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Dinâmicas religiosas, transformações sociais e desafios contemporâneos

O presente número de Religião & Sociedade é composto por artigos do fluxo contínuo dos textos encaminhados para a revista. O que poderia resultar em uma aglomeração dispersa de temas e abordagens conformou-se em um conjunto muito interessante de artigos com convergências variadas, levando-se em consideração suas temáticas, territórios pesquisados e questões colocadas pelos pesquisadores e pelas pesquisadoras aos seus objetos de estudo. Este número apresenta artigos sobre religiões afro-brasileiras, missões pentecostais e carismáticas, trabalhos que tratam da temática dos Novos Movimentos Religiosos ou movimentos Nova Era, pesquisas sobre a jurema, sobre a relação entre infância, educação e religião, e - destaca-se - textos que, em sua totalidade, pensam a religião a partir de seus aspectos dinâmicos, suas transformações, seus desafios contemporâneos.

As questões relativas à “tradição” religiosa conquistam o interesse de diversos pesquisadores em religião e também dos que aqui se reúnem. No entanto, todos os artigos aqui apresentados têm por foco os processos formativos e transformativos das práticas religiosas, seja por seu deslocamento espacial, seja pela passagem do tempo, pelas “viradas” epistemológicas que mudam o modo de compreensão dessas religiões, pelas supostas “misturas” entre referências religiosas, pelos efeitos das relações entre Religião e Estado, entre outros valiosos elementos que atravessam estes textos. Os estudos aqui reunidos apoiam-se em pesquisas qualitativas, muitas de média e longa duração, com importantes reflexões sobre os aspectos metodológicos de seu desenvolvimento.

O primeiro artigo, de autoria de Joanildo Burity, trata do deslocamento de missionários brasileiros pentecostais e carismáticos para a Europa, especialmente para o Reino Unido. Esse fenômeno é compreendido pelo autor no contexto de um ciclo de migração que levou milhares de brasileiros e de latino-americanos para a América do Norte e a Europa, principalmente em busca de melhores condições de vida, e que teve nas “missões” religiosas uma de suas formas de efetivação, sempre pensadas em sua relação com um contexto mundial diaspórico. Para tratar desse tema, o autor opera com os conceitos de “glocalização” e “minoritização” (Burity 2017BURITY, Joanildo. (2017), Authority and the In-common in Processes of Minoritisation: Brazilian Pentecostalism. International Journal of Latin American Religions. 10.1007/s41603-017-0025-2.), cuidadosamente discutidos no texto. Em sua análise deste complexo “diaspórico-missionário”, Burity discute experiências que se realizam nas fronteiras entre circulação e confinamento, global e local, expansão e recolhimento, tradição e transformação, sem reduzir sua análise, em nenhum momento, a apenas um termo dessas dualidades, e procurando, por isso, investir em recursos conceituais capazes de apreender as dinâmicas desse campo. A dimensão processual constitui-se, assim, elemento-chave da análise apresentada pelo autor.

Também enfrentando os desafios relacionados às transformações no campo religioso, o artigo de Thomás Meira ressalta a mudança no campo antropológico para se pensar o religioso e sua assim chamada “virada ontológica”. Referindo-se contrastivamente ao “anthropological blues” de Roberto DaMatta, Meira sugere um “ontological blues”, acionado pelo autor a partir de uma situação etnográfica durante os bastidores de um rito fúnebre do candomblé - o axexê - que tem por finalidade reconfigurar as ligações de um falecido, iniciado na religião, com as dimensões dos vivos e dos mortos. “Afetado” no contexto de realização de sua etnografia, nos termos de Favret-Saada (1990FAVRET-SAADA, Jeanne (1990), “Être Affecté”. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8. pp. 3-9.), Meira propõe em seu artigo reflexões sobre a produção de estudos de religião que assumam a reavaliação ontológica como via de análise e discute as consequências dessa mudança para o campo antropológico.

Marcelo Múscari, em artigo também sobre religiões afro-brasileiras, objetiva pensar sobre seu campo de pesquisa relacionando-o com as dinâmicas provenientes da relação entre religião, Estado e o cenário urbano. O autor busca analisar as articulações entre uma casa de Batuque e Umbanda do Rio Grande do Sul e uma política pública de segurança alimentar, com especial atenção às interações dessa casa com instâncias do poder público em diversas escalas, e também com outros atores da sociedade civil. Destaca-se, no artigo de Múscari, uma análise que apresenta uma complexa tessitura entre “tradição” e “modernidade” pela perspectiva da dinâmica das produções das políticas públicas e do urbano no Brasil contemporâneo, sem reforçar uma relação de antinomia entre religião, Estado, sociedade e modernidade, mas, ao contrário, evidenciando articulações possíveis entre esses domínios a partir da constituição de novos espaços públicos na cidade.

Ainda pensando as religiões afro-brasileiras a partir de suas dinâmicas, o trabalho de Miriam Rabelo e Ricardo Aragão apresenta um estudo sobre os “caboclos” nos Candomblés de Salvador, na Bahia. Partindo do conceito de “ecologia das práticas” de Stengers, os autores sugerem uma discussão sobre o modo de conexão entre “caboclos” (divindades brasileiras) e “orixás” (divindades africanas) como uma forma de “simbiose”, entendida como um modo positivo de relação entre termos heterogêneos, mesmo quando eles divergem. Interessados em tratar “do modo como se ligam nos terreiros e nos corpos de seus adeptos entidades da terra e da África”, Rabelo e Aragão trabalham com expressivo material de pesquisa de campo no qual seus interlocutores relatam experiências significativas para a análise proposta. Por fim, os autores propõem uma abordagem da inserção dos caboclos no candomblé do ponto de vista da “ética”, isto é, nos termos de Rabelo e Aragão, descrevendo-a como um “problema de convivência” no terreno e no corpo.

O artigo “Nas trilhas da Jurema”, de Rodrigo Grunewald, é uma relevante contribuição para os estudos sobre o tema no país. Resultado de uma ampla experiência de pesquisa sobre a jurema no Brasil, esse trabalho procura apresentar uma exposição ampliada dos vários contextos e usos da jurema, desde aqueles das populações tradicionais até experimentações contemporâneas realizadas por “psiconautas”, associados ao contexto Nova Era no Brasil. O autor evidencia a ampla gama de recriações do uso da jurema em diferentes “settings rituais”, a partir de diversas composições com elementos dos campos ayahuasqueiro, do xamanismo indígena, do espiritismo, da umbanda e do candomblé, entre outros. Grunewald rejeita a ideia de “autenticidade” e traça um caminho que começa no interior do Nordeste, passando por seu litoral, e explora suas expansões sem nenhuma pretensão de qualificar os diversos grupos em termos de “legitimidade”, mas, ao contrário, pretende legitimar epistemologicamente o processo de formação de práticas contextualizadas por cada iniciativa apresentada.

Tratando de uma prática de perfil Nova Era (Heelas 1996HEELAS, Paul. (1996), The new Age movement. The celebration of the self and the sacralization of modernity. Oxford: BlackwellPublishers.), tema brevemente abordado no artigo de Grunewald, o trabalho de Agustina Garcia aborda a meditação da “Chave Mariana”, uma técnica de cura e “autoaperfeiçoamento” que surgiu em Buenos Aires, na Argentina, em 2002. A Chave Mariana articula elementos espiritualistas e energéticos de perfil “orientalista”, com componentes fundamentais do catolicismo tradicional. O artigo desenvolvido por Garcia apresenta uma discussão sobre as religiões Nova Era e toma por foco de sua análise da Chave Mariana o tema do corpo, da emoção, da energia e da cura. Ao concentrar-se nos debates em torno da Nova Era, Garcia contribui de modo significativo para discussões sobre religiosidades contemporâneas e processos de formação e de transformações religiosas na América Latina.

Ainda em contexto argentino, o trabalho de Joaquín Algranti propõe um estudo comparativo entre três grupos religiosos, na busca do que denomina “produção do extraordinário”. O autor sugere uma análise com ênfase em diferentes contextos rituais que envolvem formas particulares de carisma e cultura material. Partindo de uma sociologia das religiões comparadas, escolhe três casos de estudo: a devoção popular a São Expedito, as megaigrejas evangélicas e os encontros de Meditação em Massa, casos pertencentes respectivamente ao catolicismo, ao protestantismo e aos movimentos Nova Era. O autor ressalta, em suas conclusões, sua defesa do método comparativo e como este permite uma leitura para além do particular, alcançando uma análise das relações sociais que estabilizam e encadeiam redes específicas, as quais, por serem consideradas usualmente como desregulamentadas, intermitentes, inócuas, muitas vezes ficam inexploradas.

O último artigo deste número, produzido por autores também argentinos (Palacios et al.), trata da relação entre educação, infância e religião. O texto apresenta uma consolidada revisão bibliográfica sobre o tema, abordando diferentes aspectos dessa relação: desde os processos de transmissão intergeracional que se dão dentro de comunidades religiosas, como também elementos da relação entre infância e religião no sistema escolar formal, em diversas perspectivas. Assim como Algranti, Palacios et al. se interessam por uma abordagem comparativa como via de construção de eixos analíticos que ajudem na compreensão de como têm sido estudadas as relações entre educação, infância e religião. O produto final desse esforço é uma consistente sistematização do material disponível no campo de estudos sobre essa temática, além da construção de algumas importantes questões de estudo para pesquisadores interessados na articulação entre os estudos de religião e a investigação sobre processos educativos.

Este número deReligião & Sociedadetraz duas resenhas. Breno Alencar nos apresenta a obra de Carl Kilcourse sobre as relações entre o cristianismo protestante e o movimento taiping, rebelião de camponeses chineses liderados por um místico cristão contra o poder imperial, que ocorreu entre os anos de 1850-1864, no sul do país. Na contramão dos estudos antropológicos sobre as missões religiosas, que têm enfatizado seu papel determinante na homogeneização cultural, e consequentemente na consolidação do projeto colonial, Kilcourse analisa a implantação do cristianismo no contexto revolucionário chinês como um processo de localização de um “produto” global. Nessa perspectiva, menos do que um motor da “colonização das consciências”, o protestantismo de missão teria se moldado ao novo ambiente cultural, através das influências locais, tornando-se uma “expressão original da cultura nativa”, no limite, amalgamando-se até mesmo com o Confucionismo.

Lilian Sales nos introduz ao cenário atual de mobilização política dos católicos na França, analisado por Céline Béraud e Philippe Portier. Os autores tomam como ponto de partida as manifestações católicas em oposição à legislação regulando o casamento e a adoção de crianças por homossexuais, em debate e votação entre os anos de 2012 e 2013. Ao retomar suas origens, levantar seus protagonistas, alianças construídas e estratégias adotadas, Béraud e Portier delineiam o cenário de atuação política católica nas últimas três décadas demonstrando que, muito embora tenha deixado de ser a religião da maioria da população, a Igreja Católica se consolidou como ator determinante na arena pública francesa por conta de sua ampla capacidade de articulação e mobilização em pautas conservadoras. Reprodução assistida, uso de células embrionárias, aborto e eutanásia são os principais temas que motivam a oposição organizada da Igreja Católica na França, assim como em outros países europeus, fenômeno semelhante ao que podemos identificar também no Brasil. Debates legislativos, campanhas pedagógicas, políticas públicas são algumas das ocasiões em que católicos articulam um ativismo conservador em agendas relacionadas à família, ao gênero, à sexualidade, à bioética. Dois aspectos da atuação política católica são particularmente relevantes para a construção da sua aderência e legitimidade na dinâmica política democrática: a adoção de um vocabulário e argumentos científicos e legais; a construção de alianças com outras tradições religiosas como os protestantes, judeus, ortodoxos, muçulmanos. Dessa forma, a Igreja Católica francesa adere à dinâmica dominante da razão pública como uma estratégia contemporânea para sustentar sua ideologia conservadora de restrição de direitos sexuais, afetivos, reprodutivos, entre outros.

Cada vez mais longe de um cenário intelectual que apontava para “o fim da religião”, novos horizontes de estudo consolidam-se, dentre os quais aqueles que se interessam em qualificar os processos de transformação das práticas religiosas, sem a intenção de elogiá-los como “reavivamento” do religioso, ou desqualificá-los como processos de “perda” da “coisa real”, ou de distorção da tradição. Sem precisarmos nos preocupar com um horizonte futurista de extinção ou persistência do religioso, talvez a questão colocada no texto de Palacios et al. seja a que nos apresenta de modo mais instigante as questões tratadas neste número: “qualquer religião está a uma geração de extinguir-se” (Lindner apud Palacios et al). Se pensarmos neste horizonte de tempo aparentemente mais “curto”, podemos analisar processos que nos dão as trilhas da permanência do religioso a partir de seu constante refazer-se: refazer-se ao deslocar-se (como discutido por Burity); ao ser pensado de modo diferente (Meira); produzindo novos espaços públicos nas cidades (Múscari); criando simbioses e conexões (Rabelo e Aragão); multiplicando-se a partir de articulações entre campos, inclusive não religiosos (Grunewald); refazendo corpos, energias e processos de cura (Garcia); produzindo extraordinários (Algranti); e, finalmente, produzindo e reproduzindo saberes de geração a geração (Palacios et al.).

Referências Bibliográficas

  • BURITY, Joanildo. (2017), Authority and the In-common in Processes of Minoritisation: Brazilian Pentecostalism. International Journal of Latin American Religions. 10.1007/s41603-017-0025-2.
  • FAVRET-SAADA, Jeanne (1990), “Être Affecté”. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8. pp. 3-9.
  • HEELAS, Paul. (1996), The new Age movement. The celebration of the self and the sacralization of modernity Oxford: BlackwellPublishers.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018
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