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A presença virtual do sagrado em tempos pandêmicos: a virtualidade e a rua na construção do espaço público de Pelotas/RS

The virtual presence of the sacred in pandemic times: virtuality and the street in the construction of the public space of Pelotas / RS

Resumos

Resumo: a partir da emergência da pandemia provocada pelo novo coronavírus em 2020, observou-se um significativo uso das ferramentas disponíveis na internet para atividades que foram interrompidas de serem presenciais. Diante desse cenário, o campo religioso apresentou adequações em relação aos encontros presenciais e coletivos por meio do espaço virtual. Para refletir sobre religião e pandemia, propomos neste artigo apresentar alguns resultados encontrados por meio de observação netnográfica, enfatizando no estudo a comparação acerca da atuação entre dois líderes de matriz religiosas distintas, cujos protagonismos partem de seus envolvimentos na organização de marchas religiosas realizadas na cidade de Pelotas (RS). O deslocamento das ruas para o virtual será a chave para compreender sobre o agir religioso e suas tensões no espaço público.

Palavras-chave:
ciberespaço; pandemia, sagrado, religiões afro-brasileiras, pentecostalismo


Abstract: from the pandemic emergence caused by the new coronavirus in 20202, it was observed a significant use of the tools available in the internet for activities that were interrupted to be in person. Faced of this scenario, the religious field presented adjustments in relation to face-to-face and collective meetings through the virtual space. To reflect on the religion and the pandemic, we propose in this paper to present some results found through netnographic observation, emphasizing in the comparative study between two leaders from different religious matrix, whose protagonisms Stem from their involvement in the organization of religious marches hel in the city of Pelotas (RS). The sihft from the streets to the virtual will be key to understanding religious action and its tensions in public space.

Keywords:
cyberspace; pandemic; sacred; afro-brazilian religious; pentecostalism


Os tempos de pandemia marcam diversas restrições em relação ao contexto brasileiro a partir do início do ano de 2020, sobretudo, no que se refere à presença e aos usos do espaço público como medidas de controle da disseminação do novo coronavírus, gerando uma série de adequações e alterações nos modos de vida urbano. Para o enfrentamento da pandemia, gestores públicos tomaram como principal providência o distanciamento e/ou isolamento social, o que acarretou fechamento de locais com atividades consideradas não essenciais no momento. Tal medida, a partir do primeiro decreto presidencial1 1 Decreto nº 10.292, de 25 de março de 2020. Diário Oficial Da União. publicado em: 26/3/2020. A partir das críticas provocadas por alguns líderes neopentecostais, ainda no mesmo mês o presidente divulgou um novo decreto (nº 10.292) que incluiu no inciso “XXXIX”, a atuação religiosa de qualquer natureza como essencial desde que obedecidas as determinações do Ministério da Saúde. No entanto, no dia 26 de março, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu o decreto considerando a não essencialidade das atividades religiosas nesse contexto. Partindo do mesmo entendimento e justificativa, outros estados e cidades adotaram o fechamento de locais de culto nas suas estratégias em reduzir a contaminação do vírus. que regulamentava a lei nº 13.979 relativa aos serviços públicos e atividades essenciais, que se incluiu as atividades religiosas como não essenciais, desencadeou uma série de controvérsias no debate público.

Segundo Almeida e Guerreiro (2020ALMEIDA, Ronaldo; GUERREIRO, Clayton. (2020), “Templos em tempo de pandemia”. Boletim Ciências sociais e o coronavírus, nº 19: 1-3. Disponível em: https://cienciapolitica.org.br/noticias/2020/04/boletim-19-templos-tempo-pandemia.
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), na cena pública, alguns pastores evangélicos foram os principais representantes religiosos que solicitaram o não fechamento dos templos, argumentando o livre exercício religioso contemplado pela Constituição Federal e o “direito ao rito religioso coletivo em tempos de angústia” (Machado 2020MACHADO, Carly. (2020), “Rebanho de quem? Sobre religião, contágio e ideias que viralizam em tempos de pandemia”. Dilemas: revista de estudos de conflitos e controle social Reflexões na pandemia; Rio de Janeiro: 1-14.:4). Enquanto outros atores pentecostais e neopentecostais aderiram à interrupção de suas atividades religiosas no interior dos espaços físicos, desencadeando a formulação de estratégias para aproximar os fiéis do universo sagrado, como o uso intensivo das plataformas disponíveis na internet.

Outros segmentos religiosos também se manifestaram publicamente sobre o contexto pandêmico, determinando a interrupção de suas atividades religiosas. De acordo com Almeida e Guerreiro (2020ALMEIDA, Ronaldo; GUERREIRO, Clayton. (2020), “Templos em tempo de pandemia”. Boletim Ciências sociais e o coronavírus, nº 19: 1-3. Disponível em: https://cienciapolitica.org.br/noticias/2020/04/boletim-19-templos-tempo-pandemia.
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), foram divulgadas várias notícias nas mídias de que os terreiros estavam interrompendo seus encontros presenciais, assim como outras denominações religiosas aderiram ao isolamento social:

As religiões de matriz afro-brasileira não têm um centro de comando unificado, mas, por notícias vindas de vários lugares, os terreiros têm aderido ao isolamento social. A Federação Espírita Brasileira orientou os centros espíritas a seguirem as diretrizes dos órgãos de saúde, e salientou que as atividades continuam, embora virtualmente. Sinagogas judaicas e mesquitas islâmicas, igualmente, orientam suas respectivas comunidades a manter o isolamento sanitário. Lideranças políticas em Israel e na Palestina iniciaram um acordo para a suspensão temporária de conflitos históricos. Vale morrer pela guerra política-religiosa, mas não por um vírus recém-nascido. A posição da Igreja Católica foi dada pelo Papa Francisco. A recomendação é para ficar em casa, enquanto os templos ficam abertos para orações sem aglomeração. (Almeida e Guerreiro 2020ALMEIDA, Ronaldo; GUERREIRO, Clayton. (2020), “Templos em tempo de pandemia”. Boletim Ciências sociais e o coronavírus, nº 19: 1-3. Disponível em: https://cienciapolitica.org.br/noticias/2020/04/boletim-19-templos-tempo-pandemia.
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:1)

Menezes e Santos (2020MENEZES, Renata de Castro; SANTOS, Lívia Reis. (2020), “Religião e Covid-19: notas sobre Cristianismos”. Boletim Ciências Sociais e coronavírus, nº 62: 4-8.) enfatizam que esse movimento de existir enquanto religioso fora do espaço físico já estava ocorrendo em relação aos cristãos, os quais vinham se utilizando dos recursos da internet para vivenciar o cristianismo e que se intensificou durante a pandemia. Desse modo, é preciso compreender que algumas crenças estabelecem como primordial a sua relação com o sagrado de forma individual, o que possibilita uma maior articulação com as ferramentas disponíveis na internet. Segundo Giumbelli, há uma “concepção atomizante” que está em sintonia com a noção mais abrangente sobre religião da qual se compreende que “a crença vem primeiro, uma relação pessoal entre o fiel e alguma força divina, sendo os rituais coletivos mera consequência disso” (Giumbelli 2020:4GIUMBELLI, Emerson. (2020), “Religiões em tempo de pandemia”. Boletim Ciências sociais e o coronavírus , nº 33: 3-7.).

No entanto, para outras crenças, como no caso das religiões de matrizes africanas, há uma centralidade na dimensão coletiva para se relacionar com o universo transcendental. Assim, se as religiões afro-brasileiras realizam celebrações e rituais coletivos como forma de manutenção do sagrado e se outras religiões mais individualistas2 2 Na clássica obra, Homo Hierarchicus, de Louis Dumont (1992) a noção de “individualismo” advindo através de um conjunto de valores que são estabelecidos na modernidade ocidental em que passa a considerar o indivíduo “elementar”, um sujeito único dotado de razão, começa a ser questionada por esse autor ao comparar o “nosso” sistema social moderno baseado na igualdade e liberdade em relação ao sistema hierárquico de castas na Índia (“outro”). A partir dessa comparação, Dumont confronta a lógica moderna de sociedade onde reside a “ideologia individualista”, que se opõe a “ideologia holista” presente na sociedade indiana. Enquanto no holismo se pressupõe uma lógica de sociedade relacional que não abre espaço para o surgimento do indivíduo, no individualismo, ao contrário, emerge esse indivíduo constituído por autonomia e liberdade. Trazendo para a reflexão o sistema religioso hinduísta, o autor mostra que o hinduísta renuncia o mundo e não a si mesmo, para então consagrar a sua liberdade. Enquanto na sociedade moderna a religião passa a fazer parte das escolhas individuais, caracterizando a independência desse sujeito moderno. se apresentaram no debate público preocupadas com seus encontros presenciais e coletivos, a pergunta que deve ser feita é como os vínculos com seus adeptos/fiéis se reconfigura no cenário pandêmico.

Para refletir sobre a adequação do universo religioso provocado pelo atual cenário instaurado pela pandemia, partimos de alguns resultados encontrados na pesquisa que está sendo desenvolvida desde 2017 sobre religião e espaço público a partir de duas marchas religiosas de matrizes distintas que ocorrem nas ruas da cidade de Pelotas (RS) - as Marchas contra Intolerância Religiosa e a Marcha para Jesus. Devido às restrições relacionadas às atividades religiosas durante a crise sanitária, observou-se um movimento intenso da midiatização da religião, incluindo-se o uso do espaço virtual por parte dos líderes religiosos, organizadores das marchas em questão, como modo de engendrar estratégias para manter os vínculos com seus coletivos.

Nesse sentido, o presente artigo aborda como principal reflexão para o debate sobre religião e pandemia a expressividade virtual das religiosidades, propondo-se por meio de análise comparativa referente à atuação desses dois atores religiosos nas suas respectivas redes sociais, a fim de trazer elementos que sejam capazes de dialogar com a conjuntura em que se encontra a presença religiosa no espaço público pelotense e brasileiro.

As marchas religiosas que tomam as ruas de Pelotas (RS)

As marchas religiosas tratadas pelo estudo são organizadas e desenvolvidas por dois grupos religiosos de matrizes distintas: sendo uma pertencente ao universo pentecostal, a Marcha para Jesus; e a outra, referente às reivindicações das comunidades de tradição de terreiro, as Marchas contra Intolerância Religiosa. A pesquisa parte da encenação pública de ambos os segmentos religiosos, visto que a partir das duas últimas décadas, os atores aparecem em situações marcadas por embates, conflitos e disputas (Silva 2007SILVA, Vagner Gonçalves. (2007), Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo . ; Oro 2012ORO, Ari Pedro; et al. (2012), A religião no espaço público: atores e objetos. São Paulo: Terceiro Nome .; Giumbelli 2014GIUMBELLI, Emerson. (2014), Símbolos religiosos em controvérsias. São Paulo: Terceiro Nome.).

A presença desses dois grupos religiosos no espaço público como antagonistas desencadeou-se em razão da promulgação intensiva de líderes neopentecostais, sobretudo partindo das publicações de livros de autoria do bispo Edir Macedo (Iurd), em associar a produção de malefícios ao que corresponde ao universo afro-religioso. Segundo Silva (2007SILVA, Vagner Gonçalves. (2007), Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo . ), isso ocorreu em decorrência de vários aspectos, dentre eles:

A disputa por adeptos de uma mesma origem socioeconômica, o tipo de cruzada proselitista adotada pelas igrejas neopentecostais - com grandes investimentos nos meios de comunicação de massa e o consequente crescimento dessas denominações, que arregimentam um número cada vez maior de “soldados de Jesus” - e, do ponto de vista do sistema simbólico, o papel que as entidades afro-brasileiras e suas práticas desempenham na estrutura ritual dessas igrejas como afirmação de uma cosmologia maniqueísta. (Silva 2007SILVA, Vagner Gonçalves. (2007), Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo . :9-10)

Nesse sentido, promovendo uma verdadeira “guerra santa” contra o povo de terreiro, uma das estratégias utilizadas pela comunidade de tradição de terreiro foi se articular a outros coletivos como movimento negro, organizações não governamentais, agentes do poder público, para assim criar frentes de defesa em relação à liberdade religiosa. Outra estratégia da comunidade de terreiro é se articular a movimentos ecumênicos podendo encontrar “a solidariedade de igrejas evangélicas que discordam e condenam os ataques realizados pelas denominações neopentecostais mais intolerantes” (Silva 2007SILVA, Vagner Gonçalves. (2007), Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo . :23). Assim como outras igrejas evangélicas se posicionam publicamente apoiadoras de outras instituições religiosas, no contexto do debate público provocado pelas restrições nas atividades religiosas durante a pandemia houve argumentações antagônicas de representantes pentecostais e neopentecostais, o que aponta para a existência de divergências no interior do campo evangélico. Apesar das mídias e do senso comum tratarem os “evangélicos” como um grupo religioso uníssono “com características comuns e comportamentos coesos, os estudos antropológicos das últimas décadas tiveram como marca a ênfase na diversidade no interior desse grupo” (Sant’ana 2017SANT’ANA, Raquel. (2017), A nação cujo Deus é o Senhor: a imaginação de uma coletividade “evangélica” a partir da Marcha para Jesus. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Antropologia, UFRJ.:41).

Esses esforços resultaram em uma vasta bibliografia organizada em recortes denominacionais, territoriais ou de grandes escopos teológicos (pentecostais, neopentecostais, históricos de missão) que permitiram a consolidação de uma percepção de que os estudos sobre os evangélicos deveriam ser especialmente atentos à sua heterogeneidade. (Sant’ana 2017SANT’ANA, Raquel. (2017), A nação cujo Deus é o Senhor: a imaginação de uma coletividade “evangélica” a partir da Marcha para Jesus. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Antropologia, UFRJ.:41)

Esse apoio ecumênico também se encontra em outras táticas de resistência das comunidades de povo de terreiro como na organização de manifestações no espaço público que se expressam, muitas vezes, por meio de caminhadas ou marchas. Em 2009, ocorreu no Rio Grande do Sul, a primeira manifestação pública nesse formato na cidade de Porto Alegre que está atuante até os dias de hoje, a Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa. Sendo esta, organizada por várias entidades como a Associação dos Povos de Terreiros3 3 Associação dos Povos de Terreiros é uma associação que vem com objetivo de formar os povos de terreiro para realizar políticas públicas e para criar diálogos com o Estado. e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic)4 4 Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil - (Conic) é uma associação brasileira de igrejas cristãs reunidas em busca do serviço a Deus, à confissão de fé comum e ao compromisso missionário, visando aumentar a comunhão cristã e o testemunho do Evangelho no Brasil. As igrejas-membro assumem o compromisso ecumênico de testemunhar a unidade em Cristo, respeitando a identidade de cada Igreja particular. .

Em Pelotas, desde 2014 são realizados atos públicos contra a discriminação religiosa de matriz africana que se configuram por caminhadas pelas ruas da cidade organizadas por entidades federativas, representantes do poder legislativo e por adeptos das religiões afro-brasileiras. Denominamos os eventos como Marchas contra Intolerância Religiosa devido a centralidade da manifestação pública estar prevista no trajeto da caminhada e por cada evento se constituir com base em determinada situação configurada através de ações discriminatórias, intolerantes, que levam a comunidade do povo de terreiro a expressar suas reivindicações publicamente.

Cabe ressaltar que historicamente Pelotas é uma cidade que sofreu forte impacto e influência da cultura de matriz africana na sua constituição em razão da intensa produção de charque que enriqueceu a região e teve como a principal mão de obra as de africanos(as) e afrodescendentes escravizados.5 5 Como apontam alguns estudos, desde 1833 até 1859, havia na região da cidade de Pelotas uma enorme concentração de escravos, o que levou a constatar a existência da influência cultural africana desde o início do século XIX (Bastide 1974; Corrêa 2006). Na pesquisa sobre o batuque e o carnaval como espaços de resistência simbólica à escravidão em Pelotas, o historiador Marco Antônio de Mello (1994MELLO, Marco Antonio Lírio de. (1994), Reviras, Batuques e Carnavais: a cultura de resistência dos escravos em Pelotas. Pelotas: Editora Universidade UFPel.) aborda essa presença religiosa de matriz africana a partir das últimas décadas do século XIX (décadas de 1970 e 1980) analisando documentos, sobretudo, material jornalístico do referido período.

Conforme se encontrou nesses documentos, o batuque foi associado pela imprensa local e pelos aparatos policiais como “feitiçaria” e “magia” por ser considerada exótica, misteriosa e primitiva. Isso expressava o medo por parte da sociedade branca em relação ao culto desconhecido, o qual era atribuído como sendo do domínio do negro escravizado e liberto. Outro medo da população livre, atrelado ao culto de matriz africana, era que as “casas de feitiço” possibilitavam a reunião de negros livres ou escravizados, os quais por meio desse encontro religioso poderiam articular manifestações de revoltas contra a sociedade escravocrata.

Assim como essas narrativas que marcam a forte presença negra nos modos de habitar e de construção de saberes constituidores da história de Pelotas, as quais foram invisibilizadas no processo oficial da historiografia da cidade, outros grupos invisibilizados também foram apagados da memória na produção da cidade para descrever e reconhecer suas práticas e formas de sociabilidades nesse processo em “nomear seus lugares de pertencimento” (Neto et al. 2019NETO, Francisco Pereira; RIETH, Flávia; LOUISE, Alfonso. (2019), “Pelotas-RS pelas suas margens: a patrimonialização como expressão das múltiplas formas de habitar a cidade”. Barbarói, Santa Cruz do Sul, Edição Especial nº 54: 63-75.:72).6 6 Nesse estudo elaborado pelo Grupo de Estudos Etnográficos Urbanos (GEEUR) da UFPEL, apresentou-se diferentes narrativas de grupos que foram invisibilizados no processo de construção da historicidade oficial sobre a cidade de Pelotas (RS). Para mostrar a existência de disputas sobre os modos de habitar a cidade e redefinições sobre o conceito de patrimônio, o texto expõe dois casos de pesquisas etnográficas que envolvem processos de patrimonialização relacionados a duas comunidades negras, a saber: o registro da tradição doceira de Pelotas e a busca do tombamento do território “Passo dos Negros” para ser incluído no Conjunto Histórico de Pelotas. Sem querer esgotar os importantes dados desenvolvidos no referido trabalho, chamamos a atenção para o processo de reconhecimento dos doces como patrimônio imaterial, respaldado pelo Iphan, em que narrativas sobre a presença dos doces nos terreiros foram relevantes para mostrar o entrelaçamento entre a cosmologia de matriz africana com essa tradição.

Desse modo é que compreendemos “o viver na/da cidade” atravessado por “diferentes historicidades” que a transformam, por isso apreendemos a cidade como “heterogênea porque nela coexistem diversas temporalidades inscritas na sua materialidade, bem como por abarcar diferentes visões de mundo e de valores das pessoas que a habitam” (Neto et al. 2019NETO, Francisco Pereira; RIETH, Flávia; LOUISE, Alfonso. (2019), “Pelotas-RS pelas suas margens: a patrimonialização como expressão das múltiplas formas de habitar a cidade”. Barbarói, Santa Cruz do Sul, Edição Especial nº 54: 63-75.:66). Partimos do pressuposto de que o espaço urbano então é dinâmico e que se produz por meio dos seus habitantes que fazem diferentes usos e possuem várias percepções sobre o ambiente urbano. Nesse sentido, no processo de tecer a cidade é importante incitar narrativas daqueles que experenciam esse lugar, transitam pelos espaços para escreverem um “texto urbano” (De Certeau 2008DE CERTEAU, Michel. (2008), A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes.).

Marchas contra intolerância religiosa em Pelotas

Ao qualificarmos as narrativas das comunidades negras na constituição da cidade de Pelotas, percebemos seu impacto na formação de referenciais culturais e religiosos que resultaram na atualidade em muitos adeptos e casas de religiões afro-brasileiras do RS, as quais se dividem em umbanda, linha cruzada (ou quimbanda) e batuque (Oro 2002ORO, Ari Pedro. (2002), “Religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul: passado e presente”. Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, nº 2: 345-384. ; Corrêa 2006CORRÊA, Norton Figueiredo. (2006), O batuque do Rio Grande do Sul: antropologia de uma religião afro-riograndense. São Luís: Editora Cultura & Arte, 2º ed.). “Cabe destacar, que a região de Pelotas se trata da segunda do Brasil em número de casas de religiões de matriz africana” (Neto et al. 2019NETO, Francisco Pereira; RIETH, Flávia; LOUISE, Alfonso. (2019), “Pelotas-RS pelas suas margens: a patrimonialização como expressão das múltiplas formas de habitar a cidade”. Barbarói, Santa Cruz do Sul, Edição Especial nº 54: 63-75.:68-69)

No entanto, se levarmos em conta que desde o século XIX era expressa na mídia local a aversão em relação aos cultos afro-brasileiros em Pelotas, é possível dizer que a historicidade dessas crenças foi atravessada por dificuldades em se manifestar no espaço urbano que deixaram marcas, as quais podem ser encontradas de forma reatualizada na ausência de expressividade do povo de terreiro quando se trata de eventos públicos. De tal modo que isso se torna mais evidente quando consideramos que o número de adeptos participantes não coincide com os dados referentes à presença da religiosidade de matriz africana no município. Segundo os últimos dados censitário referentes ao ano de 2010, há em Pelotas um pouco mais de 11 mil adeptos das religiões de matriz africana em um universo de 328.275 habitantes. Enquanto nas entrevistas com presidentes de federações e associações das religiões afro-brasileiras na pesquisa de mestrado de Campos (2015CAMPOS, Isabel Soares. (2015), Os Prazeres do Balneário, sob as bênçãos de Yemanjá: Religiões Afro-brasileiras e espaço público em Pelotas (RS). Pelotas (RS): Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFPel.), totalizou-se um número próximo a 2 mil terreiros em atividade na cidade.7 7 A pesquisa que gerou o trabalho intitulado Os Prazeres do Balneário, sob as bênçãos de Yemanjá: Religiões Afro-brasileiras e espaço público em Pelotas (RS) era acerca de impedimentos em relação à realização da festa de Iemanjá, a qual é uma manifestação afro-religiosa e que ocorre há mais de cinquenta anos na orla do Balneário Nossa Senhora dos Prazeres (Pelotas/RS). No entanto, a partir de 2012, órgãos públicos começaram a considerar toda a praia como APP (Área de Preservação Permanente) desencadeando uma série de restrições em relação à estrutura ritual da festa realizada na orla. Em decorrência disso, em 2014, a festa foi ameaçada de não acontecer na orla do balneário com a justificativa de que a celebração causava degradação ambiental na área.

Isso se evidenciou nas Marchas contra Intolerância Religiosa, as quais foram acompanhadas desde a sua primeira edição em 2014 que estava relacionada aos impedimentos para a realização da festa de Iemanjá do referido ano, com o seguinte slogan: “A favor da liberdade religiosa e contra a discriminação racial em Pelotas. Festa de Iemanjá, temos o direito de realizar!” Em 2015, novamente houve mais uma marcha denominada “Movimento a Favor da Liberdade Religiosa e Contra a Discriminação Racial em Pelotas”, sobretudo em razão de um acontecimento marcante em abril daquele ano que foi o incêndio da Gruta de Iemanjá, o qual destruiu parcialmente a gruta e a imagem de Iemanjá.8 8 Nesse mesmo período estava em discussão a criação de um projeto de lei (PL 21/2015) de autoria da então Deputada Estadual Regina Becker Fortunati (PDT), que retomava a discussão acerca da proibição de sacrifícios de animais em rituais afro-religiosos.

Diferentemente das edições iniciais das marchas que foram organizadas principalmente pela Federação Sul-rio-grandense de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros e alguns líderes afro-religiosos, como o babalorixá Juliano d’Oxum e o umbandista e radialista Carlos Alberto Pereira, desde 2017 as marchas começaram a ter uma organização centrada nesses dois líderes, os quais hoje se encontram como membros dirigentes da entidade Amigos da Umbanda da Princesa do Sul. Exponho um breve trecho da entrevista com o babalorixá Juliano em que traz a criação da entidade:

Bom, o nome veio pelo Carlos Alberto porque teve a Associação de Umbanda da Princesa do Sul que foi pioneira e depois se tornou a Federal Sul-rio-grandense. Por isso o resgate, grupo “Amigos da Umbanda da Princesa do Sul”. É um grupo que milita, mas não é federação, não é associação, nada. Só milita pra que faça movimentos, pra que viabilizem e não deixem morrer nossa ancestralidade do povo de terreiro. E eu topei e estou até hoje no grupo que fez sua primeira caminhada em 2017, em 28 de outubro de 2017, a primeira caminhada contra a intolerância religiosa, que foi quando surgiu a queima dos terreiros, teve aquelas perseguições e a gente veio com tudo, num dia chuvoso, tu lembra bem. (Entrevista com babalorixá Juliano, realizada em 26 de setembro de 2019)

E desde 2017, há ininterruptas caminhadas organizadas pela comunidade afro-religiosa pelotense que buscam visibilizar e denunciar, a partir de suas manifestações no espaço público, atos caracterizados pelo próprio grupo como de intolerância religiosa e racismo religioso. Essa marcha contou com poucos participantes não ultrapassando o número de 30 adeptos e simpatizantes. No entanto, nas duas últimas edições, em 2018 e 2019, houve mais de 200 participantes ocupando as ruas da cidade.

Se por um lado, nos últimos anos, habitar a cidade de Pelotas por parte dos afro-religiosos tem sido marcado por articulações políticas e jurídicas para exigir a legitimidade do seu sagrado que se organizam nessas marchas, por outro lado, há a presença de outras marchas religiosas que tecem o urbano e que criam outras narrativas sobre o lugar social do religioso mediado, portanto, pelo fenômeno do pentecostalismo na cidade.

Marchas para Jesus em Pelotas

A Marcha para Jesus ocorre na cidade de Pelotas desde 1996 organizada pela Associação de Pastores de Pelotas (Apepel), apenas três anos depois da primeira edição do evento no país realizado na cidade de São Paulo, em 1993. A Marcha para Jesus em São Paulo e outras localidades é realizada próximo ao feriado cristão Corpus Christ,9 9 Em 2009, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou o Dia Nacional da Marcha para Jesus (Lei nº 12.025), comemorado no período próximo ao feriado cristão Corpus Christ. mas na cidade de Pelotas o evento desde 2012 consta no calendário oficial do município estabelecendo a sua data para o terceiro sábado do mês de novembro, embora não haja uma exigência em relação a fixidez dessa data, podendo ser antecipada ou postergada de acordo com as programações culturais da cidade ou para se ganhar tempo para aprontar as organizações finais do evento.10 10 Conforme a lei municipal nº 5.954, a marcha está no calendário oficial de Pelotas desde 2012.

Nas décadas entre 1980 e 1990, esse movimento em publicizar Jesus no Brasil por meio do evangelismo chamou muito a atenção na cena pública devido ao crescimento das denominações pentecostais e neopentecostais.

O Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1991 revelou a existência de 13.189.282 evangélicos (8,98%) na população brasileira. Embora a cifra esteja abaixo das expectativas, mostra que, na década de 80, os evangélicos cresceram 67,3%, 2,8 vezes mais do que a população brasileira, a maior diferença do século entre as taxas de crescimento evangélico e populacional. (Mariano 2014MARIANO, Ricardo. (2014), Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 5º ed.:10)

Essa mudança no quadro social e religioso implicou em grandes transformações nas atuações dos evangélicos no espaço público, cito algumas:

a Marcha para Jesus; programas de evangelização em canais radiofônicos e televisivos, incluindo-se a produção de telenovelas com o tema religioso; produção fonográfica de forma intensa com o estilo gospel; a pregação do evangelismo nos presídios; e a ascensão de representantes evangélicos a cargos políticos. Conforme o último censo demográfico realizado pelo IBGE de 2010, o número de declarantes evangélicos aumentou significativamente comparado ao censo de 2000. Segundo os dados estatísticos, em 2000, os evangélicos representavam 15,4% da população, já em 2010, o número de evangélicos chegou a 22,2%, cerca de 16 milhões de pessoas.

Seguindo com as informações retiradas desse último censo em relação a cidade de Pelotas, há aproximadamente 70 mil evangélicos em um total de 328.275 habitantes. Nas últimas duas edições (2018 e 2019) em que participamos da Marcha para Jesus, a significativa presença dos evangélicos no espaço púbico pelotense tornou-se marcante. Segundo os números da organização do evento, em 2018 a marcha contou com aproximadamente 5 mil fiéis nas ruas e, no ano seguinte, diminuiu para cerca de 3 mil participantes.

Dessa forma, o formato do evento atualmente apresenta-se no espaço público com uma multidão, aparentemente homogeneizada com a utilização de camisetas específicas conforme a temática da edição, caminhando pelas ruas da cidade guiada por um carro de som (tipo trio elétrico) que durante todo o trajeto ecoa uma variabilidade de músicas do estilo gospel e no desfecho há uma grande apresentação de show gospel realizado em uma praça central da cidade.11 11 Desde a primeira edição, segundo informações da pastora Luciane, esposa do pastor Fabrício a Marcha para Jesus em Pelotas conta com a caminhada, o uso de camisetas e o show gospel, apesar da estrutura do evento nos anos anteriores ser bem menor do que ocorre hoje em dia. Embora o evento conte com o apoio do poder público na sua realização, desde as edições de 2015, quando o pastor Fabrício assumiu como presidente da Apepel tornando-se o principal organizador do evento, é que a marcha começou a ampliar as suas estruturas e formar outras redes de apoio como nova fonte de arrecadação de verba. “Um dos propósitos da Marcha é exatamente o que? A manifestação da igreja na cidade e a oportunidade que temos como igreja para orar pela cidade” (Entrevista realizada com pastor Fabrício, em 8 de maio de 2019). A cidade tecida pelo pentecostalismo nas ruas torna-se palco para anunciar as mensagens de Jesus em busca da salvação e da conversão, entrelaçando o ethos evangélico aos modos de habitar o urbano.

Enquanto cada uma das marchas religiosas tem seu modo de “fazer religioso” para habitar e configurar a cidade, mas como o “fazer religião” passa a ser desenhado ao se deslocarem das ruas para o meio virtual?

Espaço virtual, entre os limites do público e do privado

Nesse novo contexto de pandemia chamou a atenção a potencialização dos diferentes usos do espaço virtual. A partir desse período, a internet se tornou o meio possível de aproximar pessoas durante o distanciamento social. Foi também por meio do virtual que muitos representantes religiosos começaram a se fazer presentes no espaço privado dos seus respectivos adeptos, bem como divulgando suas liturgias e rituais em uma rede mais ampla a partir do uso das mídias sociais. Antes de trazermos a utilização dessas ferramentas da internet pelos atores religiosos como uma forma de adequação ao novo contexto, propõe-se uma caracterização do próprio espaço virtual, que ora pertence ao público, ora pertence ao privado.

Segundo Pierre Lévy, a virtualização é um estado de potência e de passagem do atual (solução de algo, inovação) para o virtual, que se encontra no campo da problemática. “A virtualização não é uma desrealização (a transformação da realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado” (Lévy 2011:17-18LÉVY, Pierre. (2011), O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 2º ed.). Partindo do pressuposto de que o espaço virtual se apresenta de forma dinâmica e mutável, ao observarmos a presença significativa de grupos religiosos se manifestando nesse espaço, é possível ponderar um novo entendimento do que é fazer religião tanto no que se refere ao público quanto ao privado. Ainda segundo o autor, o virtual pode se encontrar nesses dois âmbitos, mas por transitar entre um e outro, acaba redefinindo as noções de privado e público, por isso Lévy define o virtual como heterogênese.

A filósofa Judith Butler na obra Corpos em aliança e a política das ruas irá produzir um novo olhar acerca da importância da performatividade dos corpos em manifestações de massa que ocupam o espaço público a fim de ganharem visibilidade e produzirem uma ação política. Segundo a autora, esse espaço público inclui-se a virtualidade como mais um palco de aparecimento e de ação política.

Do meu ponto de vista mais limitado, quero sugerir somente que quando corpos se juntam na rua, na praça ou em outras formas de espaço público (incluindo os virtuais), eles estão exercitando um direito plural e performativo de aparecer, um direito que afirma e instaura o corpo no meio do campo político e que, em sua função expressiva e significativa, transmite uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de condição precária. (Butler 2018BUTLER, Judith. (2018), Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.:17)

Mais do que pensar as categorias de público e privado como dicotômicas, acreditamos que o espaço virtual ao quebrar uma definição rígida dessas categorias e ao flexibilizá-las, tornou mais evidente o caráter relacional entre a esfera privada e a esfera pública. O mesmo movimento de “dissolução das fronteiras” instauradas pelo processo de secularização, pretende-se com os novos estudos sobre os fenômenos religiosos e mídia nos quais abarcam-se as questões referentes a publicidade e visibilidade. Desse modo, a partir dos efeitos produzidos pela virtualidade, pode-se dizer que a questão da presença religiosa no espaço público passa a ser repensada nos termos da visibilidade/invisibilidade midiática (Montero 2016MONTERO, PAULA. (2016), “‘Religiões Públicas’ ou religiões na Esfera Pública?”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, vol. 36(1): 128-150.; Martino 2012MARTINO, Luís Mauro Sá. (2012), “A religião midiatizada nas fronteiras entre público e privado: uma abordagem teórico-crítica”. Ciberlegenda - Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, nº 26: 111-122.).

Considerando que a encenação religiosa se encontra permeada pela potencialidade do meio virtual durante a pandemia e sem querer trazer respostas ou análises fechadas de tais acontecimentos, expomos ao longo do texto algumas estratégias discursivas e performativas utilizadas por esses atores, que trazem para o debate a politização da vida privada. Isto é, acontecimentos do âmbito religioso que são publicizados através dos diversos usos do espaço virtual.

O “fazer” religião no espaço virtual

A partir do estabelecimento de um cenário pandêmico no contexto brasileiro que implicou em uma reconfiguração das atividades religiosas, buscou-se, por meio do movimento da virtualização, tentar compreender o novo modo de agir religioso. Assim, mapeando as redes sociais dos líderes religiosos organizadores das marchas, obtivemos dados numéricos que apresentaram resultados dessa interação por meio da internet e que possibilitaram comparar a atuação e a performance dos líderes. Nesse sentido, há a compreensão da internet como “artefato cultural” que é produzida por sujeitos com suas particularidades e que é apropriada e usada de diversas formas por esses atores sociais (Hine 2000HINE, Christine. (2000), Virtual Ethnography. London: SAGE Publications.). Complementando esse entendimento da internet como “artefato cultural”, há também a perspectiva que considera a “tecnologia midiática como geradora de práticas sociais”, a qual permite: “[...]’seguir as práticas e os atores sociais’ em suas performances, levando em conta não apenas a dimensão simbólica, mas também a dimensão material na qual o campo é definido durante a pesquisa” (apud Polivanov 2013POLIVANOV, Beatriz. (2013), “Etnografia virtual, netnografia ou apenas etnografia? Implicações dos conceitos”. Esferas, ano 2, nº 3: 61-71.:63).

Considerando a internet e os usos das redes sociais lugares de produção de sociabilidades, bem como espaços que permitem analisar comportamentos de determinados grupos, buscou-se por meio da netnografia trazer elementos que sinalizassem os modos de produção e de manter a relação dos atores religiosos com o sagrado neste contexto pandêmico. Além disso, foi apreendido o método netnográfico não no sentido reduzido à técnica mediada pelo espaço virtual, mas, sim, como “um modo de acercamento e apreensão” capaz de oferecer pistas para um novo entendimento acerca de uma determinada realidade social (Magnani 2002MAGNANI, José Guilherme Cantor. (2002), “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. Revista brasileira de ciências sociais, vol. 17, nº 49:11-29.). O estudo, então, foi desenvolvido com base em observação das interações produzidas pelos perfis de cada líder religioso no Facebook a fim de analisar e compreender suas conformações com a chegada da pandemia.

A seguir, apresentamos brevemente o contexto de cada representante religioso e suas relações com as marchas religiosas, bem como o período de inserção desses atores no espaço virtual, buscando rearticular a integração do sagrado, interrompido de ser experenciado nos seus respectivos ambientes de cultos.

O primeiro ator religioso que se apresenta é o pastor Fabrício, pois foi quem se pronunciou inicialmente nas redes sociais sobre a situação de interrupção das atividades religiosas durante a pandemia. Pastor Fabrício é responsável pela igreja batista Missão, Amor e Fé e o principal organizador da Marcha para Jesus desde 2015, em razão do atual cargo que ocupa como presidente da Apepel. Segundo consta na página do pastor na rede social Facebook, foi a partir de março, logo após o decreto municipal12 12 O primeiro decreto foi o Decreto nº 6.249, de 17 de março de 2020, que constou no seu artigo 3º, o seguinte: “Fica suspenso o atendimento presencial do público externo pelo prazo de 30 (trinta) dias, excetuando-se serviços prestados por profissionais de saúde, segurança pública, assistência social e atividades essenciais, objetivando reduzir a aglomeração de pessoas nos locais de atendimento, em função da maior probabilidade de contágio pelo coronavírus”. acerca das medidas relativas à pandemia que requisitavam a suspensão do atendimento presencial nos locais de culto, que o pastor iniciou a divulgar vídeos e usar ferramentas disponíveis nesta plataforma para se comunicar com seu público, como a utilização da “transmissão ao vivo” ou lives.

Cabe destacar que o pastor inaugurou sua presença no espaço virtual com a proposta de realizar de terça a sexta-feira a partir das 20 horas um encontro para conversas sobre diversos temas denominadas como: “tempo de conexão”, “identidade cristã”, “tricotomia - espírito, alma, corpo”. Entretanto, em algumas semanas ocorriam as lives diárias e em outras semanas alguns dias eram pulados sem nenhuma publicação que explicasse essa irregularidade. No mês de junho, esses eventos virtuais já estavam acontecendo somente nas terças e quintas-feiras, às 20 horas, no perfil do pastor no Facebook. E todo domingo ocorria o culto on-line às 19 horas, dia e horário do culto presencial na igreja do pastor, sinalizando certa continuidade da principal atividade realizada no seu templo. O período de análise sobre a atuação do pastor na rede social partiu do dia 28 de março e finalizou no dia 9 de julho.

Nos seus primeiros discursos através das “transmissões ao vivo”, o pastor deixou claro que em decorrência da pandemia estaria surgindo uma “nova igreja” e, portanto, “Deus estaria chamando as pessoas para um novo tempo” (narrativa do pastor referente à live realizada no dia 30 de março de 2020). Assim, na primeira manifestação virtual do pastor, ele denominou o contexto provocado pela pandemia como “tempo de conexão” e abordou a recente polêmica sobre os fechamentos dos templos religiosos na cidade, ponderando as atitudes tomadas pelo poder executivo de forma positiva e reafirmou que o papel dos evangélicos era de “orar pelo município e seus governantes” (narrativa do pastor referente à live realizada no dia 28 de março de 2020). Ao se referir ao distanciamento social como “nós estamos geograficamente distantes, mas juntos no mesmo tempo de Deus”, o pastor evoca pistas de que o espaço virtual (concretizado por meio da conexão à internet) conecta, aproxima as pessoas de distintos lugares no mesmo “tempo de Deus” (narrativa do pastor referente à live realizada no dia 29 de março de 2020).

Outra questão que chamou a atenção foi à referência ao vírus Covid-19 como uma presença maligna, o que provocava um discurso no sentido de reprovação sobre o material veiculado pelas mídias relacionado à pandemia porque isso poderia induzir a ansiedade, inquietação, levando algumas vezes à depressão. Em outras situações, o contexto do coronavírus era entendido pelo pastor positivamente como um momento de milagres, de mudanças no mundo, o qual deveria ser aproveitado pelas igrejas. Segundo a interpretação do pastor: “[...]coisa boa desfrutar desse tempo, dessa tecnologia e olha irmãos, essa tecnologia é muito boa no sentido de nos beneficiar, mas ela está preparando também um caminho para o nosso futuro governo mundial” (narrativa do pastor referente à live realizada no dia 9 de junho de 2020).

A noção de expansão denominacional pentecostal já possui vastos estudos sobre esse fenômeno como algo característico de suas instituições que têm como base a lógica missionária (Campos 2008CAMPOS, Leonildo Silveira. (2008), “Evangélicos e mídia no Brasil: uma história de acertos e desacertos”. Rever - Revista de Estudos da Religião, São Paulo, vol. 4: 1-26.; Mariano 2014MARIANO, Ricardo. (2014), Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 5º ed.). Ou seja, a busca pela formação de rebanhos em grande escala faz parte da intencionalidade das igrejas pentecostais, o que também impactou no interesse em usar diferentes mídias, incluindo-se os ambientes virtuais, para disseminar mensagens religiosas a fim de ampliar e atrair novos fiéis para os templos. Contudo, o uso que os indivíduos fazem da internet pode levar a uma “propensão à autonomia identitária” e fazer com que ocorra um tipo de pertencimento religioso desinstitucionalizado.

Esta propensão a ‘crer sem pertencer’ se verifica no caso em que o indivíduo dá à sua busca espiritual um sentido religioso ou, dito de outra forma, quando ele estabelece um vínculo entre sua solução crente pessoal e uma tradição crente instituída à qual ele se reporta de maneira livre. ‘Eu me sinto espiritualmente cristão, mas não pertenço a nenhuma igreja’, ‘eu me sinto próximo do budismo’, ‘eu me sinto atraído pela mística muçulmana’. Para fazer valer tais preferências pessoais, hoje corretamente expressas por crentes que se posicionam com uma flexível liberdade diante delas, não é necessário unir-se a nenhum grupo religioso particular. (Hervieu-Lèger 2008:156HERVIEU-LÈGER, Daniele. (2008), O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes .)

Assim, em outro encontro virtual, o pastor Fabrício foi questionado se a internet poderia tornar a religião mais individualizada. E o pastor respondeu que o virtual proporciona certa conexão entre pastor, fiel e Deus especialmente por meio do ouvir, o que pode ser compreendida como mais individualizada. Porém o comprometimento com a religião só é possível por meio da comunhão, que é atravessada pelo contato físico. Desse modo, o contexto de pandemia, que proporcionou novas relações entre religião e mídia, parece ser apreendida pelo pastor de forma dicotômica, por vezes o uso da internet se justifica por dar continuidade no contato com os membros da igreja, por outro lado, há um entendimento de que a virtualização das igrejas não supre o culto presencial. Tendo em vista que é apenas por meio da presença física que ocorre a comunhão.

Pode haver a ministração de forma virtual, porém tudo isso está roubando a comunhão, é necessário haver a comunhão para ter a fusão entre o corpo físico e o espírito” (narrativa do pastor realizada em live). Deste modo, compreendo que o pastor considera que os evangélicos podem estar ameaçados com essa pandemia. Segundo ele, por detrás de todo esse panorama existe uma força diabólica para fechar os templos. Considerando esse tempo como atípico. (Trecho do diário de campo realizado em 18 de junho de 2020)

Chamando a atenção para a comunhão de todos os cristãos por meio da fraternidade, Louis Dumont destaca que no cristianismo original ou pré-moderno os cristãos eram essencialmente “indivíduos-fora-do-mundo” em razão da relação com Deus que transcende à realidade mundana marcada por normatividades sejam políticas, sociais, culturais ou jurídicas. Por outro lado, o autor apresenta um dualismo no cristianismo original que está associado ao individualismo, no sentido de que a relação com Deus é individual, mas é nesta filiação a Deus que Dumont identifica que, ao mesmo tempo que o cristianismo é uma religião “individualista”, é também “universalista”, visto que há em todo cristão:

[...]um sentimento de coletividade por compartilhar o mesmo valor absoluto, que define a alma individual, com toda a humanidade. É a comunhão de todos pela fraternidade que traz a tensão acima mencionada no cristianismo original: individualismo absoluto /universalismo absoluto. (Formiga 2015FORMIGA, Ronaldo da Costa. (2015), “A cultura do indivíduo: uma visão da modernidade”. Democratizar, vol. VIII, nº 1: 65-74. :69)

Nesse sentido, se por um lado, a individualização das religiões de matriz cristã ao se midiatizarem podem vir a incitar no sujeito moderno uma forma de crer sem o vínculo institucional, por outro, a visibilidade pública alcançada por meio da internet pode formar vínculos religiosos nas mais variadas dimensões. Cabe ressaltar que essa temática sobre a importância da comunhão presencial só foi levantada pelo pastor no mesmo período em que o município decretou a reabertura dos espaços religiosos, desde que respeitando o número limite de pessoas, o distanciamento de dois metros entre os membros, o uso de máscaras e álcool em gel. Dessa forma, o pastor reabriu as portas da igreja Missão, Amor e Fé em 14 de junho (domingo) e continuou realizando no próprio templo as transmissões ao vivo dos cultos. Durante as filmagens dos cultos presencias e virtuais não apareceram os membros presentes, apenas o pastor Fabrício e sua esposa pastora Luciane. Também destacamos que na maioria das vezes o pastor aparecia usando a máscara no queixo ou retirando-a logo após o início do culto.

Em relação ao outro ator religioso que organiza manifestações públicas das religiões de matriz africana na cidade foi analisado a atuação do umbandista e radialista Carlos Alberto, o qual além de apresentar vários programas de rádio por meio de outras plataformas, se utiliza da sua própria página no Facebook para transmitir “ao vivo” o programa de rádio de sua responsabilidade denominado Filhos de Umbanda, que ocorre todas as quintas-feiras de 20h às 23h.

Carlos Alberto Pereira é uma figura muito conhecida pela comunidade de terreiro especialmente devido a sua trajetória de vida estar conectada com a fundação da primeira federação de Pelotas - Federação Sul-riograndense de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros.13 13 Carlos Alberto é conhecido na comunidade religiosa afro-brasileira de Pelotas como filho de Irineu Viana (seu pai adotivo), o qual foi membro da diretoria da Federação Sul-riograndense de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros por muitos anos e presidente dessa entidade por, aproximadamente, 16 anos. Outro vetor que construiu vínculos entre Carlos Alberto e a comunidade foi seu pai adotivo, Irineu Viana, liderança reconhecida pelo povo de terreiro que atuou como presidente da entidade mencionada. Irineu fundou o Centro Espírita de Umbanda Ogum da Mogiana, em 1969, importante terreiro para a cidade, o qual se encontra fechado para o atendimento ao público desde o seu falecimento em 2001, mas, segundo Carlos Alberto, ainda se pratica caridades àqueles que procuram (Campos 2015CAMPOS, Isabel Soares. (2015), Os Prazeres do Balneário, sob as bênçãos de Yemanjá: Religiões Afro-brasileiras e espaço público em Pelotas (RS). Pelotas (RS): Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFPel.). Conforme seu relato, desde o fechamento do terreiro do pai não frequenta outro, mas tem “o programa Filhos de Umbanda, todas as terças-feiras na Rádio Princesa FM, onde os tambores ecoam mais alto, sempre levando a mensagem da umbanda, do africanismo” (Entrevista realizada com Carlos Alberto, em maio de 2014).

Até 2014 o programa de rádio era transmitido pela estação de rádio Princesa FM todas as terças-feiras no mesmo horário, às 20h, mas há alguns anos que o programa é transmitido de forma on-line pela Rádio Web sinalizando o deslocamento do programa radiofônico para o espaço virtual.

Foi a partir do fim do mês de abril de 2020 que se observou na página do umbandista as divulgações sobre a transmissão do programa14 14 Todos os programas de Filhos de Umbanda são transmitidos via: https://www.radios.com.br/aovivo/radio-filhos-de-umbanda/136475 e também pelo blog da emissora: https://radiofilhosdeumbanda.blogspot.com/ realizadas em terreiros. O primeiro a participar foi o “Centro Espírita de Umbanda Ogum São Jorge” de responsabilidade dos irmãos Tabajara e Nóris, localizado no bairro Areal. Conforme a postagem, a proposta seria uma “apresentação ao vivo do Programa Filhos de Umbanda para conversar um pouco sobre a umbanda” no qual se previa a participação de algumas pessoas citadas: Cristiano Gonçalves d’Oxalá, Eder Soares, Daiane Soares, Alice Vitória, Ana Luiza, Paulo Coitinho e o próprio Carlos Alberto. Além desses, também houve a participação de membros do terreiro presentes no dia referente a “transmissão ao vivo” do programa, ocorrido numa quinta-feira dia 30 de abril.

Desse modo, a partir dessa data o programa passou a ser realizado em diferentes terreiros da cidade de Pelotas, contando na maioria das vezes com a participação das mesmas pessoas mencionadas anteriormente, dando a entender que poderiam ser um tipo de equipe de apoio do programa. Cabe destacar que um desses participantes, Paulo Coitinho, se encontrava em pré-candidatura a vereador nesse período sem ainda divulgar uma campanha propriamente dita. Atualmente, Paulo Coitinho foi eleito ao cargo de vereador pelo partido Cidadania e muitas publicações de Carlos Alberto na sua página no Facebook mostrava apoio a campanha do então candidato. Ressalta-se também outro integrante da possível “equipe”, Eder Soares, que em razão do seu falecimento decorrente por contaminação do coronavírus, acabou marcando a última análise acerca da expressividade virtual referente ao campo afro-religioso.

Assim, em 9 de julho foi realizado o programa Filhos de Umbanda no Centro Espírita de Umbanda Xangô das Matas, que divulgou o falecimento de Eder Soares e desde então foram suspendidas as apresentações nos terreiros. Nessa live, Carlos Alberto trouxe no seu discurso a intersecção entre mídia, pandemia e fé: “você aí do outro lado da tela que está apavorado com essa pandemia, tenha fé, tenha fé que Pai Xapanã nos dê saúde e para todos os nossos irmãos, que a luz do grande pai esteja iluminando cada irmão” (narrativa de Carlos Alberto referente à live realizada no dia 9 de julho de 2020).

Desse modo, observando as transmissões “ao vivo” do programa ocorridas nas casas de religião, primeiramente observou-se que havia a presença de algumas pessoas - considerando-as membros da equipe e do terreiro - e que todos apareciam em cena usando indumentárias religiosas e máscaras. Isso nos sinaliza uma preocupação dos afro-religiosos em se apresentarem no espaço virtual obedecendo as medidas de proteção em relação ao coronavírus. No entanto não houve a mesma preocupação em relação ao distanciamento entre os participantes, e isso foi reiterado diversas vezes por meio de comentários de um mesmo perfil na live realizada no dia 25 de junho de 2020. O perfil também chamou a atenção para o uso do microfone, que era passado de mão em mão.

Ao tecer críticas sobre a conduta entre os realizadores do programa, o perfil recebeu diversas respostas de outros perfis participantes da live que começaram a caracterizar as mensagens como intolerância religiosa e a questionar seu pertencimento religioso, dando indícios de que acusador poderia ser um perfil evangélico. Diante dos rumores sobre as mensagens partirem de um ator evangélico, o perfil se posicionou como “umbandista”, o que provocou a seguinte fala de Carlos Alberto durante a live:

Meus irmãos que estão assistindo o programa Filhos de Umbanda pela primeira vez, chamo-os de visitantes. O espaço é seu e saiba que todos sabemos que a umbanda é uma religião em que seus adeptos são alvos de comentários infelizes e discriminação por parte de muitos, aos quais atribuímos a falta de conhecimento. Não seja um indiferente em busca da distração para sair ironizando o que sua mente ofuscada não pode conceber. Não queremos, em hipótese alguma, tolerância, queremos respeito a nossa ancestralidade. Por isso damos respeito a todas independentemente de suas escolhas, sejam eles evangélicos, católicos, kardecistas, islâmicos, budistas, ateus etc. Mas infeliz ainda é o sarcasmos de adeptos que se dizem da religião, suas atitudes ferem a Deus e aos nossos sagrados orixás. Portanto, somos todos filhos de deus[...].

Outra visibilidade proporcionada pela transmissão do programa na internet era o espaço privado do terreiro onde os rituais comumente são realizados tendo em vista a presença do congá,15 15 Um tipo de altar com imagens das entidades da umbanda, orixás e podendo encontrar imagens cristãs ou às vezes de outras religiões, como do budismo. mostrado nas imagens. Outras práticas afro-religiosas realizadas no espaço como a defumação e a execução de alguns pontos da umbanda, tocados ao som dos tamboreiros também emergiram nas lives.

Conforme Recuero (2018RECUERO, Raquel. (2018), Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2º ed.), o que se revela importante nos estudos dos sites de redes sociais na internet “é o modo como permitem a visibilidade e a articulação das redes sociais, a manutenção dos laços sociais estabelecidos no espaço off-line” (Recuero 2018:102-103). Se nas ruas de Pelotas, a Marcha para Jesus obtém um número maior de participantes em relação as Marchas contra Intolerância Religiosa, no espaço virtual isso se inverte. Assim, analisando as redes sociais dos dois atores religiosos, comparamos o engajamento social de ambos, mais especificamente por meio das ferramentas: curtidas, comentários e visualizações. Com isso obtivemos números que apontaram que o umbandista Carlos Alberto teve um engajamento mais significativo do que o pastor Fabrício, como mostra o gráfico a seguir:

Figura 1
Comparação em Relação a Atuação das Lideranças Religiosas na Rede Social Facebook, Analisando as Seguintes Ferramentas - Visualizações, Comentários, Curtidas e Compartilhamentos.

Pode-se notar que na ferramenta “visualizações” disponível nas publicações na plataforma Facebook, o líder afro-religioso Carlos Alberto tem um número bem mais expressivo, totalizando um número próximo a 14 mil, sendo que a postagem com o maior número de visualizações teve 2.800 visualizações, no dia 25 de junho de 2020. Já o número maior de visualizações na publicação do pastor Fabrício foi no início das postagens no período pandêmico, no fim de março, no dia 29, contando com 401 visualizações.

Foi analisado também que os comentários têm um número expressivo ainda nas publicações do umbandista, com um número de 472, na mesma postagem do dia 25 de junho, enquanto na página do pastor a postagem com o maior número de comentários é também na mesma publicação do dia 29 de março com 116 comentários. Em relação as curtidas e aos compartilhamentos, é possível observar no gráfico que não há tanta diferença entre as publicações dos líderes religiosos. No entanto, em ambas as interações, há um número um pouco mais significativo nas publicações do pastor Fabrício, com o número total de todas as postagens de 1.444 de curtidas e 205 de compartilhamentos. Já em relação às postagens do umbandista Carlos Alberto, sua totalidade de curtidas é de 1.225 e de compartilhamentos, 146. Então, nota-se que os números não são muito discrepantes, o que torna esses dados praticamente semelhantes quando transportados para o gráfico acima.

Outra consideração observada por meio dos dados disponibilizados pelo engajamento social do Facebook são os perfis que se relacionam com as postagens dos líderes em suas páginas. Com base nos comentários foi possível notar qual gênero estava mais presente nessa interação. Em ambos os gráficos, destacam-se mais perfis de mulheres do que perfis de homens.

Figura 2:
Engajamento Relativo as Postagens no Perfil do Pastor Fabrício, na Rede Social Facebook.

Figura 3
Engajamento Relativo as Postagens no Perfil do Umbandista Carlos Alberto, na Rede Social Facebook

Assim, na postagem do pastor com o maior número de comentário foi no dia 29 de março, em que se encontrou 67 comentários de perfis do gênero “feminino” e 49 comentários de perfis do gênero “masculino”. Já a postagem do umbandista Carlos Alberto com o número mais elevado de comentários ocorreu no dia 25 de junho com 349 comentários de perfis do gênero “feminino” e 123 comentários de perfis do gênero “masculino”. Partindo desse resultado referente ao engajamento mais significativo das mulheres no ciberespaço apontamos como os acontecimentos do on-line corroboram com o off-line, uma vez que alguns estudos relacionando gênero e religião abordam sobre a forte presença da participação majoritariamente feminina nas mais variadas denominações religiosas (Machado 1996MACHADO, Maria das Dores Campos. (1996), Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas, SP: Autores Associados; São Paulo, SP: ANPOCS.; Landes 2002LANDES, Ruth. (2002), A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2º ed.; Birman 2005BIRMAN, Patrícia. (2005), “Transas e Transes: sexo e gênero nos cultos afro-brasileiros, um sobrevoo”. Estudos Feministas, Florianópolis, ano 13, nº 2: 403-414.).

Conclusão

Diante dos novos hábitos provocados pelas medidas de controle em relação ao novo coronavírus, destacou-se uma série de relações e vínculos mediadas pelo uso dos recursos disponíveis na internet que possibilitaram compreender o espaço virtual para além de um meio de comunicabilidade, e sim enquanto um espaço de sociabilidade capaz de impactar as estruturas sociais. O fenômeno da virtualidade chamou ainda mais a atenção em função do uso que se tornou mais significativo nesse contexto de pandemia que foram as redes sociais, consideradas espaços tipo weblogs que permitem a construção de perfis, uma forma de personalização do sujeito no ciberespaço, o qual cria uma narrativa constituidora da sua identidade “virtual”. Partindo de tal premissa, fizemos algumas reflexões sobre o existir no espaço virtual que vão ao encontro de como o fenômeno religioso redesenha os conteúdos religiosos e seu lugar na esfera pública.

Desse modo, por meio de análise das redes sociais dos atores religiosos nesse estudo foi possível identificar lógicas distintas de construção de identidade para interagir e manter seus vínculos sociais durante esse contexto pandêmico. No primeiro caso estudado, o pastor Fabrício arriscou logo de início, com a recente chegada da pandemia, em fazer “transmissões ao vivo” quase que diariamente com a intenção de oferecer exposições sobre ensinamentos bíblicos e em um dia da semana - aos domingos, sendo o mesmo dia em que ocorre o culto presencial na sua igreja - realizar uma transmissão denominada “culto on-line”, a qual contava com a presença de sua esposa e do som gospel. No entanto, conforme o tempo em relação a interrupção das atividades religiosas presenciais ia se alongando e não havendo um número significativo de interagentes nesses primeiros vídeos, o pastor foi diminuindo as “transmissões ao vivo”, porém permanecendo com os “cultos on-line” aos domingos.

Em relação ao uso da rede social referente ao umbandista Carlos Alberto, fica notório que há uma busca por dar continuidade ao programa Filhos de Umbanda, porém inovando a sua transmissão através da participação de pais e mães de santo que abriram as portas dos seus terreiros para a realização do programa. E embora as cenas dos programas apresentassem um rigoroso cuidado dos participantes com o uso de máscaras, foi em razão de um fato envolvendo o falecimento de um dos membros que demarcou o fim das “transmissões ao vivo” nos terreiros.

Outro elemento característico das redes sociais é que na construção da identidade virtual há a representação performática dos indivíduos, por isso alguns autores consideram que os sujeitos presentes nas interações das redes sociais são atores entendidos pela noção de “performance”. “Como Döring, Lemos e Sibilia perceberam, há um processo permanente de construção e expressão de identidade por parte dos atores no ciberespaço” (Recuero 2018RECUERO, Raquel. (2018), Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2º ed.:26).

Sibilia (2003) chama de ‘imperativo da visibilidade’ da nossa sociedade atual essa necessidade de exposição pessoal. Esse imperativo, decorrente da intersecção entre o público e o privado, para ser uma consequência direta do fenômeno globalizante, que exacerba o individualismo. É preciso ser ‘visto’ para existir no ciberespaço. (Recuero 2018RECUERO, Raquel. (2018), Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2º ed.:27)

Esse aspecto do individualismo exacerbado nas redes sociais fica evidente na constituição do perfil do pastor Fabrício, inclusive devido a forma como ele se apresenta nas “transmissões ao vivo”, majoritariamente aparecendo sozinho. Além disso, de acordo com a perspectiva de Sibilia de que para o sujeito existir no ciberespaço é preciso “ser visto”, nos próprios discursos do pastor durante o período de pandemia se enfatizou a necessidade de fortalecer a relação individual do fiel com Deus para que os vínculos com o sagrado não se perdessem. E talvez como estratégia para manter viva essa relação com Deus, o pastor se apresentou virtualmente quase que diariamente de maneira a ressaltar a sua identidade enquanto evangélico.

Refletindo sobre a centralidade que o aspecto da visibilidade parece atrelado ao espaço virtual e seguindo com a lógica comparativa na construção do texto entre as performances dos atores religiosos nas redes sociais, partimos para analisar o perfil do umbandista Carlos Alberto através das “transmissões ao vivo” do programa de rádio Filhos de Umbanda. Primeiro ponto a ser destacado foi o uso midiático do programa que expôs o ambiente privado sagrado representado pelo congá, o qual não é comum de ser publicizado nas mídias. Até mesmo na rotina de um terreiro, o congá não fica exposto, passa habitualmente fechado por uma cortina, sendo revelado sobretudo apenas nos dias de culto.

A outra questão sobre a encenação do programa na internet que nos chamou a atenção foi para a preocupação dos afro-religiosos em se apresentarem de acordo com os protocolos de prevenção à Covid-19, o que impactou na insurgência de aspectos presentes na esfera pública sendo manifestados no ambiente privado do terreiro. Primeiro ponto notável foi a inserção da máscara, materialidade pública, que passou a ser incorporada no terreiro. E segundo, mesmo com o uso do item essencial de segurança, os atores religiosos expostos foram censurados por um espectador, trazendo à tona questões sobre intolerância religiosa amplamente debatidas na cena pública.

Em relação à articulação do perfil virtual do afro-religioso Carlos Alberto com sua representatividade social na comunidade de terreiro pelotense chegou-se ao entendimento de que a transmissão do programa de rádio nas casas de religião só foi permitida devido ao seu reconhecimento como líder religioso. Tomamos isso como hipótese, visto que um outro elemento importante para estudar as redes sociais se dá a partir das “representações e extensões do espaço social dos atores” (Recuero 2018RECUERO, Raquel. (2018), Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2º ed.:29). É “através da comunicação entre os atores no ciberespaço” que “a identidade desses é estabelecida e reconhecida pelos demais” (idem 2018:29). Portanto, considerando a significativa interação ocorrida nas “transmissões ao vivo” do referido programa é possível ponderar que ao se fazer presente no espaço virtual agregando outros atores religiosos, Carlos Alberto parece reafirmar sua identidade enquanto liderança afro-religiosa. Tal interpretação se faz ainda mais contundente ao considerarmos que o apoio de Carlos Alberto na sua rede social à campanha do candidato Paulo Coitinho tenha refletido na sua posse como vereador.

Nesse sentido, corroboramos com as contribuições teóricas e metodológicas que Jeremy Stolow considera acerca dos estudos de religião e mídia para “revisar a nossa própria compreensão da religião e de seu lugar na vida social humana” (Stolow 2014:155STOLOW, Jeremy. (2014), “Religião e mídia: notas sobre pesquisas e direções futuras para um estudo interdisciplinar”. Religião e Sociedade , Rio de Janeiro, 34(2): 146-160.). O que se buscou evidenciar etnograficamente foi justamente que a mídia não apenas circunscreveu a mediação entre as instituições sagradas e seu público para a manutenção de determinados vínculos, que poderiam se dissolver devido a inexistência do contato presencial. Mais do que adaptáveis à tecnologia durante a pandemia, o que se expôs através das diferentes formas religiosas encenadas virtualmente foi a “dissolução das fronteiras” que delimitam a esfera religiosa do secular, no qual se entrelaçam discursos políticos, práticas corporificadas e experiências sagradas que servem para redefinir a presença religiosa no espaço público.

Portanto, comparando os perfis de cada líder religioso nos usos das mídias foi possível concluir que houve uma inversão na potencialidade das encenações situadas aos “olhares públicos” das ruas em relação a atenção que é alcançada pelas redes sociais. Tomando as mobilizações organizadas por cada líder para a realização das marchas religiosas na cidade, acompanhadas nos anos de 2018 e 2019, foi observado que nas Marchas para Jesus houve participação expressiva dos evangélicos ocupando a cidade. Enquanto nas Marchas contra a Intolerância Religiosa não houve uma participação de forma significativa que fosse coerente com o número expressivo de terreiros em atividade em Pelotas.

Então, se considerarmos que os adeptos das religiões afro-brasileiras em razão do forte impacto provocado por ações de intolerância religiosa se sentem mais vulneráveis aos “olhares” presentes no espaço público e por isso optam por se manifestar de forma mais acentuada na internet, esse espaço virtual pode se configurar para além de um palco de aparecimento, um lugar de ação política (Butler 2018BUTLER, Judith. (2018), Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Segundo Montero (2018MONTERO, PAULA. (2018), “Fazer religião em público: encenações religiosas e influência pública”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, nº 52: 131-164. ), quando a experiência do sagrado é expressa publicamente (inclusive na virtualização), seja por meio discursivos ou performáticos, há uma “força de persuasão para o ativismo político” que faz emergir no cenário público brasileiro controvérsias sobre o que se compreende por religioso. Quando o espaço midiático passa a ser um contínuo entre privado e o público, problemas do âmbito religioso que poderiam permanecer resguardados no segredo dos terreiros acabam se tornando visíveis por meio da internet, rompendo com as fronteiras do público/privado e redesenhando o caráter público do mundo moderno.

Referências

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  • 1
    Decreto nº 10.292, de 25 de março de 2020. Diário Oficial Da União. publicado em: 26/3/2020. A partir das críticas provocadas por alguns líderes neopentecostais, ainda no mesmo mês o presidente divulgou um novo decreto (nº 10.292) que incluiu no inciso “XXXIX”, a atuação religiosa de qualquer natureza como essencial desde que obedecidas as determinações do Ministério da Saúde. No entanto, no dia 26 de março, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu o decreto considerando a não essencialidade das atividades religiosas nesse contexto. Partindo do mesmo entendimento e justificativa, outros estados e cidades adotaram o fechamento de locais de culto nas suas estratégias em reduzir a contaminação do vírus.
  • 2
    Na clássica obra, Homo Hierarchicus, de Louis Dumont (1992DUMONT, Louis. (1992), Homo Hierarchicus: o sistema das castas e suas implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.) a noção de “individualismo” advindo através de um conjunto de valores que são estabelecidos na modernidade ocidental em que passa a considerar o indivíduo “elementar”, um sujeito único dotado de razão, começa a ser questionada por esse autor ao comparar o “nosso” sistema social moderno baseado na igualdade e liberdade em relação ao sistema hierárquico de castas na Índia (“outro”). A partir dessa comparação, Dumont confronta a lógica moderna de sociedade onde reside a “ideologia individualista”, que se opõe a “ideologia holista” presente na sociedade indiana. Enquanto no holismo se pressupõe uma lógica de sociedade relacional que não abre espaço para o surgimento do indivíduo, no individualismo, ao contrário, emerge esse indivíduo constituído por autonomia e liberdade. Trazendo para a reflexão o sistema religioso hinduísta, o autor mostra que o hinduísta renuncia o mundo e não a si mesmo, para então consagrar a sua liberdade. Enquanto na sociedade moderna a religião passa a fazer parte das escolhas individuais, caracterizando a independência desse sujeito moderno.
  • 3
    Associação dos Povos de Terreiros é uma associação que vem com objetivo de formar os povos de terreiro para realizar políticas públicas e para criar diálogos com o Estado.
  • 4
    Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil - (Conic) é uma associação brasileira de igrejas cristãs reunidas em busca do serviço a Deus, à confissão de fé comum e ao compromisso missionário, visando aumentar a comunhão cristã e o testemunho do Evangelho no Brasil. As igrejas-membro assumem o compromisso ecumênico de testemunhar a unidade em Cristo, respeitando a identidade de cada Igreja particular.
  • 5
    Como apontam alguns estudos, desde 1833 até 1859, havia na região da cidade de Pelotas uma enorme concentração de escravos, o que levou a constatar a existência da influência cultural africana desde o início do século XIX (Bastide 1974BASTIDE, Roger. (1974), As Américas negras: as civilizações africanas no Novo Mundo. São Paulo: Difusão Européia do Livro; EDUSP.; Corrêa 2006).
  • 6
    Nesse estudo elaborado pelo Grupo de Estudos Etnográficos Urbanos (GEEUR) da UFPEL, apresentou-se diferentes narrativas de grupos que foram invisibilizados no processo de construção da historicidade oficial sobre a cidade de Pelotas (RS). Para mostrar a existência de disputas sobre os modos de habitar a cidade e redefinições sobre o conceito de patrimônio, o texto expõe dois casos de pesquisas etnográficas que envolvem processos de patrimonialização relacionados a duas comunidades negras, a saber: o registro da tradição doceira de Pelotas e a busca do tombamento do território “Passo dos Negros” para ser incluído no Conjunto Histórico de Pelotas. Sem querer esgotar os importantes dados desenvolvidos no referido trabalho, chamamos a atenção para o processo de reconhecimento dos doces como patrimônio imaterial, respaldado pelo Iphan, em que narrativas sobre a presença dos doces nos terreiros foram relevantes para mostrar o entrelaçamento entre a cosmologia de matriz africana com essa tradição.
  • 7
    A pesquisa que gerou o trabalho intitulado Os Prazeres do Balneário, sob as bênçãos de Yemanjá: Religiões Afro-brasileiras e espaço público em Pelotas (RS) era acerca de impedimentos em relação à realização da festa de Iemanjá, a qual é uma manifestação afro-religiosa e que ocorre há mais de cinquenta anos na orla do Balneário Nossa Senhora dos Prazeres (Pelotas/RS). No entanto, a partir de 2012, órgãos públicos começaram a considerar toda a praia como APP (Área de Preservação Permanente) desencadeando uma série de restrições em relação à estrutura ritual da festa realizada na orla. Em decorrência disso, em 2014, a festa foi ameaçada de não acontecer na orla do balneário com a justificativa de que a celebração causava degradação ambiental na área.
  • 8
    Nesse mesmo período estava em discussão a criação de um projeto de lei (PL 21/2015) de autoria da então Deputada Estadual Regina Becker Fortunati (PDT), que retomava a discussão acerca da proibição de sacrifícios de animais em rituais afro-religiosos.
  • 9
    Em 2009, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou o Dia Nacional da Marcha para Jesus (Lei nº 12.025), comemorado no período próximo ao feriado cristão Corpus Christ.
  • 10
    Conforme a lei municipal nº 5.954, a marcha está no calendário oficial de Pelotas desde 2012.
  • 11
    Desde a primeira edição, segundo informações da pastora Luciane, esposa do pastor Fabrício a Marcha para Jesus em Pelotas conta com a caminhada, o uso de camisetas e o show gospel, apesar da estrutura do evento nos anos anteriores ser bem menor do que ocorre hoje em dia.
  • 12
    O primeiro decreto foi o Decreto nº 6.249, de 17 de março de 2020, que constou no seu artigo 3º, o seguinte: “Fica suspenso o atendimento presencial do público externo pelo prazo de 30 (trinta) dias, excetuando-se serviços prestados por profissionais de saúde, segurança pública, assistência social e atividades essenciais, objetivando reduzir a aglomeração de pessoas nos locais de atendimento, em função da maior probabilidade de contágio pelo coronavírus”.
  • 13
    Carlos Alberto é conhecido na comunidade religiosa afro-brasileira de Pelotas como filho de Irineu Viana (seu pai adotivo), o qual foi membro da diretoria da Federação Sul-riograndense de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros por muitos anos e presidente dessa entidade por, aproximadamente, 16 anos.
  • 14
    Todos os programas de Filhos de Umbanda são transmitidos via: https://www.radios.com.br/aovivo/radio-filhos-de-umbanda/136475 e também pelo blog da emissora: https://radiofilhosdeumbanda.blogspot.com/
  • 15
    Um tipo de altar com imagens das entidades da umbanda, orixás e podendo encontrar imagens cristãs ou às vezes de outras religiões, como do budismo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2020
  • Aceito
    19 Ago 2021
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