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A construção espírita do problema do aborto: ordem espiritual e discurso público

The spiritist construction of the problem of abortion: spiritual order and public discourse

Resumos

Resumo: Este artigo discute, a partir de material etnográfico e bibliográfico, como o kardecismo concebe as implicações morais e espirituais do aborto. A interrupção voluntária da gravidez mobiliza problemas sobre as noções de indivíduo, livre-arbítrio e os desígnios de agentes espirituais, comprometendo uma discussão centrada na noção de escolha individual. O kardecismo postula um encadeamento relacional de espíritos entre encarnações, que vai além da afinidade pessoal ou biológica, remetendo a dívidas cármicas que culminam no nascimento. O aborto coloca um problema para a evolução espiritual, quebrando o que os kardecistas consideram uma das leis maiores do universo. Busco explorar tais implicações, relacionando-as aos discursos de entidades médicas ligadas à religião e tensionando a ambígua articulação espírita entre livre-arbítrio, ciência e moral.

Palavras-chave:
Aborto; Discurso Público; Espiritismo; Moral; Pessoa


Abstract: This article discusses, from ethnographic and bibliographic material, how kardecism conceives the moral and spiritual implications of abortion. The voluntary termination of pregnancy mobilizes problems about the notions of self, free will, and the designs of spiritual agents, hindering a discussion centered on the notion of individual choice. Kardecism postulates a relational chain of spirits in-between incarnations that goes beyond personal or biological affinity, leading to karmic debts that culminate at birth. Abortion thus poses a problem for spiritual evolution, breaking what kardecists consider one of the greatest laws in the universe. I seek to explore such implications, relating them to the discourses of medical entities linked to spiritism and tensioning the ambiguous spiritist articulation between free will, science and morality.

Keywords:
Abortion; Public Discourse; Spiritism; Moral; Person


Introdução

As três últimas décadas marcaram um período de intensas disputas políticas em torno de questões relacionadas ao aborto, tanto em termos da luta pela expansão dos direitos reprodutivos das mulheres quanto das investidas pelo recrudescimento da legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez1 1 Diferentes versões deste artigo foram apresentadas no grupo de trabalho “Religião” das Jornadas de Antropologia John Monteiro de 2017, no grupo de trabalho “Religião, política e direitos na contemporaneidade” do 41º Encontro Anual da Anpocs e no grupo de trabalho “Religión y Política en Latinoamérica: Actores, Redes, Instituciones y Flujos” da XII Reunião de Antropologia do Mercosul/RAM. Agradeço a todos os comentários e sugestões recebidos nessas instâncias de debate. Agradeço também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP - Processo 2015/22979-4), cujo financiamento foi indispensável para a realização da pesquisa da qual este trabalho é um fragmento. Por fim, agradeço à(ao) parecerista anônima(o) pelos comentários que possibilitaram uma melhor configuração do texto. . O modelo participativo proposto pela Constituição de 1988, que incentiva a pluralidade de vozes e o diálogo no encaminhamento da política nacional, alçou esta e outras polêmicas ao centro do debate público, envolvendo desde políticos e técnicos até ativistas e agentes religiosos, além de uma opinião pública cada vez mais polarizada, cuja formação vem se dando primariamente através da mídia e das redes sociais. As ciências sociais vêm acompanhando esse movimento, produzindo um crescente número de pesquisas que elegem como objeto o debate público sobre temas como aborto, homossexualidade e eutanásia, mapeando os espaços, atores e discursos que são constantemente formados e contestados em torno da relação entre tais questões e a formulação de leis e políticas públicas.

Apesar desse esforço, o número de dimensões e variáveis que se apresentam ao pesquisador ou pesquisadora acaba por forçar algum tipo de recorte ou limitação do escopo. Observa-se nesse campo uma miríade de regimes discursivos - a medicina, a religião, o ativismo político, o direito, etc. -, além de um número ainda maior de questões a respeito das quais tais discursos são mobilizados. Este artigo elege uma articulação específica entre alguns desses componentes - a temática do aborto e o discurso religioso, mais especificamente o ponto de vista do espiritismo kardecista - para traçar quais entendimentos e valores emergem a partir do posicionamento espírita sobre a questão. O objetivo é apreender o que orienta e mobiliza disposições, atitudes e discursos no interior do espiritismo quando se fala na interrupção voluntária da gravidez e o impacto dessas concepções no modo como os espíritas definem qual deve ser sua postura política no debate público. Meu argumento central é que, do ponto de vista espírita, não faz sentido interpelar o tema do aborto por uma ótica da noção de escolha ou autonomia individual, dado que o nascimento - e todo o processo espiritual de produção do feto - envolve agências que vão muito além de mãe, pai, médicos e políticos. A gestação é entendida como um complexo processo espiritual que envolve uma malha de relações morais e que atende ao direito de um determinado espírito de reencarnar e cumprir suas necessidades evolutivas, um imperativo que o espiritismo busca proteger contra uma suposta noção equivocada de determinação individual. Entender os fundamentos dessa compreensão, que, como demonstrarei, informa até os discursos oficiais de associações de médicos espíritas, é um movimento necessário para localizar o lugar do kardecismo nas controvérsias públicas sobre o aborto e mapear suas estratégias de legitimação.

Esse enfoque específico justifica-se pela predominância numérica, não sem razão, de pesquisas e levantamentos que exploram as controvérsias relacionadas ao catolicismo e às denominações evangélicas. Poucos trabalhos se dedicaram a mapear como o espiritismo kardecista pensa e mobiliza a temática do aborto no posicionamento político de seus participantes, um tema que merece atenção dada a presença dessa religião na mídia e sua recente expansão estatística (Lewgoy 2013LEWGOY, B. (2013), “A contagem do rebanho e a magia dos números: notas sobre o espiritismo no censo de 2010”. In: F. Teixeira; R. Menezes (orgs.). Religiões em Movimento: o Censo de 2010. Petrópolis: Vozes .). Nessa linha, o presente artigo busca contribuir e avançar com reflexões como as de Luna (2007LUNA, N. (2007), “A personalização do embrião humano: da transcendência na biologia”. Mana, vol. 13, nº 2: 411-440., 2009, 2014b, entre outros), Arend (2010AREND, S. M. F. (2010), “Nas Páginas d’O Reformador: imprensa, aborto e doutrina espírita kardecista”. Tempos Históricos, nº 14: 91-105.) e Motta e Silva (2013MOTTA, F. de M.; SILVA, A. de A. (2013), “Vida interrompida: Aborto e espiritismo nas representações de mulheres de grupos populares”. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, nº 9: 109-131.), que procuraram discutir como valores e discursividades do universo religioso, inclusive do espiritismo, apreendem e se articulam politicamente diante da questão. Meu ponto de partida é, entretanto, diverso desses trabalhos, dado que procuro explorar etnograficamente o que dizem os espíritas e sua doutrina sobre o aborto e quais os problemas espirituais levantados por essa prática. A questão inicial, portanto, diz respeito às razões do espiritismo condenar tão rigidamente o aborto para além dos argumentos convencionais de defesa da vida a partir da concepção. Meu interesse é discutir as ideias que animam narrativas e descrições internas ao discurso religioso espírita a partir das palestras e aulas que os próprios espíritas realizam sobre o assunto, expandindo a discussão para como essas narrativas informam sua posição no debate público sobre o aborto. Esse é o grande potencial - e contribuição - do método etnográfico para tais discussões, uma vez que possibilita deslocar o enfoque da análise e iluminar questões que uma abordagem exterior ao discurso religioso não teria acesso. Nesse sentido, em vez de trazer um debate religioso para a arena laica da política secular, meu objetivo neste texto é acompanhar os discursos e imagens invocados pelos espíritas ao levar um debate político para o contexto espiritual.

O material etnográfico que utilizo nas discussões que se seguem foi coletado durante o trabalho de campo que realizei no ano de 2017 no centro espírita Casa do Caminho, localizado em São Carlos, interior de São Paulo2 2 Trata-se de uma parte do material que serviu de base para a escrita de minha dissertação de mestrado sobre circulação e hierarquia no espiritismo kardecista (Santos Barbosa 2018). . A temática do aborto surgiu recorrentemente em palestras e aulas do curso de introdução ao espiritismo realizado pelo próprio centro. Os textos mediúnicos que cito são os mais utilizados nessas instâncias pedagógicas, e a exegese que forneço é, em grande medida, a exposta por médiuns e instrutores do centro. Em especial, a narrativa que conduz a discussão, citada a partir de um livro psicografado por Chico Xavier e assinado por André Luiz, é emblemática na medida em que sempre se fez presente nas sessões a que assisti e que tratavam do tema do aborto, assim como em inúmeros vídeos e materiais divulgados em sites espíritas na internet. Seu caráter didático e instrutivo sobre o tema foi recorrentemente invocado por meus interlocutores para justificar sua utilização e, na medida do possível, busco reproduzir neste texto o percurso “pedagógico” que me foi exposto durante as sessões. Essa escolha metodológica possibilitará uma análise mais detida e nuançada dos problemas que o aborto coloca ao espiritismo e permitirá localizar o posicionamento dessa religião perante as demais no interior do debate público sobre o tema. Mas, antes disso, é interessante compor um panorama sobre a interação entre política e religião nos desdobramentos da Constituição de 1988 e a mobilização desse tema pelas ciências sociais.

Religião e política pós-1988: disputas e polarizações

A relação entre valores religiosos e atuação política vem se constituindo como um tema fundamental na sociologia e antropologia brasileiras devido a alguns fatores específicos. Em primeiro lugar, os embates e disputas em torno da tramitação e elaboração de peças legislativas nas assembleias estaduais e federal vêm aprofundando as polarizações presentes na sociedade brasileira num movimento que se retroalimenta por meio de suas próprias reverberações. O processo de redemocratização abriu espaço para atuação direta e indireta da sociedade civil, com destaque para o legislativo. Após 1988, ocorre, desse modo, uma reorganização das redes de atuação política, trazendo inúmeros novos sujeitos, discursos e instituições para os espaços decisórios. Movimentos sociais e ONGs, assim como grupos e instituições religiosas, associações de especialistas e os próprios partidos, passaram a compor um ambiente plural e particularmente conflituoso no qual temas como direitos humanos e reprodutivos, sexualidade e gênero são frequentemente motivo de disputas políticas. Se, num primeiro momento, os movimentos sociais se organizaram a partir desse novo paradigma democrático para atuar nas instâncias de diálogo e decisão - um processo que já vinha se consolidando desde os embates com o regime militar -, as igrejas e instituições religiosas logo passaram a defender uma atuação política mais direta.

O final do século XX foi marcado, no Brasil, por um notável processo de expansão e complexificação da esfera religiosa, especialmente quando consideramos o quadro das religiões pentecostais e neopentecostais e as reações da Igreja Católica (Freston 1994FRESTON, P. (1994), “Breve história do pentecostalismo brasileiro”. In: A. Antoniazzi. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes.; Fernandes et al. 1998FERNANDES, R. C. et al. (1998), Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja. Rio de Janeiro: Mauad.; Gomes, Natividade e Menezes 2009GOMES, E. de C.; NATIVIDADE, M.; MENEZES, R. A. (2009), “Proposições de leis e valores religiosos: controvérsias no espaço público”. In: L. F. D. Duarte et al. (Orgs.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos . Rio de Janeiro: Garamond .; entre outros). A relação entre religião e Estado também se modificou, com uma presença cada vez maior de candidatos religiosos eleitos para cargos legislativos, um processo operado pelas igrejas, por um lado, para conter ações que vinham sendo encaradas como ameaças aos valores religiosos (em especial do cristianismo) e, por outro lado, como uma reação em cadeia em que católicos e evangélicos disputavam o espaço político em nome de sua própria presença institucional. Segmentos católicos (especialmente alinhados à Renovação Carismática) e evangélicos passaram a operar uma imbricação entre a atividade política e a evangelização, além do chamado à defesa dos “valores religiosos” que tem mobilizado grandes contingentes eleitorais, o que indica a eficácia discursiva desse tipo de articulação. A formação de bancadas religiosas nas câmaras legislativas foram um desdobramento natural desse processo, agregando políticos de diferentes origens denominacionais quando estão em jogo temas percebidos como centrais, como o aborto, a família e a sexualidade (Gomes, Natividade e Menezes 2009:17-18).

Essa configuração política engendrou uma situação em que as reflexões centradas no debate público brasileiro acerca de temas como direitos humanos, direitos reprodutivos, sexualidade, educação, liberdades individuais, entre outros, não podem mais se esquivar da importância que discursos e ações religiosamente orientados adquiriram nesses espaços deliberativos. O estudo de pautas seculares e geralmente tomadas como “progressistas” esbarra recorrentemente na atuação dos agentes religiosos, e esse é um ponto em que as ciências sociais podem realizar uma contribuição concreta e fundamental. As temáticas polêmicas citadas acima envolvem uma pluralidade notável de campos discursivos que atravessam e interagem com a religião. Tomando o aborto como exemplo, existe um conjunto de disputas e discursos centrados na discussão do direito - o Supremo Tribunal Federal constituindo-se como um espaço fundamental dessa dimensão -; por outro lado, existem também as polêmicas técnico-científicas avançadas por médicos e geneticistas sobre a natureza do feto e suas implicações para as disputas em torno da noção de “vida”, um ramo da questão que recebeu a atenção de pesquisas como a de Luna (2007LUNA, N. (2007), “A personalização do embrião humano: da transcendência na biologia”. Mana, vol. 13, nº 2: 411-440., 2009, 2014aLUNA, N. (2014a), “Aborto e corporalidade: sofrimento e violência nas disputas morais através de imagens”. Horizontes Antropológicos, vol. 20, nº 42: 293-325.). O discurso dos próprios políticos também aparece como um campo retórico específico, como apontam os trabalhos de Gomes (2009GOMES, E. de C.; NATIVIDADE, M.; MENEZES, R. A. (2009), “Proposições de leis e valores religiosos: controvérsias no espaço público”. In: L. F. D. Duarte et al. (Orgs.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos . Rio de Janeiro: Garamond .a), Luna (2014bLUNA, N. (2014b), “Aborto no Congresso Nacional: o enfrentamento de atores religiosos e feministas em um Estado laico”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 14: 83-109. ), Duarte et al. (2009DUARTE, L. F. D. et al. (Orgs.). (2009), Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Garamond.), entre muitos outros.

A religião é um dos universos discursivos e nocionais mais importantes para tais disputas políticas, mas aqui também encontramos uma notável fragmentação. O discurso “oficial” das igrejas, isto é, o posicionamento dogmático que as religiões adotam enquanto instituições, muitas vezes não se concretiza de forma direta na experiência comum dos fiéis, ou então sua mobilização implica transformações e releituras. Por exemplo, a Igreja Católica mantém uma postura de repúdio ao aborto em todas as circunstâncias, mesmo nos casos de risco à vida da mãe ou estupro. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), por outro lado, apresenta uma posição diferente, com suas lideranças - especialmente a figura de Edir Macedo - colocando-se favoráveis à legalização do aborto em certos casos (Mariz 1998MARIZ, C. (1998), “A opinião dos evangélicos sobre o aborto”. In: R. Fernandes et al. Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja . Rio de Janeiro: Mauad .; Gomes 2009GOMES, E. de C.; NATIVIDADE, M.; MENEZES, R. A. (2009), “Proposições de leis e valores religiosos: controvérsias no espaço público”. In: L. F. D. Duarte et al. (Orgs.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos . Rio de Janeiro: Garamond .a, 2009b). A questão é que tais posicionamentos frequentemente não são extensivos ao que se observa etnograficamente nas congregações. Isso vai desde a presença de grupos que expressam uma posição contrária no interior da religião - como a ONG Católicas Pelo Direito de Decidir -, ou mesmo por posições mais rígidas encontradas entre uma parcela dos fiéis da IURD em contraste com a opinião das lideranças da igreja, como aponta Gomes (2009b). Além disso, os agentes religiosos podem adotar outros regimes discursivos quando adentram os espaços de deliberação legislativa, como enfocar a questão do aborto por um viés de saúde pública e do direito (o feto enquanto sujeito digno de políticas públicas), ou ainda fazendo uso de uma retórica embebida em conceitos biológicos e genéticos (Gomes 2009aGOMES, E. de C. (2009a), “‘Fé racional’ e ‘Abundância’: família e aborto a partir da ótica da Igreja Universal do Reino de Deus”. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, nº 2: 97-120.; Luna 2002LUNA, N. (2002), “As novas tecnologias reprodutivas e o estatuto do embrião: um discurso do Magistério da Igreja Católica sobre a natureza”. Gênero, vol. 3, nº 1: 83-100., 2009).

A existência de uma pluralidade de posicionamentos no que diz respeito à relação entre religião, política e direitos reprodutivos que varia de acordo com os atores, circunstâncias e espaços envolvidos pode parecer trivial. Entretanto, essa fragmentação abre grandes possibilidades para as ciências sociais. Num momento em que polarizações no debate público nacional ameaçam o avanço de pautas importantes para a consolidação de uma democracia participativa secular - especialmente quanto aos direitos de minorias, combate ao racismo, direitos reprodutivos, etc. -, é fundamental um esforço analítico no sentido de mapear e identificar as nuances, particularidades e limites dos diferentes campos discursivos que orientam as disputas políticas e sociais em torno desses temas. Pesquisas sociológicas e antropológicas têm um papel a desempenhar nessa iniciativa, dado que são capazes de apreender os valores e perspectivas mobilizados tanto pelo polo conservador quanto pela ala progressista do diálogo democrático3 3 Vale ressaltar a coletânea, organizada por Duarte et al. (2009), cuja preocupação está justamente em identificar as formas pelas quais os valores religiosos se fazem presente nos discursos parlamentares e projetos legislativos acerca de “temas morais controversos”, como aborto, eutanásia e direitos LGBT. . Esse tipo de estudo é particularmente valioso para uma estrutura política plural e que por muito tempo esteve à sombra de paradigmas autoritários, além de possibilitar a delineação de estratégias discursivas e de ação concreta para o fortalecimento das pautas seculares. É necessário impedir que o diálogo democrático se converta num jogo de soma zero em que determinadas posições se impõem apenas por corresponderem aos valores de um ou outro grupo. As recentes investidas de setores autoritários na política, um processo que vai além da questão religiosa e que realiza mobilizações variadas de elementos da realidade social, como o nacionalismo ou crises econômicas, demandam uma empreitada crítica que seja capaz de identificar, por exemplo, o que a religião representa em termos de ação política para as pessoas e seus representantes de modo a possibilitar mecanismos de combate ao populismo e demagogia, que cada vez mais aparecem imbricados numa relação complicada com os valores religiosos. Um projeto analítico desse tipo deve se preocupar em compreender o lugar da religião numa sociedade moderna e complexa, isto é, como uma dimensão legítima das dinâmicas participativas, mas que não pode se colocar como força monolítica acima da própria política ou mesmo dos conhecimentos técnico-científicos - algo que tem sido sinalizado por certos grupos ao defenderem a extrapolação religiosa de posturas individuais em direção ao Estado e à sociedade como um todo.

É com essa inspiração que o presente artigo busca se inserir no conjunto de reflexões que estudaram os valores e posicionamentos implicados no discurso religioso sobre temas controversos. No caso específico da relação espiritismo e aborto, já existem algumas iniciativas de compreensão, como o trabalho de Arend (2010AREND, S. M. F. (2010), “Nas Páginas d’O Reformador: imprensa, aborto e doutrina espírita kardecista”. Tempos Históricos, nº 14: 91-105.), que enfoca o discurso “oficial” da religião acerca do tema por meio de uma pesquisa sobre a importante revista espírita O Reformador. Outra pesquisa, realizada no âmbito da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) sobre o aborto num bairro da periferia de Florianópolis (Motta e Silva 2013MOTTA, F. de M.; SILVA, A. de A. (2013), “Vida interrompida: Aborto e espiritismo nas representações de mulheres de grupos populares”. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, nº 9: 109-131.), também traz uma discussão importante, uma vez que as autoras analisaram os dados etnográficos com vistas à presença espírita entre a população estudada. Motta e Silva (2013:124) descrevem um elemento importante da experiência espírita: a utilização de um discurso de “arrependimento, crescimento pessoal e aprendizado, balizado pelo viés espírita”, entre mulheres que praticaram o aborto em algum momento de suas vidas e mesmo assim condenam o ato e se posicionam contrariamente à sua legalização4 4 Esse tipo de posicionamento está relacionado a uma economia de boas ações e transgressões que serve de base à noção espírita de carma. Um ato sério e condenável, como o aborto, é visto como uma dívida cármica que, embora espiritualmente comprometedora, pode ser aliviada através do crescimento e entendimento espiritual, além de ações concretas de caridade ao próximo. Uma descrição mais ampla desses princípios pode ser encontrada em Santos Barbosa (2018). Esse modelo religioso também dá margem para a radicalização de mulheres que passaram pela experiência do aborto e adotam uma rígida postura contrária à sua realização. .

O enfoque que adoto neste texto é próximo ao de Arend (2010AREND, S. M. F. (2010), “Nas Páginas d’O Reformador: imprensa, aborto e doutrina espírita kardecista”. Tempos Históricos, nº 14: 91-105.). Trato primariamente do que poderia ser descrito como o discurso “oficial” do kardecismo, mas por meio de uma etnografia dos grupos de estudo num centro espírita e de declarações institucionais de grupos e organizações formadas por médicos espíritas. A doutrina espírita em geral, embora fortemente enraizada em concepções morais de família e trabalho, se distancia de outras vertentes do cristianismo ao propor determinados ideais liberais e, ao menos no contexto tradicional brasileiro, progressistas (como a defesa da liberdade religiosa e, em certos casos, um posicionamento menos hostil diante da homossexualidade), ao mesmo tempo que mantém um discurso conservador e extremamente rígido acerca do aborto. Como busco demonstrar, a discussão espírita desloca a questão, posicionada pela modernidade e secularismo junto à política e à saúde pública, para o nível da cosmologia e da espiritualidade de modo mais direto e pragmático do que o catolicismo e as denominações evangélicas.

Reencarnação e implicações relacionais

No livro Vida e Sexo, psicografado pelo médium mineiro Chico Xavier e assinado pelo espírito Emmanuel, seu principal guia e mentor, todo o capítulo 17 é dedicado a uma discussão sobre o aborto. O discurso avançado pelo espírito é digno de uma longa citação inicial:

[…] De todos os institutos sociais existentes na Terra, a família é o mais importante, do ponto de vista dos alicerces morais que regem a vida. […] Com semelhantes notas, objetivamos tão só destacar a expressão calamitosa do aborto criminoso, praticado exclusivamente pela fuga ao dever. Habitualmente - nunca sempre - somos nós mesmos quem planifica a formação da família, antes do renascimento terrestre, com o amparo e a supervisão de instrutores beneméritos, à maneira da casa que levantamos no mundo, com o apoio de arquitetos e técnicos distintos. Comumente chamamos a nós antigos companheiros de aventuras infelizes, programando-lhes a volta em nosso convívio, a prometer-lhes socorro e oportunidade, em que se lhes reedifique a esperança de elevação e resgate, burilamento e melhoria. Criamos projetos, aventamos sugestões, articulamos providências e externamos votos respeitáveis, englobando-nos com eles em salutares compromissos que, se observados, redundarão em bênçãos substanciais para todo o grupo de corações a que se nos vincula a existência. Se, porém, quando instalados na Terra, anestesiamos a consciência, expulsando-os de nossa companhia, a pretexto de resguardar o próprio conforto, não lhes podemos prever as reações negativas e, então, muitos dos associados de nossos erros de outras épocas, ontem convertidos, no Plano Espiritual, em amigos potenciais, […] fazem-se hoje - e isso ocorre bastas vezes, em todas as comunidades da Terra - inimigos recalcados que se nos entranham à vida íntima com tal expressão de desencanto e azedume que, a rigor, nos infundem mais sofrimento e aflição que se estivessem conosco em plena experiência física, na condição de filhos-problemas, impondo-nos trabalho e inquietação. Admitimos que seja suficiente breve meditação, em torno do aborto delituoso, para reconhecermos nele um dos grandes fornecedores das moléstias de etiologia obscura e das obsessões catalogáveis na patologia da mente, ocupando vastos departamentos de hospitais e prisões. (Xavier 2009XAVIER, C. (2009), Vida e Sexo. Brasília: FEB .:33-34)

Este trecho sintetiza de forma rápida o posicionamento geral do espiritismo diante do aborto. Durante o trabalho etnográfico para minha pesquisa de mestrado, realizado no centro espírita Casa do Caminho, em São Carlos, interior de São Paulo, assisti a aulas e palestras com esse discurso no interior da doutrina espírita, invocando desde os escritos clássicos de Allan Kardec - o codificador do espiritismo e importante referência doutrinária - até obras recentes que se dedicam a explorações em medicina espiritual e narrativas psicografadas. Fundamentalmente, o aborto levanta duas questões de ordens complementares, uma moral e outra que chamo provisoriamente de pragmática ou “relacional”. É necessário frisar, entretanto, que a separação dessas duas dimensões é um exercício analítico para melhor apreendê-las, sendo seus pressupostos e efeitos profundamente interrelacionados na prática e discurso espíritas.

Utilizo o termo “pragmático” com certa liberdade, uma vez que me refiro à concepção quase burocrática que os espíritas possuem do mundo espiritual, elemento que também aparece na discussão de Lewgoy (2004LEWGOY, B. (2004), O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru: EDUSC: CNPq/Pronex.) sobre as obras espíritas. Esse aspecto fica claro na fala de Emmanuel citada acima: antes de reencarnar, um espírito planeja, em companhia de guias, auxiliares e supervisores, o percurso e as características de sua vida futura. Com efeito, a reencarnação, isto é, o principal elemento no processo de evolução espiritual, coloca em movimento toda uma estrutura administrativa da Providência Divina de modo a garantir ao ser a possibilidade de pagar dívidas cármicas contraídas em vidas anteriores, além de buscar uma espécie de imbricação de vidas entre o espírito prestes a reencarnar e outros com os quais ele tenha um histórico de afinidade ou conflito. Nesse sentido, uma encarnação pode ser arranjada para que inimigos mortais retornem à carne numa mesma família visando a que o perdão, o mecanismo moral-evolutivo fundamental, possa surgir daquela relação conflitosa. Contrariamente, espíritos com um histórico de amizade e harmonia que atravessa uma grande quantidade de vidas anteriores podem receber missões conjuntas para que possam, dessa forma, amplificar sua evolução.

Desejo explorar aqui os pormenores dessa concepção relacional - e ressaltada o tempo todo por meus interlocutores - da reencarnação, especialmente com vista a seus aspectos morais e sua articulação com o processo de evolução. A centralidade desse sistema tornou-se explícita durante meu trabalho de campo quando, na décima primeira lição do curso de Introdução ao Espiritismo, realizado pelo centro Casa do Caminho, o professor Eduardo5 5 Os nomes próprios foram trocados durante a escrita do texto. Todas as falas citadas no texto foram autorizadas para uso acadêmico. - que também é o presidente do centro e um espírita com larga experiência doutrinária - centrou sua fala no capítulo 13 do livro Os Missionários da Luz, psicografado por Chico Xavier (2011XAVIER, C. (2011), Missionários da Luz. Brasília: FEB .) e de autoria do espírito André Luiz. Utilizarei a narrativa dessa experiência num grupo de estudos espírita como fio condutor da discussão, dado que ela mobiliza boa parte das metáforas e conceitos que pautam o posicionamento geral dessa religião no que diz respeito ao aborto. Minha descrição é, portanto, informada pelas sínteses produzidas por meus interlocutores durantes essas instâncias de estudo e em resposta às minhas indagações sobre a questão.

O capítulo citado por Eduardo é constituído por um relato de André Luiz sobre o acompanhamento do processo de reencarnação do espírito Segismundo. Uma comitiva espiritual, presidida por Alexandre, um guia de grande evolução, visita a casa de Adelino e Raquel, um casal encarnado e futuros pais de Segismundo. Este último mostra-se um espírito emotivo e profundamente arrependido de seu histórico de vidas criminosas e cheias de culpa, pronto para uma nova oportunidade na vida terrestre. Os espíritos chegam durante o jantar, quando Adelino conta a Raquel sobre um sonho que vinha tendo há várias noites. Tratava-se da imagem de um homem que, como um mendigo, vinha lhe estender as mãos como se pedisse algo; mas, a essa altura do sonho, Adelino se enchia de medo, como se o pedinte fosse lhe apunhalar. O sonho sempre terminava numa fuga, abandonando a figura de mãos estendidas.

O guia Alexandre realiza inúmeros trabalhos de preparação espiritual, visando produzir um ambiente apropriado para o desdobramento - a saída do espírito durante o sono - de Adelino e Raquel naquela noite. Raquel era um espírito mais evoluído que Adelino, o que se traduziu numa facilidade muito maior de sair do corpo físico e logo encontrar a comitiva espiritual que a aguardava ali. As dificuldades de Adelino são explicadas a André Luiz por Alexandre da seguinte forma:

Está examinando a lição? Repare as singularidades da vida espiritual. Adelino e Raquel são Espíritos associados de muitas existências em comum, partilham o mesmo cálice de dores e alegrias terrestres. Na atualidade, seus corpos repousam um ao lado do outro, no mesmo leito; entretanto, cada um vive em plano mental diferente. É muito difícil estarem reunidas nos laços domésticos as almas da mesma esfera. Raquel, fora dos veículos de carne, pode ver a avozinha, com quem se encontra ligada no mesmo círculo de elevação. Adelino, porém, somente poderá ver Segismundo, com quem se encontra imantado pelas forças do ódio que ele deixou, imprudentemente, desenvolver-se, de novo, em seu coração… (Xavier 2011XAVIER, C. (2011), Missionários da Luz. Brasília: FEB .:123).

Alexandre é, então, interrompido por um grito de Adelino ao ver a figura de Segismundo, a mesma que o afugentava em seus sonhos. O leitor é informado que entre os dois espíritos há um histórico de dívida cármica, uma vez que Segismundo assassinara Adelino numa encarnação recente, justificando seu pavor à presença do espírito. A narrativa prossegue pelas tentativas de Alexandre em acalmar e convencer Adelino do arrependimento de Segismundo. Entretanto, o simples arrependimento não é suficiente para sanar os pesados crimes que mancham a relação entre os dois espíritos. Alexandre explica que a Providência Divina organizou uma possibilidade para que ambos resolvessem esse entrave cármico que lhes prejudicava a evolução. Para tal, era necessária a cooperação de Segismundo - na forma de sua disposição e arrependimento sincero - e de Adelino - na capacidade de perdoar seu assassino passado.

O guia espiritual revela que a superação desse histórico demanda uma encarnação conjunta em que ambos demonstrem tais disposições e era esse o motivo de sua visita. Adelino deveria concordar com a reencarnação de Segismundo como seu filho, colocando as duas almas num teste de convivência íntima que deveria propiciar o perdão e o amor entre ambos. Além disso, Segismundo também deveria sofrer, na vida adulta, com uma moléstia do coração como forma de pagar pelos crimes cometidos no passado. A experiência concreta dessa encarnação permitiria a resolução do problema e abriria grandes possibilidades para a evolução dos dois espíritos. A narrativa prossegue com a aceitação de ambos e a descrição posterior dos procedimentos espirituais que ocorrem paralelamente ao momento da fertilização, em que a alma é unida às estruturas genéticas que lhe produzirão o corpo durante a gestação. Embora tais descrições sejam de grande interesse para uma discussão de como o espiritismo articula imagens religiosas e psicobiológicas, não disponho do espaço para desenvolvê-las em profundidade. Meu objetivo será, portanto, enfocar o caráter relacional e moral que as noções de carma e reencarnação apresentam no discurso espírita.

Toda a preparação espiritual - envolvendo encarnados e desencarnados -, além do elemento essencialmente relacional que imbrica encarnação e evolução, demonstra como o nascimento de uma criança é um evento espiritual e fisiologicamente complexo. A partir dessas imagens é possível começar a traçar o que fundamenta o posicionamento espírita ante a interrupção desse processo que, do ponto de vista religioso, transcende a noção de escolha individual. Retornando à argumentação de Emmanuel, o aborto voluntário traz um problema sério ao romper o pacto tão arduamente estabelecido entre os espíritos conflituosos e desestruturar o planejamento da Providência Divina para a resolução de dívidas e o prosseguimento da caminhada evolutiva. No decorrer da narrativa de André Luiz, Alexandre também explica que a ligação espiritual entre alma e corpo ocorre logo quando o óvulo é fecundado, havendo grande imbricação entre processos genéticos e espirituais no desenvolvimento celular que levará à formação do feto. Desse ponto de vista, o espiritismo compartilha com outras religiões a concepção de que o aborto atinge um ser vivo mesmo quando feito nos momentos iniciais da gravidez.

Entretanto, a argumentação espírita coloca outros elementos em jogo. Eduardo comentou durante a lição como o aborto é, antes de tudo, um ato de ignorância e da incapacidade do ser encarnado de pensar além de sua experiência imediata. Em primeiro lugar, toda gravidez é esquematizada pelos espíritos superiores de modo a maximizar as possibilidades evolutivas da encarnação em questão. Mesmo quando não se trata de espíritos que tenham de realizar algum acerto de contas, a programação espiritual define missões, provações e até mesmo envia espíritos auxiliadores através do nascimento. Quando um aborto voluntário é realizado, duas implicações entram em cena. A primeira concerne aos já encarnados, na maioria das vezes os pais (e o discurso espírita mantém essa posição mesmo em casos de estupro e violência sexual), uma vez que, ao negar a vida àquele espírito que havia se preparado para encarnar naquela família em específico, se dá a rejeição da oportunidade de evolução oferecida pelo nascimento. Os espíritas enxergam nesse ponto um grave erro de percepção, pois a pessoa que aborta - e todas as demais que participam dessa decisão - não compreenderia que está sabotando seu potencial de evolução espiritual e moral por razões que dizem respeito apenas àquela encarnação. Ao infringir um dos pilares do espiritismo, o imperativo da evolução, o aborto automaticamente passa a ser visto como um crime de extrema seriedade na perspectiva espiritual. É importante notar que, nesse primeiro ponto, trata-se menos de um crime contra a vida de um indivíduo em potencial do que contra uma noção de ordem espiritual estabelecida que está acima do espírito encarnado. Ao atentar contra essa ordem, o espírito compromete seu próprio potencial evolutivo.

Mas a interrupção de uma gravidez cuja realização espiritual já estava traçada pela Providência também tem consequências para o espírito que receberia aquela oportunidade de retornar à Terra para redimir seus atos passados. Dependendo do grau de evolução desse espírito, como aponta Emmanuel, ele pode causar males e sofrimentos muito mais sérios que se houvesse, de fato, encarnado como, por exemplo, um “filho-problema”6 6 A categoria de “filho-problema” é um exemplo utilizado pelos espíritas para apontar uma relação cármica que transcende a encarnação atual. Casais conflituosos, familiares problemáticos, mazelas e sofrimentos que caiam sobre um grupo familiar, entre outros fatores, são entendidos como produtos de relações que envolvem o pagamento de dívidas ou provações derivados de transgressões passadas. Da mesma forma, amigos muito próximos, casais harmoniosos e irmãos extremamente unidos são exemplos de espíritos que possuem uma relação de afinidade que atravessa a encarnação atual em direção às vidas passadas. . Há um grande risco de obsessão nesses casos, isto é, o espírito cuja existência física foi negada passa a causar influências negativas na vida física e espiritual dos responsáveis. Eduardo chegou a exemplificar esse ponto citando exemplos de mulheres que passaram pela experiência do aborto e tiveram consequências de ordem psicológica ou fisiológica - e vale lembrar que, no caso do Brasil, a clandestinidade do procedimento o torna extremamente traumático para um grande número de mulheres, especialmente aquelas em camadas socioeconômicas vulneráveis - como sendo casos de obsessão em que espíritos (que podem ou não ser aqueles afetados pelo ato) causam as mazelas e o sofrimento em questão. Em outros casos, como, por exemplo, aqueles em que o espírito privado da reencarnação já detinha certa evolução, a consequência maior é o impedimento da missão ou papel que aquele espírito desempenharia na Terra. Frequentemente, tais espíritos são enviados justamente para auxiliar e facilitar as provas pelas quais devem passar outros espíritos encarnados - essa era a relação entre Raquel, um espírito de considerável evolução, e Adelino.

É importante ressaltar que as consequências elencadas acima correspondem ao que denominei momentaneamente como aspecto pragmático ou “relacional” da reencarnação e evolução. O que é fundamental reter desse quadro é: (1) a problemática da organização espiritual implicada na vinda de um espírito para a Terra; (2) sua articulação imbricada nas trajetórias passadas de dois ou mais espíritos e que os reúne novamente para a superação de dívidas e entraves evolutivos por meio do perdão e da convivência familiar; (3) o caráter destrutivo do aborto em face de tais programações e “oportunidades”; (4) o alinhamento do ato de interrupção da gravidez com uma ideia de “mau uso” do livre arbítrio que compromete tanto a evolução daquele espírito em específico quanto dos que deveriam encarnar em seu entorno. O aborto fere, assim, uma lei maior do espiritismo ao impedir o percurso evolutivo de um espírito por meio da incapacidade e irresponsabilidade de outro espírito (encarnado). Toda a questão é encarada e ressaltada nas palestras e aulas como uma violação do direito espiritual ao melhoramento por meio de uma ideia deturpada e individualizada do livre-arbítrio, cristalizada na noção secular de “livre escolha”, ou seja, um crime contra a ordem ou “instituição” espiritual7 7 Lewgoy (2004) enfatizou o enraizamento no espiritismo de um quadro moral centrado em ideais de civismo, hierarquia, obediência e subordinação à ordem, algo que o autor equacionou à figura do Caxias, um dos polos nocionais suscitados pelas análises de Roberto DaMatta sobre a sociedade brasileira. O espiritismo opera com uma amálgama bastante particular entre o individualismo moderno e o holismo hierárquico, posicionando o indivíduo espiritual como núcleo de valor, mas sempre inscrito numa ordem superior que o transcende e engloba, seja a nação, seja a Providência Divina. . Entretanto, o aborto também implica dilemas morais no interior da doutrina espírita, e é nesse ponto que seu discurso se aproxima das demais denominações cristãs.

Espíritos, moral e bioética: algumas concepções envolvidas no debate público

O espiritismo propõe que a vida se inicia logo no momento da fecundação, dado que é neste instante que o espírito é vinculado ao material genético que dará origem a seu corpo físico. Este é, entretanto, um ponto da doutrina em que há certa discussão. No Livro dos Espíritos, uma obra que está na base do espiritismo, Allan Kardec é respondido por um espírito que especifica que “o feto não tem, a bem dizer, uma alma, visto que a encarnação está apenas em via de operar-se. Acha-se, no entanto, ligado à alma que virá a possuir.” (Kardec 2014KARDEC, A. (2014), O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB.:190). Há, assim, uma concepção processual da encarnação que ocorre paralelamente ao processo biológico da gestação; a ligação da alma com o feto vai se fortalecendo à medida que a gestação se desenvolve8 8 Luna (2009), pesquisando sobre argumentos e regimes discursivos dos movimentos pró e antiaborto, distingue entre uma “ontologia gradualista” - que toma o processo de formação do feto como permeado de fases e que subordina a atribuição do estatuto de pessoa a algum desenvolvimento particular (a presença de sistema nervoso, por exemplo) - e uma “ontologia substancialista” - que se baseia num critério biológico (genético) “de presença da pessoa humana desde a concepção” (Luna 2009:88). . Aqui podemos observar um dos elementos que participam da definição espírita de vida, dado que, logo na página seguinte, o espírito responde a uma questão de Kardec sobre o aborto da seguinte forma: “há crime toda vez que transgredis a lei de Deus. Uma mãe, ou qualquer outra pessoa, cometerá crime sempre que tirar a vida de uma criança antes do nascimento, pois está impedindo uma alma de suportar as provas de que serviria de instrumento o corpo que estava se formando.” (Kardec 2014:191). Novamente, vale notar a centralidade (talvez até maior que do argumento vital) de uma ideia de crime contra o bom funcionamento das dinâmicas espirituais.

A noção de vida, nesse sentido, e todos os dispositivos bioéticos que lhe decorrem, está fundada na concepção de uma articulação entre os domínios espiritual e biológico. Isso permite ao espiritismo expandir a noção de vida (mantendo seu conteúdo espiritual e integração com o processo evolutivo) para seres não humanos, como plantas, animais e micro-organismos. Mais do que funções ou capacidades fisiológicas, a vida é definida por um processo de integração entre o mundo espiritual e o mundo físico. Mesmo que o feto não possua, de fato, uma alma da mesma forma que um ser já formado, seu estatuto ontológico já demanda uma definição como ser vivente logo no momento da fecundação, que é o ponto em que ocorre a união entre espírito e o que virá a ser um corpo. Desse modo, os espíritas fazem coro ao argumento, comum entre grupos religiosos contrários ao aborto, de que se trata de um atentado contra um ser vivente, violando tanto os estatutos morais pregados pelo cristianismo quanto a própria legislação secular. Sobre esse ponto, é interessante compor um panorama das composições discursivas empregadas por médicos e profissionais de saúde que fazem uso do arcabouço kardecista na definição de seu posicionamento profissional, implicando um ajuste entre a ciência médica e os valores religiosos.

A posição bioética do espiritismo pode ser estudada a partir das inúmeras cartas e textos elaborados nos eventos e congressos de medicina espírita, os quais sempre elencam alguns dos pontos acima discutidos para traçar um ideal de conduta médica em consonância com a doutrina:

Nós, Médicos Espíritas, reunidos no V MEDNESP, na cidade de São Paulo, em 28/05/2005, elaboramos a seguinte Carta de Princípios a partir da Bioética Espírita: Em relação ao aborto Considerando que: (1) Nosso paradigma de bioética é o personalista espírita que contempla a dignidade ontológica a partir do zigoto, onde a vida se inicia; (2) A vida é um bem indisponível, uma doação do Ser Supremo, que se encontra presente no micro e no macrocosmo, conclusão esta decorrente de pesquisas científicas sobre a origem da vida que apontam para a existência de um Planejador Inteligente, bem como de estudos sobre a embriogênese e o psiquismo fetal. As dificuldades dos cientistas em definir o que é vida e a impossibilidade de criá-la originariamente em laboratório são alguns entre os muitos dados demonstrativos da grandeza e da complexidade da Criação Divina. Posicionamo-nos contrariamente a qualquer método que interrompa a vida em algum ponto do continuum “zigoto velho”, inclusive ao uso da “pílula do dia seguinte” e favoravelmente ao Planejamento Familiar, através de métodos não-abortivos, incluindo, entre estes, o DIU (Dispositivo intrauterino), desde que utilizado, no período fértil, em combinação com método de barreira. […]

Em alguns casos, como durante o II Encontro Internacional das AMEs (Associações Médico-Espíritas), em junho de 2003, são elaborados textos que discutem diretamente a questão dos direitos do embrião:

Considerando que: (1) A vida é um bem outorgado por Deus, à qual todos têm direito; (2) O espírito inicia a nova encarnação na fecundação e passa a comandar a embriogênese, em todas as fases, até o término da gestação; (3) De acordo com O Livro dos Espíritos, existem embriões que possuem ou não espíritos destinados à reencarnação; (4) Não existe consenso científico relativo à clonagem humana e terapêutica e também nas manipulações genéticas. Resolve que: (1) Os direitos do embrião começam com a fecundação; (2) Somos contrários a qualquer método de anticoncepção que interrompa a embriogênese a partir da fecundação; (3) Somos contrários a qualquer intervenção, terapêutica ou não, que interrompa a gestação em qualquer fase, exceto quando houver risco de morte para a mãe; (4) Nos casos de gravidez com más formações congênitas (anencefalia, hidrocefalia, cardiopatias, meningomielocele e outras) recomenda-se orientação à mãe e envolvidos para que conduzam a gestação até o seu termo; (5) Somos favoráveis aos métodos de controle de natalidade que impeçam a fecundação, como, por exemplo, anticoncepcionais orais e barreiras (preservativos e diafragma), método Ogino-Knauss; (6) Como ainda não existem meios para identificar quais os embriões congelados que possuem ligações com espíritos reencarnantes, todos devem ser preservados; (7) Somos contrários, no momento atual, à clonagem humana, tanto reprodutiva quanto terapêutica, tendo em vista que não podemos realizar experiências em anima nobili (seres humanos vivos). (8) É preciso implantar um trabalho preventivo de orientação sexual pelas AMEs, junto aos pais e educadores, bem como às crianças e adolescentes.9 9 Estes documentos podem ser acessados na íntegra em http://www.ameees.org.br/p06.asp#CA1. Acesso em: 20/08/2017.

Percebe-se que, em primeiro lugar, o argumento da defesa à vida ganha força no discurso médico, enquanto os grupos de estudos realizados no centro enfocam as dinâmicas cármicas e espirituais implicadas na vinda de um espírito para a Terra. Aqui vale a pena utilizar as noções dumontianas de valor e englobamento (Dumont 2008DUMONT, L. (2008), Homo Hierarchicus: O Sistema das Castas e suas Implicações. São Paulo: EDUSP.; Duarte 2017DUARTE, L. F. D. (2017), “O Valor dos Valores: Louis Dumont na Antropologia Contemporânea”. Sociologia & Antropologia, vol. 7, nº 3: 735-772.), dado que o discurso dos médicos espíritas apresenta uma configuração ideológica em que duas dimensões estabelecem uma relação hierárquica. O discurso religioso espírita tem uma notável capacidade de englobar, no sentido dumontiano do termo, elementos do discurso médico e biológico de forma mais eficiente que o catolicismo e as denominações evangélicas. O próprio estatuto requisitado pelo espiritismo - de constituir uma síntese entre a religião, a ciência e a filosofia (Stoll 2004STOLL, S. J. (2004), Espiritismo à Brasileira. São Paulo: EDUSP .; Arribas 2010ARRIBAS, C. da G. (2010), Afinal, espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da diversidade religiosa brasileira. São Paulo: Alameda.; Santos Barbosa 2019SANTOS BARBOSA, A. W. (2019), “‘Aqui a gente não faz milagre’: Particularidades do tratamento espiritual de doenças no espiritismo kardecista”. Campos, vol. 20, nº 1: 80-100.; entre outros) - lhe garante uma capacidade de manipular imagens técnico-científicas retoricamente eficazes. A descrição de André Luiz que utilizei como exemplo é seguida de uma relativamente longa discussão ensaística e cientificista acerca dos processos genéticos que ocorrem sob influência do mundo espiritual.

Chamar a atenção para este ponto implica reconhecer a importância que certas concepções sobre as características do conhecimento científico têm nos posicionamentos políticos dos espíritas10 10 Para uma discussão sobre a relação entre discursos religiosos e científicos no espiritismo, enfocando a dimensão da cura espiritual, ver Santos Barbosa (2019). . A relação entre moral e ciência é ainda mais importante, como aponta Luna (2009LUNA, N. (2009), “Embriões de laboratórios e fetos anencefálicos: a constituição de sujeitos de direitos no debate público”. In: L. F. D. Duarte et al. (Orgs.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos . Rio de Janeiro: Garamond .) ao discutir cartas enviadas por médicos espíritas a jornais de grande circulação. É fundamental, nesse sentido, escapar de uma visão que simplesmente oponha o discurso religioso ao conhecimento científico. As cartas e estatutos dos médicos espíritas fazem constante referência a um discurso biológico e científico, uma característica já bastante documentada no meio kardecista (Lewgoy 2000LEWGOY, B. (2000), Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no espiritismo kardecista.São Paulo: Tese de Doutorado em Antropologia Social, USP. Disponível em: Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/16244 . Acesso em: 18/04/2018.
http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/16...
; Santos Barbosa 2018SANTOS BARBOSA, A. W. (2018), Dádivas de Além-Túmulo: Circulação e Hierarquia no Espiritismo Kardecista. São Carlos: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFSCar., 2019; entre outros), mas que também tem se consolidado em outros movimentos pró-vida, borrando as fronteiras entre diferentes marcos ideológicos. Na Inglaterra, por exemplo, movimentos contrários ao aborto vêm realizando um deslocamento das definições explicitamente religiosas para o estabelecimento de um estatuto ontológico do feto como individualidade própria e separada da mãe (Franklin 1991FRANKLIN, S. (1991), “Fetal fascinations: new dimensions to the medical - scientific construction of fetal personhood”. In: S. Franklin; C. Lury; J. Stacey (orgs.). Off-Centre: feminism and cultural studies. Lancaster: HarperCollins Publishers.). Luna (2007:417-418) nota que esses deslocamentos possibilitam à biologia converter-se em “base para a construção cultural de categorias sociais”, especialmente no que concerne à categoria de pessoa. Em outras palavras, discursos desse tipo empreendem uma luta pela inclusão do feto - este ente cercado de disputas metafísicas e cuja “natureza” pode ser mobilizada de modo a ressaltar diferentes valores - na categoria moderna e ocidental de indivíduo autônomo, definido e viável (Luna 2009). As tecnologias visuais que permitem o acompanhamento do desenvolvimento do feto também estariam inseridas nesse processo de produção da individualidade pré-nascimento, isto é, como pessoa potencial e, portanto, como portadora de direitos.

Outros discursos, por sua vez, trabalham com a ideia de que a presença de material genético no embrião, engendrada pela união de cromossomos dos gametas, já demandaria um estatuto jurídico de indivíduo, o que Luna (2009LUNA, N. (2009), “Embriões de laboratórios e fetos anencefálicos: a constituição de sujeitos de direitos no debate público”. In: L. F. D. Duarte et al. (Orgs.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos . Rio de Janeiro: Garamond .:150) classifica como “ontologia substancialista” ou “compreensão genética da pessoa”. É também particularmente interessante, como nota a autora, que o discurso da medicina e ciência modernas tenham historicamente operado um esvaziamento moral do corpo através da rejeição da categoria “alma” e componentes metafísicos análogos, ao passo que um certo discurso antiaborto contemporâneo vem buscando justamente restaurar o estatuto moral do ser através de atributos biológicos. Uma inversão semelhante pode ser observada no discurso médico contrário ao aborto: “Por um lado, representantes da comunidade científica e médica apoiam-se no discurso religioso e em seus valores, como compaixão pelo sofrimento alheio e bondade divina, para assegurar o direito do uso de embriões para a pesquisa. Por outro, portadores do discurso religioso garantem a base científica de suas afirmações.” (Luna 2007:433).

Essas ambiguidades testemunham pela complexidade retórica envolvida nesse debate, indicando uma porosidade entre dimensões epistemológicas e cosmológicas no que diz respeito às noções de vida, direitos fundamentais e biologia. E essa complexidade transparece também nos discursos políticos e institucionais que buscam configurar-se como legislação. Gomes (2009GOMES, E. de C.; NATIVIDADE, M.; MENEZES, R. A. (2009), “Proposições de leis e valores religiosos: controvérsias no espaço público”. In: L. F. D. Duarte et al. (Orgs.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos . Rio de Janeiro: Garamond .b) faz um interessante apanhado dos discursos parlamentares sobre o aborto, englobando tanto os posicionamentos católico e protestante quanto a crescente influência das igrejas evangélicas em tais controvérsias. Apesar de encontrar muitas convergências (todas as denominações se colocam contra o aborto, por exemplo), há um espaço de controvérsia quanto às particularidades envolvidas no problema. O próprio espiritismo defende uma postura contrária ao aborto nos casos de estupro e de má-formação fetal, mas que o permite quando a gestação oferece risco de vida à mãe. O já citado embate entre as posições institucionais da Igreja Católica e da Universal do Reino de Deus é um outro exemplo dessas controvérsias (Gomes 2009a).

A saúde pública é também argumento frequentemente acionado por ambas as frentes no debate público, como ressaltado por Gomes (2009GOMES, E. de C.; NATIVIDADE, M.; MENEZES, R. A. (2009), “Proposições de leis e valores religiosos: controvérsias no espaço público”. In: L. F. D. Duarte et al. (Orgs.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos . Rio de Janeiro: Garamond .b). Por um lado, os movimentos pró-escolha mobilizam o problema da clandestinidade dos procedimentos abortivos no Brasil, ressaltando o risco que oferecem às mulheres - especialmente àquelas que não podem pagar pelo procedimento numa clínica aparelhada - e trazendo a ideia de que, se o aborto fosse realizado pelo SUS, haveria maior controle e acompanhamento médico e psicológico disponível para a mulher. Na outra ponta, os movimentos pró-vida também definem o aborto como um problema de saúde pública, mas ressaltando que sua realização fere os direitos do feto, isto é, definem o nascituro como objeto de políticas públicas e proteção por parte do Estado. Os regimes discursivos laicos e religiosos não se apresentam, portanto, como lógicas binárias e excludentes, constituindo um espaço de discussão e controvérsia marcado pela porosidade e heterogeneidade de posições. Não é possível estabelecer uma categoria ampla de “discurso religioso” ou “discurso laico” que se balize por marcos retóricos específicos e contrários (Gomes 2009bGOMES, E. de C. (2009b), “A Religião em Discurso: A Retórica Parlamentar Sobre o Aborto”. In: L. F. D. Duarte et al. (Orgs.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos . Rio de Janeiro: Garamond .:60).

[E]mbora uma minoria expressiva de artigos e cartas se posicionaram a partir da religião contrariamente à interrupção da gestação e ao uso de embriões, a argumentação usada na maioria das vezes era de base científica (composição genética; vida a partir da fecundação). […] Religiosos ou não, a tendência é buscar o embasamento da argumentação em dados biológicos ou naturais. (Luna 2009LUNA, N. (2009), “Embriões de laboratórios e fetos anencefálicos: a constituição de sujeitos de direitos no debate público”. In: L. F. D. Duarte et al. (Orgs.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos . Rio de Janeiro: Garamond .:151)

O que toda essa bibliografia aponta, e o que busquei demonstrar no caso específico do espiritismo, é que a formulação de discursos religiosos contrários ao aborto vai muito além de um enquadramento metafísico que afirma o aspecto sagrado da vida. No espiritismo - uma religião cujos elementos doutrinários exercem considerável influência na sociedade brasileira, mesmo entre não espíritas11 11 Comparando os censos de 2000 e 2010, o espiritismo apresentou um crescimento de 65% no período, saltando de 1,3% a 2,02% da população brasileira. Uma pesquisa realizada em 2007 pelo Datafolha apontou que 37% dos brasileiros acreditam em reencarnação e 18% possuem dúvidas sobre sua existência; 44% dos católicos disseram acreditar em reencarnação, número muito maior que o observado entre os evangélicos (26%). Ver http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2007/05/1223861-97-dizem-acreditar-totalmente-na-existencia-de-deus-75-acreditam-no-diabo.shtml. Acesso em: 15/08/2018. -, existe uma preocupação concreta com elementos evolutivos e cármicos que complexificam os entendimentos sobre temas fundamentais como vida, direito secular e bioética. Num quadro mais amplo, é cada vez mais frequente que discursos religiosos se articulem a concepções biológicas e jurídicas para defender suas cosmovisões e posicionamentos morais/políticos. Nesse sentido, a possibilidade de uma discussão pública sobre a temática do aborto, que vem se mostrando um tema polarizador dentro e fora das assembleias legislativas, passa necessariamente pelo reconhecimento e mapeamento dessas complexidades. Alcançar esses valores e sentidos do discurso religioso, para além dos clichês e lugares-comuns presentes na mídia, é uma empreitada a que as ciências sociais vêm se dedicando e que ainda têm muito a oferecer ao debate público. Um tema que movimenta tantas dimensões cosmológicas, epistemológicas e ontológicas não pode ser lido de modo apressado a partir de paradigmas monolíticos como o liberalismo secular ou o conservadorismo religioso.

Considerações Finais

Ao ressaltar como o espiritismo concebe os problemas morais e espirituais do aborto, busquei discutir concretamente o que embasa o posicionamento doutrinário e institucional do kardecismo. Esse posicionamento, mais rigoroso até mesmo que o observado entre algumas denominações protestantes e neopentecostais, contrasta com algumas bandeiras relativamente progressistas que o espiritismo costuma mobilizar em sua identidade político-social, como a liberdade religiosa ou a homossexualidade. Nessa linha, mesmo a reflexão espírita sobre este último tema passa pelas dinâmicas espirituais. Embora não seja possível falar num consenso em torno do assunto, a homossexualidade aparece frequentemente nas narrativas espíritas como o efeito de um espírito encarnar contínuas vezes em corpos masculinos ou femininos e romper de forma brusca com esse padrão. Tratar-se-ia apenas de uma habitualidade desenvolvida entre vidas num certo tipo de corpo, performances e comportamentos. Ademais, tendo em vista que as categorias de sexo e gênero são particularidades da vida física na Terra - não presentes em outros mundos ou mesmo no plano espiritual, dado que espíritos estão além dessas classificações -, o modo como uma pessoa conduz sua vida pessoal no que diz respeito a tais questões não é relevante para sua evolução, desde que essa vida se paute pelos princípios morais estabelecidos pela doutrina. Não há, portanto, um discurso institucional definido de condenação da homossexualidade no espiritismo, embora haja alguma variação quando se observa as posições dos espíritas como indivíduos12 12 Nos últimos anos, vem crescendo no interior do movimento espírita (mesmo nos contextos da Federação Espírita Brasileira) uma reação conservadora sobre o que determinados grupos descrevem como “ideologia de gênero”, um construto discursivo que abarca desde políticas de educação sexual até questões acadêmicas de direitos LGBT. O importante médium Divaldo Pereira Franco chegou a comentar, no 34º Congresso Estadual Espírita de Goiás (2018), que esse seria um “momento de alucinação psicológica da sociedade”, além de usar termos como “imoralidade” e “aberração” que receberam muitos aplausos dos presentes. Nos centros, também é possível identificar um endurecimento discursivo diante de questões desse tipo e a aproximação a um moralismo proselitista marcadamente político, algo que não se observava no espiritismo até certo tempo atrás. O processo de polarização, dessa forma, resvalou no movimento espírita, apesar de também suscitar reações, como um abaixo-assinado de “espíritas progressistas” que se posicionaram contra a fala de Divaldo Franco. A socióloga Célia da Graça Arribas escreveu uma análise sobre essas tensões num curto artigo, disponível em: https://revistaescuta.wordpress.com/2018/03/01/espiritismo-genero-e-politica-uma-equacao-tensa/. Acesso em: 15/05/2018. .

O que torna o aborto uma questão tão específica no discurso espírita é sua imbricação com processos relacionados à construção da pessoa e, por decorrência, do ser espiritual. Tais processos estão alinhados a noções como “reencarnação” e “evolução espiritual” que marcam uma considerável parcela do quadro religioso brasileiro, ativando valores e legitimando ações políticas concretas. Lewgoy (2000LEWGOY, B. (2000), Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no espiritismo kardecista.São Paulo: Tese de Doutorado em Antropologia Social, USP. Disponível em: Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/16244 . Acesso em: 18/04/2018.
http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/16...
:246) propôs uma definição bastante pertinente da noção espírita de pessoa: “um compósito relacional de forças e entidades atraídas por afinidades e por carmas comuns”. O aborto, desse modo, não pode ser nem uma questão de escolha pessoal, dado que mobiliza toda a configuração cármica estabelecida pela Providência Divina nas futuras encarnações dos espíritos envolvidos (com concordância deles próprios), nem um problema de legislação secular, pois concerne a uma ordem normativa superior - as leis divinas que regem o universo. Por outro lado, o aborto diz respeito, ainda na perspectiva espírita, aos discursos e práticas médico-biológicas (isto é, da medicina espírita) e às discussões de ordem moral, uma vez que o kardecismo opera com noções bioéticas que afirmam a existência de vida logo no momento em que há articulação entre espírito e material genético. Esses pontos embasam, ampla ou parcialmente, a visão de um número considerável de atores políticos, dentro e fora das instâncias deliberativas. Novas pesquisas sobre o tema podem, sem dúvida, fornecer material comparativo valioso para as análises antropológicas dos discursos religiosos, tendo em vista que a bibliografia existente tem se centrado principalmente nas denominações católicas, protestantes e evangélicas, além dos movimentos seculares pró-vida.

Referências Bibliográficas

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  • 1
    Diferentes versões deste artigo foram apresentadas no grupo de trabalho “Religião” das Jornadas de Antropologia John Monteiro de 2017, no grupo de trabalho “Religião, política e direitos na contemporaneidade” do 41º Encontro Anual da Anpocs e no grupo de trabalho “Religión y Política en Latinoamérica: Actores, Redes, Instituciones y Flujos” da XII Reunião de Antropologia do Mercosul/RAM. Agradeço a todos os comentários e sugestões recebidos nessas instâncias de debate. Agradeço também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP - Processo 2015/22979-4), cujo financiamento foi indispensável para a realização da pesquisa da qual este trabalho é um fragmento. Por fim, agradeço à(ao) parecerista anônima(o) pelos comentários que possibilitaram uma melhor configuração do texto.
  • 2
    Trata-se de uma parte do material que serviu de base para a escrita de minha dissertação de mestrado sobre circulação e hierarquia no espiritismo kardecista (Santos Barbosa 2018).
  • 3
    Vale ressaltar a coletânea, organizada por Duarte et al. (2009), cuja preocupação está justamente em identificar as formas pelas quais os valores religiosos se fazem presente nos discursos parlamentares e projetos legislativos acerca de “temas morais controversos”, como aborto, eutanásia e direitos LGBT.
  • 4
    Esse tipo de posicionamento está relacionado a uma economia de boas ações e transgressões que serve de base à noção espírita de carma. Um ato sério e condenável, como o aborto, é visto como uma dívida cármica que, embora espiritualmente comprometedora, pode ser aliviada através do crescimento e entendimento espiritual, além de ações concretas de caridade ao próximo. Uma descrição mais ampla desses princípios pode ser encontrada em Santos Barbosa (2018). Esse modelo religioso também dá margem para a radicalização de mulheres que passaram pela experiência do aborto e adotam uma rígida postura contrária à sua realização.
  • 5
    Os nomes próprios foram trocados durante a escrita do texto. Todas as falas citadas no texto foram autorizadas para uso acadêmico.
  • 6
    A categoria de “filho-problema” é um exemplo utilizado pelos espíritas para apontar uma relação cármica que transcende a encarnação atual. Casais conflituosos, familiares problemáticos, mazelas e sofrimentos que caiam sobre um grupo familiar, entre outros fatores, são entendidos como produtos de relações que envolvem o pagamento de dívidas ou provações derivados de transgressões passadas. Da mesma forma, amigos muito próximos, casais harmoniosos e irmãos extremamente unidos são exemplos de espíritos que possuem uma relação de afinidade que atravessa a encarnação atual em direção às vidas passadas.
  • 7
    Lewgoy (2004) enfatizou o enraizamento no espiritismo de um quadro moral centrado em ideais de civismo, hierarquia, obediência e subordinação à ordem, algo que o autor equacionou à figura do Caxias, um dos polos nocionais suscitados pelas análises de Roberto DaMatta sobre a sociedade brasileira. O espiritismo opera com uma amálgama bastante particular entre o individualismo moderno e o holismo hierárquico, posicionando o indivíduo espiritual como núcleo de valor, mas sempre inscrito numa ordem superior que o transcende e engloba, seja a nação, seja a Providência Divina.
  • 8
    Luna (2009), pesquisando sobre argumentos e regimes discursivos dos movimentos pró e antiaborto, distingue entre uma “ontologia gradualista” - que toma o processo de formação do feto como permeado de fases e que subordina a atribuição do estatuto de pessoa a algum desenvolvimento particular (a presença de sistema nervoso, por exemplo) - e uma “ontologia substancialista” - que se baseia num critério biológico (genético) “de presença da pessoa humana desde a concepção” (Luna 2009:88).
  • 9
    Estes documentos podem ser acessados na íntegra em http://www.ameees.org.br/p06.asp#CA1AMEEES. “Bioética Médico-Espírita”. Associação Médico-Espírita do Estado do Espírito Santo (AMEEES). Disponível em: Disponível em: http://www.ameees.org.br/p06.asp#CA1 . Acesso em: 20/08/2017.
    http://www.ameees.org.br/p06.asp#CA1...
    . Acesso em: 20/08/2017.
  • 10
    Para uma discussão sobre a relação entre discursos religiosos e científicos no espiritismo, enfocando a dimensão da cura espiritual, ver Santos Barbosa (2019).
  • 11
    Comparando os censos de 2000 e 2010, o espiritismo apresentou um crescimento de 65% no período, saltando de 1,3% a 2,02% da população brasileira. Uma pesquisa realizada em 2007 pelo Datafolha apontou que 37% dos brasileiros acreditam em reencarnação e 18% possuem dúvidas sobre sua existência; 44% dos católicos disseram acreditar em reencarnação, número muito maior que o observado entre os evangélicos (26%). Ver http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2007/05/1223861-97-dizem-acreditar-totalmente-na-existencia-de-deus-75-acreditam-no-diabo.shtmlDATAFOLHA. (2007), “97% dizem acreditar totalmente na existência de deus; 75% acreditam no diabo”. Datafolha, Opinião Pública, 5 maio 2007. Disponível em: Disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2007/05/1223861-97-dizem-acreditar-totalmente-na-existencia-de-deus-75-acreditam-no-diabo.shtml . Acesso em: 15/08/2018.
    http://datafolha.folha.uol.com.br/opinia...
    . Acesso em: 15/08/2018.
  • 12
    Nos últimos anos, vem crescendo no interior do movimento espírita (mesmo nos contextos da Federação Espírita Brasileira) uma reação conservadora sobre o que determinados grupos descrevem como “ideologia de gênero”, um construto discursivo que abarca desde políticas de educação sexual até questões acadêmicas de direitos LGBT. O importante médium Divaldo Pereira Franco chegou a comentar, no 34º Congresso Estadual Espírita de Goiás (2018), que esse seria um “momento de alucinação psicológica da sociedade”, além de usar termos como “imoralidade” e “aberração” que receberam muitos aplausos dos presentes. Nos centros, também é possível identificar um endurecimento discursivo diante de questões desse tipo e a aproximação a um moralismo proselitista marcadamente político, algo que não se observava no espiritismo até certo tempo atrás. O processo de polarização, dessa forma, resvalou no movimento espírita, apesar de também suscitar reações, como um abaixo-assinado de “espíritas progressistas” que se posicionaram contra a fala de Divaldo Franco. A socióloga Célia da Graça Arribas escreveu uma análise sobre essas tensões num curto artigo, disponível em: https://revistaescuta.wordpress.com/2018/03/01/espiritismo-genero-e-politica-uma-equacao-tensa/ARRIBAS, Célia da Graça. (2018), “Espiritismo, gênero e política: uma equação tensa”. Revista Escuta, 1º mar. 2018. Disponível em: Disponível em: https://revistaescuta.wordpress.com/2018/03/01/espiritismo-genero-e-politica-uma-equacao-tensa/ . Acesso em: 15/05/2018.
    https://revistaescuta.wordpress.com/2018...
    . Acesso em: 15/05/2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2018
  • Aceito
    14 Nov 2019
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