentos naturais, entre poderes pessoais e impessoais.

De fato, tanto os seres humanos quanto os ancestrais míticos divinizados (Orixás) se encontram nas malhas do destino, sendo este concebido como um curso obrigatório, mas controlável, da existência. Muitas vezes chamado de “anjo da guarda”, o destino pessoal é como um caminho cujas características são explicitadas nas “falas” dos orixás (eles comunicam o destino por meio dos búzios). Os orixás são discriminados de acordo com qualidades específicas devidas às suas várias colocações nos acontecimentos primordiais e nos elementos implicados. Um caminho é uma biografia em devir:

Quando o bebê nasce, ele já tem o seu anjo da guarda. O anjo da guarda pode ser bom ou ruim, pode ser “pesado” ou “leve”. Ele espera pelo bebê e ele já está lá desde o nascimento. Às vezes, o anjo da guarda vem com o orixá, porque quando o orixá é encantado por uma pessoa, ele se encosta e quer ser “feito”. Quando vejo uma pessoa com problemas, uma pessoa com vícios, uma pessoa doente por causa de seus maus hábitos, eu acho que um destino infeliz a acompanha. Ela não teve a chance de ter um bom anjo da guarda. Ao nascer, ela teve um anjo da guarda pesado (entrevista com ebome Rosa de Ogun, 09/2012).

Um determinismo marca a pessoa assim como marcou os Orixás, também incluídos nos caminhos do mundo desse tempo primordial. Segundo Beniste (1999), a noção Yoruba de Eleda corresponde aos orixás que “falam” no jogo e que se manifestam como protetores da pessoa. Para Rosa e outros filhos de santo, Eleda é tanto o Orixá protetor quanto o destino atribuído à pessoa (Odu). No entanto, se se considera que também os Orixás estão envolvidos nos Odus, não é de estranhar que se use o mesmo termo “anjo de guarda” para significar os signos do destino (Odu), a proteção que os cuidados rituais recorrentes do jogo proporcionam e os orixás associados. Podemos considerar a noção de destino tanto cosmológica quanto ontológica e antropológica, pois combina elementos, eventos e agências postulando um analogismo (Descola 2005) – e eficácias – entre planos. A prática divinatória parece, assim, comunicar o conceito de destino e o seu corolário: a eficácia.

Exemplos de regências eficazes

No jogo divinatório o conceito de “caminho” indica uma “história de vida traçada” cujos eventos podem ser desvendados, sendo a relação entre elementos (artefatos ou elementos naturais) e destino pessoal de difícil descrição para uma sensibilidade ocidental, geralmente marcada pela oposição entre eventos pessoais e essência natural (mais um aspecto da oposição ocidental natureza/cultura). Para obviar a essa dificuldade é necessário acompanhar a ilustração de casos, aproveitando as noções míticas sobre os Odus. Beniste descreve, por exemplo, como o signo Osa Meji representa as Iyamís, isto é, as feiticeiras, forças da magia negra associadas à noite e ao fogo (1999:46). Segundo esse autor, o signo domina partes do corpo humano, especialmente as aberturas e as extremidades, mas também as partes internas e mais íntimas: as narinas, as orelhas, os olhos, as pernas, a vagina e o sangue menstrual; de fato, Osa Meji controla o sangue e as aberturas do corpo – essa última atribuição torna-o perigoso. Seu domínio (regência) é assim descrito: “Este signo não faz diferença entre ricos e pobres, reis e chefes [...]. Osa Meji se encontra no fluxo menstrual e no útero da mulher, onde este Odu tem efeitos terríveis” (1999:47). Beniste aponta, também, como certas divindades são associadas com o signo Osa Meji (Iemanjá, Iansã, Orixalá, Iroko e Oxum).

Algumas cores correspondem a esse signo, principalmente a cor vermelha, mas também as cores branca e azul. Iemanjá parece ser incompatível com o signo, como é explicado numa narração mítica (Beniste 1999:20-21): Yemowo (uma qualidade de Iemanjá), esposa de Oxalá, banhou-se durante a menstruação em um rio, provocando a poluição das águas, e quando as Yamís descobriram o crime, devoraram Yemowo e Oxalá. As pessoas associadas a esse Odu devem, portanto, evitar relacionar-se com os elementos que compõem as oferendas a Iemanjá, procurando igualmente evitar o vinho de palma, mel, feijão, folhas de Iroko, bambu e todos os itens feitos com ele, pois esses elementos estão associados aos eventos negativos narrados no mito.

Essa narração mítica diz respeito a uma oposição entre as Iyamís, que se beneficiam dos erros do casal mítico (poluição pelo sangue) para devorar suas vítimas (comem sem descanso a família do casal), e os orixás relacionados com a fertilidade – Oxalá é o pai por excelência, e Iemanjá é a mãe de todos. As Iyamís, ao contrário, podem causar abortos; elas são um perigo real para as barrigas das mulheres, como argumenta o pai de santo Genivaldo: “Quando a gente faz um trabalho ritual para uma mulher grávida, tudo pode acontecer no nível de energia. Mesmo uma troca com as Iyamís pode ser necessária, porque a energia delas deve sair da barriga da mulher” (entrevista com pai de santo Genivaldo, 08/2008). Estas palavras indicam as incompatibilidades entre a pessoa, objeto da consulta e da ação ritual (a mulher e as partes do corpo), as agências (as feiticeiras), os elementos (de contaminação) e os eventos previsíveis (o aborto, as doenças, etc.). Os pais/mães de santo devem levar em conta todas as relações materializadas entre as entidades e os humanos, por meio de elementos, durante as práticas rituais e terapêuticas.

Assim como Osa Meji se refere principalmente à capacidade destrutiva da magia negra e à infertilidade, a capacidade de diminuir a fertilidade de outrem é típica também dos “nativos” desse signo. Como indica Beniste (1999), pessoas dominadas por Osa Meji são feiticeiros involuntários e podem destruir a força sexual do parceiro/a pelo simples olhar. Esta eficácia corresponde a um poder objetivo associado a esse Odu, sendo as forças ocultas o marco das pessoas desse signo. Os “nativos” do signo encontram-se, então, na dupla condição de objetos e sujeitos de forças, isto é, a eficácia de Osa Meji pode ser inseparável da pessoa “nativa” do signo quando ela não toma precauções rituais adequadas – a pessoa é objetivada como uma “quase doença” para outrem17 17 Um “quase evento”, diria Deleuze. Notamos que, como indicaria este filósofo, o espaço no Candomblé deixa de ser meramente representativo e torna-se intensivo: cada ponto é singular, possuindo o seu próprio poder (Deleuze 2009). Sobre virtualidades no Candomblé, ver Goldman (2009). . Em geral, a interpretação dos signos remete a ações rituais: devem ser respeitados gestos interditos e devem ser feitas purificações e oferendas (ebo). Em caso de gravidez arriscada, por exemplo, panos vermelhos devem fazer parte das oferendas ao Odu Osa Meji para desviar a sua capacidade de fazer sangrar e abortar, a oferenda sendo concebida como um substituto da mulher grávida. É, portanto, despachado o lado negativo do Odu (isto é, o aborto), de acordo com a lógica da troca. Inversamente, um excesso de vermelho – em vestuário, notadamente – é considerado fonte de perigos, porque o nativo e o signo estão, neste caso, numa condição de homologia de forças (Héritier 1996HÉRITIER, Françoise. (1996), Masculin/féminin - La pensée de la différence. Paris: Editions Odile Jacob.).

As pessoas são governadas por eficácias que devem ser monitoradas, sendo o controle possível também a partir do corpo e dos elementos do mundo, permitindo manipulações de elementos e artefatos nos rituais. A purificação do corpo com folhas, grãos, objetos, etc., é um exemplo neste sentido. O jogo divinatório pode dar origem a instruções de despacho específicas: “Apresentou-se um Odu: toda quinta-feira você vai ter que passar um feijão no corpo (feijão fradinho) e depois colocá-lo em um lugar na floresta”, diz o pai de santo Genivaldo durante uma sessão divinatória (entrevista com pai de santo Genivaldo, 08/2008). Neste caso, o ato de passar o feijão no corpo tem finalidade preventiva e apotropaica; o gesto deve ser feito semanalmente para evitar problemas relacionados com o signo em questão. Segundo uma visão não maniqueísta (o mal e o bem-estar são relativos), a passagem dos objetos sobre o corpo visa despachar o perigo de eventos negativos, livrando o consulente da parte ruim do Odu, para colocá-la numa área do mundo que seja do domínio do próprio Odu. O mal, portanto, não é eliminado do mundo, mas é recolocado no seu lugar de origem onde deve permanecer sem produzir prejuízos.

A visão cosmológica dos eventos, cuja dimensão é tanto espacial quanto temporal, mostra como objetos, elementos, lugares e entidades são pensados em continuidade com a (cosmo)biografia pessoal. As energias negativas do corpo do adepto vão nos elementos (feijão, no caso citado) e depois para áreas do mundo (encruzilhadas, mar, mato, etc.), cada vez associadas aos diferentes Odus, sendo estabelecida a cada ritual uma complexa transformação simbólica realizada com ações que articulam a dimensão espacial e cosmológica com a dimensão existencial da pessoa.

Durante os trabalhos rituais, os gestos são frequentemente associados a purificações (limpezas), sendo os elementos ou artefatos (folhas, grãos, frutas, velas, charutos, alimentos, etc.) passados no corpo, dos ombros para baixo, sem esquecer as solas dos pés e mãos, e são despachados. Nas limpezas uma ave pode ser localizada no piso, as asas presas sob os pés do adepto – uma vez solta, irá tomar sobre si as negatividades. O Odu, cuja energia é localizada em áreas específicas onde esses elementos são depositados, deve voltar a capturar as energias a ele associadas e que são nocivas para o adepto. Os elementos do ebo passados no corpo “limpam” o adepto e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, “alimentam” o Odu em seu lugar, o corpo permitindo o contato entre o adepto, os elementos e as energias presentes no mundo. Os elementos e artefatos despachados constituem, de fato, uma troca, não podendo o Odu, associado ao destino pessoal, ser exorcizado, mas unicamente amenizado nos seus efeitos.

A lógica paradoxal dos rituais associados aos Odus começou a se apresentar mais claramente depois de ter participado de vários ebos (este termo, como vimos, sintetiza um conjunto complexo de gestos rituais que compreende purificações corporais e oferendas). Notadamente, foi durante uma longa conversa com Genivaldo que minhas perguntas, focadas na ideia das expulsões de energia perigosa, encontraram respostas:

Pesquisadora: O Odu é despachado ou alimentado?

Genivaldo: O Odu é despachado apenas pelas coisas negativas, pelo o que não é bom. Você vai alimentar o Odu para despachar tudo o que é negativo. Você tem que levar somente as energias positivas. Como é que podemos fazer? Temos o corpo... deve-se fazer um ebo, deve-se passar, por exemplo, um charuto no corpo para remover toda a negatividade que existe na minha cabeça, no meu corpo e no meu caminho, eu estou trocando tudo isso com este charuto. A mesma coisa acontece quando damos comida às energias... é a mesma no caso de Exú (entrevista com pai de santo Genivaldo, 09/2008).

Genivaldo também descreve as qualidades positivas de Odu: Odu Obara, por exemplo, pode trazer dinheiro e riqueza, mas também pode removê-los. Uma vez o jogo indicou uma oferta de feijão, grãos, charutos e búzios para aumentar a riqueza; o pai de santo Genivaldo colocou os elementos e artefatos numa vasilha, enfeitou-a com fitas do Senhor do Bonfim para depois a colocar no galho de uma árvore, bem no topo, porque se devem mentalizar os ramos crescendo em analogia com a riqueza que deve aumentar.

Inversamente ao caso das oferendas que alimentam a parte positiva dos Odus, atitudes de vida e gestos podem evocar e ativar os aspectos negativos. Um filho de santo argumenta, por exemplo, que deve escapar da multidão para evitar conflitos, sendo o lado negativo do Odu que influencia a sua pessoa associado à violência em locais lotados. O comportamento ritual (no caso, o interdito da multidão) vai para além do âmbito do culto público, torna-se um estilo a assumir, de acordo com os caminhos do próprio destino, pulverizando-se, assim, o sistema divinatório nos vários aspectos da existência e remetendo a gestos rituais de ressonância simbólica – parecidos com aqueles ilustrados por Smith (1979).

Pode-se lidar também com situações de neutralidade de um Odu, na medida em que ele pode estar presente no destino de forma ativa ou inativa (sem exercer sua influência). Mulheres dominadas por infertilidade, por exemplo, podem estar sob a influência do Odu Osé que deve então ser trabalhado ritualmente (Odu Osé é ligado à fertilidade e ao amor: Oxum, orixá associado à sedução e ao parto, “fala” através deste Odu). O Odu “dormindo” (como diz o pai de santo Robson) expressa bem a ideia de inclusão da pessoa em um destino objetivo, a infertilidade decorrente de Osé podendo constituir uma virtualidade na existência da pessoa – assim como uma doença pode fazer parte de um fundo genético, até o dia em que ela viria a se manifestar. O pai de santo Robson, explicando a ambivalência de Odu Osé, enfatiza também como a negatividade dos Odus não podem ser definitivamente polarizadas: “O Odu é bom e ruim ao mesmo tempo; deve-se despachar o lado negativo quando ele surgir” (entrevista com pai de santo Robson, 07/2010).

O jogo de búzios é a ferramenta necessária para conhecer os caminhos e tentar afastar-se dos acidentes que possam ocorrer. Quando um Odu exerce sua influência negativa, a única providência possível é o trabalho ritual, que torna viável uma emancipação relativa do “nativo” do determinismo da sua existência. Não há, a princípio, descontinuidade entre a pessoa e o mundo, pois a noção de destino compreende ambos; a ideia de “caminho” designa uma situação dinâmica da pessoa, definida e redefinida em relação aos eventos de sua vida que precisam ser interpretados e enfrentados. Acidentes podem indicar uma influência excessiva de Odu na biografia do adepto, tal eficácia correspondendo, consequentemente, a uma força inerente tanto ao Odu quanto à pessoa nativa do signo (a sua capacidade de enfeitiçar, no exemplo acima). Todavia, não é pertinente estabelecer uma separação entre uma força exógena e uma outra endógena para o contexto que analisamos, pois a pessoa e seu destino são inicialmente inseparáveis: a pessoa está submetida a um regime de “forças”, incluída em um “caminho” do mundo. Inseridas num “campo” dado (regência), ações rituais eficazes (oferendas ou limpezas, proibições, etc.) manifestam as conotações complexas e paradoxais da pessoa e do seu destino.

Gestos e contextos rituais

Podemos destacar algumas questões que foram consideradas ao longo destes parágrafos. A dimensão simbólica do destino permite estabelecer mediações variadas entre níveis cosmológicos e antropológicos, entre objetos e sujeitos, entre eventos e agências, as mediações produzindo efeitos paradoxais entre níveis diferentes; no que lhe concerne, o processo ritual condensa e junta heterogeneidades propositalmente, para promover ações e efeitos transformadores. Segundo inferências sobre acontecimentos, por um lado, o destino da pessoa deve ser interpretado, e os eventos podem ser considerados como índices de agências (Zempléni 1995). Por outro lado, nas práticas rituais, os eventos perigosos podem ser neutralizados quando deslocados em elementos que, por sua vez, são recolocados no seu lugar de “origem” (Hertz 1922HERTZ, Robert.(1922), "Le péché et l'expiation dans les sociétés primitives". Revue de l'Histoire des Religions, vol. LXXXVI: 1-60. ). Reencontramos, assim, precauções contra perigos cuja definição depende de evocações simbólicas precipitadas durante específicas situações de cunho ritual (Smith 1979).

O Odu, como operador cosmológico, refere-se a categorias de eventos protótipos, inscritos, como tentamos demonstrar, nos elementos do mundo. Já os Orixás, com suas histórias e suas personalidades, projetam, por sua vez, um antropomorfismo no destino. Os elementos viram veículos de agências eficazes e, portanto, exigem cautelas gestuais. Uma ebome, referindo-se à possibilidade de reverter os perigos do destino por meio de uma oferenda (ebo), assim descreve como neutralizar a parte negativa de um Odu (chamada de “espiritual negativo”):

Um ebo é feito de acordo com o jogo: pode aparecer no jogo a necessidade de fazer, por exemplo, uma oferenda de uma galinha, de legumes e bebidas. Esses alimentos são dados ao “espiritual negativo” em troca da saúde da pessoa. O “espiritual negativo” vai esquecer a pessoa, porque ele vai comer o ebo. A purificação é associada a um Odu que apareceu no jogo. Há ebos brancos, e portanto, nesses casos, os elementos do rito devem ser brancos, por exemplo: uma galinha branca, uma abóbora muito clara, repolho claro, etc. Se oferecemos a farinha de mandioca branca, na semana seguinte não podemos comer bolos feitos com esta farinha, que pode ser substituída por tapioca (entrevista com ebome Nancy de Oxalá, 08/2008).

As palavras da ebome sugerem como os elementos de purificação são neutros em si mesmos, mas tornam-se temporariamente negativos (por uma semana deve, por exemplo, evitar a farinha de mandioca). Elementos associados ao corpo servem para afastar o negativo: alimentar-se deles novamente chamaria de volta a energia da qual se desejava distância. Durante rituais deste tipo, a proximidade física de elementos com a pessoa (foram passados no corpo) tem sido estabelecida. No intuito de remover negatividades, também foram pronunciadas palavras eficazes e mentalizadas separações do “espiritual negativo”. Através dos gestos complexos, o conjunto de elementos rituais tirou o negativo da pessoa, mantendo-se positivo para o Odu que vai aceitar a oferenda: uma superposição de identidades é atuada, condensações de realidades diversas ou opostas são promulgadas.

De fato, no exemplo citado de limpeza, há uma temporária e paradoxal ambiguidade nos elementos: passadas sobre o corpo da pessoa, removem dela o “espiritual negativo”; deixados disponíveis para o Odu, eles constituem uma oferenda pois fazem parte de sua regência. Uma transformação benéfica é comunicada através da sequência compacta de gestos durante a limpeza: durante o ebo, a pessoa é incluída num destino infeliz, mas também está sendo emancipada de uma realidade incômoda, como expressa, finalmente, o fato de que as roupas usadas durante o ritual devem ser lavadas, pois ainda podem conduzir o passado negativo.

Em geral, a transformação promovida pelo conjunto dos atos rituais descritos contempla várias conotações contraditórias: qualidades são acumuladas no adepto segundo os Orixás que “falam” no jogo (como no caso de Osé e da fertilidade); há quebra da linearidade espaço-temporal, já que as eficácias presentes remetem às histórias primordiais; durante os gestos rituais são comunicadas realidades do destino que, contraditoriamente, são tanto internas quanto externas à pessoa; são promulgadas agências que atuam como eventos na eficácia operativa de elementos e, de maneira paradoxal, os Odus e os elementos associados são tanto negativos como positivos. Transformações que acarretam conotações complexas, contraditórias e paradoxais dos objetos e das pessoas são atuadas pelos gestos rituais repetidos a cada sessão ritual semelhante, o formalismo ritual sendo o contexto definido para a notificação dos conteúdos contraintuitivos em pauta.

As narrações míticas que foram apresentadas constituem um acervo importante de símbolos, todavia a comunicação das eficácias desenvolve-se para além de uma simples abordagem semântica ao simbolismo, conjugando-se com ações rituais circunstanciadas e singulares que, visando os eventos que devem ser controlados, definem as eficácias como atualizações, cada vez diferentes, de virtualidades (Goldman 2009). As imputações das propriedades diversas nos “existentes” (humanos e não humanos) pressupõem no jogo de búzios uma forma de analogismo (Descola 2005), o qual adquire uma dimensão realística no contexto da categorização dos eventos no âmbito da existências singulares – o que sugere a importância do plano événementiel na cognição do sobrenatural (Fortier 2014). No contexto das transformações rituais, as propriedades dos elementos e as dimensões antropomorfas das entidades condensam-se e “fazem”, cada vez de forma circunstanciada e singular, a realidade condensada e contraintuitiva do destino do adepto. Com efeito, a eficácia das transformações almejadas suscita mais uma adesão do adepto às noções complexas e paradoxais em pauta que uma compreensão de uma narração linear.

Vimos que, durante os rituais, o adepto concentra em si várias instâncias, o que corresponde a uma construção complexa da sua existência e da sua pessoa18 18 Sobre definições das identidades complexas nas performances rituais do xamã Cuna, ver Severi (2002). . Ele se descobre como parte de um destino que pode ser alterado agindo eficazmente nos elementos do mundo e nas entidades, esta eficácia prolongando-se no cotidiano, nos gestos rituais que o identificam com suas múltiplas relações de culto (com seu orixá principal e com todos os outros “assentados”, isto é, por ele cultuados). As ações rituais associadas aos Odus e aos Orixás convocam, definitivamente, uma paradoxal construção da biografia da pessoa, registrando agências paralelas, acasaladas aos eventos de sua existência – a dimensão identitária tornando-se definitivamente importante depois da feitura.

Considerações finais

Em geral, os atos rituais implicam significados pouco claros: objetos manipulados de forma específica que desmentem usos habituais, gestos que evocam efeitos especiais e frases frequentemente incompreensíveis, às vezes pronunciadas numa língua litúrgica desconhecida para a maioria dos participantes (Houseman 2005). Em contrapartida, um dos resultados típicos dos processos rituais é a criação de uma certa verdade, o tipo de interação ritual (com humanos, não humanos e sobre-humanos) constituindo-se como um idioma irrefutável e persuasivo (Houseman 2003HOUSEMAN, Michael. (2003), "O vermelho e o negro: um experimento para pensar o ritual". Mana, vol. 9, n° 2:79-107.:80). Como escreve Houseman (2013______. (2013), "Para um modelo antropológico da prática psicoterapêutica". In: F. Tavares; F. Bassi (orgs.). Para além da eficácia simbólica. Estudos em ritual, religião e saúde. Salvador: Edufba. :71), do ponto de vista interacional, a pressuposição pragmática dos atos rituais é a “instrução”, já que sua capacidade de suscitar motivação e adesão se encontra numa linha de junção entre uma conduta convencional e obrigatória e as possibilidades desta de contextualizar símbolos motivando ao mesmo tempo disposições intencionais e emocionais específicas em cada participante.

No Candomblé, os casos analisados indicam, por um lado, como eventos e situações existenciais podem ser indícios de relações de culto; por outro, os atos rituais (ebos, limpezas, quizilas, etc.) mostram uma disposição específica do adepto a se identificar com as características e intencionalidades dos Orixás e dos signos do destino (Odus). Deste modo, os processos ritualísticos proporcionam em vários momentos uma “verdade” autorreferencial; notadamente, uma construção paradoxal da biografia do adepto (acasalada com as histórias mitológicas) é atuada segundo interações com objetos, lugares, situações, etc., que perderam suas conotações de uso e ganharam uma saliência psicológica. No dia a dia dos filhos de santo, eventos podem receber uma atenção específica por evocar uma relação de culto na qual as dimensões intencionais dos orixás se fazem “presentes”, interferindo na realização de tarefas cotidianas (no corte da saia litúrgica, no exemplo ilustrado acima) que revelam, assim, uma eficácia especial. Os acontecimentos encontram correspondência nos gestos eficazes dos humanos, a comunicação das qualidades divinas juntando-se, portanto, com a interpretação destes eventos cognitivamente salientes (tratados como indícios de agências) e dos gestos correspondentes.

Resumindo, podemos ressaltar que, depois da iniciação, o filho de santo é um instruído a produzir ou evitar gestos (prescrições ou interdições) em diversos momentos da sua existência, a qual ganha uma notável ressonância simbólica. Simples gestos rituais ou atuações complexas pressupõem agências nunca totalmente definíveis, pois elas são conectadas dinamicamente com a existência do adepto. Uma proliferação de atribuições simbólicas caracteriza o filho de santo (Bassi 2013), sempre atento a decifrar novas conexões com Orixás e Odus. Uma “vertigem” analógica (Descola 2005), que, pela sua natureza em devir, seria dificilmente comunicável fora da convenção da prática ritual, na qual transformações eficazes são circunstanciadas e a própria eficácia (axé) encontra o quadro, formal e contraintuitivo ao mesmo tempo, apto para sua enunciação. Mais em geral, tanto no caso do iniciado, como dos simples adeptos dos serviços rituais do Candomblé, realidades cognitivamente paradoxais condensam propriedades diversas (humanas e não humanas), identificam agências e permitem a emergência de biografias, construídas em contextos rituais. Evidentemente rebelde aos recortes entre objetos e sujeitos, eventos e agências, etc., o próprio contexto ritual é a referência para agir para além de natureza e cultura: certas eficácias “dormem” mas podem ser acordadas, outras podem ser mitigadas, a comunicação da força dos símbolos dependendo da sabedoria dos gestos.

Referências Bibliográficas

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Entrevistas

Entrevista com ebome Nancy de Oxalá, agosto de 2008.

Entrevista com ebome Regina, setembro de 2012.

Entrevista com ebome Rosa de Ogun, setembro de 2012.

Entrevistas com pai de santo Genivaldo, agosto e setembro de 2008.

Entrevista com pai de santo Robson, julho de 2010.

Notas

  • 1
    Dados provenientes do campo da minha pesquisa de doutorado e pós-doutorado efetuado na Bahia em terreiros de Candomblé Nagô (Keto e Ijexà). Agradeço imensamente ao povo de santo pelo acolhimento. Agradeço igualmente Fátima Tavares pelo apoio e carinho durante a pesquisa de pós-doutorado. O período de pesquisa nos terreiros de Candomblé desenvolveu-se entre 2005 e 2014. A tese foi defendida em 2009 com o título Entre mythe et Corps: les quizilas dans le Candomblé du Brésil. Das publicações sobre o ritual, ressalto aqui “L’efficacité des passions: sensibilité et identité chez l’initié au Candomblé” (Etnográfica, Lisboa, vol. 17, n° 3: 437-456, 2013) e “Revisitando os tabus: as cautelas rituais do povo-de-santo” (Religião e Sociedade, vol. 32, n° 2: 170-192, 2012).
  • 2
    Nos casos analisados, há tanto linguagens corpóreas, isto é, gestos simbólicos, quanto atos específicos de cunho ritual. Embora haja diferença entre as noções de “atos” e “gestos”, no campo analisado, gestos simbólicos e atos eficazes (interdições ou prescrições) compõem variavelmente os contextos ritualísticos observados; portanto, optamos por manter ambos os termos. A terminologia coincide com aquela usada num ensaio de Pierre Smith (1979), que será analisado mais adiante, em que o autor utiliza, alternativamente, os termos “gestos” e “atos” para tratar de interditos rituais.
  • 3
    Trata-se de um termo que faz parte da teoria cognitivista da religião, que tem em Boyer (2001BOYER, Pascal. (2001), Religion Explained. The Human Instincts that Fashion Gods, Spirits and Ancestors. London: Vintage.) um dos seus maiores representantes. Boyer afirma que o seu termo central, “contraintuitivo” (para definir conceitos religiosos), é técnico e não significa totalmente estranho, excepcional ou extraordinário; notadamente, ele deve contradizer informações fornecidas por categorias ontológicas (2001:65). Segundo Boyer, para que sejam memoráveis, os conceitos devem ser “minimamente contraintuitivos”, ou seja, devem ser familiares em alguns aspectos, mas não em outros (seres com sentimentos humanos, mas invisíveis, etc., presentes nas religiões, remeteriam, por exemplo, a esses tipos de noções). No tocante às categorias ontológicas, vale também ressaltar que, neste artigo, o termo “objeto” é usado no seu sentido comum, sabendo que o conceito antropológico acarreta um debate sobre a distinção coisa/objeto (Ingold 2012INGOLD, Tim. (2012), "Trazendos as coisas de volta à vida". Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n° 37: 25-44. ). Para o conceito de agência, pode se fazer referência a Strathern (2006STRATHERN, Marliyn. (2006), O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Unicamp. ) e à ideia de relações construídas em ação.
  • 4
    Vale ressaltar que autores da “virada ontológica”, embora segundo variações teóricas específicas, tentam definir alternativas às oposições ocidentais natureza/cultura (ver Descola 2005DESCOLA, Philippe. (2005), Par - delà nature et culture. Paris: Gallimard. ; Viveiros de Castro 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. (2002), A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosacnaify. ). Descola (2005), na sua teoria do animismo, opta pela superação da oposição objeto/sujeito, derivante da citada oposição natureza/cultura, por meio da análise de continuidades e descontinuidades nos “existentes” (tanto objetos como sujeitos) entre “exterioridades” e “interioridades”. A perspectiva cognitivista, por sua vez, é bastante diferenciada nos seus representantes. Num recente debate com Descola e Viveiros de Castro, Martin Fortier, opta pelo conceito de “estilos cognitivos”, mantendo firme a presença de um certo corte universal natureza/cultura, embora mais ou menos acentuado segundo as variações culturais (Fortier 2014FORTIER Martin. (2014), "La cognition animiste: une approche transdisciplinaire". Séminaire de l'EHESS-ENS, 2014-2015. Disponível em: https://www.academia.edu/7002940/La_cognition_animiste_une_approche_transdisciplinaire_-_Séminaire_EHESS_2014-2015. Acesso em: 31/10/2014.
    https://www.academia.edu/7002940/La_cogn...
    ). Este trabalho não pretende desenvolver esse debate, mas somente indicar como as questões inerentes à eficácia simbólica, que implicitamente colapsam a oposição natureza/cultura, interessam de modo geral aos estudos sobre ritualHUMPHREY, Caroline; LAIDLAW, James. (1994), The Archetypal Actions of Ritual: A Theory of Ritual Illustrated by the Jain Rite of Worship. Oxford: Clarendon Press., religião e terapêuticas tradicionais (ver Tavares & Bassi 2012TAVARES, Fátima; BASSI, Francesca (orgs.). (2012), Para além da eficácia simbólica. Estudos em ritual, religião e saúde, Salvador: Edufba. ).
  • 5
    Na utilização da noção exótica (da Melanésia), é manifesta a tendência a uma explicação circular: é mágico porque tem mana; tem mana e, portanto, é mágico. Como veremos mais adiante com Severi (2004______. (2004), "Capturing imagination. A cognitive approach to cultural complexity". The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 10, n° 4: 815-838. ), há uma dificuldade intrínseca na análise semântica da noção de mana e afins.
  • 6
    Se, por um lado, com o respeito a certos interditos são esconjurados perigos (a escassez do leite, a morte do neném, etc.), por outro, os eventos naturais insólitos (amahano) são vistos pelo ruandês como indícios de infortúnios. Segundo uma relação evocativa, a natureza e as dimensões da vida social se encontrariam, portanto, em continuidade: “para o ruandês o fluxo da vida mantém entre natureza e sociedade uma harmonia profunda que não pode ser tocada, assim que tudo o que é insólito numa dessas dimensões é o signo de uma perturbação general” (Smith 1979SMITH, Pierre. (1979), "L'efficacité des interdits". L'Homme, vol. XIX, n° 1: 5-47.:20).
  • 7
    Segundo Smith, os interditos (imiziro), assim com outros gestos “mágicos”, não estariam avassalados a uma errada concepção da realidade, mas à produção de simbolismo: “os imiziro convidam o pensamento simbólico a desfrutar das atividades e das realidades que existem em primeira instância numa dimensão utilitária e racional” (Smith 1979:43). Como indica ainda o autor, a exploração utilitária de objetos e situações não é comprometida, o simbolismo se contentando ser ativado em momentos pontuais e contextos altamente definidos.
  • 8
    Boyer e Liénard definem como os comportamentos individuais, estereotipados e compulsórios, divorciados das metas comuns (goal-demotion), seriam parte do aprendizado infantil de atitudes de vigilância contra perigos (2006BOYER, Pascal ; LIÉNARD, Pierre. (2006), "Precaution systems and ritualized behavior". Behavioral and Brain Sciences, vol. 29, n° 6: 635-641.:13); refloresceriam, eventualmente, durante momentos vulneráveis do ciclo vital (no pós-parto, em especial); e concederiam uma certa trégua aos pacientes de transtornos obsessivos compulsivos – notadamente, atos repetidos evitariam pensamentos ameaçadores intrusivos (Boyer e Liénard 2006:passim). Tais comportamentos ganhariam, intuitivamente, uma aceitação em consequência de serem originados de atitudes de vigilância úteis para a sobrevivência.
  • 9
    Segundo Boyer e Liénard (2006), em muitos rituais “culturais”, ao mesmo tempo que perigos são evocados, atos repetidos são executados obrigatoriamente, impondo uma estrutura protetora por meio de uma definição rígida do comportamento, do espaço, etc. Portanto, segundo os autores, a ativação de HPS seria o que faz certos comportamentos ritualizados compulsórios e convincentes.
  • 10
    A transmissão de evocações simbólicas analisadas por Smith certamente remete a precauções contra perigos capazes de captar atenção por meio de comportamentos obrigatórios divorciados da meta original segundo incompatibilidades não comuns (fumar e ordenhar; ninar e morrer).
  • 11
    Evidentemente, como ressalta o próprio Smith, esses atos familiares e anódinos são geralmente inócuos e levados de modo despreocupado no dia a dia, já que evocam perigos somente em certos contextos e segundo associações específicas (fumar tabaco normalmente não impede a abundância do leite, e pode-se fumar em vários momentos perto das vacas sem provocar diminuição alguma, a evocação negativa concernindo somente os momentos da ordenha e da produção do leite; a exortação a dormir alude à morte somente quando se trata de recém-nascidos, etc.).
  • 12
    Sobre as características e as idiossincrasias dos Orixás, ver Cossard-Binon (1970COSSARD-BINON, Gisèle. (1970), Contribution à l'étude des Candomblés au Brésil. Le Candomblé Angola. Paris: Thèse de doctorat de 3° cycle de la faculté de Lettres et Sciences Humaines, Université de Paris., 1981______. (1981), "A Filha-de-Santo". In: C. E. Marcondes de Moura (org.). Olóòrísà. Escritos sobre a Religião dos Orixás. São Paulo: Ed. Ágora.), Lépine (1981LÉPINE, Claude. (1981), "Estereótipos de personalidade". In: C. E. Marcondes de Moura (org.). Olóòrísà. Escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo: Ed. Ágora. ), Augras (1987AUGRAS, Monique. (1987), "Quizilas e preceitos. Transgressão, reparação e organização dinâmica do mundo". In: C. E. Marcondes de Moura (org.). Candomblé. Desvendando identidades. Novos escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo: EMW Editores.), Beniste (2002______. (2002), As Águas de Oxalá. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.), Bassi (2012BASSI, Francesca. (2012), "Revisitando os tabus: as cautelas rituais do povo de santo". Religião e Sociedade, vol. 32, n° 2: 170-193. , 2013______. (2013), "L'efficacité des passions: sensibilité et identité chez l'initié du Candomblé". Etnográfica, vol. 17, n° 3: 437-456. ).
  • 13
    Filha de santo com mais de sete anos de iniciação e com os rituais (obrigações) de confirmação cumpridos.
  • 14
    Várias características dos orixás parecem derivar de um sistema de classificação, que permite associar os orixás aos diferentes âmbitos da natureza (Goldman 1987GOLDMAN, Márcio. (1987), "A construção ritual da pessoa: a possessão no Candomblé". In: C. E. Marcondes de Moura (org.). Candomblé Desvendando identidades. São Paulo: EMW Editores.:98). Descontinuidades entre os orixás podem ser veiculadas, por exemplo, por meio de abstinências alimentares dos filhos de santo, resultantes das homólogas oposições entre domínios dos orixás. Segundo essa lógica, os filhos das águas (filhos de Iemanjá e Oxum) evitam comer crustáceos ou peixes, os filhos de Nanã evitam caranguejo, sendo a lama o elemento dela, etc. Como indica Goldman (1987:100), enquanto protagonistas de mitos, os orixás assumem características, nomes e interditos particulares, apresentando diferentes “qualidades” que podem ser enxergadas como diferentes aspectos de uma mesma “energia” (ou essência), que se expressa de forma singular nos acontecimentos míticos.
  • 15
    Como ressalta Todorov, os processos de simbolização não se encaixam num quadro coerente de representações: “a relação metonímica agente-ação é mais importante que a relação metafórica entre a imagem e o ser representado. Um certo desenho não faz sentido se não é inciso (ação) naquele objeto particular: adquire um sentido por meio de uma relação metonímica de lugar” (Todorov 1991TODOROV, Tzvetan. (1991), Teorie del simbolo. Milano: Garzanti. :305, tradução nossa).
  • 16
    O jogo de búzios revê dezesseis odus principais, oráculos, determinados pela configuração dos dezesseis búzios na mesa do jogo (abertos ou fechados): por cada odu certos orixás se fazem presentes. Os orixás falam nos odus – por exemplo, numa configuração de nove búzios abertos, respondem aos quesitos os orixás Iansã ou Iemanjá, etc. Ver Bascom (1969BASCOM, William. (1969), Ifa Divination: Communication between Gods and Men in West Africa. Londres, Bloomington: Indiana University. ), Lacourse (1981LACOURSE Josée. (1981), "Quand les hommes rencontrent les dieux. Du cheminement initiatique à la logique rituelle dans le Candomblé de Bahia". L'ethnographie, n° 86-2: 9-19.), Bastide & Verger (1981BASTIDE, Roger & VERGER, Pierre. (1981), "Contribuição ao estudo da adivinhação no Salvador (Bahia)". In: C. E. Marcondes de Moura (org.). Olóòrìsa. Escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo: Ed. Agora), Braga (1988BRAGA, Julio. (1988), O Jogo de búzios. Um estudo da adivinhação no Candomblé. São Paulo: Editora Brasiliense.), Beniste (1999BENISTE, José. (1999), Jogo de Búzios. Um Encontro com o Desconhecido. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. ), Aquino (2004AQUINO, Patrícia. (2004), "Paroles d'objets ou le carrefour des coquillages divinatoires du Candomblé". Systèmes de pensée en Afrique noire, Le rite à l'œuvre, n° 16: 11-47. ).
  • 17
    Um “quase evento”, diria Deleuze. Notamos que, como indicaria este filósofo, o espaço no Candomblé deixa de ser meramente representativo e torna-se intensivo: cada ponto é singular, possuindo o seu próprio poder (Deleuze 2009DELEUZE, Gilles. (2009), Logica del senso. Milano: Feltrinelli. ). Sobre virtualidades no Candomblé, ver Goldman (2009______. (2009), "Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica". Análise Social, vol. XLIV, n° 190: 5-137.).
  • 18
    Sobre definições das identidades complexas nas performances rituais do xamã Cuna, ver Severi (2002______. (2002), "Memory, reflexivity and belief. Reflections on the ritual use of language". Social Anthropology, vol. 10, n° 1: 23-40.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    Fev 2016
  • Aceito
    Ago 2016
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