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Santo Antônio, me casa já! Leituras Afro-brasileiras sobre as virtudes casamenteiras do santo lisboeta e a moralização da sexualidade da mulher

Saint Anthony, make me marry now! Afro-brazilian readings on the saint anthony of lisbon’s marriage virtues and the moralization of women’s sexuality

Resumos

Resumo: as virtudes casamenteiras de Santo Antônio no Brasil dão continuidade a formas complexas de remodelagem do cristianismo centro-africano em solo brasileiro. Elas estão assentadas em processos culturais de sincretização entre o santo católico e Exu, orixá priápico pertencente ao universo cultural e religioso afro-brasileiro desde o século XVI. A escultura africana do santo, publicada em obra de Gilberto Freyre, em 1959, reforça sua associação ao orixá. O sincretismo, ainda que mantido nos subterrâneos da cultura popular, será confrontado por narrativas eclesiásticas do Século XIX com o intuito de compatibilizar os atributos casamenteiros de Santo Antônio com a moral sexual cristã. Controlar a sexualidade, em especial da mulher, por meio do matrimônio, sempre foi uma das tarefas pedagógicas dos missionários, desde o início da colonização.

Palavras-chave:
sincretismo; Exu; Santo Antônio; matrimônio; moral sexual; pedagogia


Abstract: Saint Anthony’s marriage virtues continue complex remodeling forms of Central African Christianity in Brazil. They are based on cultural processes of syncretization between the Catholic saint and Exu, erotic Orixá belonging to the Afro-Brazilian cultural and religious universe, since the 16th century. An African sculpture of the saint, published in a work by Gilberto Freyre, in 1959, reinforces his association with Exu. Although in the underground of popular culture, the syncretism will be opposed by ecclesiastical narratives from the 19th century with the aim of making Saint Anthony's marriage attributes compatible with Christian sexual morality. Controlling sexuality, especially of women, through marriage, has always been one of the missionary pedagogical tasks since the beginning of colonization.

Keywords:
Syncretism; Exu; Saint Anthony; Marriage; Sexual morality; Pedagogy


Introdução

As bênçãos de Santo Antônio, em dias de terça-feira, são tradição comum, em especial, em igrejas franciscanas ou que dedicam altares ao santo popular do Brasil. Afirma Poel (2013POEL, Francisco van der. (2013), Dicionário de religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura.: 1059) que a prática de dedicar esse dia da semana surgiu na Itália a partir de 1617. Não por acaso, Ogum, um dos orixás sincretizados com Santo Antônio, é também saudado nos terreiros às terças-feiras. Nas igrejas católicas, o afluxo de devotos e fiéis aumenta substantivamente nas chamadas trezenas de Santo Antônio, os trezes dias de preparação que antecedem a festa em homenagem ao santo, celebrado pela liturgia santoral no dia 13 de julho de cada ano, data imediatamente posterior em que é comemorado o dia dos namorados no Brasil. Nas festas de Santo Antônio, celebradas de norte ao sul do país, são notáveis o maior afluxo e o protagonismo de fiéis do sexo feminino (Hartmann 2017HARTMANN, Patrícia Andrea. (2017), A produção do bolo de Santo Antônio na Paróquia de Bom Jesus dos Perdões. Curitiba: Monografia em Ciências Sociais, Universidade Federal do Paraná (UFPR).; Fernandes 2016FERNANDES, Úrçula Regina Vieira. (2016), Festejos de Santo Antônio do Bairro da Terra Preta (Manacapuru - AM). Manaus: Tese de doutorado em Sociedade e Cultura - Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, Universidade Federal do Amazonas (UFAM).; Santos 2015SANTOS, Ruth Rodrigues. (2015). “‘A festa que é a mesma, sendo continuamente oiutra’: a ressignificação da Festa (do pau da bandeira) de Santo Antônio de Barbalha Ceará através das mudanças e continuidades ”. João Pessoa: Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba (UFPB).).

Os devotos clamam pela intercessão de Santo Antônio, com fama de poderoso taumaturgo, as mais variadas graças, que vão das necessidades urgentes de sobrevivência - emprego, melhores salários, quitação de dívidas, achamento de coisas perdidas -, às que precisam se valer dos poderes desobsessores da bênção para livrar das tentações malignas ou de demais tormentos da alma, até aquelas de cunho amoroso - as mulheres que pedem um namorado ou um casamento (Menezes 2004MENEZES, Renata de Castro. (2004), A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.; Zuazu 2017ZUAZU, Pedro. (2017), No dia de Santo Antônio, fiéis pedem amor, emprego e até aumento salarial. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jun. de 2017, Seção Rio. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/no-dia-de-santo-antonio-fieis-pedem-amor-emprego-ate-aumento-salarial-21475750 . Acesso em: 16/03/2020.
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).

Nosso objetivo, todavia, é tanto o de encontrar sinais que nos levem à produção sincrética e popular da fama de casamenteiro de Santo Antônio - cujos inícios podemos datar a partir do século XV e XVI, em Portugal, na África e no Brasil -, quanto o de analisar o intento eclesiástico de moralização e de intervenção direta sobre essa peculiar devoção ao santo que se imbrica, particularmente, com a sexualidade feminina, em cenários sociais brasileiros do século XIX ao XX.

As virtudes casamenteiras de Santo Antônio, de acordo com as referências vigentes, são o resultado de certo paganismo difuso nos meios populares. Indo mais adiante, consideramos que tais virtudes também se assentaram em processos culturais de sincretização entre o santo católico e Exu, orixá pertencente ao universo cultural e religioso africano e afro-brasileiro. Surgem elas em fase histórica moderna, uma vez que em suas hagiografias medievais não são encontrados elementos mais explícitos que as respaldem (Vainfas 2003VAINFAS, Ronaldo. (2003), “Santo Antônio na América Portuguesa: religiosidade e política”. Revista USP , São Paulo, nº 57: 28-37.: 30). A devoção a Santo Antônio, cujos estudos em geral são adstritos a contextos lusos e brasileiros, é portadora de elementos sincréticos originários da região do Congo e de Angola, onde o catolicismo estava presente desde a chegada dos portugueses à foz do rio Congo, em 1483. O catolicismo centro-africano foi assumindo feições muito particulares. Mesclava ritos, crenças e símbolos preexistentes com novos elementos. Para os congueses, o catolicismo “era uma versão mais poderosa de sua religião tradicional, para os europeus, uma forma de catolicismo que incorporava elementos das tradições pagãs locais” (Mello e Souza 2018MELLO e SOUZA, Marina de . (2018), Além do visível: poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola (séculos XVI-XVII). São Paulo: EDUSP; FAPESP.: 41-42). Santo Antônio foi santo muito valorizado na missionação portuguesa da África. Em verdade, podemos afirmar que parte das virtudes pelas quais Santo Antônio foi reconhecido no Brasil representa a continuidade de formas complexas e peculiares de remodelagem do cristianismo centro-africano em solo brasileiro (Boxer 1981BOXER, Charles. (1981), A Igreja e a expansão ibérica. Lisboa, Edições 70.: 132; Vainfas; Mello e Souza 1998VAINFAS, Ronaldo; MELLO e SOUZA, Marina. (1998), “Catolização e poder no tempo do tráfico: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII”. Tempo. vol. 3, nº 6: 96-118. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense.: 11).

O problema relativo ao grau de continuidade ou de mudança sofrido pelas culturas religiosas de origem africana no Novo Mundo é recorrente no âmbito dos estudos antropológicos. Conforme Parés, o dilema está em saber se a cultura negra, e, por consequência, a religião afro-brasileira, “deve ser entendida como retenção ou sobrevivência de africanismos, ou como adaptação criativa à dureza da escravidão e do racismo” (Parés 2018: 16). Adotamos a mesma posição de Parés no entendimento de que há valor em ambas as correntes interpretativas.

Comprova-se, na história do Candomblé, a persistência de certos valores e práticas junto à ressignificações ou criação de outros. Há, portanto, alguma coisa que permanece ao lado de outra que muda. Defendo a necessidade de entender a simultaneidade ou sincronia dos processos de continuidade e descontinuidade, assim como a necessidade de entender a proporção entre essas dinâmicas. O problema é uma questão de ênfase, e o meu acento não cai sobre africanismos ou as invenções, mas sobre a complexa interação entre ambos. (Parés 2018PARÉS, Luís Nicolau. (2018), A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Ed. Unicamp. 3ª ed. Rev. Ampl.: 17)

O carisma de casamenteiro de Santo Antônio traçado tardiamente nos candomblés multiétnicos do Brasil e que, a partir do século XIX, passaram a coadunar cultos de diferentes regiões da África e de tradições bantas e iorubás, e mais recetemente na Umbanda, no século XX, pode ter sido tomado de empréstimo de outros santos cultuados com a finalidade de propiciar casamentos e de promover a fecundidade. Gilberto Freyre (2006FREYRE, Gilberto. (2006), Casa-grande & senzala: formação da família sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 51ª ed.: 326) se refere à imaginação popular que atribui aos santos católicos, tanto em Portugal quanto no Brasil, “milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade”. Além de Santo Antônio, referere-se a São João Batista, a São Gonçalo do Amarante, a São Pedro, ao Menino Jesus, por vezes identificado com o próprio Cupido pagão, mas também a Nossa Senhora do Ó, da Boa Hora, da Conceição, do Bom sucesso e do Bom Parto (Freyre 2006: 84, 302, 326-329).

A literatura especializada tem assinalado que essas práticas “mágicas” têm fundamento em reminiscências pagãs. As mudanças na percepção do santo não teriam ocorrido apenas no Brasil, mas também em contextos portugueses que remontaria o século XV. Segundo Menezes (2004MENEZES, Renata de Castro. (2004), A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.: 161), “no processo de sincretismo que deu origem às festividades católicas, as festas de Santo Antônio e dos demais santos de junho (São João, São Pedro) estariam associadas aos ritos de fertilidade do solstício de verão (solstício de inverno, no caso do hemisfério sul)”.

No caso específico de Santo Antônio, consideramos especialmente promissora a hipótese de que, além das influências do catolicismo luso-brasileiro, a associação entre o santo lisboeta e Exu-Elegbara pode ser encontrada mais remotamente na África, a partir da cristianização do Reino do Congo pelos portugueses. Não obstante, esse é um aspecto que ainda precisa ser mais bem investigado.

Uma imagem vale mais do que mil palavras. A expressão da sabedoria popular ressignificou a intencionalidade do nosso olhar quando nos deparamos com a reprodução de uma imagem africana de Santo Antônio de Lisboa portando um ogó de forma fálica na mão direita, encontrada no livro A propósito de frades, do sociólogo Gilberto Freyre, publicada, em 1959FREYRE, Gilberto. (1959), A propósito de frades. Salvador: Livraria Progresso Editora., em Salvador. Bastante singular e rara, conforme a descreveremos mais adiante, a imagem, com características sincréticas que a associa a Exu, foi o mote e o disparador deste trabalho.

A aproximação sincrética entre Santo Antônio e Exu, a princípio, poderia parecer estranha e mesmo inconciliável. Entre os africanos, entretanto, a representação priápica de Exu exalta a potência sexual, a fertilidade e a garantia da geração de prole numerosa. Ora, a santidade, segundo o catolicismo, afirma-se na negação da sexualidade ou, ao menos, na sua sublimação, de modo que a castidade, a abstinência sexual e o celibato são tidos como virtudes heroicas e uma forma de martírio profético e que compõe inescapavelmente o clichê da santidade exigível a uma pessoa digna dos altares.

De que modo se poderá coadunar as virtudes do santo católico - representado recorrentemente com o atributo do lírio, símbolo da pureza e da inocência, e invocado como modelo de castidade - e as qualidades de um orixá cuja representação exalta valores e potências diametralmente opostas, tais como a virilidade, a exaltação sexual e as forças propiciadoras do amor carnal?

De outro lado, Santo Antônio traz ao colo o menino Jesus, assim como a sagrada família, o casto varão São José e a Imaculada Virgem Maria também são evocados como inspiração da castidade conjugal. Desde a Idade Média à modernidade, a Igreja de tudo fez para regular e tornar a família, constituída pelos laços do matrimônio, o único espaço legítimo para a prática sexual com a finalidade reprodutiva.

Segundo Michel Foucault (1999FOUCAULT, Michel. (1999), História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 13ª ed.: 9), apenas a partir da época vitoriana suportamos uma “sexualidade contida, muda e hipócrita”. Porque antes “as práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade”. As épocas anteriores, se comparadas ao século XIX, eram frouxas quanto aos seus códigos morais. Mas a burguesia vitoriana estabeleceu que a família é o ponto privilegiado de eclosão da sexualidade.

A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções. (Foucault 1999FOUCAULT, Michel. (1999), História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 13ª ed.: 8-9)

O corpo feminino e suas características naturais próprias predestinariam a mulher à maternidade. Em fins do século XVIII, o amor materno, sentimento que não é ignorado em outras épocas, ganha uma nova noção. A sensualidade feminina se torna um atributo negativo e incompatível com a figura da mãe e estaria sujeita a um processo de disciplinarização. As práticas educativas do século XIX, típicas da sociedade moderna e burguesa, pretendiam extirpar aspectos julgados excessivos ou impróprios da sensualidade feminina e que não se coadunariam com o papel reservado à maternidade, sempre harmonizado com o da esposa casta e fiel. O seu contrário é a mulher sensual, sedutora e erotizada, considerada perigosa, estereótipo por excelência da prostituta, marcada pelos estigmas do vício, do egoísmo, da infidelidade e da ausência de castidade. A figura da pombagira, plexo feminino de Exu, no contexto das religiões afro-brasileiras que se desenvolveram a partir da ancestralidade africana, aparecerá ao modo da antinomia da mulher-mãe, esposa casta e submissa ao masculino. Diante de tamanho paradoxo, ainda que mantido nos subterrâneos da cultura popular, quais estratégias discursivas serão utilizadas para compatibilizar os atributos casamenteiros de Santo Antônio com a moral sexual cristã?

Ao cabo desta introdução, é importante deixar claro que não é, aqui, nosso objetivo discutir as disputas que envolvem o conceito de sincretismo nas ciências sociais, cabendo apenas esclarecer que seguimos os trabalhos de Ferretti (2008FERRETTI, Sergio. (2008), “Multiculturalismo e sincretismo. Conferência apresentada no I Congresso Internacional em Ciências da Religião, do PPGCR da Universidade Católica de Goiás”, [Goiânia 03 a 05/09/2007]. In: A. S. Moreira e I. D. Oliveira. O futuro das religiões na sociedade global. Uma perspectiva multicultural. São Paulo: Paulinas/UCG, 2008: 37-50. Disponível em: Disponível em: http://www.gpmina.ufma.br/pastas/doc/Multiculturalismo%20e%20Sincretismo.pdf . Acesso em: 18/03/2020.
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, 2013FERRETTI, Sergio. (2013), Repesando o sincretismo. São Paulo: Edusp/Aché Editora, 2ª ed., 2014) que nos dão o suporte necessário para considerar que o conceito é bastante pertinente para analisar os fenômenos religiosos e histórico-sociais mais amplos, no Brasil.

A nosso ver, o conceito de sincretismo se encontra estabelecido na literatura e divulgado há muito tempo. [...] podemos considerar que, em sociedades como a nossa, o sincretismo pode ser considerado como fato social total, relacionado com instituições religiosas, políticas, familiares, econômicas, estéticas, culturais, que, ao mesmo tempo é imposto e voluntário. A sociedade brasileira é complexa e se caracteriza pelo encontro e a mistura entre povos e culturas diversas, e este encontro é enriquecedor. Assim a mistura e o sincretismo constituem elemento central em nossa sociedade, como pode ser evidenciado, entre outros aspectos, nas religiões e na cultura popular. (Ferretti 2014FERRETTI, Sergio. (2014), “Sincretismo e Hibridismo na cultura popular”. Revista Pós Ciências Sociais. Maranhão, vol. 11, nº 21: 14-34. Disponível em: Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/2867/2686 . Acesso em: 18/03/2019.
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: 30)

O estudo contribui com as análises que focam os processos históricos de educação não formal cujos influxos passam ao largo da escola, em geral, incipiente e minoritária, no Brasil, até o século XX, ante outros meios sociais utilizados para a transmissão e elaboração da cultura dominante. Educar e impor novos padrões culturais e sexuais que se coadunassem a moral cristã, coibir os comportamentos considerados pecaminosos e controlar a sexualidade, em especial das mulheres, através do matrimônio sempre foi uma das tarefas pedagógicas dos missionários, desde o início da colonização. Mas esse não foi o único movimento produzido. As culturas dominadas encontram nesse processo de aculturação espaços e interstícios muitos propícios a vincar e a modificar a cultura do dominador, de modo que o colonizador também adotou diversos elementos da cultura nativa e daquelas que aqui foram chegando. Pois, ao modo que afirmou Vainfas (2014VAINFAS, Ronaldo (2014), “A tessitura dos sincretismos: mediadores e mesclas culturais”. In: J. Fragoso; M. de F. Gouvêa. O Brasi colonial: 1443-1580. vol. 1: 357-388. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 360), a história do Brasil está repleta de exemplos de ambos os processos de “aculturação às avessas”.

Imagens antonianas

Na citada obra A propósito de frades, de Gilberto Freyre, encontramos a reprodução de uma imagem de origem africana de Santo Antônio. A figura do santo está interposta em página seguinte às informações bibliográficas do livro e antes do prefácio, com a seguinte legenda: “Santo Antônio - Escultura africana - Foto do arquivo da Agência Geral do Ultramar de Lisboa” (Freyre 1959: s/n). Não há indicação de datação da escultura. É no mínimo curioso que a imagem do santo tenha sido disposta pelo autor, aparentemente de forma despretensiosa, uma vez que em nenhuma outra parte da obra tenha feito mínima alusão ou comentário a ela, salvo a legenda transcrita anteriormente.

Figura 1:
Santo Antônio - Escultura africana - Foto do arquivo da Agência Geral do Ultramar de Lisboa

O que teria intencionado Freyre ao inserir aquela instigante imagem de Santo Antônio produzido pela arte popular africana, todavia sem chamar sobre ela atenção por meio do texto escrito? Aos desavisados, poderia passar sem suscitar grande alarde, não obstante conter traços e atributos sincréticos que lhe conferem singular e inaudita expressividade e incomensurável valor étnico e antropológico. Ao mesmo tempo em que a imagem é um texto imagético eloquente, em razão de seu alto valor artístico e simbólico, Freyre opta pelo silêncio, talvez com a intenção de que a imagem falasse por si mesma. Certamente, Freyre deixou-a lá, exposta aos sentidos, mas apenas cognoscível aos que tivessem olhos para lê-la. Terá Freyre evitado a polêmica, já que seu texto tinha como principais destinatários os frades franciscanos que celebravam os séculos de presença no Brasil? Afinal de contas, a imagem não se coaduna a nenhum dos cânones usuais da representação do santo. Se do lado esquerdo do peito, santo Antônio leva o menino Jesus ao colo, como é comum representá-lo, com a mão direita carrega um ogó, um bastão de formato fálico e que faz referência a anatomia do pênis, e que, segundo a tradição ancestral africana, é portado por Exu, orixá com atributos priápicos.

A imagem em análise portando o que parece ser um ogó, não obstante desconhecermos o local da África em que foi produzida, tampouco a data do seu surgimento, reforça a tese de que a correlação e o paralelismo entre Santo Antônio e Exu estão na raiz das invocações e do título de casamenteiro atribuído ulteriormente ao santo católico. A hipótese levantada pode ser fruto dessa sincretização, por conta da exaltação da virilidade e das características ligadas à fertilidade e à potência masculina presentes em Exu.

Cabe ressaltar que, em Portugal, a imagem de Santo Antônio tinha significados nacionais, isto é, era o santo patrono do Estado português. As primeiras imagens a circular na África e no Novo Mundo reproduziam as formas canônicas de representação do santo. Porém, com o passar dos anos, os povos autóctones já não enxergavam o santo do mesmo modo que os colonizadores, conferindo-lhe outra identidade, uma mistura da Europa com a África e com o Brasil. Essa mistura nos leva a pensar como os atributos de Santo Antônio foram se modificando através do contato com as culturas e artes populares africanas e afro-brasileiras. Se Exu se parece com Santo Antônio, Santo Antônio guarda muitas afinidades com Exu.

A arte, de modo geral, e particularmente, as contribuições artísticas sob a inspiração religiosa, e as suas formas visuais e auriculares de tratar o discurso - as obras plásticas sacras, com destaque às imagens, o sermão dos pregadores, as composições musicais litúrgicas, as produções cênicas de cunho catequético e as obras plásticas sacras -, são a matéria privilegiada para encontrarmos o âmago de processos mais complexos e abrangentes de educação popular que se produziu em âmbitos extraescolares. Pois é preciso considerar que, em uma sociedade regida eminentemente pela oralidade, em que a imprensa foi proscrita por séculos e a escola atingia apenas a elite, ganha significado investigar o sentido das ações educativas de grande alcance popular promovida pelos próprios missionários.

Uma das funções primordiais da imagem é a função pedagógica (Joly 1994JOLY, Martine. (1994), Introdução à análise da imagem. Lisboa: Ed. 70.). Portanto, aquilo que a gente simples não podia aprender lendo as escrituras poderia ser aprendido por meio da contemplação de imagens sacras. Tais imagens - portadoras de narrativas, de alegorias, de símbolos e de convenções significantes, na época, de domínio público - tornavam as igrejas a bíblia dos analfabetos.

Os negros, em especial, através de suas irmandades e confrarias, em geral dedicadas a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito, devoções que também vieram embarcadas a partir da África, construíram os seus templos religiosos e ornaram-nos com os elementos sacros com os quais tinham maior empatia. Aos santos negros, a exemplo de Santa Efigênia, Santo Elesbão (Oliveira 2008OLIVEIRA, Anderson José Machado de. (2008), Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet/Faperj.), assim como o mais popular São Benedito e o menos conhecido São Gonçalo Garcia (Lins; Andrade 1986LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto de Osório. (1986), São Gonçalo Garcia: um culto frustrado. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana.), eram dedicados altares para o culto e celebrações festivas, muitas delas com fortes marcas de sincretismo.

Karasch (2000KARASCH, Mary Catherine. (2000), A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras.) tem chamado a atenção para a popularidade de Santo Antônio entre a população negra do Rio de Janeiro no século XIX, grande parte dela de origem banta, proveniente da África Central. Além disso, destacou que o culto dos negros a Santo Antônio, conhecido especialmente por sua capacidade de curar doenças, encontrar objetos pedidos e trazer fecundidade, deve ser interpretado a partir do complexo “ventura-desventura”, típica da religiosidade centro-africana. Observou também que, na umbanda do Rio de Janeiro de hoje, Santo Antônio é associado a Exu.

Diversos trabalhos como o de Eduardo Etzel (1971ETZEL, Eduardo. (1971), Imagens religiosas de São Paulo. São Paulo: Melhoramentos/USP.), Carlos Lemos (1988LEMOS, Carlos A. C. (1988), “A imaginária dos escravos de São Paulo. In: E. Araújo (org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge.), Stanley Stein (1990STEIN, Stanley. (1990), Vassouras, um município brasileiro do café: 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), Robert Slenes (1992SLENES, Robert W. (1992), “‘Malungu, ngoma vem!’: África coberta e descoberta do Brasil”. Revista USP, nº 12:48-67.) e de Marina de Mello e Souza (2001MELLO e SOUZA, Marina de . (2001), “Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro”. Tempo, vol. 6, nº 11: 171-188.) analisam similaridades entre estatuetas de Santo Antônio encontradas no Vale do Paraíba, no século XIX, esculpidas em gesso, nó de pinho, metal e, por vezes, em osso, e imagens de minkisi africanas. As pequenas estatuetas de Santo Antônio eram muito apreciadas por escravos e negros livres.

Ora, algumas dessas estatuetas lembram muito, na fisionomia, postura do corpo e desenho dos braços, as figuras minkisi da cultura kongo, usadas no baixo rio Zaire como fetiches para garantir a boa sorte, evitar desventuras ou (nas mãos de feiticeiros maus) levar infortúnio para outros. (Slenes 1992SLENES, Robert W. (1992), “‘Malungu, ngoma vem!’: África coberta e descoberta do Brasil”. Revista USP, nº 12:48-67.: 65)

Na Bahia, Santo Antônio é sincretizado com Ogum e em Recife com Xangó (Ramos 2001RAMOS, Arthur. (2001), O negro brasileiro. Rio de Janeiro: Graphia, 5ª ed.). Entretanto, não apenas o santo franciscano ganhou novo significado, mas os orixás também passam a ter novas interpretações, ganham estereótipos, inclusive o da demonização, como é o caso de Exu, pecha que carregam até os dias de hoje.

O sincretismo entre Exu e Santo Antônio

A sincretização que aproximou orixás, inquices e voduns africanos com santos católicos é matéria de muitos estudos no Brasil, desde os primeiros trabalhos de Nina Rodrigues, até a atualidade, ainda que os estudos mais clássicos de antropologia e de sociologia tivessem a preferência de tematizar os candomblés, particularmente, os da Bahia. Os estudos mais recentes ganharam maior amplitude, havendo trabalhos que passaram a se dedicar aos cultos das entidades espirituais que compõem o panteão brasileiro das religiões de origem africana e afro-indígena: candomblé de caboclo, tambor-de-mina, jaré, catimbó, umbanda, jongo, terecô, pajelança, encantaria etc. (Prandi 2011PRANDI, Reginaldo. (2011), Encantaria brasileira: o livro do mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas .).

Santo Antônio, de modo extemporâneo e a despeito de suas biografias oficiais, ganhou fama militar e foi transformado em um santo guerreiro pelo catolicismo popular luso-brasileiro. As qualidades guerreiras do santo lisboeta, tão associadas ao nacionalismo português, e reacendidas em tempos de disputas políticas entre Portugal e Espanha, receberam novos e criativos componentes lendários em território brasileiro. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779) é uma fonte mais antiga capaz de explicar a origem da inusitada carreira militar de Santo Antônio, elaboradas em contextos coloniais brasileiros. Em seu Novo Orbe Seráfico, recupera a narrativa de Santo Antônio de Arguim (Jaboatão 1759JABOATÃO, Frei Antonio de Santa Maria. (1759), Novo orbe serafico brasilico ou crônica dos Frades Menores da Provincia do Brasil. vol. 2. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro.: 80-87). O mesmo Frei Jaboatão enseja a Luís Mott (1996MOTT, L. “Santo Antônio, o divino capitão-do-mato”. In: J. J. Reis; F. S. Gomes (org.). Liberdade por um Fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 1996.) tratar de uma das funções mais intrigantes de Santo Antônio: sua função de capitão do mato na recuperação dos escravos fugidos e na destruição dos quilombos. Assentando praça nas tropas brasileiras, também combateu os inimigos estrangeiros, piratas, franceses e holandeses, em várias partes do nosso território, como soldado raso de infantaria, capitão e coronel (Soares 1942SOARES, José Carlos de Macedo. (1942), Santo Antônio de Lisboa militar no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio.).

Entre os negros da cidade de Vassouras, província do Rio de Janeiro, uma revolta de escravos cujos líderes pertenciam a uma associação mística secreta devotada a Santo Antônio e chamada de umbanda foi abafada pelos senhores locais em 1847 (Slenes 1992SLENES, Robert W. (1992), “‘Malungu, ngoma vem!’: África coberta e descoberta do Brasil”. Revista USP, nº 12:48-67.). Aos negros vindos de África e aos seus descendentes não lhes pareceu estranho identificar o santo católico com Ogum e Xangó, orixás das guerras e das conquistas, respectivamente, nos candomblés da Bahia e do Rio de Janeiro (Sangenis 2017SANGENIS, Luiz Fernando Conde. (2017), “Santo Antônio e seus muitos nomes: mitologia afro-brasileira e educação popular”. Teoria e Prática da Educação, vol. 20 nº 1: 75-90.). Na umbanda, Ogum nos conduz a Exu; e Exu nos leva até Santo Antônio.

Na umbanda, há o sincretismo de Ogum com Santo Antônio nas cidades dos Estados do Rio de Janeiro e da Bahia, sendo Ogum considerado o chefe de Exu. Embora Exu, no candomblé, seja o primeiro a ser referenciado sempre antes de qualquer outro orixá, na umbanda ele é subordinado a Ogum. E, nas duas religiões, eles são muito próximos, ou seja, para dar alguma coisa a Exu é preciso referenciar Ogum. Quando se faz uma festa para Exu, também se referência Ogum. Quando se faz despacho para Exu, leva-se também uma oferenda para Ogum. (Bahia 2015BAHIA, Joana. (2015), “Exu na mouraria: a transnacionalização das religiões afro-brasileiras e suas adaptações, trocas e proximidades com o contexto português”. MÉTIS: História & Cultura, vol. 14, nº 28: 111-131.)

O sincretismo entre Exu e Santo Antônio é bastante comum na umbanda, surgida em fins do século XIX, não obstante certa literatura fixar sua institucionalização no início do século XX, no Rio de Janeiro. Em dia de Santo Antônio, Exu é homenageado. Mandingas, rezas, canções, receitas e ebós para agarrar marido ou desfazer enlaces amorosos são feitas ao santo e a Exu, através das pombagiras, mulheres da rua e ciganas.

As rezas e as poesias do folclore brasileiro invocam o santo casamenteiro:

Santo Antônio, me casa já Enquanto sou moça viva Porque milho plantado tarde Não dá palha nem espiga. (Silva 1934SILVA, Simoens da. (1934), Fragmentos de poesia sertaneja: folk-lore brasileiro. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil.: 56)

O xote-baião de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira parece atestar jocosamente a eficácia dos pedidos amorosos feitos a Santo Antônio.

Em matéria de amor eu nunca brigo. Pedi um casamento Santo Antônio arranjou cinco. Tenho a Luísa, tenho a Elisa, E também a Leonor. Tenho a Luzia, tenho a Maria Santo Antônio exagerou. (POEL 2013POEL, Francisco van der. (2013), Dicionário de religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura.: 968)

Anotado por diversos folcloristas brasileiros, há costumes populares exóticos praticados por alguns devotos. Por exemplo: colocar pó da imagem de Santo Antônio no chá oferecido a quem se deseja por namorado; castigo aplicado ao santo quando demora a atender aos pedidos: colocá-lo de cabeça para baixo, cozinhá-lo junto com o feijão; colocá-lo em um coador de café, amarrá-lo nos pés da cama; colocá-lo embaixo de um pilão virado; amarrá-lo pelo pescoço e afogá-lo em um poço ou cisterna do quintal; roubar-lhe o menino Jesus dos braços. A história do santo casamenteiro é mostrada no filme A Marvada Carne, de André Klodzel, produzido em 1985, e também na novela Antônio dos Milagres, de Geraldo Vietri, minissérie de 55 capítulos, exibida em 1996 pela TV CNT/Gazeta.

Em festas do santo, como a de Santo Antônio de Barbalha, na região cearense do Cariri, percebe-se a associação popular entre o pau da bandeira, carregado exclusivamente por homens, e o órgão genital masculino. O costume de esfregar as mulheres solteiras no “pau do santo”, como dizem, ativaria os poderes casamenteiros de Santo Antônio.

Durante o cortejo do pau da bandeira pelas ruas da cidade, as mulheres que se aproximam (intencionalmente ou não) são capturadas e esfregadas no tronco pelos carregadores. Uma das explicações populares para o fato, é o sentido fálico relacionado ao pau da bandeira. Outro sentido remete-se à dádiva: se o pau é um presente para homenagear o santo, o contato com ele dará maior fluidez ao pedido [...] A moça não pode ter relações sexuais antes do casamento, caso isso aconteça, somente o casamento poderia restaurá-la moralmente. A partir disso, estabeleceu-se a homologia com o ato de esfregar-se no pau de Santo Antônio, que simbolicamente representa uma violação da moça pelo Santo, o que lhe obriga a reparação pelo casamento. (Santos 2015SANTOS, Ruth Rodrigues. (2015). “‘A festa que é a mesma, sendo continuamente oiutra’: a ressignificação da Festa (do pau da bandeira) de Santo Antônio de Barbalha Ceará através das mudanças e continuidades ”. João Pessoa: Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba (UFPB).)

O jogo de coerências descrito por Santos tenta capturar os poderes casamenteiros de Santo Antônio para colocá-los a serviço das individualidades em conflito. O casamento seria a fórmula encontrada para compatibilizar a “ordem dos desejos” à “lei da aliança” no âmbito da instituição familiar (Foucault 1999FOUCAULT, Michel. (1999), História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 13ª ed.: 39). A inculcação do ideal da família canônica que buscou atingir objetivos morais e religiosos também serviu de “instrumento de controle político e de regulação indispensável para a sujeição do proletariado urbano: grande campanha para a moralização das classes pobres” (Foucault 1999: 114). Discursos recentes de eclesiásticos sobre a invocação de casamenteiro de Santo Antônio, como o de Hass, destacam que “a fama ganhou popularidade porque, em uma sociedade onde as mulheres eram, em geral, marginalizadas, Santo Antônio ajudava moças humildes a conseguirem um dote e um enxoval para poderem se casar” (G1 2008G1. (2008), “Santo Antônio é casamenteiro porque ajudava mulheres a arrumar dote”. G1 - Portal de Notícias, 13 jun. 2008. Disponível em: Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL599164-5598,00-SANTO+ANTONIO+E+CASAMENTEIRO+PORQUE+AJUDAVA+MULHERES+A+ARRUMAR+DOTE.html . Acesso em: 15/03/2020.
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).

A dimensão exusíaca de Santo Antônio, como se vê, é bem aflorada nas práticas festivas e religiosas do povo. No entanto, os sinais sexuais aflorados, no imaginário cristão, parecem não serem próprios de figuras angélicas ou canonizadas, mas utilizados para patentear representações satânicas. É necessário avançar nesse ponto e buscarmos outros referentes culturais. O ainda incompreendido Exu, “grosseiramente identificado pelos europeus com o diabo” (Prandi 2015PRANDI, Reginaldo. (2015), Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras .: 21), é o mais humano dos orixás e espelha as contradições e as ambiguidades tão características dos seres humanos, capazes de amar e odiar, unir e separar, promover a paz e a guerra.

Santo Antônio também tem lá suas relações com o diabo. Na igreja e no terreiro é desobsessor. Suas rezas e cantos usam palavras fortes. A bênção de Santo Antônio ministrada aos seus fiéis devotos defende do maligno.

Eis a Cruz do Senhor: Presenças inimigas, fugi! Venceu o Leão da Tribo Judá, Raiz de Davi! Aleluia! (Breve) O Senhor Jesus Cristo esteja junto de nós, para nos defender; Dentro de nós, para nos conservar; À frente de nós, para nos guiar; Atrás de nós para nos guardar; Sobre nós para nos abençoar; Ele que, com o Pai e o Espírito Santo, vive e reina por todo o sempre. Amém! (Plentz 2013PLENTZ, Frei Urbano. Origem e sentido da bênção de Santo Antônio. Rio de Janeiro: Convento de Santo Antônio, 2013. Disponível em: Disponível em: http://conventosantoantonio.org.br/origem-e-sentido-dabencao-de-santo-antonio.html . Acesso em: 18/03/2020.
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)

O poder taumatúrgico de Santo Antônio contra os males foi perpetuado no antiquíssimo responsório Si quaeris miracula, composto por Frei Giuliano de Spira, no ano de 1233, dois após a morte do santo.

Se milagres desejais, A morte, o erro, a calamidade O demônio, a lepra são afugentados O doente torna-se são.

Um ponto muito comum cantado nos terreiros de umbanda do Rio de Janeiro faz referência ao poder de Santo Antônio que verga e vence o mal.

Santo Antônio Pequenino, Amansador de burro brabo, Quem mexer com Santo Antônio, Tá mexendo com o diabo Rodeia, rodeia, rodeia, Meu Santo Antônio rodeia. (bis)

O povo também sabe que Santo Antônio é malino. Ninguém engana Santo Antônio! É preciso ter cuidado com ele. Pode dar um namorado, mas depois faz o casal brigar. Ele faz a cobrança das promessas de seus devotos. Às vezes, ele entra na vida das pessoas disfarçado, seja como um menino ou um velho. Ajuda os pobres e prejudica o rico.

E se o diabo existe, ele colabora com Santo Antônio. Conta a hagiografia do santo: quando um noviço roubou o breviário de Santo Antônio, o diabo correu atrás do delinquente e fez-lhe tanto medo do inferno que veio correndo devolvê-lo ao dono. Que santo poderoso é esse que até o diabo lhe presta ajuda? Assim é que Santo Antônio passou a ser invocado para encontrar as coisas perdidas.

Exu é um dos orixás priápicos, propiciador do sexo, da potência, da união. Daí, cremos também advir a fama de casamenteiro de Santo Antônio, de buscador de homem bom para as mulheres casadouras ou que desejam apenas um namorado. Sua insígnia mais marcante na África é o ogó de forma fálica, ou o pênis ereto. Entre os iorubás, Exu está associado a Elegbara, chamado de Legba pelos fon de Benim. As representações de Exu-Elegbera impressionaram os missionários europeus que, desde os seus primeiros escritos, referiram-se aos grandes falos das efígies, bastante desproporcionais ao tamanho das imagens e exibidos com despudor, nas casas, nas ruas e nas praças públicas, conforme relata o abade Bouche (1885BOUCHE, L’Abbé Pierre. (1985), Sept ans en Afrique occidentale: la côte des esclaves et le Dahomey. Paris: Pion, Nourrit & Cie. Disponível em: Disponível em: https://archive.org/details/septansenafriqu00boucgoog . Acesso em: 17/03/2020.
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: 112). A sexualidade exacerbada aos olhos europeus reforçou o entendimento de que Exu-Elegbara seria a personificação do diabo cristão.

Segundo Verger (1999VERGER, Pierre. (1999), Notas sobre o culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: EDUSP.), vários viajantes descrevem a relação existente entre o culto a Exu e a fertilidade e a procriação. Também foi responsabilizado pelos sonhos eróticos, pelo adultério e por toda relação sexual ilícita. As macumbas do Rio de Janeiro recuperaram aspectos do Exu africano que o candomblé baiano havia escondido e reprimido, notadamente sua sexualidade desenfreada, ante a necessidade de adequação desse orixá à moralidade cristã vigente.

Na umbanda, são conhecidos vários pontos de amarração. Podem propiciar alguma magia do amor ou sugerir o estilo das rezas obrigativas e bravas, contra ou a favor de situações que demandam muito poder. Segundo Poel (2013POEL, Francisco van der. (2013), Dicionário de religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura.: 904), “estas rezas se chamam obrigativas porque obrigam o santo a fazer as coisas como a gente quer”.

Caboclo da encruzilhada/Santo Antônio ele é/Amarrador de feiticeiro/Com o cordão de sua fé. // (Poel 2013POEL, Francisco van der. (2013), Dicionário de religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura.: 55)

E outro ponto de amarração faz referência às entidades da umbanda ligadas a Exu:

Santo Antônio de Batalha Faz de mim batalhador (2x) Corre e Gira Pomba Gira, Tranca Rua e Marabo (2x) Santo Antônio de Batalha Faz de mim batalhador Corre e Gira Pomba Gira, Tranca Rua e Marabo Santo Antônio de Batalha (Barô Exu) Faz de mim batalhador (2x) Corre e Gira Pomba Gira, Tranca Rua e Marabo (2x) Laroyê Exu (LETRAS, 2020aLETRAS. Santo Antônio da batalha. Belo Horizonte, 2020a. Disponível em: Disponível em: https://www.letras.mus.br/umbanda/1378368/ . Acesso em: 20/06/2020.
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)

A tentativa de moralização dos atributos casamenteiros de Santo Antônio

A popularização da fama casamenteira de Santo Antônio tornou-se irrefreável, aliás, como boa parte das manifestações devocionais e religiosas criadas pelo catolicismo popular. Assentadas em complexos processos de sincretização, a religiosidade popular precisou construir formas de ocultação de elementos culturais alheios à cultura dominante. Velar e também ressignificar são movimentos próprios da cultura dominada para se proteger da censura eclesiástica, evitar a reação, em geral, violenta a tudo o que fere e escapa ao controle da sociedade colonizadora constituída a partir de cima, e inventar formas outras de sobrevivência. Uma vez que nas hagiografias de Santo Antônio nada se encontra que pudesse justificar a fama casamenteira do santo, foi preciso que a Igreja oficial e hierárquica elaborasse as suas próprias versões fundadas em narrativas populares que melhor se coadunassem à moral e a ortodoxia católicas.

Encontramos, ao menos, três narrativas católicas e de origem europeia, e que justificariam os dotes casamenteiros de Santo Antônio (Lúcio 2014LUCIO, Antônio (org.). (2014), Devocionário de Santo Antônio. São Paulo: Paulus.).

A primeira foi publicada em 1958, pelo padre jesuíta Francois X. Weiser, austríaco de nascimento, e que se refugiou nos Estados Unidos, após a anexação da Áustria pela Alemanha, em 1938. Diz o Pe. Weiser que, no País Basco, Santo Antônio gozaria de fama de casamenteiro. Era costume que as moças bascas fizessem uma peregrinação à igreja de Santo Antônio, em Durango, no dia de sua festa. Rezavam aos pés do santo para que lhes encontrasse um bom rapaz a fim de se casarem. Por sua vez, os rapazes bascos faziam a mesma jornada e ficavam ao lado de fora da igreja até que as moças terminassem as suas preces, e, então, eles as tiravam para dançar. Especula o jesuíta que a associação entre noivado e casamento é inspirada em razão de várias imagens de Santo Antônio carregarem um bebê, representando o menino Jesus.

A segunda narrativa refere-se a uma jovem napolitana de família pobre que não dispunha de meios para pagar o dote de casamento. Em desespero, ajoelhou-se aos pés da imagem de Santo Antônio, suplicando-lhe ajuda. De forma milagrosa, desprendeu-se um bilhete a ser entregue a um agiota conhecido da cidade. Dizia o bilhete que o agiota desse à moça moedas de prata equivalentes ao peso do papel. Obviamente, o homem não se importou, achando que o peso daquele bilhete era insignificante. Mas, para sua surpresa, os pratos só se equilibraram quando houve moedas em quantidade suficiente para pagar o dote. Em outra versão, a mãe da pobre moça a queria arrastar para a prostituição, pois se não servia para se casar, porque não tinha um dote, ao menos vendendo seu corpo aos homens conseguiria algum dinheiro.

A última narrativa, bastante popular, dá conta de uma jovem que, depois de fazer uma novena a Santo Antônio, e não tendo encontrado um noivo conforme pedira em suas orações, zangou-se e jogou pela janela a imagem do santo que guardava em seu oratório particular. De modo inusitado, a imagem lançada fora, atingiu a cabeça de um caixeiro-viajante que passava. O homem apanhou a imagem e foi entregar à jovem, que se apaixona por ele e atribuiu a sua chegada a fé por Santo Antônio.

Fica evidenciado o teor pedagógico-moralizante das narrativas que refletem os ideais conservadores da família de tipo burguês. São claras as suas finalidades normatizadoras das relações entre os sexos, de modo a exaltar o matrimônio e a maternidade como os máximos anseios da mulher, permitir o controle da sexualidade, sobretudo a feminina, e a submissão da mulher ao homem na instituição do casamento e da família, em que o marido exerce poder, domínio e comando.

As pombagiras: negação dos valores da boa sociedade e tipo ideal da mulher emancipada

As pombagiras, presentes nas macumbas do Rio de Janeiro, são o anverso do ideal feminino proposto pelas narrativas dos padres. “Melhor dizendo, são figuras transgressoras, que em tudo correspondem à inversão dos valores prezados pela boa sociedade” (Augras 2009AUGRAS, Monique. (2009), Imaginário da magia: magia do imaginário. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC.: 16). As pombagiras, Maria Padilha, Maria Mulambo e as Ciganas - aqui apenas citando alguns dos seus múltiplos nomes e funções (Prandi 2001PRANDI, Reginaldo. (2001), “Exu, de mensageira a diabo: sincretismo católico e demonização do orixá Exu”. Revista USP, São Paulo, nº 50: 46-63.) -, são o estereótipo da mulher perigosa, da feiticeira, da mulher da rua, da mulher de malandro e da prostituta. Na visão de Augras (1989 AUGRAS, Monique. (1989),“DeYiá Mi a Pomba Gira: transformações e símbolos da libido. In: C. E. M. Moura (org.). Meu sinal está no teu corpo. São Paulo: EDICON/EDUSP, 1989: 14-33.), a pombagira seria a interpretação do Bombojira dos candomblés bantos, divindades correspondentes ao Exu iorubá. Verger (1999VERGER, Pierre. (1999), Notas sobre o culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: EDUSP.) também fez menção ao culto a um Exu feminino, denominado Exu Vira, representação feminina de Exu-Legba, na qual, talvez, possamos encontrar um vínculo dessas mulheres da rua com a ancestralidade africana.

A sexualidade transbordante da pombagira não põe o sexo a serviço da procriação e, portanto, ela é a negação da mãe de família e da esposa fiel e submissa ao homem. Ela ameaça, com sua independência, as relações assimétricas e socialmente instituídas entre os sexos, de modo a subverter o papel de submissão reservado à mulher. Como se diz, a pombagira é mulher de sete Exus ou de sete maridos, o mesmo que afirmar a sua liberdade sexual que não a prende a homem algum.

Pombagira é mulher de sete maridos. Pombagira é mulher de sete maridos. Mas não mexe com ela! Pombagira é um perigo! (Letras 2020bLETRAS. Pombagira sete maridos. Belo Horizonte, 2020b. Disponível em: Disponível em: https://www.letras.mus.br/umbanda/1873621/ . Acesso em: 20/06/2020.
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)

Pombagira é perigosa porque ocupa uma posição marginal, bem expressa pela figura da meretriz, da mulher perdida. Sua representação é dotada de atributos pouco recomendáveis para uma mulher considerada honesta e apta ao casamento: a lascívia, a luxúria, a sedução, a vaidade, o modo imodesto de vestir.

Mulher empoderada, a pombagira conhece os segredos do amor e é capaz de solucionar todas as questões amorosas a ela dirigidas. Capone (2018CAPONE, Stefania. (2018), A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2ª ed.) apresenta diversos casos em que, em especial, as pombagiras tornam-se os pivôs de uma reorganização profunda das relações de poder no seio dos casais, de modo a proteger as mulheres da violência e do domínio dos homens, trazendo-lhes, inclusive, independência e prosperidade econômica para que não dependessem de marido ou companheiro.

Para Menegon e Silva (2005MENEGON, Carolina; SILVA, Enio Waldir da. (2015), “A sexualidade feminina e a psicanálise: rompendo as amarras da moral sexual cristã e do sexo como reprodução”. Gênero & Direito, vol. 4, nº 3: 122-139.: 131), a produção da figura da mãe exige “a extração sistemática da feminilidade do corpo da mulher, de forma a torná-la incompatível com a função terna da maternidade”. A pombagira evoca a existência de naturezas femininas rebeldes que se contrapõem à extração de sua sensualidade e de seu erotismo. Em uma cultura saturada de valores masculinos, a pombagira molda-se à forma da personagem prostituta. A prostituta ofereceria ao homem o que ele não encontraria no espaço da família.

Além disso, construir a figura da prostituta como horizonte possível para acolher o gozo masculino seria também a condição concreta de possibilidade para a produção da figura da mulher enquanto mãe. Vale dizer, a figura da prostituta seria a condição necessária para a produção da figura da maternidade, sem a qual esta seria algo da ordem do impossível. (Menegon; Silva 2005: 132)

É corrente o discurso de que, no século XX, houve uma importante revolução social no campo da sexualidade das mulheres. Os movimentos feministas exigindo direitos iguais a dos homens e a liberalização da contracepção nos anos 1960 e 1970 foram elementos decisivos para que a sexualidade feminina fosse desvinculada da função reprodutora. A autonomia dos indivíduos, em especial das mulheres, foi reconhecida para que conduzissem as suas vidas afetiva e sexual, não mais como uma determinação natural ou biológica dada por Deus, e, portanto, controlada pelas normas morais eclesiásticas, mas como um direito individual na esfera das lutas políticas por emancipação social. Desse modo, o sexo, também para as mulheres, está relacionado ao prazer e ao desejo e não apenas à maternidade, condição tradicional da definição de uma discutível essência feminina.

No entanto é preciso refletir sobre tal narrativa, bastante inclinada a uma leitura das relações de gênero referenciada a um grupo específico de mulheres, brancas, escolarizadas e de classe média ou elitizadas. Pois é justo dizer que a revolução social no campo da sexualidade afeta as mulheres de forma diferenciada. Não se pode admitir a ideia equivocada de que as transformações recentes produziram uma sexualidade homogênea, porque não é essa a percepção das mulheres indígenas ou negras, e mesmo brancas e pobres das periferias das grandes cidades e do campo. As mulheres das camadas populares lidam com a sexualidade de forma diversa, lembrando que ainda precisam lutar mais que outras para disporem de uma sexualidade plena e que dificilmente a maternidade é uma opção desses grupos.

Contudo não seria exagerado dizer que a pombagira, personagem do antigo universo religioso afro-brasileiro, é uma espécie de tipo ideal da mulher emancipada que se tornaria um ser concreto no cenário histórico-social do século XX. À medida que a mulher é capaz de dispor de sua sexualidade de forma plena, não obstante a vigência de tantos osbstáculos a sua real emancipação, agravados por condicionantes socias, econômicos, educacionais e culturais, a maternidade é assumida por escolha e decisão individual, deixando de ser a única finalidade real ou simbólica de sua existência.

Considerações finais

Percebemos o quanto devemos avançar nos estudos culturais que tematizam as matrizes étnicas que formam o Brasil. Precisamos conhecer bem mais a história da África e suas culturas, línguas e religiões ancestrais como forma de também conhecer melhor o Brasil tão mestiço, plural e sincrético. É verdade que, nas últimas décadas, esforços significativos foram empreendidos nessa direção, desde acréscimos à legislação educacional, introduzindo a obrigatoriedade dos estudos referentes à história e à cultura africanas, ao aparecimento de diversos trabalhos importantes de pesquisa, inclusive a produção de livros e materiais de cunho didático.

As pesquisas precisam considerar o africano - mormente a africana - para além da escravidão, situação que enriqueceria substancialmente o conhecimento acerca da cultura negra na diáspora colonial. Mas há muito a ser feito nessa área, inclusive maior investimento nos estudos que elegem a história cultural, desde o período colonial brasileiro, e a busca de novas fontes que, certamente, não se resumiriam a documentos e a antigos manuscritos perdidos nos arquivos. Parafraseando Freyre (1959FREYRE, Gilberto. (1959), A propósito de frades. Salvador: Livraria Progresso Editora.), os indícios dessa história são encontrados menos na escola que serviu a uma pequena elite que na rua e nos costumes do povo; menos na cultura erudita que nas manifestações da arte popular dos iletrados; menos nas estátuas dos acadêmicos que nas imagens dos santeiros populares.

Nesse mesmo sentido, o estudo da ancestralidade pertinente a determinadas regiões do continente africano, incorporada na cultura brasileira, por meio das religiões de matrizes africanas, precisa investir mais no estudo da arte sacra. Não apenas sobre a arte de inspiração católica, como sempre se fez, mas aquela arte sacra que é produzida pelas religiões afro-brasileiras, com destaque para a umbanda.

O culto a Santo Antônio casamenteiro, amplamente vigente na atualidade e difundido no Brasil inteiro, é a ponta de um novelo que envolve uma história que, para ser melhor tramada, precisa se deslocar no espaço e no tempo. No caso desse estudo, encetamos um movimento em direção à África e volvemos ao século XV, quando o antigo reino do Congo se converte ao cristianismo. Os milhares de bantos oriundos da região centro-africana, Congo e Angola, povoaram muitas partes do Brasil, em especial, a região sudeste. Nem sempre consciente, vige entre nós uma série de traços culturais que são o produto da elaboração de um Brasil que abraçou culturalmente a África.

Por fim, em que pese os atuais avanços da sociedade, no que tange as relações de gênero, e demais direitos políticos e civis, as mulheres ainda ficam à marquem dessas conquistas, em especial, se analisarmos as questões que envolvem a sexualidade da mulher. A violência praticada contra a mulher, em níveis elevadíssimos, independentemente de cor, classe social ou nível econômico, demonstra que muito está por ser feito.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2020
  • Aceito
    27 Fev 2021
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