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Contra naturam, contra connubium: A sexualidade no cristianismo

Contra naturam, contra connubium: Christianity and the Sex

Resumo

O artigo trata das ideias e práticas cristãs a respeito da sexualidade, conectando dados numa série histórica de longa duração: a identificação do pecado original com o sexo, a instituição do celibato e da multiplicação dos impedimentos ao matrimônio entre consanguíneos, o conflito entre clero e laicado em volta dessas questões. Antes da Reforma, a Igreja criou um panteão (a Trindade e a Sagrada Família) baseado em relações consanguíneas e excluindo a reprodução sexual, e se adequou a esse modelo, como uma irmandade utópica de fiéis. A moral sexual cristã deriva desta invenção de uma utopia social mais que de uma ética sexual patriarcal. Nesse sentido, há marcados paralelos com tendências atuais a respeito de sexo, gênero e família.

Palavras-chave
sexualidade; cristianismo; celibato; aliança; utopia

Abstract

This paper examines the Christian ideas and practices concerning sexuality. It connects a wide array of long-term historical facts: the identification of the Original Sin to sex, the institution of Celibacy for the clergy, the growing canonical impediments to the marriage between kinsfolk and the conflicts it aroused between laity and clergy. The Christian Church, prior to the Reform, created a Pantheon (the Trinity and the Holy Family) based on kin relationships, excluding sexual reproduction, and shaped itself after this model, as an utopian brotherhood of believers. The Christian sexual morals derive from this invention of an utopian society rather than from archaic patriarchal ethics. In this sense, there are sheer parallels to current trends concerning sex, gender and family.

Keywords
sexuality; Christianity; celibacy; marriage; utopia

Da relação entre o cristianismo e a sexualidade se faz de praxe um resumo seco: desconfiança, negação e repressão, a contrastar com o destaque que dão ao sexo os mundos pagãos e até com a atitude das outras religiões “do livro”, o Judaismo e o Islã. Nenhuma outra religião concede à virgindade e ao celibato o estatuto que o cristianismo lhes concede, e este ascetismo de partida favorece uma posição ultraconservadora em tudo que diz respeito a noções de gênero, matrimônio e família, e uma resistência ferrenha a aceitar mudanças na moral sexual, familiar e reprodutiva. O catolicismo, neste ponto, representa o extremo de um continuum em que outras variantes do cristianismo ocupam posições muito mais moderadas, fazendo dessa resistência um signo de identidade católica.

Embora essa visão deixe espaço para matizes e exceções, e permita valorações diferentes, alcançou um estatuto de senso comum e um teor tautológico: tudo parece remontar ao ideário misógino, patriarcal e sexófobo dos pais fundadores, ou do solo original do cristianismo ‒ é assim porque sempre foi assim. Este trabalho não pretende acrescentar matizes ‒ o seu autor carece da necessária qualificação como historiador ‒, mas sugerir conexões, vinculando essa tradição com outros aspectos importantes da história do cristianismo, bem conhecidos e descritos, com especial ênfase em Brown (1982BROWN, Peter. (1982), The cult of the Saints. Its Rise and Function in Latin Christianity. Chicago: University of Chicago Press., 1990______. (1990), Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) e Goody (1983GOODY, Jack. (1983), The Development of the Family and Marriage in Europe. Cambrige: Cambridge University Press.). O que este artigo oferece é um objeto clássico na antropologia: um modelo para discussão. Uma ideia central do que se segue é que as relações entre cristianismo e sexualidade não têm sua raiz no endosso de moralidades conservadoras, mas antes numa ruptura radical ‒ utópica ‒ com elas.

Virgindade e metafísica

O cristianismo leva ainda hoje a marca de uma controvérsia, acontecida durante a antiguidade clássica, cujos iniciadores, os Encratitas, foram há muito esquecidos1 1 De enkrateia, continência. O encratismo foi, a rigor, anterior ao cristianismo: já antes de sua versão cristã conheceu outras, vinculadas a diversas religiões e filosofias. Não chegou a constituir uma seita propriamente dita, sendo mais uma corrente marginal presente em heresias – como o marcionismo –, mas também dentro da tendência dominante (Bolgiani 2002). . Os Encratitas, que formavam comunidades cristãs longe do espaço urbano e se abstinham do consumo de carne e vinho, abominavam a sexualidade, ou especialmente a sua função reprodutiva. O teor dessa aversão era moral (a sexualidade é suja), mas sobretudo cosmológico: identificava o pecado original, origem de todo Mal, com a reprodução sexuada. Dentro dessa nebulosa de grupos, seitas ou comunidades que era ainda o cristianismo, as ideias encratitas foram endossadas, em maior ou menor grau, por muitos, mesmo entre seus adversários. Alguns destes podiam assumir atitudes quem sabe mais radicais, como a da castração voluntária (caso de Orígenes); outros, fomentar as comunidades ascéticas, com homens e mulheres convivendo como irmãos; outros, o afastamento do mundo – de um mundo caraterizado pela presença feminina.

A condenação encratita do sexo não era, em absoluto, a versão extremista de uma moral em vigor. Na sociedade romana, a moral em vigor, uma moral patriarcal e severa a despeito de certas ideias depois popularizadas, considerava a sexualidade reprodutiva como uma ação virtuosa, sagrada, uma espécie de dever cultural, entendendo cultura, aqui, num sentido agrário: dever de lavrar e semear uma natureza feminina em benefício da ordem e da continuidade da gens. Fora do leito conjugal, a sexualidade podia tomar outras formas, que, antes que pecados ou aberrações, eram frivolidades eventualmente puníveis. Toleráveis como brincadeiras de ‒ ou com ‒ escravos e libertos, eram vergonhosas entre cidadãos maduros e livres. Várias diferenças de conceito separam os critérios morais da antiguidade romana dos atuais. Uma é que a moralidade é um atributo hierárquico, e ninguém se preocupa muito pela imoralidade da ralé, enquanto esta não contamine a elite. Outra é que, bem mais do que o sexo dos parceiros, o que importa é o papel ativo ou passivo na cópula, e este último prejudica a integridade do corpo masculino livre (Veyne 1985VEYNE, Paul. (1985), “Homossexualidade em Roma”. In: P. Ariès e A. Béjin (orgs.). Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense.). Mais uma diferença ‒ muito importante ‒ é que a noção de uma sexualidade contra naturam não se refere, como agora, à violação de determinadas fronteiras (sexo com pessoas do mesmo sexo, com animais, etc.), mas ao artifício e ao refinamento, que são contra naturam mesmo nas relações legítimas (Veyne 1985VEYNE, Paul. (1985), “Homossexualidade em Roma”. In: P. Ariès e A. Béjin (orgs.). Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense.). O livro IV do tratado De Rerum Naturae, de Lucrécio (2003LUCRÉCIO CARO, Tito. (2003), La Naturaleza. Madrid: Editorial Gredos.), nos seus cinquenta versos finais, ilustra à perfeição essa ideia. Depois de dissertar longamente sobre os processos conceptivos humanos, Lucrécio moraliza, desprezando as artes das prostitutas que sabem se mover durante a cópula para aumentar o prazer dos seus parceiros e evitar a fecundação. Artes também conhecidas pelas esposas, mas, obviamente, indesejáveis nelas. Lucrécio tem sua recomendação para um sexo matrimonial decente. A esposa deve ficar na posição mais favorável à fecundação: de quatro, levantando as nádegas para uma cópula more ferarum, ou seja, como é costume entre as feras. Lucrécio poderia ter se referido aos animais domésticos, mas a moral parece se encontrar, nesse caso, no ponto mais distante da cidade e seus artifícios2 2 O prestígio desse “polo selvagem” é grande. Roma é fundada, segundo o mito, pelos gêmeos Rômulo e Remo, filhos de uma Virgem Vestal e amamentados por uma loba. . Essa natureza que é o corpo feminino deve ser trabalhada, sim, mas por meios primigênios. Se a moralidade cristã abominou o aspecto animal do sexo3 3 Segundo seguidores de Taciano, uma das figuras do encratismo, Adão e Eva aprenderam dos animais o uso do sexo (Brown 1990:87). , este era para os romanos a garantia da sua conformidade à natureza ‒ num sentido que Veyne chamou, com uma certa ironia, de ecológico. A sociedade romana contava, em suma, com uma moral sexual bem definida, na qual a sexualidade em si era sagrada, como testemunhava um panteão plenamente sexuado, que incluía personificações divinas dos próprios órgãos genitais.

A tendência cristã-encratita dirigia-se precisamente contra esse núcleo sagrado, seguindo uma linha metafísica: modelo das dicotomias e da diferença, a sexualidade afastava o ser humano da unidade originária do Ser e era um obstáculo para uma unidade por vir. A negação do sexo era una postura apocalíptica: o mundo era um lugar degradado e provisório, a ser logo substituído por um reino dos céus onde a diferença sexual não teria mais lugar. Tratava-se de uma postura antissistema, que provocava escândalo, não apenas entre os porta-vozes do paganismo, mas também entre os cristãos comuns, que procuravam um compromisso entre a nova religião e a continuidade do mundo.

A castidade e a virgindade não eram ideais insólitos. Como requisitos rituais, eram e ainda são comuns a muitas religiões: a abstinência sexual ‒ como a abstinência do sono ou do alimento ‒ é um modo de marcar um espaço ou tempo sagrado. As Virgens Vestais estavam bem no centro do sistema litúrgico romano, e era a essas Vestais que os polemistas cristãos (Zincone 2002ZINCONE, Sergio. (2002), “Virgindade”. In: A. Berardino (org.). Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs . Petrópolis: Vozes .:1.420) aludiam quando queriam diferenciar sua noção de pureza daquela do mundo clássico: a virgindade das Vestais era provisória e formal, a virgindade cristã era definitiva e essencial, não sendo um requisito ritual, mas o caminho para a abolição de uma dualidade funesta. A virgindade, ou mais exatamente a maternidade virginal, como veremos depois, estava também intimamente ligada à ideia de um Jesus Cristo Deus e Homem ao mesmo tempo.

Embora minoritária e extravagante dentro do próprio cristianismo, essa condenação do sexo logo se manifestou como um dado estratégico para distingui-lo em meio à multidão de religiões que disputavam o campo religioso romano, ou especialmente das numerosas seitas judaicas entre as quais o cristianismo se confundia. Mesmo banida da ortodoxia, deu um signo de identidade à nova religião, como o que os tabus alimentares davam aos judeus. Estes nunca tinham condenado o sexo como tal: na mesma época em que os encratitas identificavam o pecado de Adão e Eva com o sexo, algumas interpretações judaicas faziam o mesmo, mas com uma diferença. Se Adão e Eva pecaram foi porque ambos teriam se deixado penetrar pela serpente, dando origem simultânea à sodomia e ao bestialismo (Brown 1990______. (1990), Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.:88). Cada religião pautava a sexualidade de acordo com os tabus de sua preferência; apenas o cristianismo ensaiava a possibilidade de marcar como tabu a sexualidade por inteiro.

A ortodoxia cristã em matéria sexual procurou um ponto de equilíbrio entre esse ascetismo apocalíptico e o juízo dos pagãos, que viam no cristianismo uma seita destrutiva. E esse ponto de equilíbrio encontrou-se na cissão entre o clero, que assumiria a perfeição da castidade, e os leigos, que assumiriam a tarefa mundana de dar continuidade a um mundo, um mundo, porém, cristão.

Criar uma moral familiar cristã diferente da moral familiar antiga não era fácil: a vida dos lares cristãos pouco se diferenciava da vida dos lares pagãos. Por isso, o mundo clássico romano foi objeto, por parte dos propagandistas cristãos, de uma extensa calúnia, que até hoje persiste na cultura popular: passou a ser descrito pelos seus bordéis e pelos seus desvios, não pela ordem doméstica habitual; como um mundo lascivo, entregue a uma orgia permanente. Quando o futuro chega e acontece de não ser muito diferente do passado, não há melhor solução, como sabemos, que transformar o passado.

Cabe assim distinguir entre a negação ascética da carne, que condenava em primeiro lugar o próprio matrimônio e passou a ser apanágio dos eleitos, e a moral cristã secular, que se radicalizou num processo de emulação, santificando a sexualidade reprodutiva mediante o endurecimento dos seus limites e suas exclusões4 4 A primeira queima pública de homossexuais, sob o Imperador Teodósio, em 390 d.C., é também a primeira vez em que a tradicional reprovação da passividade masculina passa a ser entendida como “sacrilégio contra o corpo” (Brown 1990:315): o corpo, portanto, era já sagrado, não mais uma matéria desprezível; essa nova condição incluía, também, muitas restrições mesmo no leito conjugal. . Essa diferença ajuda a entender o papel das mulheres no primeiro cristianismo. No mundo romano as mulheres eram “menores”, mas isso lhes facultava uma considerável autonomia quando livres dos seus “maiores”; órfãs e viúvas (ricas) eram muito mais donas de si que o filho homem de um pai vivo (Veyne 1989______. (1989), “O Império Romano”. In: P. Ariès e G. Duby (orgs.). História da Vida Privada, I: Do Império Romano ao ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras.:30-31). Já no cristianismo elas constituíam, de modo bem literal, o segundo sexo, ou seja, o sexo cuja aparição tinha iniciado a dualidade e a diferença. O grande papel das mulheres da aristocracia romana na promoção do cristianismo ‒ entre elas, o entusiasta círculo de seguidoras que patrocinou o notavelmente misógino Jerônimo, tradutor da Bíblia ao latim ‒ causava desconforto então (Brown 1990______. (1990), Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.:285), e hoje ainda perturba pensar que levava essas mulheres a atuar, contraditoriamente, em prol de uma religião que, somando dois conceitos pessimistas da feminidade, apontaria para elas um papel mais recluso e subalterno. Pode se entender que essas empresárias do cristianismo, seduzidas pelas propostas ascéticas, não apostavam por um endurecimento da família patriarcal, mas talvez sim pela perspectiva da anulação da diferença de sexo. Em vão: se durante um tempo o Céu foi povoado por bem-aventurados epicenos, já Jerônimo deixou claro que, embora castos, esses bem-aventurados pertenceriam a gêneros diferentes, homens e mulheres (Brown 1990______. (1990), Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.:312-315).

Quando as reformas gregorianas, no século XI (não por coincidência, passado o terror do milênio) consolidaram e regulamentaram o celibato, pouco ou nada restava das noções apocalípticas que davam sentido à renúncia encratita, mas a Igreja tinha se transformado num mundo paralelo, um antimundo. Como aconteceu depois mais alguma vez, a Utopia que não chegou foi substituída por uma organização burocrática, e os grupos que a anunciavam passaram a constituir seus quadros; o celibato agia como garantia de sua coesão e, ao mesmo tempo, como símbolo da utopia protelada.

O cristianismo dos inteletuais e o cristianismo dos patrícios

Estamos a falar de uma controvérsia de longa duração ‒ poderíamos dizer que a Reforma Protestante e até as reformas liberais são ainda seus avatares ‒ que opôs desde o início o patriciado e o clero cristãos. Contra o que supõe uma interpretação muito popular desde meados do século XIX ‒ divulgada, entre outros, por Engels ‒, o cristianismo não era uma religião de escravos revoltados. Ele estava, ainda durante o Império Romano, em mãos de setores da aristocracia que compartilhavam em boa medida da moral sexual lá em vigor. Como toda aristocracia, o patriciado cristão reverenciava a continuidade da linhagem, e, portanto, a sexualidade que a garantia, e celebrava os casamentos com cerimônias que, no essencial, continuavam as práticas romanas.

O clero, ainda no século IV ‒ quando o cristianismo se torna primeiramente legal e depois oficial ‒, estava em vias de se organizar a partir de uma nebulosa de intelectuais e militantes, compostos num labirinto de grupelhos pugnazes que se digladiavam sobre a doutrina. Apenas se transformou no que agora entendemos como clero quando foi sendo chamado a substituir a velha ordem imperial. A rede de organização do cristianismo, com seus bispos, presbíteros, diáconos e subdiáconos, era a única estrutura burocrática que podia substituir um Império declinante que já não conseguia renovar seus quadros.

O patriciado cristão praticava um tipo de cristianismo bem diferente desse cristianismo universalista e apocalíptico dos intelectuais. Organiza-se em volta de um culto dos santos que, traduzindo a uma chave cristã o velho culto doméstico dos ancestrais, podia albergar com ele boa parte do universo simbólico e afetivo anterior, devidamente ressimbolizado (Brown 1982BROWN, Peter. (1982), The cult of the Saints. Its Rise and Function in Latin Christianity. Chicago: University of Chicago Press.). O patriciado era suficientemente poderoso para manter o controle sobre esse clero em formação, que, em geral, surgia de suas fileiras. Mas aconteceu algo diferente: em lugar de se organizar como uma espinha dorsal desse mundo, como especialistas do sagrado ou intelectuais orgânicos da sociedade cristã, os clérigos tenderam a criar um duplo desta, com aspirações à hegemonia sobre a sociedade mundana (Brown 1990:126-128). A ascensão da castidade como virtude e do celibato como sua efetivação foi essencial nesse processo. O celibato, inexequível por definição para o patriciado, era o quesito em que o clero podia obter vantagem sobre ele: contribuiu para transformar o clero numa carreira meritocrática, dificultando o acesso às dignidades eclesiásticas daqueles que não renunciassem às suas redes de parentesco (Brown 1990:123). Antes de se consolidar como norma, o celibato já agia como um critério de excelência, que às noções de pureza do clérigo acrescentava uma liberação de compromissos alheios à sua função: uma rede social havia sido substituída por outra de novo tipo.

O celibato significava, sobretudo, uma ruptura do valor estruturador da aliança, do connubium: seu papel na história do cristianismo não pode ser compreendido se não o vemos à luz de outras duas manifestações dessa ruptura.

Pelo lado do clero, como acabamos de dizer, a aparição da Igreja como um corpo social independente, todo ele organizado segundo figuras da consanguinidade: da base até o topo, todos os membros da Igreja são pais e/ou filhos, mães e/ou filhas, e todos eles/elas são irmãos, salvo, lá no topo, Deus Pai, que é pai de todos e irmão de ninguém. A Igreja apresenta-se como um mundo unido em volta de uma consanguinidade generalizada que, sem aliança, não pode ser esfacelado pela formação de famílias e pela herança privada.

Pelo lado secular, temos a extensão extraordinária que o cristianismo deu ao conceito de incesto, estendendo a proibição de casamento ao parentesco “espiritual” ‒ relações de apadrinhamento e compadrio ‒, dando especial relevo ao incesto de segundo grau (ou seja, o matrimônio com parentes por afinidade) e incrementando a extensão do grau de consanguinidade que impede o matrimônio. Jack Goody (1983GOODY, Jack. (1983), The Development of the Family and Marriage in Europe. Cambrige: Cambridge University Press.) reinterpretou à luz dessas medidas a história da família europeia. A lei canônica chegou a proibir a partir do século VI o enlace matrimonial com consanguíneos de sétimo grau, o que na prática5 5 Ou seja, independentemente do sentido que se dê a esse “sétimo grau”, que na contabilidade eclesiástica somaria os graus de distância ao ascendente comum de ambos os cônjuges, em lugar de levar em conta apenas a maior distância, como na contabilidade moderna. descartava qualquer cônjuge ao qual se pudesse chamar de “primo”. Isso contribuía, é claro, para desfazer o tecido social do patriciado, baseado na reiteração da aliança, dando passagem a um tipo de enlace matrimonial efetivamente “complexo”, determinado por regras negativas, em lugar de seguir normas preferentes que privilegiam os laços de sangue e a preservação do patrimônio. Segundo Goody, essa reforma incrementava o valor da decisão individual, abrindo o caminho para o individualismo amoroso que séculos depois seria o fundamento oficial de famílias de porte muito menor; e, obviamente, incrementava também o poder da Igreja de captar donativos e heranças.

Vale a pena examinar a explicação que Tomás de Aquino dá a essa norma no século XIII e que não deixa de evocar o mundo das redes sociais da atualidade: o casamento com consanguíneos ou afins deve ser evitado porque ele impediria “a multiplicação dos amigos”. Pelo contrário, quando um homem casa com uma mulher alheia à sua parentela, todos os parentes da esposa unem-se ao esposo numa amizade nova, como se fossem consanguíneos (Aquino 2002AQUINO, Tomás de. (2002), Suma Teológica. São Paulo: Edições Loyola.:II-II, q. 154, art. 9). Ou seja, a aliança é desejável para formar elos amplos, vagos e genéricos, não para definir grupos. Isso dava uma vantagem ao único grupo cujo vínculo interno, de novo cunho, estava além de incestos e impedimentos: a Igreja.

A tese de Goody pecava por ser teleológica: é como se, sob o Império Romano, um clero cristão ainda em formação tivesse arquitetado o plano perfeito para poder amealhar o enorme poder que de fato passou a ostentar séculos mais tarde. Creio, porém, que fica mais verossímil se considerarmos que esse objetivo, demasiado maquiavélico, foi alcançado em grande parte como resultado imprevisível de outras expectativas por demais ingênuas. A grande novidade teológica do cristianismo (Veyne 2014______. (2014), Quando nosso mundo se tornou cristão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.:37) foi a de propor umas relações imediatas, íntimas e informais (cordiais, diríamos) do crente com a divindade, difíceis de entender num paganismo de deuses indiferentes aos humanos. Essa informalidade ou essa cordialidade se inspirava no ideal das relações entre consanguíneos: o amor esperado nas relações entre pais e filhos ou entre irmãos. A grande novidade sociológica do cristianismo consistiu em considerar que esse mesmo elo proposto entre o crente e a divindade deveria ser também a chave da socialidade humana no seu conjunto. Tomás de Aquino, que obviamente nunca casou, entende que casando longe não se fazem cunhados, mas amigos e irmãos, e essa facilidade de reproduzir em grande escala as formas cordiais da intimidade transformou-se com o tempo numa expectativa oficial. Isso então era ainda uma novidade, inicialmente proposta em versão “revolucionária” ‒ um mundo novo numa nova terra, como promete o Apocalipse ‒, mas foi realizada em termos mais pé no chão; e dessa reforma a Igreja surgiu como um protótipo do Estado Moderno, um universo de irmãos e iguais sob a tutela de um Pai genérico e assexuado, com exclusão explícita de toda aliança matrimonial e todo vínculo fisiológico, pois a fraternidade é uma irmandade do espírito, e não da carne. No seu âmago, eis a moral da democracia moderna.

Esse mundo de irmãos continuou sendo uma ficção utópica valiosa. Não a reconhecemos sob a retórica rotinizada do cristianismo, mas ela pode ser levada a sério por neófitos que a acabam de conhecer: foi o caso dos Wari, convertidos ao cristianismo nos anos 1950 (Vilaça 1999VILAÇA, Aparecida. (1999), “Cristãos sem fé: alguns aspectos da conversão dos Wari (Pakaa Nova)”. In: R. Wright (org.). Transformando os Deuses: Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp. ), que entenderam essa conversão como um ensaio de sociedade livre dos conflitos e os defeitos da afinidade. Não escasseiam na literatura antropológica os surtos messiânicos em que, entre as normas abolidas, figura em primeiro lugar o tabu do incesto, nem as descrições de um Além feliz, no qual a sexualidade não falta mas se transforma num jogo estéril realizado entre irmãos. O próprio Lévi-Strauss concluiu suas Estruturas Elementares do Parentesco (1982LÉVI-STRAUSS, Claude. (1982), As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes .), esse tratado sobre a construção do social mediante a aliança, com uma referência a um pano de fundo nostálgico que se mantém atrás dessa construção, o da “doçura de viver entre si”, de escapar à regra social de casar (e se reproduzir) entre os outros. Nesse pano de fundo, amalgamam-se múltiplas negações reais ou imaginárias da aliança: a endogamia, o incesto, a reprodução virginal e a própria autoctonia, uma série de indevidos e impossíveis que prolifera nas mitologias. Não poderia ser de outro modo na mitologia do cristianismo.

As Sagradas Famílias

O rótulo de religião monoteísta resultaria estranho para qualquer observador externo do cristianismo, sobretudo do catolicismo. É claro que a teologia busca ‒ tem sido, aliás, uma das suas principais ocupações nos últimos dois milênios ‒ conciliar esse monoteísmo formal com a evidente pluralidade do panteão, especificando diferenças entre latria, dulia e hiperdulia (o tipo de atitude reservado respectivamente a Deus, aos santos e à Virgem Maria), ou tecendo abismais subtilezas para dar conta dessa pessoa partível que é a Santíssima Trindade. Seja lá como for, no centro do cristianismo há toda uma Sagrada Família, dividida em dois setores, o celestial (a Trindade formada por Deus Pai, Deus Filho e o Espírito Santo) e o terreno. O vínculo entre ambos é garantido pelo Deus-Homem, Jesus Cristo, e pela sua Mãe, a Virgem Maria. Esta, embora inteiramente humana, foi sendo dotada, ao longo da história do cristianismo, com uma série de atributos que a deixam fora da condição humana comum, num ponto intermediário entre as duas esferas6 6 Especialmente o dogma da Imaculada Conceição, do qual trataremos mais tarde, e o dogma da Assunção aos Céus, muito anterior, segundo o qual a vida terrenal de Maria não se conclui numa morte mas num “Trânsito”. .

A Sagrada Família terrena é composta, então, pela Virgem Maria, o seu filho Jesus Cristo (em sua vertente humana), o seu esposo José e, num plano secundário, pela família consanguínea da primeira. Curiosamente, não aparecem em lugar nenhum os parentes de José, embora conheçamos toda a sua estirpe a começar pelo rei Davi, enumerada no início do Evangelho de Matheus7 7 Em todas as citações bíblicas, consultei a tradução de Casiodoro de Reina, publicada originalmente em 1598 (Reina 2001). em sentido descendente (de Abraão e Davi a José e Jesus) e no capítulo III do Evangelho de Lucas em sentido ascendente e com outro traçado (de José a Adão e Deus mesmo). Essa ênfase na genealogia de José fornece, aliás, a primeira perplexidade dos evangelhos, quando pouco depois se expõe que ele não tem papel de genitor na história. Maria, como diz Matheus, é virgem quando concebe Cristo8 8 O tema recebe um tratamento desigual nos quatro evangelhos: Matheus e Lucas dão relevo ao nascimento virginal, mas o primeiro apresenta-o do ponto de vista de José, e o segundo, de Maria. Marcos prescinde em absoluto dele, e João o enuncia em termos muito abstratos (Jo 1:13-14), próximos ao gosto encratita. . A Virgindade de Maria esteve no centro dos primeiros debates teológicos do cristianismo, não por um prurido moral anacrônico, mas em função de uma outra discussão: a de se Jesus Cristo seria apenas humano, apenas deus ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Esta última hipótese, a mais improvável, era também a mais interessante. Os seus partidários acabaram triunfando contra arianos e monofisitas, e com eles a tese do nascimento virginal, que era a melhor expressão possível dessa condição simultaneamente humana e divina9 9 No entanto, a tese da virgindade mariana foi ampliando seu escopo: se o evangelho de Lucas apenas estabelece a virgindade até o nascimento de Cristo, definições posteriores se ocuparam de afirmar a virgindade perpétua. No Protoevangelho de Thiago, José se ocupa de confirmá-la no seu leito de morte. . Deve-se notar que o português é uma das poucas, se não a única, língua católica que costuma chamar de Nossa Senhora uma personagem que em outros lugares é conhecida simplesmente como A Virgem.

O nascimento virgem está longe de ser uma inovação cristã: ele é uma marca de nascimento de inúmeras figuras divinas ou semidivinas, da Athena grega ao Jurupary do relato de Stradelli passando pelo Huitzilopochtli asteca. Mas o que pode caraterizar o cristianismo é seu pendor a transformar esse tipo de nascimento milagroso em sistema. O setor celestial da Sagrada Família, a Trindade, foi ao longo da história do cristianismo objeto de discussões complexas que ficam fora das aspirações deste artigo, mas das quais poderia se dizer que ilustram a possibilidade de jogar com o Um e a Tríade sem passar pela Dualidade, forma básica da guerra e do sexo. No setor terreno, se a genealogia de José é descrita pela reiteração de paternidades ‒ “Salomão engendrou a Roboam que engendrou a Abia que engendrou a Asá [...]” (Mateus 1:7) ‒ numa apoteose da continuidade seminal do pai ao longo de séculos, a família da Virgem Maria é uma antilinhagem em que a reprodução se realiza, uma e outra vez, por milagre. O Evangelho de Lucas ‒ o que dá um maior protagonismo a Maria ‒ começa narrando a inesperada gravidez de Isabel, prima de Maria, estéril e de avançada idade, anunciada por um anjo. O seu esposo, Zacarias, fica mudo de espanto, e a analogia entre a gravidez extraordinária de ambas as primas complementa a que existe entre seus rebentos, Jesus Cristo, o Messias, e João Batista, o seu precursor. Pouco depois, Maria sabe pelo arcanjo Gabriel que será mãe do Messias, apesar de “não ter conhecido varão”. Nunca se pretendeu que a mãe da Virgem Maria, Santa Ana, fosse igualmente virgem: mas ela era também estéril, e apenas depois de uma penitência no deserto o seu esposo, Joaquim, recebe de um anjo a boa nova da paternidade. Vale a pena resenhar que toda essa descrição se baseia em notícias muito enxutas dos evangelhos canônicos, especialmente o de Lucas, complementadas por textos “apócrifos”, em particular o Protoevangelho de Thiago (Santos Otero 2005SANTOS OTERO, Aurélio de. (2005), Los evangelios apócrifos. Madrid: BAC.:57-74), onde aparecem pela primeira vez Santa Ana e São Joaquim. Ou seja, dependem em boa parte de elaborações entendidas como posteriores às canônicas, cujo objetivo era reforçar a tese do nascimento virginal; foram citadas pelos seus partidários e em séculos posteriores foram objeto de grande difusão, especialmente nas artes plásticas.

Ao lado dessa mãe virgem, José é, portanto, um pai social, um “pai putativo” de Jesus Cristo, e durante muito tempo ele ficou restrito a um modesto papel coadjuvante, quase invisível na abundante iconografia cristã, que, no entanto, multiplicava as representações da Virgem a sós com seu Filho. Quando ele começa a aparecer, em representações da Fuga ao Egito, do Nascimento e da Adoração dos Magos, o faz o mais das vezes como um ancião, não raro ao lado de uma Virgem extremamente jovem. A “História de José, o Carpinteiro”, outro apócrifo de ampla difusão (Santos Otero 2005SANTOS OTERO, Aurélio de. (2005), Los evangelios apócrifos. Madrid: BAC.:167-184), dava aos esposos, respectivamente, 90 e 12 anos: um contraste que vinha a reforçar o caráter milagroso da maternidade de Maria. A representação de uma Sagrada Família terrena, com um São José plenamente viril e uma Virgem Maria jovem mas não mais adolescente, floresce apenas a partir do século XVII, junto com um culto efetivo de São José, santo de preferência de autoras místicas tardias, como as beatas Maria Jesús de Ágreda e Ana Catalina Emmerich10 10 Nas visões de Emmerich, transcritas pelo seu secretário, o poeta Clemens Brentano – eu conheço apenas os fragmentos citados por Blaise Cendrars (1980:245-246) – descreve José quando pretendente de Maria, detendo-se no milagre da vara florescida. A beata de Ágreda – conselheira do rei Felipe IV de Espanha – no seu manuscrito Mística Ciudad de Dios, escrito antes de 1665 e inicialmente condenado pela Igreja, faz uma descrição detalhada da vida quotidiana da Sagrada Família e estende à concepção, ao nascimento e à infância de José um caráter prodigioso muito próximo ao de Maria. O texto só foi publicado muito depois (Ágreda 1756), mas circulam agora na internet numerosas edições digitais preparadas por grupos católicos conservadores. Cf., por exemplo: http://iteadjmj.com/LIBROSP/mcd-p1.pdf. . E representa uma remodelação positiva da família dos Primeiros Pais: limpos da marca sexual, os componentes da Sagrada Família reparam aquele mau começo de Adão e Eva, e seu único Filho, em lugar de iniciar (como Cain e Abel) as cisões humanas, reintegra o humano à sua fonte divina.

Se essa valorização da Sagrada Família pode se ver como uma resposta à Reforma Protestante que tinha abolido o celibato em prol de um cristianismo entrosado na estrutura familiar, o século XVII é palco também, num sentido contrário, do acirramento da doutrina da Imaculada Conceição de Maria, uma ideia já muito antiga, que depois de consideráveis polêmicas foi instituída como dogma em pleno século XIX ‒ com a infalibilidade papal, numa clara provocação ao senso comum do Iluminismo. A Imaculada Conceição não se refere à conceição de Jesus Cristo, mas à da própria Maria no seio de sua mãe, Santa Ana, e em princípio nada tem a ver com a virgindade da primeira (afirmada por dogmas anteriores) nem da segunda, que nunca foi postulada. Refere-se, sim, a uma conceição livre do pecado original, o que, por assim dizer, apenas deixa de tratar da sexualidade em concreto para tratar dela em abstrato. A identificação desse pecado original com a sexualidade ‒ uma tese encratita, como já comentamos ‒ tinha sido excluída muito tempo atrás da ortodoxia, deixando o pecado original como uma transgressão genérica e vaga, que a interpretação popular, porém, continua até hoje remetendo à antiga versão sexual. A veemência que acompanhou as polêmicas sobre a Imaculada Conceição ‒ que causaram mais de uma arruaça em países católicos ‒ sugere que essa interpretação subsistia. A Imaculada Conceição, uma das imagens mais poderosas do catolicismo, mostra como, apesar dos compromissos e das acomodações, as velhas noções encratitas continuaram se deixando notar com força no plano simbólico. Liberada da sexualidade, mas não necessariamente dessa sensualidade da “doçura de viver entre si”, a mesma noção de matrimônio, em chave mística, podia ser recuperada para definir as relações entre a Igreja e a divindade (a Igreja como Esposa de Cristo), ou mesmo entre a Virgem Maria e o seu Filho, transformado em Esposo em algumas elaborações mariológicas dentro da ortodoxia (ver, por exemplo, Cavalcanti 2005CAVALCANTI, Geraldo Holanda. (2005), O Cântico dos Cânticos: um ensaio de interpretação através de suas traduções. São Paulo: EDUSP.:183).

É importante confrontar essa teologia com a demonologia que a acompanhou, como um capítulo menor da elaboração teórica cristã. Como tal, ela foi em todo o tempo um terreno incerto no qual o controle da ortodoxia foi sempre muito frouxo. Possivelmente a única grande questão doutrinal em que o Diabo teve um papel central foi a condenação do maniqueísmo, uma heresia, ou, melhor dito, uma religião diferente surgida do cristianismo, que postulava uma dualidade cosmológica entre dois princípios divinos do Bem e do Mal. Depois da condenação do maniqueísmo, a ortodoxia negou ao Diabo um poder independente do poder de Deus. Quando a demonologia se tornou obsessão, já em pleno Renascimento (a enciclopédia demonológica mais famosa, o Malleus Maleficarum, foi publicada pela primeira vez em 1487), ela o fez como um apanhado de noções folclóricas e doutrinas eruditas de ortodoxia muito precária. Na prática, a demonologia permaneceu como fabulação quase livre, sem uma estrita definição por dogmas; mas mesmo assim o seu perfil sexual é constante. Para os fins deste artigo basta dizer que, sem surpresa nenhuma, o Diabo do cristianismo está intimamente ligado à sexualidade. O desejo sexual é o seu principal instrumento de domínio, e a sua comunicação com os humanos realiza-se muito frequentemente por meio do sexo. Isso é um problema teórico, porque se o demônio ‒ como, em geral, os anjos ‒ não é uma entidade estritamente incorpórea, ele também não é dotado de um corpo pleno: desde Santo Agostinho foi descrito como composto de uma “matéria sutil”, que garante por outro lado sua mobilidade e sua transformabilidade (Studer 2002STUDER, Basílio. (2002), “Demônio”. In: A. Berardino (org.). Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs . Petrópolis: Vozes .:391). É nessa condição que pode tornar-se visível e tangível para os humanos e manter com eles relações sexuais, seja como íncubo (um diabo “masculino” ou “ativo”), seja como súcubo (um diabo “feminino” ou “passivo”), condições entre as quais o Diabo transita fluidamente. Tomás de Aquino tomou esse aspecto transexual do diabo como recurso para resolver um problema teológico cujas consequências podiam ser muito sérias. Se o diabo, como se considerava evidente na época, era capaz de fecundar mulheres e engendrar filhos nelas, apesar de não possuir um corpo propriamente dito, isso o colocaria a par do Espírito Santo por obra do qual a Virgem tinha concebido Cristo. O credo cristão se perderia, assim, nessa promiscuidade entre espíritos, deuses e humanos tão comum nos paganismos. Em tempo, Tomás de Aquino não se refere a esse problema: apenas tenta esclarecer um ponto sobre a natureza do corpo dos anjos, o que não deixa de ser um aspecto mais geral da mesma questão. Aquino arguia que o diabo era em si estéril, um simples intermediário: como súcubo, fazendo-se penetrar por homens, o diabo recolhe o sêmen humano que depois, como íncubo, introduzirá nas suas parceiras (Aquino 2002AQUINO, Tomás de. (2002), Suma Teológica. São Paulo: Edições Loyola.:I, q. 51, art. 3). É fácil ironizar sobre o tortuoso interesse que os inteletuais de uma Igreja obcecada pela castidade mostravam pelos modos menos ortodoxos do sexo. Mas não há nisso nenhuma contradição: de fato, a demonologia confirma pelo avesso o modelo da teologia.

O diabo contrasta com a Sagrada Família em três pontos-chave para o nosso tema: a sexualidade, o gênero e a potência reprodutiva. Ele é hipersexuado, em quantidade e qualidade: não apenas é um ser perpetuamente lascivo, como pratica essa lascívia de todos os modos possíveis, sem se deter em nenhum modelo sexual. E isso o diferencia de uma Sagrada Família que é funcionalmente assexuada, mas não essencialmente assexuada, pois o cristianismo sublinha e reforça nos membros do seu panteão ‒ com a significativa exceção do Espírito Santo ‒ uns atributos de sexo que a norma contemporânea prefere chamar de atributos de gênero: Deus Pai é o modelo do patriarca, Jesus Cristo é o protótipo do Homem na idade viril, Maria é a Mulher Mãe por excelência, e São José chegará com o tempo a ser o modelo do Varão Provedor. Pelo contrário, o diabo, hipersexuado, carece de gênero: ele é, ao mesmo tempo, ambíguo, dual e mutante, como pode se comprovar nas numerosíssimas descrições plásticas ou narrativas. Não se identifica com nenhum desses modelos de pessoa que configuram a estrutura familiar. É, literalmente, um degenerado; o grande Satanás das missas negras, às vezes descrito como um supermacho de falo triplo, recebe seus adeptos numa postura passiva, oferecendo o ânus para beijar. A ocorrência de um mundo diabólico organizado segundo o gênero, de certo modo heteronormativo, com demônios machos e fêmeas e casais de demônios, com demônios representando diferentes classes e ofícios, com algum personagem feminino fazendo o papel de rainha infernal esposa de Satanás, quando ocorre, pertence a um tipo de fabulação totalmente alheia à teologia ortodoxa, que se encontra no ambiente da bruxaria ou numa literatura com um viés satírico ou paródico11 11 Ou seja, há sempre “demônios”, mesmo quando eles assumem um sexo feminino, não “demônias” – succubus é um termo de gênero masculino, igualmente. A aparição de demônios-mulheres é um problema à parte, que talvez deva ser entendido em termos de “demonização” de personagens femininos procedentes de outras mitologias – Hécate, Freia, ou o caso singular de Maria Padilla (Calavia Sáez 1999) –, ou de demonização retórica da sociedade no seu conjunto, visível em peças literárias satíricas como o Sueño del Inferno, de Francisco de Quevedo. .

Esse contraste entre as figuras divinas (- sexo; + gênero) e as diabólicas (+ sexo; - gênero) precisa ser refinado12 12 Ele poderia ser complementado também, num estilo estruturalista, com os bons anjos (- gênero; - sexo) e os próprios humanos (+ sexo; + gênero) : as figuras da sagrada família ostentam identidades de gênero plenas, com atributos invariavelmente positivos (o Deus do Antigo Testamento, porém, tinha sido com frequência um patriarca iracundo, ciumento). Mas isso não impede una certa variação funcional: não é infrequente encontrar Maria em funções militares, e ao próprio Cristo atribuiu-se às vezes uma função maternal e nutriz (Bynum 1982BYNUM, Caroline Walker. (1982), Jesus as Mother: Studies in the Spirituality of the High Middle Ages. Berkeley: University of California Press.). O demônio exibe toda a gama de vícios caracteristicamente masculinos e femininos, mas sem os separar, e tudo isso nunca chega a cristalizar uma identidade de gênero.

Enfim, não podemos esquecer que toda essa elaboração sobre sexo e gênero parte de uma controvérsia sobre a reprodução: no âmbito da doutrina cristã, o demônio deve ser estéril, de novo em contraste com a potência engendradora não sexual de todos os personagens que compunham o panteão cristão e com a própria Igreja, um corpo Místico capaz de se reproduzir apesar de sua castidade.

Notemos que todas essas sutis distinções têm algo em comum: elas resultam embaraçosas para sensibilidades teológicas modernas, que preferem tratar da divindade a partir das questões existenciais e morais da vida comum. O sexo dos anjos leva séculos sendo o exemplo supremo de uma discussão alambicada, inútil e, no sentido antigo dessa expressão, contra naturam ‒ ou seja, artificiosa, supérflua. Mas foi uma discussão funcional e importante em algum momento, realizando o feito de separar pela primeira vez uma série de categorias que um pensamento menos fértil manteria juntas. Separar, por exemplo, a sexualidade do papel de gênero, e ambas da reprodução. Separar a máxima virtude, aquela representada pelas figuras do panteão, das regras e expectativas da natureza; e, com isso, afirmar a transcendência da vontade divina, que se realizava colocando no mundo um ser ao mesmo tempo Deus e Homem, gerado no ventre de uma Virgem. Tudo isso por obra e para a glória de uma Igreja que, como Corpo místico, realizava os mesmos feitos.

Muito antes de que, já no século XX, a antropologia elaborasse a distinção entre sexo e gênero, antes de que se estabelecesse uma complexa taxonomia para as variações combinatórias entre ambos, e muito antes também de que a tecnologia reprodutiva descartasse o vínculo necessário entre sexualidade e reprodução, o cristianismo tinha baseado sua mitologia e sua moral sobre essas possibilidades.

Moral e política

Minha insistência nesses modelos utópicos liga-se a uma ideia central: a de que a atitude cristã (ou católica) perante o sexo não é a consequência política de uma moral sexual extrema, mas, muito pelo contrário, uma moral sexual extrema surgida de uma política ‒ apocalíptica de início, bem integrada depois.

Esgarçar o tecido social da aristocracia leiga foi um projeto que a Igreja conseguiu realizar apenas em parte. A alta aristocracia tinha poder suficiente para se eximir desse imperativo, e até hoje a realeza europeia se sobressai como uma rede altamente endógama: dispensas papais foram emitidas uma e outra vez para permiti-lo. Mas a norma era mais efetiva em níveis mais baixos da escala. Goody (1983GOODY, Jack. (1983), The Development of the Family and Marriage in Europe. Cambrige: Cambridge University Press.), como já dissemos, estimou que esse enfraquecimento das redes sociais baseadas no parentesco aumentou também a frequência com que as heranças iam parar nas mãos eclesiásticas, que acumularam a maior propriedade fundiária do Ocidente. Com essa propriedade, a Igreja herdava as clientelas dessa pequena aristocracia enfraquecida, um enorme volume de dependentes que outrora figuravam como os subalternos das casas ricas e que doravante passavam a constituir o alvo da caridade eclesiástica ‒ um trabalho social até hoje destacado pelos defensores da Igreja. Esses orfãos e mendigos tinham para a Igreja o mesmo valor que os “clientes” tinham para o patriciado romano: acompanhavam, davam vivas ou vaias, formavam fileiras em procissões, festas e funerais.

A castidade, base moral da vantagem da Igreja como grupo, transformou-se num penhor, uma contrapartida que os leigos podiam exigir ao clero: se o clero tinha fundado seu poder na limitação da aliança matrimonial ‒ tarefa sempre árdua nos processos de cristianização (Hamilton 2015HAMILTON, Bernard. (2015), “Religion and Laity”. In: D. Luscombe and J. Riley-Smith (eds.). The New Cambridge Medieval History vol. IV. Cambridge: Cambridge University Press.:509) ‒, não podia permitir-se burlar o próprio preceito.

Para um clero estabilizado, que só conhecia uma Igreja já consolidada, a norma do celibato era uma constrição política e jurídica, mas dificilmente uma exigência moral profunda. A literatura medieval alude constantemente à sexualidade do clero como um grande pecado que se perdoa com facilidade ainda maior13 13 Na literatura medieval de milagres, que tanto fez por difundir o culto da Virgem, esta se mostra especialmente ativa em perdoar os deslizes eróticos dos clérigos: padres, freis e monjas. Cf., por exemplo, o clássico do século XIII Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo (1981), o primeiro autor de nome conhecido da literatura em castelhano. .

Numa época de cristianismo incontestado, e apesar das óbvias prédicas dos rigoristas, as interdições sexuais do clero constituíam apenas um problema de disciplina interna. Na primeira metade do século XIV, o Arcipreste de Hita, no Libro de Buen Amor (Ruiz 1973RUIZ, Juan, Arcipreste de Hita. (1973), Libro de Buen Amor. Madrid: Espasa Calpe. (Colección Austral).), um dos pontos altos da literatura medieval ibérica, inclui uma “Cantiga dos clérigos de Talavera” que relata a chegada a essa cidade de um enviado encarregado de transmitir uma ordem do Papa e do Arcebispo de Toledo, uma ordem que, “se a um agradou, pesou a mais de dois mil”. O próprio mensageiro, clérigo também, lamenta ter chegado velho para ter que comunicar essa ordem: nenhum clérigo poderá mais manter uma amásia, “casada nem solteira”, sob pena de excomunhão. As respostas dos clérigos são contundentes e significativas: um deles propõe acudir ao Rei de Castela, apresentando uma denúncia contra o Papa; ele é “carnal, como nós” e entenderá, mas, se o recurso não prosperar, ele prefere deixar o seu cargo e dignidade eclesiástica a deixar a sua companheira, Venturosa. Outro declara que fugirá de Talavera antes de se separar de sua Teresa, e não tem pejo em anunciar que fará uma tocaia ao arcebispo “em algum passo estreito” e acabará com ele caso persista em sua intenção. O terceiro nega-se também a se separar de sua “criada”: foi ele quem a criou, órfã; não é sua comadre nem tampouco parente; sustentar órfãs e viúvas é uma boa ação, e se o arcebispo insiste na sua ordem, isso é o mesmo que instar o clero a que “deixem as mulheres boas, e procurem as más”.

O relato do arcipreste tem sido muitas vezes comentado como uma expressão periférica, própria de um goliardo (um desses clérigos vagantes, clérigos nômades), ou testemunho banal desses desmandos ou “excessos” de uma igreja medieval que duzentos anos depois justificariam a Reforma. Mas isso seria dar demasiados ouvidos aos modelos oficiais de conduta. Os clérigos de Talavera não são goliardos devassos, mas funcionários da Igreja: eles defendem umas relações estáveis e pessoais ‒ citam as suas amásias pelo nome ‒ e as diferenciam da sexualidade pecaminosa que poderiam ter com “as más mulheres”, mas também das relações de parentesco e compadrio que suporiam um ilícito bem mais grave. A própria ideia de recorrer ao Rei contra o Papa sugere, por sua vez, uma dissolução da autoridade eclesiástica na ordem leiga ‒ desfazendo o que fez o clero dos séculos IV-VI. Três séculos mais tarde, e em plena implementação do programa contrarreformista ‒ empenhado precisamente em disciplinar o clero ‒, as Constituições Sinodais da diocese de Calahorra, das que eu mesmo consultei várias edições que abrangem todo o século XVII até a do Bispo Lepe no seu ponto final, não deixam de incluir um capítulo com o significativo título De Filiis Presbyterorum, ou seja, sobre os filhos dos sacerdotes (Lepe 1700LEPE, Pedro de. (1700), Constituciones synodales antiguas, y modernas del Obispado de Calahorra, y la Calzada. Madrid: Antonio Gonzalez de Reyes.:211-214). Essas constituições são testemunhos de uma realpolitik que, deplorando a lascívia do clero, transige com ela para melhor poder defender o essencial. A conjugalidade do clero acontece, é pública e notória e deveria evitar-se, mas o bispo se concentra em evitar que ela se torne oficial: os filhos dos sacerdotes não devem ajudar em missa, ou herdar o mesmo cargo caso venham a se tornar clérigos. De fato, os filhos de clérigos, por definição ilegítimos e desprovidos de uma rede de parentesco regular, seguiam com frequência a carreira eclesiástica, e a Igreja, esse corpo místico que se perpetua sem recorrer à reprodução sexuada, o faz recrutando seus membros não apenas entre os filhos das famílias leigas, mas também entre os rebentos das não famílias que proliferam ilegalmente no seu seio. Mas não pode transigir com a formação de linhagens de parentes em seu interior14 14 Duas notas às ordens de Lepe. Uma, ele proíbe que os clérigos mantenham os seus filhos nas suas casas – ainda menos, filhas com genros e netos –, mas não diz uma palavra sobre as amásias, em geral ocultas na categoria de serviçais (as relações dos clérigos são fatalmente hipogâmicas). Outra, a objeção à herança de pai a filho favorece uma herança colateral, real ou fictícia: como o povo comentava com ironia, para o clero filho = sobrinho (nepos, em latim), de onde vem o nepotismo, essa intromissão discreta da família na esfera pública que o Paraestado eclesiástico legou ao Estado propriamente dito. .

A imagem do clérigo (num plano muito secundário, da freira) como um ser atormentado pela supressão da sua sexualidade é hoje figura de senso comum: funciona como uma explicação muito popular dos abusos sexuais na Igreja Católica e abre a possibilidade de entender toda a história da moral cristã em termos de mecanismos psicológicos profundos. Mas a repressão sexual como tal não foi um grande problema para o clero durante séculos: ela foi se perfilando em tempos relativamente recentes, à medida que a conduta dos clérigos foi ficando sujeita a um controle cada vez mais eficiente da instituição, mas sobretudo ao escrutínio de uma oposição anticlerical disposta a cobrar coerência entre doutrina e vida ‒ o clérigo devia pagar com a sua castidade o poder que historicamente derivava dela. Isso, e a crescente transformação da sexualidade numa dimensão da intimidade individual, contribui à criação dessa figura arquetípica da literatura naturalista do século XIX ‒ ver romances como O crime do Padre Amaro ou La Regenta –, que é o clérigo vítima de um celibato contra naturam. Até lá, o celibato tinha sido, a rigor, uma instituição contra connubium.

O anticlericalismo que se multiplicou especialmente desde o século XVIII, mesmo dentro do cristianismo mas sobretudo como componente principal dos mais diversos movimentos antirreligiosos, teve sempre no seu cerne, além de (ou até mais que) questões propriamente teológicas, uma forte aversão contra esse estado de exceção no parentesco que a Igreja representava. A ruptura com a religião permitia à população contaminada pelas novas ideias exprimir esse antagonismo de um modo que, muitos séculos antes, não esteve ao alcance do patriciado cristão. O poder político e econômico da Igreja ofendia por si mesmo: no caso talvez extremo mas significativo da Espanha, a Igreja reunia em meados do século XVIII um quarto da produção agrícola e algo perto da metade do que agora chamaríamos mercado imobiliário (Anes 1985ANES, Gonzalo. (1985), El Antiguo Régimen: los Borbones. Madrid: Alianza Editorial. (Historia de España). :72-79). Mas ofendia acima de tudo por fundar-se numa paródia do parentesco que parasitava a fertilidade das famílias leigas e interferia, também, na autoridade familiar. Especialmente nos países do sul da Europa, os clérigos, aos que já se atribuía um status de gênero ambíguo (a batina fazia deles “homens de saias”), exerciam o seu poder sobretudo através de sua influência sobre as mulheres, mais afeiçoadas ao culto e que encontravam aí um certo contrapeso à autoridade marital. O anticlericalismo mostrou um marcado viés masculino, e frequentemente um machismo agressivo, como nesta alocução de um deputado da Convenção: “e todas vós, vacas ordinárias, sois putas [dos padres] principalmente aquelas que frequentam suas malditas missas” (Minois 2012MINOIS, Georges. (2012). História do Ateísmo. São Paulo: Editora Unesp. :505). Os conventos femininos, que davam às suas dirigentes um poder nada desdenhável, representavam também uma concorrência séria à instituição matrimonial: “entrar em religião” (não no sentido de “se converter”, mas de ingressar numa ordem religiosa) era uma alternativa com a que um pretendente, ou a própria família da noiva, tinha poucos modos de lidar. A sugestão do estupro coletivo como tratamento apropriado para as comunidades de freiras pairou constantemente como um lema extraoficial dos movimentos anticlericais. “Alçai o véu das noviças e elevai-as à categoria de mães para virilizar a espécie” é um fragmento de um discurso de Alejandro Lerroux ‒ um destacado republicano anticlerical ‒ que outrora fez parte do folclore político espanhol15 15 A pérola de Lerroux foi amplamente difundida por tradição oral, e assim a conheci. Mas o texto completo pode ser consultado em Garcia-Nieto (1971). .

O conflito que se trava desde a revolução francesa entre as novas forças sociais (burguesia liberal, proletariado em aumento) e “a religião” é visto, em geral, como movido por ideias “públicas” (teologia versus ciência, tradição versus inovação), mas foi também em boa medida um conflito que se referia ao âmbito privado, entre noções opostas de gênero e família.

Do cristianismo burguês às polêmicas pós-modernas

Há apenas dois séculos, a ideia da Igreja como defensora ferrenha da instituição familiar teria feito rir aos seus críticos e também a muitos dos seus seguidores. As dimensões de um artigo impedem que abordemos aqui uma questão que não tem sido objeto de pesquisas na medida do interesse que apresenta: a adesão da Igreja Católica a uma parte essencial do ideário burguês. Um processo que, começando em meados do século XIX, se aprofundou até o momento atual e levou ao primeiro plano do discurso católico o interesse pelo mundo profano, a santidade da família e uma ética reprodutiva marcada por critérios cientificistas e naturalistas. Detalhe mínimo mas expressivo, João Paulo II fez incluir na Ladainha Lauretana (essa reza onde se enumeram os atributos de Maria, que alude à sua virgindade em pelo menos dez versos) um novo título: “Rainha da Família”.

Essa conversão, abrupta apesar da existência dos antecedentes que já resenhamos, levou a Igreja Católica a posições mais próximas às que já caraterizavam as igrejas protestantes, mas manteve intacto todo o corpus doutrinal e mitológico da virgindade, e também o celibato, chave de sua solidez organizacional. A Igreja, nessa versão burguesa, era uma instituição poderosa, prestes a liderar, no plano civil, a massa das famílias cristãs. Em tempo, estas não eram mais aquelas famílias patrícias que podiam concorrer com o clero pelo controle do sagrado. Também não eram mais órgãos de ação política (a família não é um agente legítimo na política moderna), embora fossem células da sociedade ‒ o léxico biológico é significativo. Essas células eram, plausivelmente, o resultado daquele processo que Goody (1983GOODY, Jack. (1983), The Development of the Family and Marriage in Europe. Cambrige: Cambridge University Press.) tentou descrever, a manifestação de uma socialidade individualista contra as velhas artes sociocêntricas da linhagem.

A própria antropologia leva em si as marcas desse projeto cristão, na medida em que, até a reviravolta marcada por Lévi-Strauss com o conceito de “átomo de parentesco”, essa célula composta por pai, mãe e filhos passava a ser a base natural do parentesco. O átomo de parentesco de Lévi-Strauss consiste, como sabemos, no acréscimo de uma dimensão de aliança a esse núcleo, mas esse acréscimo não fez senão reverter a operação contrária efetuada, muito tempo atrás, pelo cristianismo, ao propor a desativação da aliança matrimonial como vínculo social mais abrangente, substituindo-a por uma consanguinidade genérica.

De fato, foi apenas em pleno triunfo da ordem burguesa (e da mão de um exímio representante desta, L. H. Morgan) que os estudos de parentesco foram concebidos como um campo de estudos que partia da análise das terminologias aplicadas à consanguinidade. Em séculos anteriores, as descrições que os “precursores da antropologia”, viajantes ou missionários, davam das sociedades exóticas ignoravam esse tema, ou na verdade ignoravam isso que agora costumamos chamar de “noção ocidental de parentesco”, centrada na consanguinidade. Em lugar disso, ocupavam-se extensamente das modalidades de matrimônio e das relações entre estas e a constituição política. Apenas no século burguês a socialidade dos “outros” começa a ser escrutada a partir de um “modelo ocidental de família” ‒ na realidade, o modelo cristão, a própria Sagrada Família. O modelo é aparentemente paradoxal: a paternidade é putativa, a maternidade virginal, e o filho, destinado a morrer na flor da idade sem ser por sua vez pai, não dará continuidade ao grupo. Mas, se examinamos com cuidado a descrição que Schneider (1968SCHNEIDER, David. (1968), American Kinship: A Cultural Account. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice Hall. ) ‒ prescindindo, à diferença de Goody, de toda argumentação histórica ‒ faz da família americana, encontraremos paradoxos equivalentes: um vago “amor” em que se dissolvem outros tipos de relação (entre eles, a sexual) serve-lhe de vínculo ubíquo, a filiação não dá lugar a uma continuidade no tempo, mas à replicação de novas famílias. A ruptura de Schneider com as teorias clássicas do parentesco espelha a ruptura que o cristianismo produziu na sociedade civil.

Mas nos últimos decênios as novas tecnologias têm alterado gravemente esse status quo em que uma família “natural” reinava, metaforicamente conectada com uma família “sobrenatural”. Isso tem sido feito da maneira mais insidiosa possível, ou seja, tornando literais as metáforas. O nascimento virgem e todas as relações criadas em torno dele estão, na atualidade, ao alcance de quase qualquer um. Os recursos da biomedicina têm transtornado o esquema que essa mesma biomedicina definia não muito tempo atrás, a saber: a cada indivíduo um sexo, a cada sexo um gênero, a cada sexo/gênero um papel imprescindível na reprodução. Os desdobramentos sociais dessa sobrenatureza tecnológica são bem conhecidos, e uma série de movimentos sociais ‒ especial, mas não exclusivamente, os do campo LGBTT ‒ promove a sua legitimação e a sua normalização.

As igrejas cristãs têm reagido de um modo, em geral, hostil a essa nova situação, invocando uma ordem natural - o que, na prática, as torna porta-vozes, também, das hostilidades não confessionais. As Igrejas protestantes fazem isso com base em um modelo de família que já consagraram desde o seu início, o qual pretende dar continuidade a modelos ainda mais antigos, o dos primeiros cristãos ou o dos tempos bíblicos. A Igreja Católica faz o mesmo, embora sua adesão plena a esses modelos seja mais recente, e apesar de conservar uma cosmologia que foi elaborada contra eles. Mas isso insere um paradoxo na polêmica, porque toda essa elaboração sobre a sexualidade descrita em páginas anteriores apresenta um evidente paralelo com as atuais inovações. Não é uma ideia extravagante do autor destas linhas: os militantes LGBTT não deixam de apontá-lo com ironia cada vez que, confrontados com a hostilidade de setores católicos, assinalam a contradição lei natural pregada pelo catolicismo e as caraterísticas do seu panteão, que outorga uma imensa superioridade a relações interpessoais bem distantes dessa natureza.

Seria ingênuo entender tudo isso como uma coincidência irrelevante: na hora de questionar as noções ocidentais sobre sexualidade, gênero e reprodução, recorre-se aos dados que a antropologia encontra em mundos exóticos, desde a paternidade à moda trobriandesa até a pluralidade de gêneros na pessoa, passando pelos muitos aspectos do nascimento virgem (Leach 1967LEACH, Edmund R. (1967), “Virgin Birth”. Proceedings of the Journal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, n° 1966: 39-49.; Strathern 1995STRATHERN, Marilyn. (1995). “Necessidade de pais, necessidade de mães”. Estudos Feministas, n° 2: 303-329. ), mas onde todos esses elementos se encontram sistematizados e dotados de uma exegese salvacionista é no cristianismo. Aliás, quem procura essas refutações não é algum movimento criado na Melanésia, mas em países com uma média de mil anos de história cristã. Não é simples semelhança, é filiação: e o que se procura não é tanto a refutação de uma ordem ocidental, mas a confirmação de suas alternativas utópicas, igualmente ocidentais.

Na hostilidade das igrejas perante os novos movimentos, amalgamam-se duas atitudes. Uma contínua à que os cristãos adotaram perante os pagãos: focar o desvio da norma e o excesso contra naturam, fantasiar sobre a devassidão de quem, observado de perto – como é o caso das uniões homoafetivas –, observa regras não tão diferentes.

Outra é mais parecida à atitude que os cristãos tomaram perante as suas próprias heresias. A legalização de todas as situações familiares possibilitadas pelas novas tecnologias não é uma simples quebra de normas morais, mas uma profanação em sentido literal, ou seja, uma transferência ao mundo quotidiano, real, de objetos que foram elaborados como sagrados, separados do mundo. O máximo conflito não se desata porque os movimentos alternativos tenham querido, por assim dizer, “libertar do inferno” uma sexualidade diferente. Isso poderia ser assumido dentro de certos limites de tolerância pela Igreja, como mostram bem as declarações do último Papa. Mas o limiar da intolerância aparece com o projeto de realizar, normalizar e normatizar aquilo que, na doutrina cristã, era ideal e inexequível. O cristianismo inventou um conjunto de ideias que hoje, ignorantes dessa filiação, se apresentam com um atrativo renovado: a desvinculação entre sexo e gênero, a visão da dicotomia sexual como algo que deveria ser abolido para superar um mundo injusto e, enfim, a superioridade moral de um elo social não sujeito a regras naturais ‒ ou, em outras palavras, criado pelo amor, e não por regras ou compromissos sociais. Mas o cristianismo inventou-os como utopia e manteve-os depois como um outro mundo sujeito ao seu controle: a pretensão de fazer dessa utopia uma ordem terrena equivale a invalidar a religião como ponte entre mundos, reduzindo-a a uma devoção íntima ou a uma norma prédica moral e assistencial.

Valeria a pena também explorar a analogia em outro sentido. Se a simbologia do cristianismo evoca, malgrado o conservadorismo católico, noções fundamentais dos novos movimentos, por sua vez os novos movimentos coincidem em traços importantes com os de alguns setores do primeiro cristianismo: seu pendor alternativo; seu conflito com uma ordem baseada na reprodução heterossexual “natural”; a aversão à dicotomia sexual entendida como protoforma da opressão; a trascendência da subjetividade para além desses modelos “naturais”, agora invalidados pelos milagres da tecnologia médica. Os argumentos contrários às novas formas familiares (em particular esse leque homofóbico que reage contra a homoparentalidade e o homomatrimônio) reciclam também ‒ não importa que os enuncie o próprio clero ‒ muito do arsenal verbal do anticlericalismo: paródicas, parasitárias e artificiais, essas formas são vistas igualmente como expressões de um projeto proselitista e com aspirações hegemônicas.

Puro nonsense para movimentos que reivindicam, precisamente, uma radical autodeterminação. A verdade do sujeito individual ocupa o lugar que ocupou outrora a relação entre esse sujeito e o seu Deus, mas da mesma maneira que ela aspira a trascender uma ordem social naturalizada: a sociedade deve ser recriada a partir dessa subjetividade, não a submetendo às suas normas. De fato, o que melhor aproxima os novos movimentos do velho encratismo cristão é aquilo que parece ser sua maior discordância: os novos movimentos prezam a sexualidade na mesma medida em que o cristianismo a abominou. Mas o cristianismo abominou a sexualidade como princípio estruturante do social, ou da natureza em geral; os novos movimentos a prezam como expressão e fruição de uma subjetividade livre de armações sociais e de regras naturais. Aquele modo de abominar abriu espaço para este modo de amar.

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Notas

  • 1
    De enkrateia, continência. O encratismo foi, a rigor, anterior ao cristianismo: já antes de sua versão cristã conheceu outras, vinculadas a diversas religiões e filosofias. Não chegou a constituir uma seita propriamente dita, sendo mais uma corrente marginal presente em heresias – como o marcionismo –, mas também dentro da tendência dominante (Bolgiani 2002BOLGIANI, Franco. (2002), “Encratismo”. In: A. Berardino (org.). Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes.).
  • 2
    O prestígio desse “polo selvagem” é grande. Roma é fundada, segundo o mito, pelos gêmeos Rômulo e Remo, filhos de uma Virgem Vestal e amamentados por uma loba.
  • 3
    Segundo seguidores de Taciano, uma das figuras do encratismo, Adão e Eva aprenderam dos animais o uso do sexo (Brown 1990______. (1990), Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.:87).
  • 4
    A primeira queima pública de homossexuais, sob o Imperador Teodósio, em 390 d.C., é também a primeira vez em que a tradicional reprovação da passividade masculina passa a ser entendida como “sacrilégio contra o corpo” (Brown 1990______. (1990), Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.:315): o corpo, portanto, era já sagrado, não mais uma matéria desprezível; essa nova condição incluía, também, muitas restrições mesmo no leito conjugal.
  • 5
    Ou seja, independentemente do sentido que se dê a esse “sétimo grau”, que na contabilidade eclesiástica somaria os graus de distância ao ascendente comum de ambos os cônjuges, em lugar de levar em conta apenas a maior distância, como na contabilidade moderna.
  • 6
    Especialmente o dogma da Imaculada Conceição, do qual trataremos mais tarde, e o dogma da Assunção aos Céus, muito anterior, segundo o qual a vida terrenal de Maria não se conclui numa morte mas num “Trânsito”.
  • 7
    Em todas as citações bíblicas, consultei a tradução de Casiodoro de Reina, publicada originalmente em 1598 (Reina 2001REINA, Casiodoro de. (2001), La Biblia del Oso. Madrid: Alfaguara.).
  • 8
    O tema recebe um tratamento desigual nos quatro evangelhos: Matheus e Lucas dão relevo ao nascimento virginal, mas o primeiro apresenta-o do ponto de vista de José, e o segundo, de Maria. Marcos prescinde em absoluto dele, e João o enuncia em termos muito abstratos (Jo 1:13-14), próximos ao gosto encratita.
  • 9
    No entanto, a tese da virgindade mariana foi ampliando seu escopo: se o evangelho de Lucas apenas estabelece a virgindade até o nascimento de Cristo, definições posteriores se ocuparam de afirmar a virgindade perpétua. No Protoevangelho de Thiago, José se ocupa de confirmá-la no seu leito de morte.
  • 10
    Nas visões de Emmerich, transcritas pelo seu secretário, o poeta Clemens Brentano – eu conheço apenas os fragmentos citados por Blaise Cendrars (1980CENDRARS, Blaise. (1980), El hombre fulminado. Barcelona: Argos Vergara.:245-246) – descreve José quando pretendente de Maria, detendo-se no milagre da vara florescida. A beata de Ágreda – conselheira do rei Felipe IV de Espanha – no seu manuscrito Mística Ciudad de Dios, escrito antes de 1665 e inicialmente condenado pela Igreja, faz uma descrição detalhada da vida quotidiana da Sagrada Família e estende à concepção, ao nascimento e à infância de José um caráter prodigioso muito próximo ao de Maria. O texto só foi publicado muito depois (Ágreda 1756ÁGREDA, Sor Maria de Jesús de. (1785), Mística Ciudad de Dios. Imprenta de la Causa de la V. Madre.), mas circulam agora na internet numerosas edições digitais preparadas por grupos católicos conservadores. Cf., por exemplo: http://iteadjmj.com/LIBROSP/mcd-p1.pdf.
  • 11
    Ou seja, há sempre “demônios”, mesmo quando eles assumem um sexo feminino, não “demônias” – succubus é um termo de gênero masculino, igualmente. A aparição de demônios-mulheres é um problema à parte, que talvez deva ser entendido em termos de “demonização” de personagens femininos procedentes de outras mitologias – Hécate, Freia, ou o caso singular de Maria Padilla (Calavia Sáez 1999CALAVIA SÁEZ, Oscar. (1999), Deus e o Diabo em terras católicas. Taubaté: GEIC. ) –, ou de demonização retórica da sociedade no seu conjunto, visível em peças literárias satíricas como o Sueño del Inferno, de Francisco de Quevedo.
  • 12
    Ele poderia ser complementado também, num estilo estruturalista, com os bons anjos (- gênero; - sexo) e os próprios humanos (+ sexo; + gênero)
  • 13
    Na literatura medieval de milagres, que tanto fez por difundir o culto da Virgem, esta se mostra especialmente ativa em perdoar os deslizes eróticos dos clérigos: padres, freis e monjas. Cf., por exemplo, o clássico do século XIII Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo (1981BERCEO, Gonzalo de. (1981), Obras Completas. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos.), o primeiro autor de nome conhecido da literatura em castelhano.
  • 14
    Duas notas às ordens de Lepe. Uma, ele proíbe que os clérigos mantenham os seus filhos nas suas casas – ainda menos, filhas com genros e netos –, mas não diz uma palavra sobre as amásias, em geral ocultas na categoria de serviçais (as relações dos clérigos são fatalmente hipogâmicas). Outra, a objeção à herança de pai a filho favorece uma herança colateral, real ou fictícia: como o povo comentava com ironia, para o clero filho = sobrinho (nepos, em latim), de onde vem o nepotismo, essa intromissão discreta da família na esfera pública que o Paraestado eclesiástico legou ao Estado propriamente dito.
  • 15
    A pérola de Lerroux foi amplamente difundida por tradição oral, e assim a conheci. Mas o texto completo pode ser consultado em Garcia-Nieto (1971GARCIA-NIETO, Mª Carmen et al. (1971), Bases Documentales. Vol. V. Madrid: Guadiana Publicaciones. Disponível em: Disponível em: http://www.xtec.cat/~jrovira6/restau21/lerroux.htm . Acesso em: 10/02/2017.
    http://www.xtec.cat/~jrovira6/restau21/l...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2017

Histórico

  • Recebido
    Mar 2016
  • Aceito
    Jan 2017
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