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Afetos seculares

Secular affections

O artigo do antropólogo Charles Hirschkind, aqui traduzido por Asher Brum e Henrique Antunes, foi publicado originalmente em 2011, na revista Cultural Anthropology, em uma seção editada pelo próprio Hirschkind e pelo cientista político Matthew Scherer com a finalidade de homenagear e explorar futuras vias de investigação abertas por dois livros seminais para os estudos críticos do secularismo: Formations of the Secular, de Talal Asad, e Why I Am Not a Secularist, de William Connolly1 1 Veja-se Calhoun, Jurgenmeyer and VanAntwerpen (2011) e Dullo (2012) por um sumário do que chamo aqui de estudos críticos do secularismo. . Além do artigo que segue, o volume original conta com textos de Scherer, Asad e Connolly, que recomendo para os leitores de Religião e Sociedade que se sintam estimulados a avançar nessa problemática.

Apesar de distintas, as visões de Asad e Connolly sobre a ordem secular convergem de várias maneiras, especialmente por sua atenção crítica compartilhada à dimensão normativa do secularismo liberal, assim como pela busca de um modelo mais amplo de diferença e pluralismo. As duas obras são fruto de projetos de pesquisa de longo prazo, que antecedem e dão continuidade a esses livros, cujo desenvolvimento incluiu uma série de diálogos entre os dois autores, principalmente quando ambos ensinavam na Universidade de Johns Hopkins, nos EUA2 2 Asad ensina hoje na City University of New York. . Foi também em Johns Hopkins que Hirschkind, ao cursar seu doutorado em antropologia sob a direção de Asad, aproximou-se da filosofia de Connolly, especialmente a sua abordagem Spinoziana e Deleuziana para os afetos ético-políticos. Esse rico ambiente acadêmico encontra vazão em The Ethical Soundscapes: Cassette Sermons and Islamic Counterpublic, livro publicado por Hirschkind em 2006HIRSCHKIND, Charles. (2006), The ethical soundscape cassette sermons and Islamic counterpublics. New York: Columbia a partir da sua tese de doutoramento.

Ethical Soundscapes é uma etnografia que trata da circulação e recepção de fitas-cassete contendo sermões Islâmicos no Egito durante o secularismo ditatorial da era Hosni Mubarak. Hoje uma referência na antropologia do Islã, do secularismo e dos sentidos, assim como no campo prolífico e interdisciplinar de debates sobre a relação entre religião e mídia (Machado 2014MACHADO, Carly. (2014), Introdução ao dossiê Religião e Mídia. Religião e Sociedade 34(2): 139-145.), o livro aborda o cultivo Islâmico de disposições éticas de natureza sensorial e afetiva através da escuta cotidiana desses sermões, que contêm crítica social, comentários políticos, edificação moral e narrativas escatológicas, todos com base corânica. Essa prática auditória é analisada por Hirschkind como uma atualização tecnologicamente mediada das artes retóricas e tecnologias do sujeito que constituem a tradição islâmica, assim como a base material para a emergência de um “contra-público” Islâmico altamente capilar no Egito, uma contra-narrativa da modernidade ocularcêntrica reproduzida pela mídia secular hegemônica, controlada de forma centralizadora pelo estado3 3 Hirschkind também publicou artigos sobre o movimento da praça de Tahrir , que levou à queda do governo Mubarak (veja-se, por exemplo, Hirschkind 2012). .

Central para o seu argumento é uma concepção mais inclusiva, apesar de mais materialmente e ideologicamente situada, da chamada esfera pública, que problematiza os imperativos secularistas que subjazem à definição Habermasiana clássica de um espaço social homogêneo e impessoal de deliberação racional. Essa perspectiva encontra recursos, por exemplo, no próprio Asad, quando este afirma em Formations que a esfera pública – seja ela secular ou religiosa – estaria longe de ser “um espaço vazio onde se avançam debates”, sendo constituída por “sensibilidades – memórias e aspirações, medos e esperanças – daqueles que nela se comunicam” (2003______. (2003), Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity. Stanford, Calif.: Stanford University Press.: 185), além das relações de poder que a sustentam e definem seus protocolos de enunciação e critérios de pertencimento (Calhoun 1992CALHOUN, Craig (ed.). (1992), Habermas and the public sphere. Cambridge: MIT Press. ).

O foco de Hirschkind na natureza visceral da ética enquanto um conjunto de práticas de auto-cultivo inscritas tanto em corpos religiosos quanto em sua extensões materiais departe do modelo Kantiano de ética que ele mesmo revisita nesse artigo e que é abordado em detalhes por Connolly em várias passagens de Why I am Not a Secularist. Kant detém lugar de destaque na genealogia do secular, já que ele formula de forma sistemática uma noção de razão pública pós-metafísica e pós-tradicional, que redefine a ética como o exercício de julgamento reflexivo absoluto qua indivíduo universal, logo excluindo as paixões, lealdades e práticas prescritivas que definiriam a religião em sua versão institucional e tradicional como irracionais, provincianas e alheias ao cosmopolitismo dos modernos.

Argumentos como o de Kant ressoam, por exemplo, com a ojeriza secularista à mistura entre “emoção” (logo religião) e política, e indicam como essa noção de “política pura” carrega em si o recalcamento do que Connolly chama de “o registro infrasensível da subjetividade e da intersubjetividade” (1999CONNOLLY, William E. (1999), Why I am not a secularist. Minneapolis: University of Minnesota Press.: 183), as disciplinas, afetos e paixões morais, que passam a figurar como uma fonte de primitivismo e cegueira ideológica que deve ser silenciada, pelo menos em público. Ao excluir o registro infrasensível da política, a tradição liberal torna-se não somente alheia ao papel concreto de afetos como a dor, o ódio, o medo, o asco, a compaixão, a felicidade, a esperança na assemblage e governo dos públicos (Ahmed 2004AHMED, Sara. (2004), The cultural politics of emotion. New York: Routledge.), mas também torna-se incomensurável com modos de vida que endereçam esse espaço da existência abertamente, vendo nele a matéria prima mesma do cultivo ético de si. A articulação explícita e normativa entre as virtudes e o cultivo de si sob uma ótica afetiva pode ser encontrado no caso Islâmico, estudado por Hirschkind, mas também na tradição aristotélica de um modo geral e suas várias ramificações (MacIntyre 1981MAC INTYRE, Alasdair. (1984), After virtue: a study in moral theory. Notre Dame: University of Notre Dame Press.), na tradição Spinoziana, definida por Connolly (2006______. (2006), “Europe: a minor tradition”. In David Scott e Charles Hirschkind (eds.). Powers of the secular modern: Talal Asad and his interlocutors. Stanford: Stanford University Press.) como uma vertente minoritária na genealogia do secular, assim como em outros casos4 4 Veja-se, por exemplo Marshall (2009), Reinhardt (2013, 2014), Maurício Júnior (2013) e Corrêa (2015) para o caso da espiritualidade cristã Pentecostal na Nigéria, Gana e Brasil. .

Obviamente, a autonegação secular da dimensão disciplinar, sensorial, e afetiva da vida pública não impede que o secularismo ele mesmo dependa de uma educação dos sentidos especifica, que inclui disposições sobre a “boa” ou “má” religião (Smith 1982SMITH, Jonathan Z. (1982), Imagining religion: from Babylon to Jonestown. Chicago: University of Chicago Press ., Orsi 2005ORSI, Robert A. (2005), Between heaven and earth: the religious worlds people make and the scholars who study them. Princeton, N.J.: Princeton University Press.: 177-204) e sobre os seus limites. Autores como Cantwell Smith [1962] (2006)SMITH, Wilfred Cantwell. (2006), O sentido e o fim da religião. São Leopoldo, RS: Sinodal. e Asad [1982] (1993)ASAD, Talal. (1993), Genealogies of Religion: Discipline and Reasons of Power in Christianity and Islam. Baltimore: Johns Hopkins University Press. foram os primeiros a problematizar o que Charles Taylor (2007TAYLOR, Charles. (2007), A secular age. Cambridge, Mass.: Belknap Press of Harvard University Press.) recentemente chamou de “narrativa da subtração”, ou a ideia de que a religião ocupava um espaço holístico na sociedade pré-secular, tendo sido retirada da esfera publica desde então, que nos leva a assumir que o secular e o religioso seriam duas dimensões alternativas da vida moderna5 5 Apesar desse ponto em comum, há imensas zonas de incomensurabilidade entre as abordagens de Asad e Connolly e de Taylor para o secular e a secularização. Veja-se, por exemplo os capítulos de Mahmood e Connolly, assim como a resposta de Taylor no volume editado por Warner, VanAntwerpen e Calhoun (2010). . De acordo com Asad, a própria categoria universal de religião emerge ao longo da secularização da Europa em torno da ideia cripto-Protestante de “crença” imaterial em seres de natureza “sobrenatural”, logo “simbólica”. Essa categoria estaria desde o início atrelada a processos regulatórios através dos quais o estado secular governa a religião. Ela se torna progressivamente inclusiva ao longo da expansão imperial da modernidade Europeia, gerando um complexo quadro classificatório das religiões que continua a ser expandido (Shaw 1990SHAW, Rosalind. (1990), The invention of “African Traditional Religion”. Religion 20(4): 339-353., Chidester 1996CHIDESTER, David. (1996), Savage systems colonialism and comparative religion in Southern Africa. Charlottesville: University Press of Virginia. , Van der Veer 2001VEER, Peter van der. (2001), Imperial encounters: religion and modernity in India and Britain. Princeton: Princeton University Press., Masuzawa 2005MASUZAWA, Tomoko. (2005), The invention of world religions, or, How European universalism was preserved in the language of pluralism. Chicago: University of Chicago Press.), tendo em seu bojo um certo imperativo missionário, baseado na permutabilidade dessas formas de vida enquanto “visões de mundo”. Afinal de contas, “o missionário não pode reformar as pessoas ao menos que elas sejam persuadidas de que as formas através das quais elas vivem sejam acidentais em relação ao seu ser último, canais que podem ser substituídos por outros canais sem perda substancial. E assim, passar de uma religião para outra ou de uma vida religiosa para uma vida secular” (Asad 2001______. (2001), Reading a Modern Classic: W. C. Smith’s “The Meaning and End of Religion”. History of Religions 40(3): 205-222.: 216-17).

Asad propõe uma antropologia do secular e do religioso enquanto “gêmeos siameses” (2001______. (2001), Reading a Modern Classic: W. C. Smith’s “The Meaning and End of Religion”. History of Religions 40(3): 205-222.: 221), baseando-se em dois axiomas: a) “Eu enfatizo que, a análise exaustiva da experiência religiosa sob uma lógica comparativa demanda examinarmos cuidadosamente o papel das práticas religiosas na formação de tais experiência” e b) “Eu defendo a integração do ‘secularismo’ na análise da religião - ou seja - que examinemos o secularismo não meramente como uma ideologia política que estrutura o estado moderno liberal, mas como uma complexo histórico articulado que inclui comportamentos, conhecimentos e sensibilidades no fluxo da vida cotidiana” (206). Em Formations, Asad aponta para a importância adicional de se diferenciar o secular do secularismo. O secular é “uma epistemologia e uma ontologia” (2003______. (2003), Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity. Stanford, Calif.: Stanford University Press.: 21), termo que, no meu entender, ele toma de forma próxima ao que Ian Hacking (2005HACKING, Ian. (2002), Historical ontology. Cambridge: Harvard University Press.) chama de “ontologia histórica”. Por ser ubíquo, o secular é mais bem acessado de forma indireta ou “por suas sombras” (Asad 2003______. (2003), Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity. Stanford, Calif.: Stanford University Press.: 16), por exemplo, através do estudo das atitudes liberais em relação à dor (Asad 2003______. (2003), Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity. Stanford, Calif.: Stanford University Press.: 67-99, Asad 2011______. (2011), Thinking about the secular body, pain, and liberal politics. Cultural anthropology. 26(4): 657-675.). Asad também clarifica que tomar o secular e o religioso como categorias germanas não implica em reduzir o secular a uma máscara do religioso, como em teorias clássicas sobre o nacionalismo enquanto religião global (Hayes 1960HAYES, Carlton. (1960), Nationalism: a religion. New York: Macmillan.), a teologia política de Carl Schmitt (2010SCHMITT, Carl. (2010), Political Theology Four Chapters on the Concept of Sovereignty. Chicago: The University of Chicago Press. ) ou especulações antropológicas sobre a magia do Estado (Taussig 1997TAUSSIG, Michael. (1997), The magic of the state. New York: Routledge .), principalmente porque todas essas perspectivas perdem de vista a relação concreta - normativa e regulatória - entre grupos definidos e/ou auto-definidos como religiosos e o secular.

O secular é conceitualmente englobante em relação ao secularismo, a doutrina política do secular, que é basicamente uma arte de governo (statecraft)6 6 “O secularismo não é apenas uma resposta intelectual para o problema de uma paz social duradoura e tolerante. Ele é uma atualização prática [enactement] através da qual um aparato politico [political medium] (…) redefine e transcende práticas diferenciadoras do Self articuladas via classe, gênero, e religião (Asad 2003: 5). . Enquanto tal, o secularismo é necessariamente particular, já que submetido ao princípio de soberania do estado de direito. Por exemplo, na Europa de hoje, esse termo engloba estados com igrejas oficiais, como a Inglaterra, Escócia, Dinamarca, Noruega, Islândia, Finlândia e Grécia, estados fortemente dissociados da igreja, como a França e os antigos estado Soviéticos, e estados com separação formal da igreja, mas com uma série de vínculos contratuais mais duradouros com determinadas (uma ou mais de uma) corporações religiosas, principalmente nos campos da educação, saúde, e patrimônio cultural, como Alemanha, Holanda, Suíça, Portugal e Espanha (Casanova 2006CASANOVA, José. (2006), Rethinking Secularization: A Global Comparative Perspective. Hedgehog Review 8(1/2): 7-22.). Valores como “liberdade religiosa” ou “pluralismo religioso” raramente coincidem com modelo específicos, e podem ser mais enfatizados em contextos com igrejas estabelecidas, com a Inglaterra, do que em contextos mais adequados ao conceito formalista de “separação entre estado e igreja”, como a França. Em qualquer caso, a separação ou não entre estado e igreja nunca implica em “neutralidade”, pelos motivos elencados por Asad acima.

É essa variedade empírica sinal de que não existe algo como o “estado secular” na Europa? Dificilmente. Mas ela certamente indica que o secularismo não deve ser pensando à maneira clássica, como parte de um processo abstrato e teleológico de “modernização”, mas sim como o fruto ou frutos de projetos específicos de formação de estados-nação soberanos e de sua transposição global através de empréstimos ideológicos, colonialismo e imperialismo. Essas histórias são feitas de genealogias múltiplas, que responderam e respondem a grupos de pressão específicos, e se acomodam a novos fenômenos sociais, como o crescimento de movimentos religiosos transnacionais e migrações, que tendem a testar seus limites ou os limites de sua política de definir e regular os limites da religião.

O secular enquanto uma estrutura de sentimento também emerge de modo visível na esfera pública, eventualmente passando de horizonte a objeto de disputas. Seu conteúdo normativo frequentemente faz a secularização aparecer na prática histórica como um verdadeiro processo de conversão do aparato sensorial humano a um novo regime somático, como demonstra o historiador Leigh Eric Schmitt (2002SCHMIDT, Leigh Eric. (2000), Hearing things: religion, illusion, and the American enlightenment. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.) em seu livro seminal sobre o Iluminismo Americano, a religião e as novas tecnologias aurais do século XIX. Conflitos e controvérsias são momentos que dão particular visibilidade ao secular enquanto um princípio organizador da mobília ontológica do mundo (Giumbelli 2002GIUMBELLI, Emerson. (2002), O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar Editorial., 2014______. (2014), Símbolos religiosos em controvérsias. São Paulo: Terceiro Nome., Montero 2015MONTERO, Paula (Org.). (2015), Religiões e Controvérsias Públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo: Editora da Unicamp/Terceiro Nome. ).

Tomemos o caso recente das representações satíricas do profeta Mohamed publicadas na Dinamarca em 2005, quando a aflição de feridas morais tanto nas minorias Islâmicas desse pais quanto na comunidade Mulçumana em geral foi celebrada e defendida no Ocidente como um gesto de “liberdade de expressão”, um direito e uma virtude cívica (Mahmood 2009MAHMOOD, Saba. (2009), Religious reason and secular affect: An incommensurable divide? Critical Inquiry 35(4): 836-862.). Aqui o secularismo enquanto um princípio estatal de governo de populações, intrinsicamente fragmentário sob um ótica geopolítica, tomou uma forma ampla e abertamente moralizante na esfera pública, sendo associado a uma sociedade cosmopolita, democrática, transparente, plural, criativa e livre, sinônimo de modernidade Ocidental. De acordo com Mahmood (2009MAHMOOD, Saba. (2009), Religious reason and secular affect: An incommensurable divide? Critical Inquiry 35(4): 836-862.), a conversão de dano moral em virtude no caso dos cartuns Dinamarqueses foi possibilitada por uma organização do sensível que ao tomar a religião enquanto “crença” imaterial e interior opera não sem ambiguidades. Por um lado, a crença dissocia ontologicamente o sujeito religioso de suas condições imanentes de emergência, como práticas devocionais e cultura material. Nesse sentido, a mensagem implícita nos cartuns era pedagógica: se quiserem ser integrados ao país, os mulçumanos têm que aprender que a religião trata de estados internos, a “fé”, não “representações”, sejam elas satíricas ou devotas, e que as representações em um contexto democrático pertencem a um mercado supostamente livre de ideias e iniciativas. Essa é uma liberdade real e cosmopolita, não regulada por noções provincianas de diferença como “blasfêmia”. A própria reação “desmesurada” provocada pelo cartuns, que incluiu passeatas e boicotes na Dinamarca e ao redor do mundo, é a prova de que os Mulçumanos devem aprender a abstrair ou deixar de lado lealdades religiosas se eles de fato querem ser “assimilados”, uma visão que condiz bem pouco com a questão da integração Mulçumana na Europa quando observada mais etnograficamente (Jouili 2015JOUILI, Jeanette. (2015), Pious practice and secular constraints: women in the Islamic revival in Europe. Stanford: Stanford University Press .) e muito menos com a relação entre o Islã e o Ocidente em uma escala geopolítica.

Por outro lado, a noção de crença também colocou os mulçumanos como alheios aos protocolos da crítica ela mesma, que tornou-se um bem exclusivamente secular, já que “diferente das crenças religiosas, a crítica é baseada em um necessário distanciamento entre sujeito e objeto e alguma forma de deliberação racional” (Mahmood 2008: 861). De acordo com Mahmood, essa separação classicamente Kantiana entre reflexividade crítica e lealdade metafísica, institucional e afetiva “não apenas caricatura o outro religioso, mas, mais importante, permanece cega às suas próprias disciplinas, apegos afetivos [affective attachments], e relações sujeito/objeto” (ibid). Em suma, como argumenta Connolly, não é que não haja uma estrutura de sentimento no secular e no secularismo, mas que esse movimento de auto-velamento é o seu principal atributo: a possiblidade hegemônica de enunciar a verdade sob o ponto de vantagem do humanismo iluminista liberal. Obviamente, tal ponto de fala neutro é também instável, como demonstra o fenômeno crescente na Europa entre grupos nacionalistas de direita, mas também progressistas, de mover de um registro Kantiano sobre o secular, que o define em oposição ao religioso, para um registro que se pode chamar de Hegeliano, onde a sociedade secular Europeia aparece como fruto e expressão direta da “civilização Judaico-Cristã”7 7 A noção de “civilização Judaico-Cristã” é obviamente bastante recente e não fazia sentido em um contexto geopolítico europeu anterior à Segunda Guerra Mundial, marcado por amplo antissemitismo. De acordo com a tradição filológica que a antecede, por exemplo, o Judaísmo era uma “religião semítica”, assim como o Islã, dadas as obvias similaridades culturais e linguísticas entre esses grupos (Masuzawa 2006). .

Com esse rápido resumo, gostaria apenas de destacar a importância e mesmo a urgência do chamado original de Asad e Connolly para uma atenção crítica cuidadosa para as condições de enunciação estabelecidas pelo secular enquanto um modo de organização do sensível. É também nesse espírito que Hirschkind, tendo estudado com grande fineza etnográfica as técnicas Islâmicas de cultivo de si no Egito, questiona-se nesse artigo exploratório sobre a possiblidade de aplicar os mesmos métodos para as formas de vida seculares. Afinal de contas: existe um corpo secular?

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  • WARNER, Michael. CALHOUN, Craig. VAN ANTWERPEN, Jonathan (eds.). (2010), Varieties of secularism in a secular age. Cambridge: Harvard University Press .

Notas

  • 1
    Veja-se Calhoun, Jurgenmeyer and VanAntwerpen (2011______. JUERGENSMEYER, Mark. VAN ANTWERPEN, Jonathan VanAntwerpen. (2011). “Introduction”. In. ______. (eds.). Rethinking secularism. New York: Oxford University Press. ) e Dullo (2012DULLO, Eduardo. (2012), “Artigo bibliográfico: Após a (antropologia/sociologia da) religião, o secularismo?” Mana 18(2): 379-392.) por um sumário do que chamo aqui de estudos críticos do secularismo.
  • 2
    Asad ensina hoje na City University of New York.
  • 3
    Hirschkind também publicou artigos sobre o movimento da praça de Tahrir , que levou à queda do governo Mubarak (veja-se, por exemplo, Hirschkind 2012______. (2012), Beyond secular and religious: an intellectual genealogy of Tahrir Square. American Ethnologist 39: 49-53.).
  • 4
    Veja-se, por exemplo Marshall (2009), Reinhardt (2013REINHARDT, Bruno. (2013), Tapping into the Anointing: Pentecostal Pedagogy, Connectivity, and Power in Contemporary Ghana. Berkeley: Tese de Doutorado em Antropologia Social. Universidade da Califórnia. , 2014______. (2014), Soaking in tapes: the haptic voice of global Pentecostal pedagogy in Ghana. Journal of the Royal Anthropological Institute 20(2): 315-336.), Maurício Júnior (2013MAURÍCIO JÚNIOR, Cleonardo. 2013. Vasos nas mãos do oleiro: a constituição do pastor Pentecostal. Recife: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFPE. ) e Corrêa (2015CORRÊA, Diogo. (2015), Anjos de Fuzil: uma etnografia das relações entre Igreja e tráfico na Cidade de Deus. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Sociologia. Programa de Pós-Graduação em Sociologia (IESP), Universidade do Estado do Rio de Janeiro.) para o caso da espiritualidade cristã Pentecostal na Nigéria, Gana e Brasil.
  • 5
    Apesar desse ponto em comum, há imensas zonas de incomensurabilidade entre as abordagens de Asad e Connolly e de Taylor para o secular e a secularização. Veja-se, por exemplo os capítulos de Mahmood e Connolly, assim como a resposta de Taylor no volume editado por Warner, VanAntwerpen e Calhoun (2010WARNER, Michael. CALHOUN, Craig. VAN ANTWERPEN, Jonathan (eds.). (2010), Varieties of secularism in a secular age. Cambridge: Harvard University Press .).
  • 6
    “O secularismo não é apenas uma resposta intelectual para o problema de uma paz social duradoura e tolerante. Ele é uma atualização prática [enactement] através da qual um aparato politico [political medium] (…) redefine e transcende práticas diferenciadoras do Self articuladas via classe, gênero, e religião (Asad 2003______. (2003), Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity. Stanford, Calif.: Stanford University Press.: 5).
  • 7
    A noção de “civilização Judaico-Cristã” é obviamente bastante recente e não fazia sentido em um contexto geopolítico europeu anterior à Segunda Guerra Mundial, marcado por amplo antissemitismo. De acordo com a tradição filológica que a antecede, por exemplo, o Judaísmo era uma “religião semítica”, assim como o Islã, dadas as obvias similaridades culturais e linguísticas entre esses grupos (Masuzawa 2006MASUZAWA, Tomoko. (2005), The invention of world religions, or, How European universalism was preserved in the language of pluralism. Chicago: University of Chicago Press.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2017
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