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Como Deus se torna real?

LUHRMANN, Tanya M. . How God becomes real: kindling the presence of invisible others. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2020, 235pp.

Deus dá trabalho. A fórmula assim muito resumida, válida também no que concerne aos espíritos, expressa bem o principal ponto de partida de Tanya Marie Luhrmann em seu novo livro. É um aviso para praticantes da antropologia que costumam tomar Deus e/ou entidades espirituais como um dado, enquanto seres assentados em determinados mundos, onde eles têm importância, e lá estivessem como se seu regime de presença fosse óbvio. Não é. E não é que não seja óbvio para a/o antropóloga/o que, por dever de profissão, cultiva o estranhamento. Não é evidente também para as pessoas engajadas em relações com eles, nas mais diversas religiões, por mais que sejam devotas, crentes, praticantes, fiéis, ou qualquer que seja o termo que se lhes aplique. Elas costumam se esforçar bastante para fazer e manter contato com esses outros invisíveis.

O argumento é desenvolvido ao longo de sete capítulos. O primeiro lança as bases da tese de que pessoas em diversos mundos sociais distinguem vários tipos de realidade nos quais vivem. Deuses e espíritos são reais, mas em uma qualidade de real (realness), que não é exatamente a mesma de todos os outros entes de mundos possíveis. Prova disso é que nem todos os acontecimentos que irrompem nas vidas das pessoas são atribuídos a deuses ou a espíritos. Há, portanto, sempre um enquadramento (faith frame) operando nas relações entre pessoas e espíritos. Na continuidade, o Capítulo 2, intitulado “Paracosmos”, descreve e analisa como mundos dos seres espirituais são, ao mesmo tempo, imaginados e reais, e de que maneira narrativas e rituais contribuem para sua instauração.

Os Capítulos 3 a 5 dedicam-se a mostrar como a qualidade de real dos seres espirituais é experimentada sensorialmente pelas pessoas em relação com eles. Discute-se o peso da predisposição e do treino para isso (Capítulo 3), as repercussões que diferentes teorias locais da mente possam ter no modo como se dão essas experiências (Capítulo 4), e as padronizações instituídas por diferentes grupos para sinalizar quais dessas experiências constituem evidências da resposta de deuses e espíritos (Capítulo 5).

Por fim, os dois últimos capítulos se dedicam a analisar como habitar esses paracosmos e viver essas experiências transformam as pessoas: para isso ela exemplifica como a oração altera a capacidade de atenção voltada a pensamentos, possibilitando aos que se engajam nela desenvolver maior reflexividade (Capítulo 6) e como Deus e espíritos são seres com quem se mantêm relações muito próximas afetando o modo como outras relações com outros seres se estabelecem em seguida (Capítulo 7).

Destaca-se de início que antropólogos, ao estudarem os crentes (como os evangélicos neopentecostais, com os quais a autora fez trabalho de campo na Califórnia e em Chicago), costumam prestar mais atenção aos momentos de certeza do que às dúvidas - algo para o que Favret-Saada (2011FAVRET-SAADA, Jeanne. (2011), “La mort aux trousses”. In: M. Gribinski (org.). Le Temps du trouble. Paris: Éditions de l'Olivier.) já havia chamado atenção - e pouco consideram as dificuldades que pessoas religiosas experimentam para manter seu engajamento com seres espirituais. Isso talvez se deva pela renitência da crença (believing in) como elemento central nas teorias e métodos antropológicos adotados, apesar das críticas contundentes que sofreram de Talal Asad e de antropólogos da virada ontológica. De fato, a questão não é tanto de crença, muito menos se ela é verdadeira ou falsa, mas de habilidades (skills) pelas quais divindades e espíritos se tornam - e permanecem - reais para as pessoas. Estamos diante de práticas de engendramento do real, ou real-making como enfatiza a autora em diversas passagens. Isso implica redirecionar o foco da descrição para os dispositivos.

Deus está nos detalhes. As questões que ela busca responder em todo livro são: de que maneira o esforço/trabalho empreendido pelas pessoas as ajuda a experimentarem, de forma vívida, que deuses e espíritos são reais, e como essas práticas transformam aquelas/es que as realizam? A resposta passa pela imaginação. Como mostram os Capítulos 1 e 2, narrativas sobre esses seres (orais ou escritas), com detalhes sobre suas características e ações, em uma série que não se fecha no tempo, abrindo a possibilidade de sua continuação aqui e agora, ajudam pessoas a se engajarem com eles, assim como ajudam os rituais, e todo um conjunto de práticas que permitem acender/ativar/despertar (to kindle) suas presenças para os humanos. Tudo isso compõe dispositivos que instauram ontologias, engendram mundos (paracosmos, como os define) que coexistem com o mundo ordinário do dia a dia. Pessoas habitam e transitam entre esses mundos. Elas tomam ônibus, levam filhos à escola, trabalham para conseguir salário, arrumam a casa, e não necessariamente estão presenciando e interagindo com deuses e espíritos o tempo todo. Mesmo as pessoas mais religiosas.

A tarefa da/o antropóloga/o é notar como se dão as passagens no regime de ação/atenção das pessoas, uma vez que o quadro (frame) de interação com outros invisíveis têm suas próprias regras, sinais e meios de interação. Regras (rules of engagement) tratam do modo como se entra em um determinado paracosmo e quais condutas são esperadas nele. Sinais (signes of participation) dizem respeito aos modos de indicar que entramos em outro mundo, o que estudos sobre a “linguagem religiosa” tais como na revisão bibliográfica de Keane (1997KEANE, Webb. (1997), “Religious Language”. Annual Review of Anthropology, vol. 26: 47-71. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.26.1.47.
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) já demonstraram. E meios de interação (means of interaction) são os modos de reconhecer a manifestação/resposta de deuses e espíritos, que se dá sempre de forma sensória. Ela traz diversos casos para apoiar sua tese a partir de pesquisas que realizou com bruxas, judeus ortodoxos, evangélicos neopentecostais, católicos de esquerda, budistas, santeros.LUHRMANN, Tanya. (2020), “Mind and Spirit: a comparative theory about representation of mind and the experience of spirit”. Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 26, S1: 9-27. https://doi.org/10.1111/1467-9655.13238.
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Contra uma antropologia simbólica convencional, que estuda as representações, trata-se de assumir que as pessoas não apenas têm ideias ou conceitos da realidade dos espíritos, mas experimentam fenômenos corporais diferentes que associam a eles. Esses eventos são tomados como resposta desses seres aos humanos. Essa atitude responsiva é, aliás, condição fundamental para uma relação duradoura entre pessoas e outros invisíveis. Experimentar esses fenômenos - que podem ser banais como arrepios, formigamentos, sensação de calor, passando por sonhos recorrentes, fraqueza muscular, até eventos como a saída do corpo, paralisia do sono, sensação de morte iminente - envolvem talento e treino (Capítulo 3). Talento, porque há pessoas que, por mais que tentem (rezando por exemplo) não conseguem experimentar o “repouso no Espírito”, e subitamente cair de joelhos num culto, ou porque entre esotéricos, mesmo praticantes assíduos têm menos visões do que outros recém-chegados. Mas o treino - ela evita o termo foucaultiano “disciplina”, evacuando as dimensões de poder que possam existir nessas práticas - pode tornar as pessoas mais atentas a esses eventos quando eles ocorrem, e a os experimentarem mais intensamente. Luhrmann relata a própria experiência corporal que teve quando começou a praticar os exercícios das comunidades de magos e bruxas britânicos com quem conviveu em campo no doutorado: suas imagens mentais se tornaram muito mais nítidas do que antes.

Em relação a essas experiências que sinalizam a manifestação do outro invisível é preciso levar em conta também a teoria local da mente (Capítulo 4): o modo como as pessoas pensam sobre suas mentes (como definem interioridade e a permeabilidade entre o que é interno à pessoa e externo a ela) afeta o modo como se darão experiências sensórias, sobretudo na zona indistinta entre a mente e o mundo sensível, zona do in-between, onde precisamente deuses e espíritos costumam ser acesos/ativados (kindled).

Por meio do que chamou de “comparatismo fenomenológico”, combinando observações em campo e entrevistas (fechadas por questionário e semiabertas), ela notou, para citar um caso, que evangélicos com o mesmo talento (“capacidade de absorção”) e treino (número de vezes em que lê a Bíblia e realiza orações, por exemplo), mas que se situam em lugares diversos (Estados Unidos e Gana) têm experiências espirituais qualitativamente diferentes. Apesar de em ambos os lugares ser comum a relação íntima com Deus como se este fosse um amigo, e o “discernimento” (saber reconhecer as imagens, sensações, pensamentos e vozes percebidos internamente, mas produzidos por um outro), norte-americanos têm menos experiências sensórias intensas do que ganenses, que relatavam mais frequentemente, por exemplo, ouvir a voz de Deus vinda do ambiente, de fora, e não como uma voz interna. Quando norte-americanos passavam por experiências do tipo, tinham mais vergonha do que ganenses em tratar do assunto com a pesquisadora. Isso indica para Luhrmann uma correlação com a concepção de pessoa nesses mundos, em que a mente humana é mais ou menos porosa ao ambiente.

Valendo-se da quantificação por meio dessas pesquisas de campo, o comparatismo se estende no Capítulo 5 a outros cenários. Não só como se dão (i) as experiências sensoriais entre pessoas da mesma religião em lugares diferentes (caso do parágrafo anterior), mas (ii) como elas ocorrem entre pessoas de religiões diferentes no mesmo lugar, e (iii) entre pessoas religiosas e não religiosas inseridas numa mesma população global. Em relação ao segundo cenário, nota-se, por exemplo, que a paralisia-do-sono é mais frequente entre budistas do que entre pentecostais norte-americanos, enquanto estes experienciam mais emoções como crise de choro do que aqueles. Em relação ao terceiro, tomando-se um conjunto de dados epidemiológicos para a população norte-americana, Luhrmann nota que fenômenos como vozes, visões e experiências místicas são significativamente mais frequentes entre pentecostais norte-americanos do que no restante do agregado. A tese é: quanto mais certos eventos (choro, soluços, saída do corpo, paralisia do sono, etc..) são positivamente valorados por um grupo de praticantes, mais eles tendem a ocorrer, ou, pelo menos, mais as pessoas tendem a prestar atenção a eles e a reagir dessa forma na interação com espíritos, ainda mais se tiverem predisposições a isso. Há uma sutileza no argumento: a maneira como se presta atenção não muda apenas aquilo que se nota, mas como se experimenta aquilo que se nota.

Os Capítulos 6 e 7 procuram demonstrar como as práticas de ativar/acender deuses e espíritos, colocando-se em relação com eles segundo regras, sinais e meios do mundo de que eles fazem parte (paracosmos) transformam as pessoas que se engajam nessas relações, inclusive em termos de saúde, possibilitando abrir diversos diálogos com a vasta bibliografia sobre espiritualidade e efeitos terapêuticos.

A imensa quantidade de dados mobilizados no livro, alguns vindos de pesquisas coletivas, certamente distingue a obra, distanciando-a de outras etnografias impressionistas acerca do sensório. Mas o principal obstáculo metodológico, o de que a experiência do outro não nos é acessível em si, mas apenas por meio de relatos (agenciados pelos atores de forma prospectiva e retrospectiva) não é diretamente confrontado, especialmente as equivocações na comunicação, presentes nas entrevistas com praticantes de diferentes mundos sociais, que tornam menos evidentes as traduções ontológicas, e poderiam refinar a análise de como religiões globais sofrem inflexões nas culturais locais. Isso afeta o alcance de generalidade das teses pretendidas, como em outra ocasião apontou Vilaça (2013VILAÇA, Aparecida. (2013), “Two or three things that I know about talking to the invisible”. Hau: Journal of Ethnographic Theory, vol.3, nº 3: 359-63. https://doi.org/10.14318/hau3.3.016
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).

Por fim, apesar de a pesquisa estar mais calcada em uma antropologia da mente (em diálogo estreito com cognitivistas) seu foco nas tecnologias adotadas pelos humanos para reconhecerem a presença de outros invisíveis e interagirem com eles é uma contribuição à antropologia das técnicas e das materialidades, e não podemos deixar de notar similitudes do achados de Luhrmann com os estudos sobre a performatividade de dispositivos que tornam reais, para os humanos que neles ingressam, seres intangíveis, a exemplo do estudo de Despret (2021DESPRET, Vinciane. (2021), “Pesquisar junto aos mortos”. Campos, vol. 22, nº 1: 289-307. http://dx.doi.org/10.5380/cra.v22i1.80501.
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) sobre comunicação com os mortos/espíritos, e outros do pragmatismo francês (Aubin-Boltanski, Lamine, Luca 2014AUBIN-BOLTANSKI, Emma; LAMINE Anne-Sophie; LUCA Nathalie (org). (2014), Croire en acte. distance, intensité ou excès? Paris: L’Harmattan.).

Terminada a leitura do livro, convencemo-nos de que Deus dá muito trabalho realmente. Não menos aos antropólogos.

Referências

  • AUBIN-BOLTANSKI, Emma; LAMINE Anne-Sophie; LUCA Nathalie (org). (2014), Croire en acte. distance, intensité ou excès? Paris: L’Harmattan.
  • DESPRET, Vinciane. (2021), “Pesquisar junto aos mortos”. Campos, vol. 22, nº 1: 289-307. http://dx.doi.org/10.5380/cra.v22i1.80501
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  • FAVRET-SAADA, Jeanne. (2011), “La mort aux trousses”. In: M. Gribinski (org.). Le Temps du trouble Paris: Éditions de l'Olivier.
  • KEANE, Webb. (1997), “Religious Language”. Annual Review of Anthropology, vol. 26: 47-71. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.26.1.47
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  • LUHRMANN, Tanya. (2020), “Mind and Spirit: a comparative theory about representation of mind and the experience of spirit”. Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 26, S1: 9-27. https://doi.org/10.1111/1467-9655.13238
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  • VILAÇA, Aparecida. (2013), “Two or three things that I know about talking to the invisible”. Hau: Journal of Ethnographic Theory, vol.3, nº 3: 359-63. https://doi.org/10.14318/hau3.3.016
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2021
  • Aceito
    01 Nov 2021
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