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Publicamente cristãos

ENGELKE, Matthew. God’s Agents: Biblical Publicity in Contemporary England. 2013. University of California Press, Berkeley: 292

ENGELKE, Matthew. God’s Agents: Biblical Publicity in Contemporary England. Berkeley: University of California Press, 2013, 292pp.

Matthew Engelke é um antropólogo estadunidense que, desde 2002, atua na London School of Economics. Em 2012, o pesquisador publicou o capítulo sobre “Material Religion” na Cambridge Companion to Religious Studies, organizada por Robert A. Orsi, evidenciando seu vínculo com os debates encenados na revista homônima, dedicada a “objetos, artes e crenças”. O nome dele está ainda associado às discussões recentes que integram uma “antropologia do cristianismo”. Engelke fez trabalho de campo no Zimbábue, junto a uma igreja cristã que rejeitava até a Bíblia como mediação para o encontro com Deus. Foi na África que conheceu a atuação da British and Foreign Bible Society, que é o tema de God’s Agents. Após ter estudado um grupo que atenuava a materialidade bíblica, pareceu-lhe ótima ideia dedicar-se a outro em que a Bíblia é um objeto central.

Na verdade, o estudo de Engelke parte de vários recortes das atividades da Sociedade Bíblica, que foi criada no começo do século XIX, para divulgar o principal livro cristão. Ele deixa de lado os projetos da organização no exterior (ainda que a maior parte da conclusão do livro descreva uma viagem na capital da Etiópia), focando em atividades que ocorrem na Inglaterra na primeira década do século XXI. O que interessa à análise, além disso, não é a venda ou distribuição de Bíblias, e sim, o que o autor chama de Bible advocacy. Em razão disso, o foco recai em algumas atividades ou projetos que buscam mostrar a relevância da Bíblia ou de Deus nos dias atuais. Essa questão adquire uma feição especial em função das concepções abraçadas pela Sociedade Bíblica. Para a organização, que tem o suporte da Igreja Anglicana e também de outras denominações protestantes importantes, o mais adequado é levar a Bíblia para as pessoas, e não o contrário. Ela recusa, portanto, o proselitismo ou a indicação de regras de vida, tal como fariam certas lideranças cristãs. Mas ela também recusa a subordinação do cristianismo a um modelo liberal, que entende a religião como privada. Para a Sociedade Bíblica, a religião é algo público: está no mundo e tem algo a falar sobre ele.

Engelke propõe, assim, caracterizar essa atuação, e uma de suas contribuições consiste em retomar a discussão sobre “religiões públicas” levantada por José Casanova ou sobre as relações entre religião e esfera pública. Não basta enunciar o caráter público da religião, mas, insiste o autor, precisamos perguntar pelas condições e modos de publicidade. Eis suas questões: “Quais são, em dado lugar e dado tempo, as formas legítimas e legitimantes de proclamação [religiosa]? Como, na Inglaterra atual, as Boas Novas podem e devem conquistar publicidade?”(:xix). A atuação de cristãos publicamente engajados, portanto, é acompanhada com o interesse de perceber como pretendem adquirir relevância social. Para Engelke, isso é traduzido como publicidade, o que remete à análise etnográfica de mediascapes diversas (tanto na preparação de atividades, quanto na sua divulgação), mas também à discussão das concepções relacionais de “público” e de “privado” que povoam, explícita ou implicitamente, os projetos da Sociedade Bíblica na Inglaterra. Assim, God’s Agents, além de ser um estudo sobre a atuação de uma instituição de cristã(o)s, constitui uma discussão sobre os contornos adquiridos pelo que Talal Asad chama de formações do secular. Isso corresponde a uma agenda de debates que, para o autor, supera aquela encabeçada pela ideia de secularização: “Em termos simples, na sociologia da religião britânica a questão se ou não Deus teria morrido se tornou menos interessante – e menos produtiva – do que a proposta de traçar os modos particulares pelos quais o secular e o religioso tomam forma, são mutuamente constituídos e promovem ou desencorajam certos tipos de questões e debates” (:64).

Cada um dos seis capítulos acompanha uma ou várias atividades da Sociedade Bíblica, seguindo aproximadamente o que a própria instituição aponta como as forças motrizes culturais da vida britânica moderna: mídia, arte, política e educação. O primeiro capítulo tem como tema a concepção e a realização de um projeto de decoração natalina em um open door de um shopping na cidade onde a Sociedade Bíblica tinha sua sede. O projeto é bastante expressivo do tipo de presença pretendida pela Sociedade: em vez do tradicional presépio, a escolha recaiu sobre pipas em formato de anjos estilizados. A mensagem religiosa aparecia assim travestida de “espiritualidade”, mas ela ocupava um lugar público. As mesmas características marcavam outro projeto desenvolvido na mesma cidade, também enfocado no primeiro capítulo do livro. Pessoas combinavam encontros em cafeterias e sentavam-se em suas mesas com o objetivo específico de manter discussões sobre temas bíblicos. Ou seja, um encontro privado em um lugar público.

O capítulo 2 analisa uma campanha da Sociedade Bíblica desenvolvida em Manchester, uma das principais cidades britânicas. Ela consistiu na distribuição de imagens – em outdoors, mas também em suportes como painéis publicitários e apoiadores de copos em bares – que propunham charadas a partir de passagens bíblicas. Colecionando as respostas das charadas, as pessoas concorriam a um prêmio que seria doado a uma instituição assistencial da sua preferência. Um conjunto de eventos reforçava a campanha, que visava atingir a “cultura”. Engelke discute o sentido conferido à categoria: “Para antropólogos/as, o oposto de cultura é natureza. Para evangélicos, o oposto de cultura é a Igreja. Cultura, em seu uso cristão, ganha um conjunto particular de significados cuja força deriva de certos pressupostos sobre a secularização como um processo de diferenciação da religião de todo o resto” (:70). Para a Sociedade Bíblica, o desafio está em cruzar a distância que separa a “Igreja” da “Cultura”. Nesse processo, se produz pessoas que pretendem estar conectadas com a atualidade e, ao mesmo tempo, manter a capacidade crítica baseada em referências religiosas. Charadas bíblicas foi a maneira encontrada de satisfazer a essa necessidade, com o objetivo de sugerir, ao mesmo tempo, a contemporaneidade e a excepcionalidade da Bíblia. Elas são analisadas no livro não apenas em seu conteúdo, mas também em sua forma e suas locações.

O capítulo três muda de ambiente ao se voltar para o trabalho de uma espécie de agente parlamentar vinculado à Sociedade Bíblica. Dave tem doutorado em Política e Educação e se considera um born again. Formalmente, ele é assessor de um deputado e, por isso, circula amplamente pelo Parlamento britânico. Sua missão é ajudar parlamentares a “pensar em termos cristãos”. Engelke busca mostrar como isso não se traduz em uma diretriz estrita na atuação de Dave, assim como não corresponde a atitudes previsíveis por parte de parlamentares mais sensíveis a uma perspectiva cristã. Dave, por exemplo, abomina a ideia de um partido político cristão e valoriza o secularismo porque bloqueia pressões eclesiásticas; sua ideia de Reino de Deus conecta-se com um elogio da sinceridade e da liberdade. Um dos parlamentares confessadamente cristãos, em outro exemplo, votou a favor de um projeto que avançava na garantia de tratamento igualitário para pessoas em uniões homossexuais. As atividades de Dave não se limitavam a conversas: ele estava à disposição para orar, fazer estudos bíblicos e ouvir testemunhos de parlamentares.

Os três capítulos restantes do livro continuam tendo Londres como cenário e focam em Theos, um think tank criado durante o período da pesquisa de Engelke, que pôde assim acompanhar seu lançamento e alguns de seus projetos. O texto inaugural de Theos apresenta sua concepção de uma teologia pública. Primeiro, a conciliação entre fé e razão, que permite a oposição tanto ao “fundamentalismo religioso”, quanto ao “humanismo liberal”. Em seguida, a conciliação entre cristianismo e secularismo, que permite afirmar o papel público do primeiro e a valorização cristã do segundo. O antropólogo analisa outros documentos: o que se pronuncia sobre a presença e o papel dos bispos anglicanos que ocupam o Parlamento, outro que toma partido em favor da fraternidade em detrimento do patriotismo como valores britânicos e, ainda, um último sobre o fundamento e o papel dos capelães mantidos com recursos públicos que atuam em hospitais. Engelke não se debruça apenas sobre documentos; ele segue a concepção de pesquisas de opinião que são encomendadas por Theos para acompanhar a divulgação dos documentos e faz a etnografia dos eventos públicos em que estes são lançados, seguindo sua repercussão em rádios, TVs, blogs, etc. O capítulo seis é todo dedicado a um ambicioso projeto focado em Darwin, que envolveu pesquisas, livro, peça de teatro, etc. Darwin é elogiado por ter se recusado a usar a ciência em favor do ateísmo. Com isso, Theos constrói uma posição – amparada em um teísmo evolucionista – que “resgata” Darwin do que seriam dois “fundamentalismos”, o dos ateus militantes e o dos religiosos que recusam a biologia evolutiva.

Engelke reconhece que sua pesquisa e suas questões o obrigam a dialogar com referências da sociologia da religião. A marca antropológica se imprime na abordagem que o faz acompanhar de perto alguns “agentes de Deus”. São várias as descrições pessoais ao longo do livro. Outro efeito dessa abordagem é percebido no capítulo 4, no qual o filósofo político John Rawls é tomado como um interlocutor, não apenas diretamente, mas, sobretudo, no modo como é citado nos documentos de Theos. O mais importante, contudo, é a proposta de tratar os diversos projetos como práticas. Mesmo quando lida com textos, Engelke busca apresentá-los não somente em seu conteúdo, mas na relação que mantêm com atividades e eventos. Apesar desse ser o método geral, parece-me que é nos capítulos 1 e 2 que sua aplicação alcança rendimentos maiores. Uma das razões para isso é que nos demais capítulos, os textos ou uma perspectiva textualizante – quando o que está em foco são concepções – ficam em primeiro plano. Mas como mesmo aí se insiste em examiná-los – textos ou concepções – na relação com uma série de atividades que os produzem ou acompanham, o antropólogo corre o risco de não fazer consistentemente nem uma coisa nem outra. Ou seja, nem se aprofunda na interpretação dos sentidos contidos em textos e concepções, nem demonstra a vantagem de abordá-los em conjunto com as atividades que os cercam. O capítulo em torno do projeto sobre Darwin promete uma boa conciliação, mas acaba servindo, sobretudo, para corroborar a concepção de teologia pública já delineada em partes anteriores.

Em contraste, a análise que o livro produz sobre a decoração natalina e a campanha com charadas bíblicas é muito rica. No capítulo 1, Engelke propõe a noção de ambient faith – inspirada em ambient music – para sugerir os efeitos assumidos pela presença dos anjos em um espaço comercial. Isso só é possível atentando para as características materiais dos objetos e sua relação sensorial com as pessoas implicadas. Se, por um lado, os anjos em seu distanciamento e forma estilizada poderiam ser interpretados de vários modos, eram eles e não os motivos associados a Harry Potter (tema do natal anterior) que preenchiam os espaços. Embora o pesquisador não estenda a sua noção, é possível afirmar que os outdoors da Campaign to Culture em Manchester também produziram uma ambient faith. Para isso, sua aparência secular é fundamental. Os lugares onde os outdoors foram colocados, o design que adotaram (imitando manchetes de jornal e usando cores da moda), o uso das charadas: sem atentarmos para essas dimensões, é impossível entender o jogo entre religioso e secular que as passagens bíblicas empreendem. Como elabora o autor, essas atividades “demandam atenção para como se concebia que a linguagem funcionava para o público em geral, e também para como as palavras se conectavam com outros registros e formas semióticas para comunicar mensagens particulares” (:67).

Outra observação que se pode levantar a propósito do livro é que o foco adotado nas atividades perde de vista algumas características estruturantes da relação entre cristianismo e esfera pública na Inglaterra. Nas suas conclusões, Engelke pergunta(-se) se os cristãos que acompanhou teriam cedido terreno demais às exigências da narrativa que pretendem questionar, narrativa que consagra a razão sem deixar lugar para a fé. A pergunta advém em um esforço de distanciamento que busca considerar esses cristãos de modo similar aos africanos convertidos ao cristianismo. O esforço é interessante, mas, ao meu ver, poderia ocorrer no sentido inverso. Pois muitas das atividades e concepções das pessoas vinculadas à Sociedade Bíblica ganham existência e sentido por ocorrerem no interior de um quadro em que o cristianismo é parte do “ambiente”. No caso da Inglaterra, isso tem a ver com as condições do establishment que vinculam o Estado a uma igreja cristã, as quais condicionam, por exemplo, o que Theos pode exigir dos bispos – Engelke enfatiza a insuficiência do argumento da tradição – sem precisar colocar em questão sua presença na Câmara dos Lordes. Outros assuntos estão longe de ser estritamente britânicos, como o da capelania. A defesa que Theos produz do financiamento público dos capelães vale-se de um argumento que, apesar de estar disseminado, não deixa de ser peculiar: a dimensão espiritual é parte inerente da saúde humana. O antropólogo nota que com esse argumento os religiosos somam forças com outros atores sociais não religiosos. Mas um mesmo alinhamento poderia se produzir caso o argumento fosse articulado por muçulmanos? A menção aos muçulmanos não é fortuita. Na verdade, pelo que o livro relata, há uma dificuldade por parte da Sociedade Bíblica em construir alianças com organizações e expoentes islâmicos na Inglaterra. A questão da diversidade religiosa poucas vezes aparece; o contraponto dessa ausência é o destaque conferido à crítica ao que os cristãos chamam de “ortodoxias seculares dominantes”. Aliás, um grupo de promoção do “humanismo” é atualmente o tema de pesquisa de Engelke. Importa destacar que eleger como alvo tais grupos e posições opera para consolidar os cristãos como porta-vozes da “religião razoável”, mesmo que isso redunde em prejuízo ao pluralismo religioso.

Apesar de algumas limitações, God’s Agents é um livro muito bem-vindo para as discussões que se propõe a fazer. A empatia e a abertura que seu autor carrega para se aproximar dos agentes da Sociedade Bíblica permite que as análises mostrem as sutilezas desse cristianismo que pretende ser menos um livro com regras a serem seguidas do que uma narrativa para ser encenada. Para entendê-lo, é necessário questionar antinomias arraigadas entre privado e público, entre intimidade e publicidade – mas também atentar para outras que concepções e práticas cristãs reforçam. Publicidade, de todo modo, é mesmo a noção central nesse livro. Com ela, Engelke nos faz pensar sobre as condições de relevância do cristianismo na sociedade contemporânea. Essas condições envolvem dimensões temporais, como a história divina e as oportunidades de disseminação dessa história. Envolvem também dimensões espaciais, como sugere a noção de ambient faith com suas implicações para a configuração de objetos e sentidos. O pesquisador nota que a eficácia de uma fé ambiente é tanto maior quanto menos reconhecida ela for. Pois, de fato, às vezes disseminar as boas novas depende de não nos fazer perceber que elas já estão no nosso mundo há muito tempo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    Set 2016
  • Aceito
    Nov 2016
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