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O ESTUDO DA RELIGIÃO (E DE OUTRAS COISAS) SOB A PERSPECTIVA DE BIRGIT MEYER

GIUMBELLI, Emerson; RICKLI, João; TONIOL, Rodrigo. (Orgs.). Como as coisas importam: uma abordagem material da religião - textos de Birgit Meyer . Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2019, 334pp.

Já há alguns anos, a antropóloga Birgit Meyer, de nacionalidade alemã e formação holandesa, tem sido considerada uma referência para a antropologia da religião e para os religious studies por seus trabalhos que conectam discussões entre religião, mídia e cultura material. No Brasil, seu trabalho ainda é relativamente desconhecido, embora obtenha um grau crescente de reconhecimento em alguns círculos antropológicos nacionais. O livro Como as coisas importamGIUMBELLI, Emerson; RICKLI, João; TONIOL, Rodrigo. (Orgs.) (2019), Como as coisas importam: uma abordagem moral da religião - textos de Birgit Meyer. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 244pp., organizado por Emerson Giumbelli (UFRGS), João Rickli (UFPR) e Rodrigo Toniol (UNICAMP), reúne seis de seus textos seminais, inéditos em língua portuguesa. Até aqui, constatava-se um único trabalho traduzido da autora, publicado pela revista Campos em 20151 1 MEYER, Birgit. (2015), “Mediação e imediatismo: formas sensoriais, ideologias semióticas e a questão do meio”. Campos, vol. 16, nº 2: 145-164. .

Entre seus principais interlocutores no Brasil, destacam-se Giumbelli, Rickli e Toniol, com os núcleos de pesquisa aos quais estão associados, além de Carly Machado (UFRRJ), que escreve o texto das “orelhas” do livro. Os três organizadores comentam em uma extensa introdução as principais contribuições de Meyer para o que ela apresenta como uma abordagem material da religião. Já nesta parte inicial do livro fica evidente a importância da trajetória de pesquisa da autora, crucial para as suas formulações teóricas. Meyer tem realizado um longo trabalho de campo em Gana, na África Ocidental, onde pesquisa, desde o início dos anos 1990, o pentecostalismo local e suas dinâmicas, com foco na produção audiovisual pentecostal de massa.

“De comunidades imaginadas a formações estéticas: mediações religiosas, formas sensoriais e estilos de vínculo” abre a coletânea de textos de Meyer. Neste primeiro capítulo, são apresentados dois debates centrais: o primeiro como uma proposta de aprimoramento do conceito de “comunidade imaginada”, de Benedict Anderson, preservando sua noção de que a produção de laços sociais e de comunidades passa por um estilo pelo qual elas são imaginadas, e ampliando a ideia de “comunidade” para “formação”; e o segundo resgatando a acepção aristotélica de aisthesis enquanto modo de engajamento sensorial total com o mundo, numa crítica à concepção romântica de estética ligada à ideia do “belo”. A convergência desses dois diálogos resulta no desenvolvimento do conceito de formação estética, que captura o “impacto formativo de uma estética compartilhada através da qual sujeitos são forjados pela modulação de seus sentidos, pela indução de experiências, pela moldagem de seus corpos e pela produção de sentidos” (:54).

Este processo pelo qual as formações estéticas se constituem enquanto moduladores da experiência é operado nas mediações que se realizam pelas coisas e com as coisas (objetos, materiais, instrumentos, etc.) que fazem parte da estética, no sentido mais amplo de aisthesis. Na medida em que as coisas mobilizam sensações individuais e coletivas no contexto das mediações que são operadas, a religião pode ser vista como uma prática de mediação, sendo as mídias - no sentido próprio de “meios” - intrínsecas a ela. Para compreender os modos pelos quais essas mediações ocorrem, Meyer cunhou outro conceito, o de formas sensoriais, referido a “modos relativamente fixos, autorizados, de invocar e organizar o acesso ao transcendental, criando e mantendo ligações entre pessoas no contexto de estruturas religiosas de poder específicas” (:64).

No segundo capítulo, “Religião material: como as coisas importam”, há uma problematização da relação entre religião e coisas, denotando o antagonismo epistemológico que marca o estudo moderno da religião por um viés que privilegia as crenças em detrimento das formas materiais. Meyer insiste em um esforço de desconstrução da visão “mentalista” que joga a religião para um plano metafísico, imaterial, interior e antimaterialista e que revela uma postura no estudo da religião que é devedora de um certo “legado protestante”. Esse legado, melhor representado pelas lentes weberianas da racionalização e da secularização do mundo, atribuiria às “religiões de salvação” - o protestantismo sendo seu expoente par excellence - uma posição de valorização dos significados e de desvalorização das formas e das coisas. No pensamento de Weber, assim como no de E. B. Tylor, para o qual haveria uma evolução das religiões “animadas” para o pensamento racional e a ciência, estaria subjacente “uma inclinação tipicamente protestante, que se desenvolveu a partir do século XVIII, a considerar a matéria como secundária e a significação como primária” (:99).

O capítulo de maior densidade etnográfica é o terceiro, intitulado “‘Há um espírito naquela imagem’: imagens de Jesus produzidas em massa e outras formas de animação protestante-pentecostal em Gana”. O texto em questão traz elementos que surgem na pesquisa de Birgit Meyer sobre o pentecostalismo em Gana, especialmente quanto à produção e à circulação em massa de imagens religiosas e aos regimes de sentidos que as envolvem naquele país. É destacado o potencial perturbador e de encantamento que algumas dessas imagens possuem, visibilizando o seu poder dentro de configurações religiosas e sensoriais específicas. Não apenas imagens produzidas intencionalmente com o objetivo de representar o que seja o domínio do “mal”, como também as próprias imagens de Jesus podem ser capturadas por forças demoníacas, materializando essas forças e tendo amplos efeitos de rejeição entre os pentecostais.

“Mediação e a gênesis da presença: rumo a uma abordagem material da religião” é uma versão da conferência inaugural de Birgit Meyer na cátedra de Estudos Religiosos da Universidade de Utrecht, em 2012. Neste capítulo, são retomadas algumas de suas formulações mais basilares, tendo como pano de fundo a proposição de um diálogo transdisciplinar com diferentes campos de estudo da religião. Meyer, antropóloga de formação, assumia naquele momento a condição de professora vinculada à área de religious studies em Utrecht, o que é enfatizado logo no início do texto. Ao constatar uma reconfiguração quanto aos estudos da religião na Holanda, Meyer observa o desafio do desenvolvimento de uma visão programática para o estudo futuro da religião. Ao longo do capítulo, ela reafirma seu compromisso com a abordagem material que é esboçada em outros textos, aprofundando suas críticas ao “legado protestante” e à ideia do “fetiche”2 2 É amplo o interesse de Meyer em pensar o encontro histórico entre a “religião tradicional” local e o cristianismo, introduzido em Gana primeiramente pela colonização europeia. No contexto desse encontro, o discurso do “fetichismo” desde cedo afirmou posições iconoclastas. A autora toma de empréstimo a ideia latouriana de “feitiche” para visibilizar a “fabricação” que há em torno dos modos religiosos de “fazer crença”. que acompanham grande parte dos estudos sobre religião.

No quinto capítulo, “Imagens do invisível: cultura visual e estudos da religião”, deparamo-nos novamente com o material etnográfico da pesquisa de Meyer em Gana, desta vez em diálogo próximo com o campo de estudos da cultura visual. Autores como Hans Belting, Hans Kippenberg e David Morgan são evocados para um debate acerca da capacidade que a imagem tem de tornar presente o que está invisível e ausente, através de atos performativos. Essa potência das mídias imagéticas é destacada por Meyer, que tenta avançar em direção a um estudo detalhado da mediação religiosa. Mencione-se também seu resgate das noções de “iconologia”, em Aby Warburg, e de “formas simbólicas”, em Ernst Cassirer, que influenciaram a “antropologia da imagem” desenvolvida por Hans Belting. Esta última perspectiva está “fortemente alinhada” (:221) às ideias sobre mediação e formas sensoriais com as quais Meyer trabalha.

Finalmente, no sexto capítulo, cujo título é “Como capturar o ‘uau!’: a noção de encanto de R. R. Marett e o estudo da religião”, a autora discute basicamente três pontos: a atualidade das contribuições de Robert Ranulph Marett, autor um tanto esquecido da antropologia britânica do início do século XX, retomando especialmente seu conceito de “encanto”; as diferenças entre as definições de “encanto” de Marett e as de autores da fenomenologia da religião, como Rudolf Otto; e o interesse de Birgit Meyer em pensar o “excedente sagrado” que é causado pelas formas sensoriais, no contexto da produção religiosa do “encanto” e dos efeitos persuasivos da estética.

O livro termina com uma seção de entrevista, em que a antropóloga destaca as linhas de transformação e continuidade que diferentes momentos de seu trabalho de pesquisa têm traçado.

As contribuições de Meyer aos diferentes campos disciplinares que se ocupam dos estudos da religião são ainda mais amplas e potentes quando se observa duas das principais vantagens da abordagem material por ela proposta: a) a possibilidade de “transcendência” de suas elaborações para além do próprio campo da religião; e b) a circularidade e a complementaridade entre as suas dimensões teórica, metodológica e epistemológica. Ambos os aspectos podem ser encontrados reunidos na ênfase atribuída à produção de sujeitos e coletividades por meio de regimes estético-sensoriais. É a amplitude dessa concepção de estética - uma estética política, diríamos - que nos faz ver o poder materializado em quaisquer experiências de vida, e não somente nas religiosas. Pois, por onde quer que se produzam sentidos e estética, haverá política material.

Do ponto de vista metodológico, uma abordagem material pressupõe um olhar inclinado, antes de mais nada, para os materiais e as suas mediações, ou à política material da estética política. Todavia, isso traz um risco importante a ser assinalado, e que pode ser um antídoto à pretensão de que essa perspectiva seja a panaceia antropológica universal: os materiais não constituem um fim em si mesmo; deve-se levar em conta as maneiras de suas mediações, as consequências de sua política e os seus imbricamentos com outros planos, a exemplo daquele dos elementos simbólicos e discursivos.

Birgit Meyer não lança, em verdade, um olhar material - quanto menos materialista, do que se defende - sobre a religião, mas afirma um ponto de partida fundamentado no pressuposto da religião como material. A religião, como toda experiência estética no mundo, só pode ser mediada por coisas. Torna-se difícil, senão impossível, falar de religião sem aludir à sua realização no mundo, acompanhada que é pela produção de políticas estético-sensoriais. Isto não é tão evidente quanto possa parecer após a leitura do livro. Mas, se a antropóloga estiver correta, “com sorte chegará um momento em que falar de religião material não será mais nem necessário” (:282). A religião (e outras coisas) terão um estatuto inextricavelmente material.

  • GIUMBELLI, Emerson; RICKLI, João; TONIOL, Rodrigo. (Orgs.) (2019), Como as coisas importam: uma abordagem moral da religião - textos de Birgit Meyer Porto Alegre: Editora da UFRGS, 244pp.
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    MEYER, Birgit. (2015), “Mediação e imediatismo: formas sensoriais, ideologias semióticas e a questão do meio”. Campos, vol. 16, nº 2: 145-164.
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    É amplo o interesse de Meyer em pensar o encontro histórico entre a “religião tradicional” local e o cristianismo, introduzido em Gana primeiramente pela colonização europeia. No contexto desse encontro, o discurso do “fetichismo” desde cedo afirmou posições iconoclastas. A autora toma de empréstimo a ideia latouriana de “feitiche” para visibilizar a “fabricação” que há em torno dos modos religiosos de “fazer crença”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019
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