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Composições de pessoas e mundos na cosmopolítica afro-religiosa: a rede de relações no agenciamento das comidas dos orixás

Compositions of people and worlds in Afro-religious cosmopolitics: the network of relationships in the agency of orishas food

Resumos

Resumo: Este artigo tem por objetivo compreender de que modo os alimentos são agenciados na cosmopolítica afro-brasileira. Etnografias foram realizadas no terreiro Abaça de Oxalá, dirigido pelo Pai Aldacir, desde 2016. As discussões, que aqui apresentamos, advêm das diferentes formas e categorias do coletivo afro-religioso em agenciar as “comidas dos orixás”. A necessidade de nutrir, regularmente, as potências cósmicas é entendida pelo conceito de obrigação, que assegura vitalidade e saúde à pessoa, às entidades e a toda corrente do terreiro. As composições do padê, do sacrifício de animais, do cuidado com as quartinhas, dos ebós e de outros modos nos quais alimentos compõem o fundamento da cosmopolítica afro-religiosa, estão vinculadas às concepções dos orixás, bem como de corpo e território, em suas múltiplas associações.

Palavras-chave:
alimentos; religiões afro-brasileiras; axé; encruzilhada; fundamento


Abstract: This article aims to understand how foods are managed in Afro-Brazilian cosmopolitics. Ethnographies were carried out in the Abaça de Oxalá temple, run by Pai Aldacir, since 2016. The discussions that we present here come from the different forms and categories of the Afro-religious collective in organizing the “foods of the orishás”. The need to regularly nourish the cosmic potencies is understood by the concept of obligation, which ensures vitality and health to the person, entities and the entire current of the temple. The compositions of padê, animal sacrifice, caring for the quartinhas, ebós and other ways in which foods form the fundamento of Afro-religious cosmopolitics are linked to the conceptions of the orishás, as well as of body and territory, in their multiple associations.

Keywords:
food; afro-brazilian religions; axe; crossroads; foundation.


Introdução

A relação dos religiosos afro-brasileiros com as potências cósmicas é destacada pela mediação de alimentos, de diferentes categorias, para a realização dos trabalhos1 1 Os trabalhos tratam-se de todos os agenciamentos rituais, seja uma gira (sessão), trabalhos de cura, de limpeza, de aberturas de caminhos, de união amorosa, de aprontamento, entre outros. Ademais, vale ressaltar que o vocábulo êmico será destacado em itálico no percurso do texto. de diversas finalidades, composições e significados: para amor, cura, prosperidade, abertura de caminhos, proteções, iniciações, festas votivas, demandas (trabalhos de ataque e defesa espiritual), entre outros. Vegetais (frutas, raízes, folhas e sementes), animais (galos e galinhas, galinhas d’angola, caprinos, carnes diversas) e seus derivados (mel, melado, açúcar, ovos, azeites, condimentos, bebidas) são articulados em arranjos complexos, fundamentados em saberes e fazeres ancestrais de matriz africana, que reproduzem a presença concreta do sagrado na vida das pessoas (Anjos; Oro 2009ANJOS, José Carlos Gomes dos; ORO, Ari Pedro. (2009), Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura.).

As práticas culinárias que constituem as religiões de matriz africana devem ser entendidas além das comidas propriamente ditas (Corrêa 2005CORRÊA, Norton. (2005), “A cozinha é a base da religião: a culinária é a base da religião”. In: A. M. Canesqui; R.W. Diez Garcia (ed.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz.), sem se circunscrever “ao elemento sociológico de comensalidade” (Ramos 2015RAMOS, João Daniel Dorneles. (2015), O cruzamento das linhas: aprontamento e cosmopolítica entre umbandistas em Mostardas, Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tese de doutorado em Antropologia Social, UFRGS. :133). O agenciamento dos alimentos nos permite observar o fluxo e o encontro de múltiplas territorialidades: subjetividades, desejos, cosmologias, tradições, éticas, estéticas, corpos, memórias, epistêmes, temporalidades, lugares, que nutrem a continuidade das relações do mundo espiritual com o físico (Lody 1977). Nesse sentido, entendemos os alimentos agenciados nos trabalhos como uma base fundamental para a composição dos territórios afro-religiosos. Nesse texto, aportamos os conceitos de actante e coletivo, acionados com base em Latour (2012LATOUR, Bruno. (2012), Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.), evocando o mesmo grau de simetria entre humanos e não humanos (vegetais, animais, minerais, espíritos, lugares, alimentos etc.), em que esses não são hierarquizados pelas categorias modernas de sujeito e objeto. O coletivo carrega determinada rede de actantes composta por inúmeros não humanos, na qual o actante humano é um entre muitos.

Aportamos, também, a dimensão do território, entendido como a relação entre múltiplas territorialidades que lhe configura, expressando uma complexidade muito além de um simples recurso produtivo (Santos 2010SANTOS, Milton. (2009), A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora USP, 4ª ed.). A encruzilhada é uma categoria do pensamento afro-religioso que permite o diálogo com os conceitos de território e territorialidades. Em seu sentido usual, a encruzilhada evoca um território espacial-temporal onde ruas, caminhos e estradas se cruzam, entretanto, na lógica afro-brasileira, além dos sentidos sociais que mobilizam tais elementos, esses são permeados de componentes cosmológicos, que permitem agenciamentos e que atuam em níveis de realidade, que extrapolam os eventos do mundo físico, fomentando fluidez, movimentos, misturas, encontros, trocas, rupturas, continuidades e dinamicidade (Barbosa Neto 2012BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues . (2012), A máquina do mundo: variações sobre o politeísmo em coletivos afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Tese de doutorado em Antropologia social, UFRJ. ).

Os coletivos afro-religiosos têm na encruzilhada um modelo cartográfico para expressar o encontro das diferenças epistêmicas, ontológicas, de corpos e formas, nas relações internas e externas ao povo de santo, as quais “não se fundem numa unidade, mas seguem como multiplicidades”, que produz concepções de pessoas e cosmos “estritamente vinculadas ao modo afro-brasileiro de trabalhar as diferenças” (Anjos 2006ANJOS, José Carlos Gomes dos. (2006), No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS; Fundação Cultural Zumbi dos Palmares.:21-23). Entendemos que o agenciamento dos alimentos e seus entrelaçamentos entre pessoas, oferendas, potências cósmicas, pontos de forças (encruzilhadas, cemitérios, florestas, praias, cachoeiras), vegetais, animais, saberes ancestrais, desejos, entre outros múltiplos actantes, se trata de uma possibilidade dessas encruzilhadas se configurarem na cosmopolítica afro-religiosa.

Entendemos que a cosmopolítica é relação entre actantes humanos e não humanos, em uma concepção ontológica substancialmente diferente das interpretações científicas modernas e cartesianas sobre o cosmos (Stengers 1997STENGERS, Isabelle. (1997), Cosmopolitiques VII: Pour en finir avec la tolérance. Paris: La Découverte.).2 2 Para Stengers (1997:74), o “cosmo”, de cosmopolítica, ressoa a questão de um desconhecido que a tradição política ocidental desclassifica. O cosmos não teria uma exigência de fundação, já que haveria “modos de coexistência possíveis, sem hierarquia” e conjuntos de invenções, valores e obrigações que se afirmariam como diferentes existências, por sua vez, enredadas, compondo o cosmos. Para Stengers (1997:79), a cosmopolítica se trata de “um colocar em coexistência práticas diferentes, correspondentes a entre-capturas distintas, caracterizadas por restrições lógicas e sintáticas diferentes”.

Nosso entendimento concernente à cosmopolítica afro-brasileira é alicerçado nos trabalhos de Anjos (2006ANJOS, José Carlos Gomes dos. (2006), No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS; Fundação Cultural Zumbi dos Palmares.), Anjos e Oro (2009) e Ramos (2015RAMOS, João Daniel Dorneles. (2015), O cruzamento das linhas: aprontamento e cosmopolítica entre umbandistas em Mostardas, Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tese de doutorado em Antropologia Social, UFRGS. ). Anjos (2006) apresenta a cosmopolítica afro-brasileira analisando a encruzilhada como uma perspectiva afro-religiosa das relações com o mundo, colocando em diálogo essa lógica nos ângulos da representação religiosa e representação política, a partir de tensões entre actentes da linha cruzada com interesses do poder público e a política envolvente no processo de remoção da Vila Mirim, no bairro Vila Jardim, em Porto Alegre-RS. Anjos & Oro (2009) analisam as dimensões cosmopolíticas na procissão de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre-RS, por meio do sincretismo entre Iemanjá e Maria, em perspectivas afro-religiosas diversas (umbanda, batuque, linha cruzada) e católicas, e as controvérsias de fundamentos do sagrado entre diferentes os interlocutores que transitavam o evento. Em tal trabalho é apresentada a cosmopolítica afro-brasileira na tensão entre formas diferentes de habitar e se relacionar com o mundo, em uma disputa em que “regimes de existência que estão em jogo” (Anjos; Oro 2009:48). Ambos os trabalhos trazem questões que atravessam o cosmos afro-brasileiro em relações de conflitos e diplomacia com uma sociabilidade mais ampla que é composta por cosmovisões diferentes. Já no trabalho de Ramos (2015), a cosmopolítica afro-brasileira é compreendida com base no aprontamento dos umbandistas, enfatizando a cosmopolítica como parte da coexistência das relações entre corpos (humanos e não humanos), divindades e intensidades múltiplas na formação da pessoa aprontada como um ente compósito.

Vale ressaltar que os agenciamentos operados nessa cosmopolítica afro-religiosa são substancialmente territoriais, geradores de novas territorialidades (Deleuze; Guattari 2012DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. (1980), Mille plateaux: capitalismo et schizoprenie. Paris: Les Editions de Minuit.). O pensar negro está presente em cada agenciamento afro-religioso, carregando uma série de actantes encadeados, estabelecendo “matrizes civilizatórias africanas” (Dorneles; Anjos 2021DORNELES, Dandara Rodrigues; ANJOS, José Carlos Gomes dos. (2021), “Oferendas? Preparos e composições afro-religiosas em dois mundos”. Revista Espaço Acadêmico, nº 227: 130-141.:134), desterritorializando as noções dualistas de sujeito e objeto, indivíduo e sociedade, cunhadas pela modernidade ocidental. O fundamento afro-religioso está na presença concreta e fluída das coisas em relação, que encadeia o sagrado na configuração do mundo (Anjos; Oro 2009). Entendemos o agenciamento de alimentos, pelas suas diversas categorias, como fundamentos das religiões afro-brasileiras. Nessa lógica, todos os actantes do cosmos têm axé, que é a força sagrada invisível, que cruza e vivifica todos os componentes da existência. O axé é responsável por vincular o mundo biofísico ao espiritual.

De acordo com Berkenbrock (1997), para o candomblé, os agenciamentos dos alimentos remetem a um princípio estruturante do seu modo de vida, expresso pela ideia de oferta e restituição, em que o axé presente no alimento é ativado, possibilitando que os orixás concedam harmonia e equilíbrio à vida da pessoa e do coletivo, estreitando o relacionamento entre o ayiê (mundo físico) e o orum (mundo espiritual). Cada alimento contém axés diferenciados, que são categorizados dentro de um regime de pertencimento às potências cósmicas de acordo com as particularidades de cada casa ou tradição (Ramos 2015RAMOS, João Daniel Dorneles. (2015), O cruzamento das linhas: aprontamento e cosmopolítica entre umbandistas em Mostardas, Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tese de doutorado em Antropologia Social, UFRGS. ). Apesar de cada terreiro possuir características idiossincráticas, que se diferenciam em seus segmentos e/ou nações (Barbosa Neto 2012NETO, Rivas. (2012) “Abordagem de saúde, doença e cura nas religiões afro-brasileiras”. In: L. Assunção (ed.). Da minha folha. São Paulo: Arché.), entendemos a presença dos alimentos nos trabalhos como um “semipadrão” nos múltiplos contextos do povo de santo, em que cada terreiro tem um repertório que identifica os variados modos de agenciamentos. De acordo com Latour (2012LATOUR, Bruno. (2012), Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.), um semipadrão é um enunciado abrangente, uma linguagem comum distribuída entre os actantes do coletivo. O termo oferenda, enquanto generalização dos processos ritualísticos envolvendo o agenciamento de alimentos e/ou outros elementos, também é, aqui, considerado um semipadrão, que aporta enunciados abrangentes e reducionistas, mas que opera a complexidade, composição e sentido dos trabalhos para outros coletivos (Dorneles; Anjos 2021DORNELES, Dandara Rodrigues; ANJOS, José Carlos Gomes dos. (2021), “Oferendas? Preparos e composições afro-religiosas em dois mundos”. Revista Espaço Acadêmico, nº 227: 130-141.).

Para que seja possível compreendermos as peculiaridades e jurisdições e classificações das oferendas e suas diferenciações, de modo preciso, se dissociando dos enunciados abrangentes das narrativas externas aos coletivos afro-religiosos, é necessário situar os porta-vozes dessas práticas, lhes evidenciando seus lugares e relações. As ações dos porta-vozes, mediadores e actantes, em geral, emergem como nós na cartografia, que se cruzam e produzem o coletivo (Latour 2012LATOUR, Bruno. (2012), Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.). Assim, partimos da etnografia para seguir os actantes da rede afro-religiosa, junto a um terreiro, com o objetivo de analisar os alimentos agenciados na cosmopolítica afro-brasileira.

O terreiro Abaçá de Oxalá está localizado em Pato Branco-PR e tem sido campo de pesquisas desde 2016. As reflexões aqui aportadas partem de uma etnografia efetuada3 3 Que contempla a produção de uma dissertação de mestrado, e segue desenvolvida para composição da tese de doutorado (Favaro 2018). junto a esse terreiro de quimbanda, candomblé e umbanda, cujo dirigente é Pai Aldacir, homem negro, de 45 anos, que se dedica aos orixás4 4 Os orixás são todos os entes que não são classificados como eguns pelo local. Sejam Orixás nagôs, Exus, Pombagiras, Pretos-velhos e Pretas velhas, Caboclos e Caboclas, entre outros. Já se ouviu Pai Aldacir dizendo que um egum de luz, que é evoluído, também é um orixá. Barbosa Neto (2012) aponta que sua interlocutora, Mãe Rita da Mulambo, em Pelotas, no Rio Grande do Sul, também nominava os Exus e Pombagiras como orixás. O autor evoca um debate sobre as tênues fronteiras entre o que pode ser um egum ou orixá, pois, um interlocutor de sua pesquisa, afirmava que sua Iemanjá foi uma mulher encarnada antes de se tornar orixá, que aproxima das concepções do Pai Aldacir sobre esses diversos entes. há mais de 20 anos. Pai Aldacir é filho do Exu Sete Ventanias, na linha da esquerda (quimbanda), e filho de Oxaguiã, na linha da direita (umbanda/candomblé). Os integrantes da corrente do terreiro (corpo de filhos de santo), assim como as entidades incorporadas no Pai Aldacir e em outros/as médiuns do local também são porta-vozes desta pesquisa.5 5 Os eventos presenciados foram registrados em diários de campo, notas e fotografias. São empregados nomes fictícios para a identificação das pessoas, no decorrer do texto, com exceção do Pai Aldacir e da Cambone Iva, que aprovaram o uso de seus nomes.

A inserção do primeiro autor do artigo na rede se deu pela integração na corrente de médiuns da casa desde o primeiro ano de pesquisa. Em 2013, o autor foi iniciado em um terreiro de umbanda, em 2016, após ruptura com esse terreiro, continuou seu processo de iniciação junto ao terreiro Abaçá de Oxalá. Na relação com esse terreiro, houve interação com a comunidade, e participação semanal das giras (sessões espirituais), pelas quais o autor incorporava as suas entidades e se consultava com as entidades do Pai Aldacir.6 6 A corrente é conformada por médiuns e cambonos (auxiliares das entidades incorporadas). Durante o período em que o autor esteve inserido nela, teve diferentes integrantes em etapas temporais distintas, porém, ao todo, contabilizou com treze pessoas. Se contava também com a presença de três a dez pessoas na assistência. Cotidianamente, o Pai Aldacir, com auxílio do seu filho José e Cambone Iva, sua esposa, atende pessoas do município de Pato Branco e região por meio das consultas particulares. O autor também participou como auxiliar do pai de santo em diversos trabalhos para os consulentes: ebós (limpezas), aberturas de caminhos, quebras de demandas, feituras de assentamentos de Exus e Pombagiras, matanças (sacrifícios de animais), mierós (insumos de ervas), defumações, oferendas coletivas, entre outros, no terreiro e em pontos de força como encruzilhadas, calungas (cemitérios) e matas.

Em 2019, após três anos e meio de transmissão de saberes-fazeres do Pai Aldacir ao autor A, que ensinou os fundamentos que sustentam a existência de um terreiro e seu dirigente espiritual, o autor realizou a iniciação para se tornar pai de santo de acordo com a tradição do lugar: recebeu a mão de faca7 7 Autorização para sacrificar animais aos orixás. e o assentamento8 8 Um assentamento é o corpo físico de uma entidade, que consiste num arranjo de actantes de diferentes naturezas que correspondem ao orixá assentado, geralmente configurado num vaso de barro ou caldeirão de ferro. do seu Exu de cabeça, Exu Capa Preta.9 9 Desde então, até o presente momento, o autor não participa do terreiro como integrante da corrente, pois tem um próprio terreiro. Contudo, mensalmente nutre a conexão com os fluxos de axé do Pai Aldacir e suas entidades por meio de consultas particulares, para seguir recebendo ensinamentos, fundamentos e atualizações para continuidade do terreiro que dirige. A experiência direta do autor entre terreiros, iniciações e cultos de divindades, ancorado nos saberes ancestrais de matriz africana, permitiu que a pesquisa fosse permeada pelos afetos dos fluxos de força que operam nas encruzilhadas afro-religiosas, evocando uma “relação que envolve uma comunicação muito mais complexa que a simples troca verbal a que alguns imaginam poder reduzir a prática etnográfica” (Goldman 2005GOLDMAN, Marcio (2005), “Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografia”. Cadernos de Campo, nº 13: 149-153. :150). Entendemos que situar esse lugar de enunciação é pertinente para evidenciar a perspectiva afro-religiosa de quem fala sobre as práticas apresentadas, pois o autor também é um porta-voz e mediador desse coletivo. Ainda, vale ressaltar que trazer a perspectiva “nativa” ao texto etnográfico possibilita orientar abordagens que almejam visibilizar modos plurais de existência rompendo os dualismos que alicerçam a ontologia da ciência moderna.10 10 Tal postura está em consonância com os referenciais teóricos mobilizados da Teoria Ator-rede e da cosmopolítica afro-brasileira. Latour (2012) afirma que o pesquisador não deve apenas observar, mas também participar das dinâmicas de constituição do modo de existência em concomitante com aqueles que está seguindo. Anjos (2006:14) aponta que ter se relacionado como integrante do terreiro de linha cruzada da Mãe Dorsa transformou a sua relação de “mera contribuição militante à contribuição de filho-de-santo da casa”. Goldman (2015:648) afirma que se deve “mapear as premissas epistemológicas, ontológicas, cosmopolíticas imanentes ao discurso nativo” para que o fazer antropológico seja orientado pela palavra nativa.

Além dessa introdução e das considerações finais, a seção a seguir irá analisar os fundamentos das comidas dos orixás, discutindo as diferentes categorias e relações que perpassam o agenciamento de comidas e das potências cósmicas. Posteriormente, o ritual de ebó (limpeza) será analisado nas suas implicações com o fluxo energético do cosmos, nas relações com territórios, os fundamentos e as práticas de saúde.

O fundamento das comidas dos orixás: composições de pessoas e mundos

Na (cosmo)lógica do Abaçá de Oxalá, assim como em outros segmentos afro-religiosos, a/o comida/alimento dos orixás inclui diferentes actantes. Participantes da culinária humana (repletos de referenciais de matriz africana), assim como elementos que não fazem parte dessa dieta, tais como velas, menga (sangue de animais sacrificados), folhas de mamona, comigo-ninguém-pode, tabaco, pembas,11 11 A pemba é um minério similar ao giz que possibilita que pontos riscados (grafias sagradas) sejam elaborados. Além disso, em muitos trabalhos, a pemba ralada de determinadas cores é agenciada para lhes configurar ou potencializar. búzios, moedas, entre muitos outros, cuja composição pode ser ou não conjunta para os santos comerem. Pai Aldacir, em diferentes ocasiões, reitera que as entidades se alimentam da energia/axé do que lhe são ofertados: “o orixá é energia pura, então ele capta da natureza, dos amalás,12 12 Nas palavras do Pai Aldacir, um amalá é “a comida dos orixás”. Cada orixá possui os amalás de suas preferências, não pertencendo, apenas, ao Orixá Xangô, como é em outros contextos. das oferendas, toda energia necessária para fazer o que é pedido” (Pai Aldacir). Assim, é pertinente ressaltar que as potências cósmicas agenciadas, em termos energéticos, não necessariamente estão circunscritas à comensalidade humana, apesar de também se relacionarem diretamente com ela.

Existem relatos de que as entidades podem comer os elementos não participantes da dieta humana durante o processo de incorporação nos seus médiuns. A filha de santo Esmeralda, por exemplo, afirma que, no terreiro de linha cruzada que participava antes de se tornar filha de santo do Pai Aldacir, era comum o Exu incorporado comer as velas dos despachos para finalizar determinado trabalho. De modo similar, Corrêa (2005CORRÊA, Norton. (2005), “A cozinha é a base da religião: a culinária é a base da religião”. In: A. M. Canesqui; R.W. Diez Garcia (ed.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz.) observou, em terreiros de batuque e linha cruzada no Rio Grande do Sul que, durante certas incorporações existem práticas da ingestão do que seriam “antialimentos”, como azeite de dendê fervendo, algodão em chamas, sangue de animais abatidos, entre outros, como provas da presença do espírito no corpo da pessoa.13 13 Ramos (2015) também observou a existência de práticas similares, além de referências a elas, em sua etnografia realizada em terreiros de linha cruzada, no mesmo Estado.

Barbosa Neto (2012NETO, Rivas. (2012) “Abordagem de saúde, doença e cura nas religiões afro-brasileiras”. In: L. Assunção (ed.). Da minha folha. São Paulo: Arché.) descreve que Pai Luís de Oyá, de um terreiro de batuque (nação jeje e ijexá) e umbanda em Pelotas-RS, incorporava um egum nominado de Pantera, a qual, durante o processo de incorporação, por muitos anos, infringia cortes no seu médium, onde o espírito se alimentava do sangue que esvaía durante o ato. A entidade efetuava essa dieta hematofágica em seu corpo até lograr energia o suficiente para construir uma casa de culto específica para ela e trazer as realizações que o pai de santo necessitava, tal como afirma o autor, “desde então, a vida de Pai Luís deu, como ele mesmo diz, um grande salto, principalmente financeiro. ‘Ela está devolvendo para a gente tudo aquilo que comeu durante todos esses anos’, diz Pai Luis” (Barbosa Neto 2012:163).

Se a prática de “dar de comer” às entidades que a pessoa iniciada cultua for interrompida por alguma negligência, o próprio corpo da pessoa se transforma em “suporte culinário do espírito” (Barbosa Neto 2012NETO, Rivas. (2012) “Abordagem de saúde, doença e cura nas religiões afro-brasileiras”. In: L. Assunção (ed.). Da minha folha. São Paulo: Arché.:318), culminando consequências catastróficas. Como corrobora Corrêa (2005CORRÊA, Norton. (2005), “A cozinha é a base da religião: a culinária é a base da religião”. In: A. M. Canesqui; R.W. Diez Garcia (ed.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz.:71), “não alimentar o orixá, ou seja, não cumprir o pacto, é não apenas perder a sua proteção, mas sobretudo ficar exposto a riscos (incluindo-se castigos por parte do próprio orixá) que não raro podem resultar na morte”.

Já em nosso contexto, Pai Aldacir evoca o conceito de obrigação, que diz respeito ao compromisso de alimentar regularmente os orixás assentados no terreiro, pois cada entidade é singular e tem tratamentos específicos. Os assentamentos são mediadores elementares para o fluxo dos axés no terreiro, que emergem como “focos importantes de toda uma série de operações. Em torno deles, comidas, velas, bilhetes testemunham o cuidado que lhes é dispensado” (Rabelo 2011RABELO, Miriam Cristina Marcilio. (2011), “Estudar religião a partir do corpo: algumas questões teórico-metodológicas”. Caderno CHR, nº 61: 15-28.:24). Eles atuam como uma encruzilhada “onde se encontram deuses e humanos através de uma série aberta de entrecruzamentos e referências mútuas” (Rabelo 2011:25).

O assentamento é o corpo físico da entidade e deve ser nutrido continuamente. Nesse sentido, é interessante a percepção de Capponi (2017CAPPONI, Giovanna. (2017), “Deuses ou ciborgues? Uma análise multiespécie do conceito de assentamento no candomblé”. Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia, nº 3: 3-18.:13) do assentamento enquanto a boca da entidade, que “fala, come e transmite energia sagrada”. Por exemplo, o seu Exu Sete Ventanias é o orixá chefe do terreiro e toda a segunda-feira deve ser tratado em seu assentamento, no mínimo, com seu padê (farofa), sua bebida, seu charuto, sua vela de sete dias e ter a água da sua quartinha renovada. Mensalmente, na primeira ou na última segunda-feira de cada mês, se deve arriar14 14 O termo arriar se refere ao confeccionar e entregar determinado tipo de trabalho para uma entidade. Dorneles; Anjos (2021:136) corroboram com esse entendimento, explicitando que “Arriar: diz respeito à ação de assentar, colocar, depositar um preparo afro-religioso em algum lugar”. um galo, junto aos demais elementos, ou, na impossibilidade de ofertar um galo, colocar uma bancada de frutas, pois, de acordo com o Pai Aldacir, “as frutas têm a menga das plantas e podem substituir a matança, se for preciso”.15 15 Capponi (2017) aponta que o ejé (sangue em yorubá) é indispensável para vitalizar os assentamentos. A autora corrobora com a informação do Pai Aldacir de que as plantas e frutas contêm a menga vegetal, ao afirmar que o ejé não é apenas de origem animal, mas também vegetal e mineral, lhe caracterizando como uma substância repleta de axé. Contudo, não é desejável um intervalo de tempo muito espaçoso em relação ao sacrifício do animal: o zelador de um assentamento saberá quando será necessário arriar esse tipo de trabalho.

O orixá assentado atua como uma extensão do corpo e da vida do iniciado, “um componente não eu da pessoa, que tem uma existência material fora dela” (Rabelo 2011RABELO, Miriam Cristina Marcilio. (2011), “Estudar religião a partir do corpo: algumas questões teórico-metodológicas”. Caderno CHR, nº 61: 15-28.:23), vinculado em uma relação de compromisso permanente e recíproco.16 16 Capponi (2017:13) corrobora com esse entendimento, afirmando que “assentar o santo é também visto como um processo irreversível”, numa relação em que “a cabeça do noviço e o recipiente são “enchidos” com um certo axé, e um corresponderá ao símbolo do outro”. Quando a sua revitalização via obrigações é suprimida, é interrompido o fluxo do axé que mantém os seus caminhos da vida abertos, para realizações de saúde, amor, prosperidade, sabedoria espiritual, entre outros desejos, empreendimentos e necessidades. Se essa pessoa for a mãe ou pai de santo do terreiro, as afecções de infortúnios dos caminhos trancados também podem se estender para toda a corrente do seu terreiro.

Além das regularidades nas obrigações, que mantêm a vitalidade dos caminhos, é ampla e diversa a participação dos alimentos nos trabalhos para os variados interesses e necessidades do coletivo. Cada situação é tratada ritualmente de acordo com o que a entidade incorporada orienta, que transmite informações e particularidades sobre quais agenciamentos (de alimentos, velas, folhas, entre outros axés) e divindades que deverão ser acionadas no contexto de um(a) consulente. É pertinente salientar que nessa perspectiva, esses trabalhos movimentam forças reais que produzem eventos de caminhos abertos nos empreendimentos da vida.

Cada alimento agenciado em um trabalho, de acordo com o Pai Adacir, “é um portal que dá caminho para o orixá trabalhar”. Noutras ocasiões esse pai de santo me afirmou que “a incorporação abre portais!”, nos quais, as entidades falam, bebem, fumam e trabalham. Os portais estão nos corpos humanos e não humanos (alimentos, vegetais, animais, assentamentos etc.) e pontos de força, que são ativados quando agenciados na cosmopolítica afro-religiosa, expressando a ideia de aberturas de fluxos de forças cósmicas (espíritos e axés) que compartilham vitalidade aos caminhos do coletivo.

Nessa relação, que “faz da vida um território” (Anjos 2006ANJOS, José Carlos Gomes dos. (2006), No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS; Fundação Cultural Zumbi dos Palmares.:19), cada caminho também é “uma dimensão vivente do mundo” (Nascimento 2016NASCIMENTO, Wanderson. (2016), “Sobre os candomblés como modo de vida: imagens filosóficas entre Áfricas e Brasis”. Ensaios Filosóficos, nº 2: 153-170.:166), que pode se referir aos empreendimentos da vida (amor, saúde, prosperidade), aos portais nos corpos humanos e não humanos, ao movimento dos orixás entre as dimensões da existência, entre outros sentidos. A categoria de caminho expressa a continuidade entre a pessoa e o cosmos, designando “uma situação dinâmica da pessoa, definida e redefinida em relação aos eventos de sua vida que precisam ser interpretados e enfrentados” (Bassi 2012BASSI, Francesca. (2012), “Atos rituais: eventos, agências e eficácias no Candomblé”. Religião & Sociedade , nº 36(2): 244-265.:256). Nessa conjuntura, entendemos que cada agenciamento dos alimentos sagrados descrito no texto opera junto às noções cartográficas de portais e caminhos (abertos e/ou trancados) para produzir o mundo afro-religioso.

A prática de sacrificar animais é de grande valor nas obrigações e diversos trabalhos às linhas de quimbanda e candomblé no Abaça de Oxalá - cujas entidades têm preferência de se alimentar da menga e dos axés dos animais.17 17 Os axés dos animais são as partes do animal que a entidade se associa para o trabalho: menga, juntas e vísceras. As demais partes podem ser aproveitadas para alimentação ou rituais futuros. Para a pessoa afro-religiosa desse contexto efetivar as matanças aos orixás e entes, é necessário que tenha a mão de faca, ou, axé da faca, que é a autorização recebida do dirigente espiritual e suas entidades para sacrificar os animais nos trabalhos. Esse procedimento ocorre junto ao apronte da pessoa, que é o ritual para se tornar mãe ou pai de santo, onde assenta seu Exu ou Pombagira de cabeça e pode inaugurar um terreiro. No aprontamento o corpo da pessoa e o assento da entidade são banhados com a menga de um mesmo sacrifício (de um cabrito ou cabrita), pelo qual se tornam portais conectados.18 18 Maiores detalhes sobre esse ritual de aprontamento é descrito por Favaro e Corona (2020). Esse ritual iniciatório situa a pessoa nos circuitos de relação da rede afro-religiosa desse contexto, “marcando a sua posição tanto no espaço do terreiro quanto em seus corpos” posicionando a pessoa “em um espaço de experiência e sociabilidade” (Rabelo 2011RABELO, Miriam Cristina Marcilio. (2011), “Estudar religião a partir do corpo: algumas questões teórico-metodológicas”. Caderno CHR, nº 61: 15-28.:17).

A mão de faca é a mão de uma mãe de santo ou pai de santo desse contexto. A mão é uma parte do corpo elementar para a transmissão de energias. Ela que constrói os trabalhos e direcionam os caminhos das forças. Pai Aldacir entende que para a realização de trabalhos bem-sucedidos é necessário ter mão, isto é, ser uma pessoa que tem um dom para movimentar forças cósmicas. O cuidado com as forças que fluem pelas mãos é observado no aprendizado de que apenas a mãe ou o pai de santo podem impor as mãos sobre o orí (cabeça) de um consulente ou filho de santo. O iniciado não deve permitir que outras mãos toquem os seus orís, pois compreendem o fluxo energético potente que é veiculado pela mão, que no contato com a cabeça, pode transmitir forças indesejáveis.

Na conjuntura de significados e relevância da dimensão cósmica das mãos nos agenciamentos dos alimentos sagrados, o conceito de “mão de faca” expressa a relação do corpo da mãe ou pai de santo com o animal do sacrifício e a potência cósmica. A faca empregada nos cortes dos sacrifícios também é nominada obé, e se torna uma extensão do corpo da pessoa iniciada, e deve ser manejada apenas nos trabalhos. Quando a mão e a faca estão em operação na cosmopolítica afro-religiosa, proporcionam um fluxo energético que cria novas realidades: com a menga do animal nascem novos sacerdotes e seus assentamentos, demandas e forças nocivas são quebradas, pessoas são curadas dos caminhos trancados na saúde, no amor e nas finanças. Novos mundos são produzidos em cada agenciamento de trabalhos pelas mãos de uma mãe ou pai de santo, das quais fluem a força da criação.

O animal sacrificado é transmutado pelos trabalhos, promovendo “uma aliança pelo sangue, em que se produz, pela troca de sangue, uma fusão direta da vida humana e da vida divina” (Mauss & Hubert 2005MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. (2005), Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify.:17). Antes de o animal ser sacrificado, o iniciado deve proferir seus pedidos em seu ouvido, pois, no mundo espiritual, no reino da entidade para o qual será sacrificado, ele continuará vivo, trabalhando para a realização daquilo que foi solicitado. Os seus atributos vitais são compartilhados nas dimensões da vida de quem o trabalho é endereçado, manifestos como saúde, coragem, força de vontade, prosperidade, amor, entre outras situações.19 19 Vale ressaltar que o animal não pode sofrer durante o corte, para não contagiar a pessoa com os sentidos de sofrimento. É interessante que na lógica afro-religiosa, o sacrifício dos animais é concebido pela ideia da vida e de sua continuidade, e não pela perspectiva da morte e dos maus tratos.20 20 Ver Oro (2005) sobre as controvérsias políticas em torno do sacrifício religioso. Na relação dos seres humanos com as divindades, o grande valor da menga como mediadora dos mundos está no caráter de possibilitar a reinvenção da vida, tal como afirmam Voguel, Mello e Barros (2012VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antônio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. (2012), A galinha d’angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas , 3ª ed.:17), apontando que o sacrifício “é indispensável para abrir o caminho em todos os grandes ritos que visam transformar radicalmente a forma de existência dos seres humanos. Dentre eles a iniciação, mais do que qualquer outro, precisa oferecer vida por vida”.

Apesar de o sacrifício de galos e galinhas ser o mais frequente dentro do terreiro Abaça de Oxalá, também são agenciados sacrifícios de outros animais, como galinhas d’angola, patos e patas, e quatros pés (bodes e cabritas),21 21 Outras classes de animais, como faisões, perus, carneiros, porcos, bois e ovelhas, emergem como possibilidades de sacrifícios, mas, em nosso contexto, não tivemos a oportunidade de averiguar a ocorrência delas no terreiro em questão. sendo que os últimos são os prediletos dos Exus e Pombagiras. Os axés (partes internas) são extraídos do animal sacrificado e depositados sobre o amalá, sendo que o restante (carne) pode ser usada para alimentação, na confecção de tambores e outros utensílios, com o couro, e no aproveitamento dos ossos, para outros trabalhos.

Os axés dos animais podem ser ofertados de duas formas: crus ou fritos no epô (azeite de dendê). Na forma crua, a cabeça e as juntas do animal são retiradas no momento do ritual e, depois, montadas no alguidar com o amalá.22 22 Quando a matança é na linha de quimbanda, o amalá se trata necessariamente do padê. Na forma frita, após entregar o sangue à entidade, o ritual no templo tem um intervalo e continua na cozinha, onde o animal é limpo de suas penas ou pelos, onde suas juntas, cabeça e vísceras são retiradas e fritas no dendê, e posteriormente são montados sobre o amalá no alguidar. O trabalho de montar o animal no prato, sobre o amalá, além de reterritorializar o animal articulado em toda rede das oferendas, deve ser permeado de cautela, para que não sejam trocadas as partes (por exemplo, perna direita com perna esquerda), e assim, quizilar (azarar) com a entidade, trancando os caminhos com resultados contrários aos intentos do trabalho,23 23 Bassi (2012) ao analisar as quizilas e cautelas rituais do povo de santo em suas complexidades, enfatiza que a quizila pode ser percebida em diversas práticas que desencadeiam forças contrárias ao bem-estar: alimentos, situações, lugares, indumentárias, entre outros elementos que podem ser restringidos para precaver os infortúnios. pois nessa lógica os corpos estão conectados nos agenciamentos.

A prática de arriar o padê para Exu é elementar no culto de quimbanda, se tratando do amalá mais frequente nos trabalhos aos Exus e Pombagiras do Abaça de Oxalá,24 24 No Abaça de Oxalá, entidades como Obaluaê, Iansã e Ogum também recebem padê, não se tratando de uma oferenda circunscrita à classe de Exu e Pombagira. compondo as obrigações semanais e mensais, junto às matanças, feitiços, defesas, aberturas de caminhos, trabalhos amorosos, feituras, entre outros. A composição padê consiste na base farinha de pau (farinha de mandioca)25 25 O padê com farinha de mandioca é agenciado, principalmente, às entidades da linha das almas, que são aquelas que possuem a calunga (cemitério) como ponto de força, contudo, pode ser também agenciado junto às entidades da linha das matas (que recebem o padê tanto com base de mandioca ou de milho). ou na de milho,26 26 O padê com farinha de milho é agenciado, principalmente, às entidades da linha da encruzilhada, que são as que possuem esse lugar como ponto de força. junto a diferentes misturas, que variam conforme o objetivo do trabalho. São três as principais categorias de padê que são elaborados: “padê quente”, “padê frio” e “padê doce”.

O padê quente consiste na mistura com epô (azeite de dendê), visando trazer dinamicidade, força ígnea, “esquentar” relações, situações ou pessoas. O padê frio é realizado em duas possibilidades: com água ou marafo (cachaça). Com água, esse padê objetiva atrair calmaria e apaziguamento de espíritos, pessoas e situações, com marafo se busca quebrar/interromper o fluxo das demandas (magias destrutivas) e forças contrárias (invejas, olho gordo, entre outros), que logram penetrar ou infestar a vida da pessoa. Quando uma pessoa tem um inimigo que emana vibrações de fúria contra ela, entregar o nome do inimigo em cima de um padê frio, seja com água ou marafo, é potente para “esfriar” os pensamentos contrários. O padê doce é realizado com mel, melado ou açúcar mascavo, muitas vezes adicionado com champanhe (quando entregue às Pombagiras), visando atrair prosperidade, vitalidade e realizações amorosas.27 27 Existem outras composições de padê além daquelas descritas aqui, as quais são as principais, mas não únicas. Existe a possibilidade de adicionar bebidas como uísque, gim ou conhaque, pimenta, fundanga (pólvora), álcool, entre muitos outros, que dependem do objetivo do trabalho e das orientações do oráculo (jogo divinatório) ou no que a entidade incorporada indica fazer.

Santos (2017SANTOS, Juana Elbein dos. (2017), Os nagô e a morte: pàde, asèsè e o culto de Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 14ª ed.) apresenta o ritual do pàdé como um rito a Exu, que precede as obrigações e festas votivas do candomblé nação nagô na Bahia, e deve ser obrigatoriamente efetuado para assegurar a fluidez dos trabalhos.28 28 Segundo Santos (2017), o ritual do “despacho de Exu”, nos candomblés nagô, se trata de um rito de padrões similares, porém, menos elaborado que o descrito por ela em riqueza de detalhes e complexidade. Apesar de se situar em uma cosmologia que se diferencia do padê da quimbanda de nosso contexto, é interessante algumas similaridades que são observadas, tais como o agenciamento de actantes como a farinha de mandioca (iyefun), epô, omí (água) e bebida destilada (otin),29 29 Oriunda da seiva da palmeira. entregues à Exu, que “é o encarregado de transportar, comunicar e restituir o asé [...]” (Santos 2017:222). A autora afirma que pàdé é um termo iorubá que significa “literalmente reunião ou ato de reunir”, cuja reunião “estabelece-se em vários níveis, sendo Esú a mola que move todos os mecanismos inerentes” (Santos 2017:210-222). Silva (2015SILVA, Vagner Gonçalves da. (2015), Exu: o guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas.:136) corrobora com essas informações, afirmando que no pàdé “o objetivo principal do rito é pedir a Exu que reúna ou propicie o encontro das partes que se acham separadas ou distantes: o leste do oeste, o norte do sul, a terra visível (aiê) da invisível (orun), os homens dos orixás, os vivos dos mortos”.

Seja no contexto da quimbanda praticada no terreiro do Pai Aldacir, ou nos contextos dos candomblés baianos - assim como em outras expressões afro-brasileiras -, o padê/pàdé para Exu é muito mais complexo do que uma simples “farofa simbólica”, e reúne corpos-portais de diferentes naturezas para abrir e facilitar os variados caminhos ao coletivo. Pai Aldacir enfatizou, diversas vezes, que o seu Exu de frente, Sete Ventanias, além de ser o principal orixá da casa, por chefiar sua cabeça e todo o templo, deve sempre ser o primeiro a receber os axés antes de qualquer outra entidade de outras linhas.

Tanto na quimbanda, na umbanda, no candomblé, ou outras linhas, Exu é guardião e mediador dos caminhos que entrecruzam os mundos (Silva 2015SILVA, Vagner Gonçalves da. (2015), Exu: o guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas.), e apenas se desloca entre esses se lhe prestarem os devidos pagamentos, por isso, Exu sempre é o primeiro a comer antes de qualquer trabalho, para proporcionar fluidez aos caminhos do terreiro (Prandi 2001PRANDI, Reginaldo. (2001), “Exu, de mensageiro a diabo: sincretismo católico e demonização do orixá Exu”. Revista USP, nº 1: 46-63.). Assim, Exu encadeia a tensão presente nas barganhas entre o mundo físico com o espiritual, expressas pelas oferendas (Silva 2015).

A obrigação de ofertar, semanalmente, o padê para Exu em seu assentamento, proporciona que os caminhos sejam nutridos e revitalizados. Exu tem compromisso com aqueles que são leais às obrigações, e corre a sua gira30 30 Correr gira é um conceito que expressa o movimento da entidade entre os mundos. com os portais da oferenda para que a sua pessoa iniciada seja favorecida. A oferta regular do seu padê é indispensável à produção da existência afro-religiosa do contexto etnográfico analisado, que sustenta todas as demais relações, pois, como realçou Pai Aldacir em múltiplos momentos, “sem Exu não se faz nada!”.

O padê trabalhado regularmente atualiza a presença do Exu na vida de cada pessoa iniciada, que se intensifica quando acompanhado de outros actantes além das suas misturas básicas (quentes, frias ou doces), tais como, cebola roxa, limão, pimentas, folhas, favas (sementes), menga e axés de um animal sacrificado, frutas cítricas ou doces, entre outras composições. Nesse contexto, os actantes alimentos por serem portais que desencadeiam eventos no mundo devem ser agenciados e combinados com fundamento, significados e cautela, junto às orientações do Exu assentado, e não de modo aleatório.

Retornando ao conceito de obrigação, que atravessou a discussão sobre as matanças, e sobre o padê enquanto comida elementar na dieta cósmica às entidades de quimbanda no Abaça de Oxalá, é interessante apontar que a obrigação pode ter diferentes modos de realização de acordo com cada contexto. Avila (2011ÁVILA, Carla Silva. (2011), A Princesa Batuqueira: etnografia sobre a interface entre o movimento negro e as religiões de matriz africana em Pelotas, RS. Pelotas: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal de Pelotas.), em seus registros etnográficos feitos em terreiros de batuque, umbanda e linha cruzada em Pelotas-RS, lhe descreve como análogo à prática de sacrifícios de animais no terreiro da Mãe Nara de Xapanã, “onde os filhos de santo não utilizam a palavra sacrifício, mas sim obrigação” (Avila 2011:125), cujos rituais “se oferecem o axorô, ou seja, o sangue que simboliza o axé de vida” (Avila 2011:58). Contudo, a autora reconhece que o termo não é circunscrito aos trabalhos de matança, ao afirmar que ele “não se restrinja somente ao ritual de corte em si, tratando-se da relação permanente com o orixá assentado, dos cuidados com a água nas quartinhas, das eventuais bandejas com os alimentos” (Ávila 2011:125).

No que tange ao cuidado com a água na quartinha dos assentamentos nas obrigações, se trata de uma prática aparentemente “simples”, mas de grande fundamento e importância. A água da quartinha também é parte da composição do corpo do orixá expresso pelo assentamento, sendo uma manifestação materializada da força cósmica assentada, possibilitando os agenciamentos de cura, proteção e equilíbrio para a entidade trabalhar. Segundo Pai Aldacir, o sopro da água de uma quartinha sobre um consulente durante um trabalho pode lhe descarregar com grande potência, curar e abrir caminhos. Em certa ocasião, afirmou que “quando vou dormir e sinto dor de cabeça e no corpo, posso ter certeza de que é porque secou a quartinha de Xangô”, expressando que o ato de alimentar as entidades se associa, diretamente, com o seu corpo, sua pessoa e seu bem-estar.

Pai Aldacir relaciona a presença indispensável de água nos amalás e quartinhas dos assentamentos ao trânsito das entidades entre os territórios que percorrem espiritualmente, tal como afirma, “se o orixá passar por um lugar que tiver água, se não tiver água no amalá, ele não passa e dificulta para realizar o pedido”. De acordo com Santos (2017SANTOS, Juana Elbein dos. (2017), Os nagô e a morte: pàde, asèsè e o culto de Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 14ª ed.:214), o omí, água, “é a oferenda por excelência que [...] fertiliza, apazigua e torna propício, nenhuma oferenda ou invocação poderá ser efetuada sem água”. Na pesquisa de Ramos (2015RAMOS, João Daniel Dorneles. (2015), O cruzamento das linhas: aprontamento e cosmopolítica entre umbandistas em Mostardas, Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tese de doutorado em Antropologia Social, UFRGS. ), junto a um terreiro de linha cruzada em Mostardas-RS, as explicações de Mãe Irma se assemelham com as informações veiculadas por Pai Aldacir sobre os cuidados com a quartinha do orixá e suas extensões no corpo da pessoa:

No dia a dia, as quartinhas, uma vez por semana, tu tens que encher todas elas [com água], porque elas secam! Então, quando vier uma demanda que tem muito carregamento, elas secam que torram [esquentam]! Se começa a dor de cabeça, em mim, vamos supor, pode ir ver que elas estão secas! (Mãe Irma, Ramos 2015RAMOS, João Daniel Dorneles. (2015), O cruzamento das linhas: aprontamento e cosmopolítica entre umbandistas em Mostardas, Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tese de doutorado em Antropologia Social, UFRGS. :199)

Nessa conjuntura, pode-se perceber a lógica que se opera no fato de que, ao interromper a alimentação aos orixás, isso pode trazer infortúnios, doenças e, até mesmo, a morte de pessoas iniciadas, pois, nutri-los regularmente em seus assentamentos pelas obrigações se associa diretamente ao próprio corpo da pessoa (Rabelo 2011RABELO, Miriam Cristina Marcilio. (2011), “Estudar religião a partir do corpo: algumas questões teórico-metodológicas”. Caderno CHR, nº 61: 15-28.; Ramos 2015RAMOS, João Daniel Dorneles. (2015), O cruzamento das linhas: aprontamento e cosmopolítica entre umbandistas em Mostardas, Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tese de doutorado em Antropologia Social, UFRGS. ; Capponi 2017CAPPONI, Giovanna. (2017), “Deuses ou ciborgues? Uma análise multiespécie do conceito de assentamento no candomblé”. Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia, nº 3: 3-18.). Pai Aldacir, além do assentamento do Exu Sete Ventanias, também tem obrigação de cuidar seus outros nove assentamentos de Exus, Pombagiras e orixás nagôs. Se deixar de alimentar esse corpo polivalente e multidimensional, ele adoece, pois é articulado, em um contínuo, com o terreiro, os seus assentamentos, os trabalhos, e todos os componentes que são agenciados, que em conjunto, são expressões dos “lados materiais” das potências cósmicas, “as quais, devemos agora acrescentar, seriam como o lado invisível de cada pessoa” (Barbosa Neto 2012NETO, Rivas. (2012) “Abordagem de saúde, doença e cura nas religiões afro-brasileiras”. In: L. Assunção (ed.). Da minha folha. São Paulo: Arché.:153), cujos significados são indissociáveis das suas materialidades (Rabelo 2011). Assim, o corpo do iniciado é um desdobramento das forças cósmicas, e “sempre plural, e nada simples”, sendo “um dos conectores fundamentais” entre o mundo humano e das divindades, que deve ser devidamente alimentado e fortalecido (Nascimento 2016NASCIMENTO, Wanderson. (2016), “Sobre os candomblés como modo de vida: imagens filosóficas entre Áfricas e Brasis”. Ensaios Filosóficos, nº 2: 153-170.: 160).

As obrigações, assentamentos, iniciações, padês, matanças, agenciamentos de alimentos diversos, a quartinha e sua água, e outras múltiplas composições dos trabalhos, são territorializações do lado material das potências cósmicas. Os efeitos e eventos desencadeados por esses agenciamentos também são territorialidades que as entidades fazem as suas presenças, de axé e caminhos abertos. A ancestralidade afrocentrada é atualizada no coletivo por essas práticas, na concretude dos corpos, que são portais vivos onde as potências cósmicas trabalham e se expressam, que não podem, de modo algum, serem reduzidas às meras representações simbólicas (Anjos; Oro 2009ANJOS, José Carlos Gomes dos; ORO, Ari Pedro. (2009), Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura.).

Ebó: a limpeza dos caminhos pelo agenciamento dos alimentos sagrados

Alimentar as forças cósmicas é um fundamento do coletivo pesquisado e da religiosidade afro-brasileira de modo mais amplo. Segundo Anjos; Oro (2009ANJOS, José Carlos Gomes dos; ORO, Ari Pedro. (2009), Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura.:86), o fundamento exprime um aspecto nuclear da ontologia afro-religiosa, que se manifesta nas relações que encadeiam e produzem a “presentificação” das potências espirituais, as quais “existem na medida em que são encarnadas em eventos, manifestadas na intensidade das coisas”.

São muitos os exemplos de alimentos da dieta cósmica das entidades que permitem visualizar o fundamento de encadeamento de ícones que participam da composição do corpo das pessoas nos coletivos afro-religiosos, e entre eles, vemos que um trabalho interessante de ser descrito e analisado é o ritual do ebó. Esse ritual, tal como agenciado no terreiro pesquisado, expressa o fluxo energético que se movimenta pelos portais dos alimentos, corpos e divindades no objetivo de limpar os caminhos da vida.

A palavra ebó pode ter diferentes sentidos em cada contexto afro-religioso. Dorneles; Anjos (2021DORNELES, Dandara Rodrigues; ANJOS, José Carlos Gomes dos. (2021), “Oferendas? Preparos e composições afro-religiosas em dois mundos”. Revista Espaço Acadêmico, nº 227: 130-141.) apontam que, no Rio Grande do Sul, o ebó é relacionado diretamente com o sacrífico de um quatro pés; já Bastide (2001BASTIDE, Roger. (2001), O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras.) aponta o ebó como um sacrifício de um galo para Exu, depositado nas encruzilhadas. Para Pai Aldacir, o “ebó é uma limpeza” a base de alimentos pertencentes às potências cósmicas, contendo sete tipos de cada ingrediente, que são trespassados ritualmente no corpo da pessoa, cuja mobilização tem a potência de cura, desterritorializando dos seus caminhos os múltiplos males e infortúnios, tais como, eguns (almas) sem luz e sofredores, kiumbas (eguns malignos, “espíritos obsessores”), demandas, maldições, maus olhados, praguejamentos, azares, doenças, pensamentos de baixas vibrações, entre outras diversas energias nocivas. De modo similar, no contexto afro-religioso riograndense, Corrêa (2005CORRÊA, Norton. (2005), “A cozinha é a base da religião: a culinária é a base da religião”. In: A. M. Canesqui; R.W. Diez Garcia (ed.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz.:78) anuncia que “a presença de certos alimentos que, por pertencerem a orixás, têm o poder de eliminar o contágio do morto”, caracterizando a limpeza como “o ato de passar no doente os alimentos sagrados dos orixás, cujo poder afastará o egum e permitirá o restabelecimento da saúde de sua vítima” (Corrêa 2005:85).

O arranjo do trabalho de limpeza no Abaça de Oxalá pode ter diferentes formas, que depende da categoria de potências cósmicas para o qual é agenciado. Um “ebó branco”, é arriado apenas com alimentos brancos,31 31 Diferente das outras modalidades de ebós que são arriados utilizando sete tipos de alimentos, no ebó branco pode ser utilizado nove tipos de alimentos, pois é entregue para a linha das almas, cuja chave numérica é nove. como ovos brancos, doboru (pipoca), canjica branca, acaçás,32 32 Alimento à base de farinha de milho branca e água, enrolados em folhas de bananeira. Geralmente seu agenciamento visa repelir a força da morte dos caminhos de uma pessoa. arroz, bolinhos das almas,33 33 Bolas de farinhas de mandioca com água e/ou mel. entre outros, que é entregue, especificamente, para entidades da linha das almas. O “ebó de legumes” é arriado com alimentos como abóboras, pepinos, cenouras, batatas, vagens, beterrabas, repolho-roxo, couves-flores, entre outros, e pode ser agenciado para diferentes linhas e entidades. O “ebó de grãos” é arriado com grãos como doboru, milho torrado, feijão preto e/ou vermelho torrado, lentilha, feijão fradinho, canjica, arroz, grão de bico, sementes de girassol, sementes de trigo, entre outros, e pode ser agenciado para entidades múltiplas. O “ebó de carnes”, arriado com sete tipos de carnes cruas diferentes, é entregue para entidades da quimbanda. Existem os “ebós mistos” que articulam elementos e entidades de diferentes classes, os quais também podem conter um galo ou galinha em sua configuração. A participação de cada actante do ebó depende da consulta oracular, que irá determinar suas particularidades.

Os alimentos são cruzados (trespassados) pela mão do pai de santo no corpo da pessoa acompanhados com rezas, pontos-cantados (cânticos sagrados), esfumaçadas de charutos, defumações com ervas, velas acesas, entre outras séries de agenciamentos. Na lógica empreendida pela tecnologia do ebó, entende-se que as forças ruins (egum, kiumba, demanda), que estavam se alimentando da pessoa, são alocadas para comer os alimentos que foram cruzados em seu corpo. Esses actantes alimentos se tornam carregados de negatividades, e devem ser despachados em um ponto de força, para seguir um fluxo para outras regiões cósmicas.34 34 Esse trabalho também pode ser efetuado diretamente em um ponto de força, e assim, dispensa a operação do despacho. Nesse aspecto, observamos um dispositivo diplomático muito interessante da cosmopolítica afro-religiosa em lidar com as diferenças, pois, assim como analisa Bassi (2016BASSI, Francesca. (2012), “Revisitando os tabus: as cautelas rituais do povo de santo”. Religião & Sociedade, nº 32(2): 170-192.), as forças destrutivas não são exorcizadas ou eliminadas do mundo, tal como em um regime dicotômico de bem ou mal absolutos, mas apaziguadas mediante uma negociação que implica em trocas, e direcionadas aos territórios que lhes desvencilham das atuações nocivas na vida da pessoa. Concomitantemente o humano se limpa, e a força negativa se alimenta, produzindo uma “complexa transformação realizada com ações que articulam a dimensão espacial e cosmológica com a dimensão existencial da pessoa” (Bassi 2016:255).

Entendemos que essa passagem de diferentes forças cósmicas entre os actantes, ocorre pela relação de continuidade entre os portais que existem em cada corpo humano e não humano reunido, tanto nas mãos do pai de santo quanto no alimento manejado e na pessoa que recebe o ritual. Nessa relação, os portais dos alimentos atuam como receptores de forças transmitidas pelos portais do corpo da pessoa, a mão do pai de santo ativa e direciona esses fluxos, e vincula a ação dos orixás ao trabalho.

Foi observado durante a realização de ebós, relatos de pessoas que diziam sentir moleza nas pernas, tremores, formigamentos, sonolência, arrepios, vertigens, entre outras sensações em seus corpos, durante ou após os agenciamentos desses elementos. Também existem relatos de experiências oníricas nos dias seguintes ao ebó, tal como o cliente do terreiro José, que afirmou sonhar com ossos humanos, agulhas e cacos de vidro sendo desenterrados de um cemitério. A explicação do Pai Aldacir para ele foi que “os orixás estão desmanchando as demandas feitas”. Outro cliente, Fernando, após receber um ebó com um galo para o Exu Belo, afirma ter sonhado que estava em meio a uma multidão de pessoas, e um homem com capuz e capa preta lhe puxou com as mãos e levou para um lugar seguro. Pai Aldacir explicitou que sonhar com multidões de pessoas sinaliza a presença de eguns em excesso, e que a entidade estava lhe afastando das influências dessas almas que estavam lhe carregando. As experiências relatadas pelos interlocutores expressam o fluxo energético que o rito movimenta, produzindo “efeitos de presença que o encadeamento deve suscitar na pessoa” (Anjos; Oro 2009ANJOS, José Carlos Gomes dos; ORO, Ari Pedro. (2009), Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura.:89).

Durante sete dias após esse trabalho, a pessoa deve entrar no preceito, isto é, se abster de comer quaisquer alimentos que estavam presentes no ebó, ingerir bebidas alcóolicas e ter relações sexuais. Nesse período existem conexões entre os portais dos corpos agenciados, pelos quais as potências cósmicas acionadas estão trabalhando para que as forças nocivas sejam devidamente destinadas aos outros planos. Caso o preceito seja interrompido, a pessoa estará sujeita a receber novamente as cargas que dela foram retiradas, pois, como diz Pai Aldacir, “os orixás estão trabalhando no corpo do cliente”.35 35 Essa prática expressa também que o “corpo é o locus privilegiado para mostrar os desencontros energéticos específicos” (Bassi 2012:183). Barbosa Neto (2012NETO, Rivas. (2012) “Abordagem de saúde, doença e cura nas religiões afro-brasileiras”. In: L. Assunção (ed.). Da minha folha. São Paulo: Arché.:321) apresenta relações similares em sua pesquisa, afirmando que em um sacrifício realizado com a finalidade de limpeza, não se deve comer a carne do animal, pois “em muitos desses casos, ele é oferecido como um modo de afastar da pessoa um espírito perigoso que possa ter se aproximado dela”. Bassi (2016:258) corrobora com o entendimento dos alimentos do ebó se tornam temporariamente negativos, apontando que “alimentar-se deles novamente chamaria de volta a energia da qual se desejava distância”.

Percebe-se a importância dos preceitos para que o corpo da pessoa se mantenha conectado, indissociável aos elementos e às entidades. De acordo com Anjos; Oro (2009ANJOS, José Carlos Gomes dos; ORO, Ari Pedro. (2009), Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura.:100-101), os preceitos asseguram os fundamentos, pois:

São os elos fundamentais entre os ícones [...] Supõe-se que o fundamento está tanto mais garantido quanto menos transformado estiver o preceito [...] Preceitos funcionam aqui como elos entre ícones, garantindo a cadeia de identificação virtualmente interminável das “coisas de religião”.

No contexto dos ebós, o preceito emerge como uma medida preventiva às quizilas e assegura o encadeamento do bem-estar.36 36 Sobre práticas de prevenções às quizilas, ver Bassi (2012). Vale ressaltar que um ebó, em todas as etapas apresentadas, também se trata de uma prática terapêutica ancestral e que favorece a cura por meio de “tratamento e prevenção de doenças que cujos métodos e eficácia diferem do tratamento convencional” (Neto 2012NETO, Rivas. (2012) “Abordagem de saúde, doença e cura nas religiões afro-brasileiras”. In: L. Assunção (ed.). Da minha folha. São Paulo: Arché.:234). A concepção de cura e doença não é circunscrita aos aspectos fisiológicos da natureza humana, pelo fato de que cada ser humano é composto por um complexo cosmológico e biopsicossocial, no qual o cosmos, a natureza, “a mente, o corpo, o social e o cultural formam uma unidade, são inseparáveis” (Neto 2012:228). Assim, o agenciamento dos alimentos dos orixás pelo ebó, atua como uma medicina (Ramos 2015RAMOS, João Daniel Dorneles. (2015), O cruzamento das linhas: aprontamento e cosmopolítica entre umbandistas em Mostardas, Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tese de doutorado em Antropologia Social, UFRGS. ), que promove a cura removendo as cargas do corpo e dos caminhos de uma pessoa.

A cosmopolítica afro-religiosa compreende que existem doenças que podem ser causadas por espíritos, que são os eguns, kiumbas, larvas astrais, e entes pagos para demandas. Se entende que a presença de um ou mais desses seres espirituais se alimentando da vida de uma pessoa pode desencadear séries de doenças em seu corpo e mente, e manifestar infortúnios e eventos que concretizam os caminhos trancados. O ebó é agenciado para esses contextos, para que a composição do mundo da pessoa seja liberta e curada das forças espirituais que encadeiam as mazelas.

O trabalho do ebó é acionado tanto para pessoas iniciadas quanto para não iniciadas (clientes). Mesmo sem o vínculo de corrente com o terreiro e suas obrigações, a pessoa não iniciada se coloca temporariamente em uma perspectiva ontológica que se fundamenta na continuidade do mundo material e espiritual com seus actantes, em multiplicidade de conexões. Ela passa por um tratamento que conecta o seu corpo e vida com orixás, alimentos sagrados, pontos de força e saberes ancestrais de matriz africana, que permitem o fluxo de forças que recompõe a vitalidade e a realização dos caminhos que busca. Já a pessoa iniciada está em constante exercício de cuidado para manutenção do axé em sua vida, pois todos os corpos humanos e não humanos são entendidos como portais que recebem e transmitem energias, e podem contagiar com cargas, invejas e problemas.

Na conjuntura de relações e encadeamentos entre corpos humanos, alimentos e potências cósmicas é possível perceber que “o corpo não é uma entidade fechada ou separada do seu entorno por contornos bem definidos. Estende-se para fora, abre-se aos lugares e sintoniza-se às coisas e pessoas [...] seu alcance e suas fronteiras são móveis” (Rabelo 2011RABELO, Miriam Cristina Marcilio. (2011), “Estudar religião a partir do corpo: algumas questões teórico-metodológicas”. Caderno CHR, nº 61: 15-28.:26). Nesse cosmos, o corpo se expressa como um território fluído e não estável, pelo qual diferentes agenciamentos se mobilizam (Rabelo 2011). Nessa fluidez e regimes de trocas entre corpo humano, alimentos, obrigações, fundamentos, energias, cuidados com a saúde, pontos de força, eguns e entidades percebe-se “a ausência de uma partição ontológica rígida entre humanos e não humanos”, que promove uma constante territorialização e desterritorialização de forças e, ainda, da composição da pessoa (Anjos; Oro 2009ANJOS, José Carlos Gomes dos; ORO, Ari Pedro. (2009), Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura.:91). Em todas as práticas relatadas, podemos dizer que existem um conjunto ontológico de multiplicidades e conexões, em que as relações entre actantes se estabelecem em séries incontáveis de associações. Assim, tratamos de modos de existências que extrapolam os significados que os olhares dicotômicos modernos concebem a realidade. Por isso, o corpo, na religiosidade afro-brasileira, não é circunscrito à sua constituição física e, por sua vez, o alimento não se restringe, apenas, à comensalidade, pois o espírito também está nas coisas concretas, criando afetos contínuos entre as variadas esferas em que a realidade se desdobra.

Considerações finais

Os alimentos agenciados na cosmopolítica afro-religiosa sempre estão em relação com uma série de outros actantes, mediados por saberes-fazeres e que proporcionam intercâmbios entre o mundo físico e o espiritual. Cada alimento, nessa perspectiva, seja consumível ou não pela dieta humana, é repleto de portais e poderes que articulam as necessidades do coletivo e configuram modos de existências. É interessante evocarmos para o diálogo suas especificidades detalhadas, pois isso corrobora para que os enunciados abrangentes das convenções sociais, que reduzem e distorcem as complexidades dessas práticas, sejam desmantelados. Favorecer o entendimento dos sentidos dos alimentos dos orixás e suas associações, permite que acusações que vinculam as oferendas como algo estritamente maligno com adjetivos como “coisa feita”, “macumbaria”, “magia negra”, sejam desmistificadas, fazendo com que os territórios e as dimensões existenciais dos coletivos afro-religiosos sejam valorizados.

A cosmopolítica que permeia a dieta dos orixás pode ser analisada por diversos níveis. Aqui, discutimos a pluralidade de actantes que se reúnem nos trabalhos das obrigações, dos sacrifícios, dos padês e dos ebós, cujo fundamento que atravessa todas as práticas apresentadas, se encontra na presença concreta das potências cósmicas pelos alimentos. Assim, vemos que toda a rede é encadeada pelos elementos materiais, seja os amalás, os assentamentos, os pontos de força, o terreiro, o corpo humano, o que remetem a ideia de fluxo energético, imaterial, em constante desterritorialização e reterritorialização pelos agenciamentos. Cada elemento material mencionado neste texto, se trata de uma extensão das potências cósmicas, por onde elas transitam. Desse modo, as noções de pessoa, território e corporeidade são entendidas de modo amplo e plural, sem se reduzir a matéria, forma ou espírito.

O encontro dos actantes pelos alimentos é repleto de formas cartográficas (portais, caminhos, cruzamentos, assentamentos), configurando-se uma encruzilhada, com associações entre humanos e não humanos, idiossincrática a cada novo agenciamento. As forças, pessoas e elementos se cruzam para gerar a existência. Nas obrigações, esses cruzamentos realizam a manutenção da vitalidade da pessoa, dos orixás e do coletivo, de modo preventivo aos infortúnios - pois, se houver falta de cuidados com os assentamentos e seus orixás, a corrente do terreiro também fica sujeita às forças contrárias. Um orixá assentado, devidamente fortalecido pela regularidade das obrigações, distribui seu axé a todo o coletivo proporcionando as realizações necessárias.

É interessante a percepção da dimensão cósmica das mãos nos agenciamentos enunciados. As mãos do pai de santo transmitem as forças que possibilitam ativar e direcionar os portais de cada alimento do trabalho. A composição de um trabalho por suas mãos faz mediação das energias entre os corpos que percorrem o ritual (cliente, alimentos, assentamentos e o seu próprio corpo) e desencadeia forças que transformam a realidade na direção do intento de realização da pessoa (amor, saúde, prosperidade, sabedoria). Nesse contexto, a mão de faca expressa que essas mãos também transmutam a vida de um animal em orixás quando faz um assentamento, em novas mães e pais de santo durante um aprontamento, e caminhos abertos a todo o coletivo.

Nos ebós, os cruzamentos das comidas das entidades com o corpo da pessoa, mediada por um complexo ritual e por seus preceitos, atuam de modo curativo, agindo diretamente sobre a mazela (caminho fechado, doença, egum, demanda), que é absorvida pelos alimentos e pelas entidades, reestabelecendo a saúde e o bem-estar da pessoa. Assim, seja de modo preventivo como nas obrigações, ou curativo como nos ebós, essas encruzilhadas também são sobre práticas de cuidado com a saúde, enquanto modos que extrapolam os entendimentos da medicina e da nutrição moderna.

A encruzilhada exprime a potência dessas associações. Os axés das entidades, do pai de santo, dos assentamentos, alimentos, das pessoas e toda série de actantes reunidos, são conectores entre diferentes esferas. Além disso, vemos que essa lógica afro-brasileira, de relação com a comida, é mobilizada com base em referenciais de matriz africana, que destacam a resistência do pensar e do fazer negro, entre conexões que (se) diversificam por onde transitam.

Referências

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  • 1
    Os trabalhos tratam-se de todos os agenciamentos rituais, seja uma gira (sessão), trabalhos de cura, de limpeza, de aberturas de caminhos, de união amorosa, de aprontamento, entre outros. Ademais, vale ressaltar que o vocábulo êmico será destacado em itálico no percurso do texto.
  • 2
    Para Stengers (1997:74), o “cosmo”, de cosmopolítica, ressoa a questão de um desconhecido que a tradição política ocidental desclassifica. O cosmos não teria uma exigência de fundação, já que haveria “modos de coexistência possíveis, sem hierarquia” e conjuntos de invenções, valores e obrigações que se afirmariam como diferentes existências, por sua vez, enredadas, compondo o cosmos.
  • 3
    Que contempla a produção de uma dissertação de mestrado, e segue desenvolvida para composição da tese de doutorado (Favaro 2018FAVARO, Jean Filipe. (2018), A relação sociedade/divindade/natureza no templo espírita de umbanda Abaça de Oxalá em Pato Branco-PR: modos plurais de existência. Pato Branco: Dissertação de mestrado em Desenvolvimento Regional, UTFPR. ).
  • 4
    Os orixás são todos os entes que não são classificados como eguns pelo local. Sejam Orixás nagôs, Exus, Pombagiras, Pretos-velhos e Pretas velhas, Caboclos e Caboclas, entre outros. Já se ouviu Pai Aldacir dizendo que um egum de luz, que é evoluído, também é um orixá. Barbosa Neto (2012) aponta que sua interlocutora, Mãe Rita da Mulambo, em Pelotas, no Rio Grande do Sul, também nominava os Exus e Pombagiras como orixás. O autor evoca um debate sobre as tênues fronteiras entre o que pode ser um egum ou orixá, pois, um interlocutor de sua pesquisa, afirmava que sua Iemanjá foi uma mulher encarnada antes de se tornar orixá, que aproxima das concepções do Pai Aldacir sobre esses diversos entes.
  • 5
    Os eventos presenciados foram registrados em diários de campo, notas e fotografias. São empregados nomes fictícios para a identificação das pessoas, no decorrer do texto, com exceção do Pai Aldacir e da Cambone Iva, que aprovaram o uso de seus nomes.
  • 6
    A corrente é conformada por médiuns e cambonos (auxiliares das entidades incorporadas). Durante o período em que o autor esteve inserido nela, teve diferentes integrantes em etapas temporais distintas, porém, ao todo, contabilizou com treze pessoas. Se contava também com a presença de três a dez pessoas na assistência. Cotidianamente, o Pai Aldacir, com auxílio do seu filho José e Cambone Iva, sua esposa, atende pessoas do município de Pato Branco e região por meio das consultas particulares.
  • 7
    Autorização para sacrificar animais aos orixás.
  • 8
    Um assentamento é o corpo físico de uma entidade, que consiste num arranjo de actantes de diferentes naturezas que correspondem ao orixá assentado, geralmente configurado num vaso de barro ou caldeirão de ferro.
  • 9
    Desde então, até o presente momento, o autor não participa do terreiro como integrante da corrente, pois tem um próprio terreiro. Contudo, mensalmente nutre a conexão com os fluxos de axé do Pai Aldacir e suas entidades por meio de consultas particulares, para seguir recebendo ensinamentos, fundamentos e atualizações para continuidade do terreiro que dirige.
  • 10
    Tal postura está em consonância com os referenciais teóricos mobilizados da Teoria Ator-rede e da cosmopolítica afro-brasileira. Latour (2012) afirma que o pesquisador não deve apenas observar, mas também participar das dinâmicas de constituição do modo de existência em concomitante com aqueles que está seguindo. Anjos (2006:14) aponta que ter se relacionado como integrante do terreiro de linha cruzada da Mãe Dorsa transformou a sua relação de “mera contribuição militante à contribuição de filho-de-santo da casa”. Goldman (2015GOLDMAN, Marcio (2015), “Quinhentos anos de contato: por uma teoria etnográfica da(contra)mestiçagem”. Mana, nº 3: 641-659.:648) afirma que se deve “mapear as premissas epistemológicas, ontológicas, cosmopolíticas imanentes ao discurso nativo” para que o fazer antropológico seja orientado pela palavra nativa.
  • 11
    A pemba é um minério similar ao giz que possibilita que pontos riscados (grafias sagradas) sejam elaborados. Além disso, em muitos trabalhos, a pemba ralada de determinadas cores é agenciada para lhes configurar ou potencializar.
  • 12
    Nas palavras do Pai Aldacir, um amalá é “a comida dos orixás”. Cada orixá possui os amalás de suas preferências, não pertencendo, apenas, ao Orixá Xangô, como é em outros contextos.
  • 13
    Ramos (2015) também observou a existência de práticas similares, além de referências a elas, em sua etnografia realizada em terreiros de linha cruzada, no mesmo Estado.
  • 14
    O termo arriar se refere ao confeccionar e entregar determinado tipo de trabalho para uma entidade. Dorneles; Anjos (2021:136) corroboram com esse entendimento, explicitando que “Arriar: diz respeito à ação de assentar, colocar, depositar um preparo afro-religioso em algum lugar”.
  • 15
    Capponi (2017) aponta que o ejé (sangue em yorubá) é indispensável para vitalizar os assentamentos. A autora corrobora com a informação do Pai Aldacir de que as plantas e frutas contêm a menga vegetal, ao afirmar que o ejé não é apenas de origem animal, mas também vegetal e mineral, lhe caracterizando como uma substância repleta de axé.
  • 16
    Capponi (2017:13) corrobora com esse entendimento, afirmando que “assentar o santo é também visto como um processo irreversível”, numa relação em que “a cabeça do noviço e o recipiente são “enchidos” com um certo axé, e um corresponderá ao símbolo do outro”.
  • 17
    Os axés dos animais são as partes do animal que a entidade se associa para o trabalho: menga, juntas e vísceras. As demais partes podem ser aproveitadas para alimentação ou rituais futuros.
  • 18
    Maiores detalhes sobre esse ritual de aprontamento é descrito por Favaro e Corona (2020FAVARO, Jean Filipe; CORONA, Hieda Maria Pagliosa. (2020), “A cosmopolítica dos Orixás: encruzilhadas entre humanos, divindades e natureza”. Debates do NER, nº 37: 01-25.).
  • 19
    Vale ressaltar que o animal não pode sofrer durante o corte, para não contagiar a pessoa com os sentidos de sofrimento.
  • 20
    Ver Oro (2005ORO, Ari. “O sacrifício de animais nas religiões Afro-brasileiras: análise de uma polêmica recente no Rio Grande do Sul”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, nº 2, 2005.) sobre as controvérsias políticas em torno do sacrifício religioso.
  • 21
    Outras classes de animais, como faisões, perus, carneiros, porcos, bois e ovelhas, emergem como possibilidades de sacrifícios, mas, em nosso contexto, não tivemos a oportunidade de averiguar a ocorrência delas no terreiro em questão.
  • 22
    Quando a matança é na linha de quimbanda, o amalá se trata necessariamente do padê.
  • 23
    Bassi (2012) ao analisar as quizilas e cautelas rituais do povo de santo em suas complexidades, enfatiza que a quizila pode ser percebida em diversas práticas que desencadeiam forças contrárias ao bem-estar: alimentos, situações, lugares, indumentárias, entre outros elementos que podem ser restringidos para precaver os infortúnios.
  • 24
    No Abaça de Oxalá, entidades como Obaluaê, Iansã e Ogum também recebem padê, não se tratando de uma oferenda circunscrita à classe de Exu e Pombagira.
  • 25
    O padê com farinha de mandioca é agenciado, principalmente, às entidades da linha das almas, que são aquelas que possuem a calunga (cemitério) como ponto de força, contudo, pode ser também agenciado junto às entidades da linha das matas (que recebem o padê tanto com base de mandioca ou de milho).
  • 26
    O padê com farinha de milho é agenciado, principalmente, às entidades da linha da encruzilhada, que são as que possuem esse lugar como ponto de força.
  • 27
    Existem outras composições de padê além daquelas descritas aqui, as quais são as principais, mas não únicas. Existe a possibilidade de adicionar bebidas como uísque, gim ou conhaque, pimenta, fundanga (pólvora), álcool, entre muitos outros, que dependem do objetivo do trabalho e das orientações do oráculo (jogo divinatório) ou no que a entidade incorporada indica fazer.
  • 28
    Segundo Santos (2017), o ritual do “despacho de Exu”, nos candomblés nagô, se trata de um rito de padrões similares, porém, menos elaborado que o descrito por ela em riqueza de detalhes e complexidade.
  • 29
    Oriunda da seiva da palmeira.
  • 30
    Correr gira é um conceito que expressa o movimento da entidade entre os mundos.
  • 31
    Diferente das outras modalidades de ebós que são arriados utilizando sete tipos de alimentos, no ebó branco pode ser utilizado nove tipos de alimentos, pois é entregue para a linha das almas, cuja chave numérica é nove.
  • 32
    Alimento à base de farinha de milho branca e água, enrolados em folhas de bananeira. Geralmente seu agenciamento visa repelir a força da morte dos caminhos de uma pessoa.
  • 33
    Bolas de farinhas de mandioca com água e/ou mel.
  • 34
    Esse trabalho também pode ser efetuado diretamente em um ponto de força, e assim, dispensa a operação do despacho.
  • 35
    Essa prática expressa também que o “corpo é o locus privilegiado para mostrar os desencontros energéticos específicos” (Bassi 2012:183).
  • 36
    Sobre práticas de prevenções às quizilas, ver Bassi (2012).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2021
  • Aceito
    04 Jul 2022
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