Acessibilidade / Reportar erro

“A galinha da religião de preto” e o reconhecimento de direitos: controvérsias e mobilizações dos povos tradicionais de terreiro em defesa da soberania alimentar e do enfrentamento ao racismo

“Black peoples' chicken” and the recognition of rights: controversies and mobilizations of tradicional terreiro peoples for food sovereignty and the confrontation of racism

Resumos

Resumo: O artigo analisa como os afrorreligiosos construíram estratégias de positivação da alimentação tradicional dos terreiros na cena pública para assegurar seus modos de vida. Os dados etnográficos foram construídos junto, especialmente, aos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma) e do Grupo de Estudos Braulio Goffman (GEBG), entre 2014 e 2018. Nosso objetivo foi compreender como os interlocutores produziram uma agenda nacional em defesa do “abate religioso” nos terreiros antes do julgamento do Supremo Tribunal Federal. O trabalho conclui que é com base na defesa ao direito da alimentação tradicional que os afrorreligiosos criaram estratégias de enfrentamento ao racismo religioso e de reivindicações direitos tendo por referência à legislação internacional de direitos humanos.

Palavras-chave:
abate religioso; racismo religioso; reconhecimento de direitos


Abstract: The paper analyses how Afro-religious have built strategies to value traditional eating habits of “terreiros” (cult house) on the public scene to ensure their ways of life. The ethnographic data were constructed in cooperation with members of the National Food and Nutritional Security Forum of Traditional African Matrix Peoples and the Braulio Goffman Study Group, between 2014 and 2018. Our goal was to understand how they created a national agenda for the “religious slaughter” on cult houses before the trial on the Supreme Federal Court. The work concludes that, starting on the defense of the right to traditional nutrition, the Afro-religious established strategies to fight religious racism and the vindication of rights having as reference the international human rights legislation.

Keywords:
religious slaughter; religious racism; recognition of rights.


Introdução

O artigo pretende analisar como os afrorreligiosos,1 1 Refere-se aos ativistas que empreendem a luta antirracista, cujas mobilizações são oriundas ou envolvem os terreiros, o termo procura delimitar um perfil de atores que, mesmo atuando em diferentes movimentos sociais, inclusive o movimento negro, pretende ressaltar seu pertencimento religioso às tradições afro como sua principal característica identitária. Ver: Miranda, 2020; Almeida, Silva (no prelo). entendidos como lideranças religiosas que militam na esfera pública em prol dos direitos das comunidades tradicionais de terreiro, vêm construindo estratégias de mobilização (Cefaï 2009CEFAÏ, Daniel. (2009), “Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 2(4): 11-48.) voltadas à defesa da soberania alimentar, frente à controvérsia (Montero 2012MONTERO, Paula. (2012), “Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso”. Religião e Sociedade , vol. 32, nº 1: 167-183.)2 2 Conforme a autora: “uma forma de ‘incerteza compartilhada’ (...) trata-se de compreender como um conjunto de fatos é reunido em um debate público, quais os processos de tradução que transformam o sentido da linguagem ordinária em um problema social” (Montero 2012:178). do abate religioso. Quando este artigo começou a ser escrito, o Supremo Tribunal Federal (STF) preparava-se para julgar o Recurso Extraordinário (RE) 494601, no qual se questionava a constitucionalidade da lei gaúcha nº 12.131/2004 (Oro 2012ORO, Ari Pedro et al. (2012), A religião no espaço público: atores e objetos. São Paulo: Terceiro Nome. ). O imbróglio jurídico dizia respeito a uma emenda ao Código Estadual de Defesa dos Animais que visava descriminalizar o abate religioso por adeptos das comunidades de terreiro no estado. A emenda foi resultado das mobilizações políticas dos afrorreligiosos gaúchos que, diante da proibição do abate religioso na primeira versão da lei, conseguiu incluir um parágrafo no Código Estadual de Defesa dos Animais para que a liberdade religiosa das religiões afro continuasse garantida no Rio Grande do Sul. Mesmo considerado constitucional pelo STF, as controvérsias em torno do tema não cessaram.

Na primeira versão,3 3 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no Grupo de Trabalho Controle Social, Segurança Pública e Direitos Humanos, no VIII Seminário Nacional de Sociologia e Política, em Curitiba (2017). nosso objetivo era o de demonstrar como as categorias “abate religioso”, “sacrifício animal” e “sacrifício religioso” eram entendidas e acionadas pelos membros do Grupo de Estudos Braulio Goffman4 4 O GEBG é uma organização sem fins lucrativos constituído por adeptos e sacerdotes das religiões afro (Umbanda, Candomblé e Afro-indígenas), cujo objetivo é o de combater o preconceito contra as religiões afro-brasileiras e incentivar a formação cultural e política dos seus adeptos. Realizamos trabalho de campo junto ao grupo desde março de 2014. (GEBG), sediado na cidade do Rio de Janeiro. Fundado em 2011, o GEBG é um movimento político-religioso de atuação nacional, que desde 2013 reúne adeptos e lideranças do Candomblé e da Umbanda, de modo presencial e por meio das redes sociais (Facebook, YouTube e WhatsApp). O grupo tem atuado em campanhas de mobilização em torno de múltiplas questões referentes à garantia de direitos voltados ao “povo de santo” (Fernandes 2022FERNANDES, Tania. (2022), “Se não é ‘tradição’ é ‘aberração?’: disputas por legitimidade articuladas em linguagem jocosa por candomblecistas do Rio de Janeiro”. Revista Antropolítica, vol. 54, nº 1: 90-115.). Naquele momento, o intuito era o de perceber como esses afrorreligiosos disputavam a “forma correta” de se referir à prática do abate, visando elaborar estratégias narrativas (Maluf 1999MALUF, Sônia Weidner. (1999), “Antropologia, narrativas e a busca de sentido”. Revista Horizontes Antropológicos, vol. 5, nº12: 69-82.) que alcançassem o público externo aos terreiros, com o intuito de “combater o preconceito”.

Para este trabalho, adicionamos os dados construídos durante o trabalho de campo, realizado entre 2017 e 2019, junto aos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma5 5 O Fórum reúne adeptos e lideranças dos terreiros com intuito de popularizar a legislação internacional (Convenção 169 da OIT) que prevê garantias aos terreiros nos mesmos moldes que aos territórios quilombolas e indígenas. A ideia de que os terreiros se constituem como “Povos Tradicionais de Matriz Africana” será apresentada mais adiante. ), que tem institucionalizado núcleos de discussão nos terreiros de Candomblé nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Paraná, Brasília, Goiás, Distrito Federal, Pará e Amazonas (Almeida 2019ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. (2019), A luta por um modo de vida: as estratégias e as narrativas de enfrentamento ao racismo religioso dos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Niterói: Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.), para elaborar e promover políticas públicas que contemplem a soberania alimentar e nutricional, marcadas pela tradição e a cultura dos “povos de matriz africana”6 6 Refere-se à classificação internacional, de acordo com o Artigo 169 da OIT, adotada pelos ativistas dos terreiros para reivindicação e garantia de direitos. Ver: Morais e Jayme, 2017. .

Esse contraste entre os grupos intenta evidenciar as disputas endógenas e exógenas que alicerçam os modos pelos quais os afrorreligiosos constituem uma “política dos terreiros” (Miranda 2020MIRANDA, Ana Paula Mendes de. (2020), “‘Terreiro politics’ against religious racism and ‘christofascist’ politics”. Vibrant, vol. 17: 1-20.), que não pode ser pensada em termos abstratos, ou seja, a organização voluntária de indivíduos orientados por uma suposta igualdade cívica e uma esfera pública regulada por direitos universais. Nosso argumento é que as trajetórias de reivindicações dos movimentos negros e de terreiros é um processo histórico (Morais, Jayme 2017MORAIS, Mariana Ramos de; JAYME, Juliana Gonzaga. (2017), “Povos e comunidades tradicionais de matriz africana: uma análise sobre o processo de construção de uma categoria discursiva”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 17, nº 2: 268-283.; Gomes, Oliveira 2021GOMES, Edlaine Campos; OLIVEIRA, Luís Cláudio de. (2021), “Memórias documentadas do grupo ‘Tradição dos Orixás’: reações, resistência e ressonâncias afro-brasileiras dos anos 1980”. Religião e Sociedade, vol. 41, nº 3: 25-49.), constituído por sujeitos discriminados oficialmente por políticas nacionais que apenas após a Constituição de 1988 passaram a ser reconhecidos como cidadãos plenos, ao menos no plano formal, ou seja, como atores legítimos na arena pública.

A “galinha do preto” no STF: julgamento do abate religioso nos terreiros

O debate público instaurado a partir da mobilização em torno desse julgamento sensibilizou nacionalmente as comunidades de terreiro, culminando com a repercussão que teve o discurso do advogado Hédio Silva Junior, em sua sustentação oral no plenário do Supremo, como representante da União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil e Conselho Estadual de Umbanda e dos Cultos Afro-brasileiros do Rio Grande do Sul:

Começo dizendo que prestei atenção nas sustentações, não só nas narrativas que foram feitas nesse microfone, como também nos sapatos dos narradores. E, por acaso, os sapatos dos narradores são todos sapatos de couro. Há aqui um fenômeno da Psicologia, chama-se esquizofrenia, em que você admite, em que você faz um discurso acalorado, entusiasmado, em favor dos animais, calçando sapatos de couro! Possivelmente, alguém terá dito, e é possível que alguém terá acreditado, que bife dá em árvore, alguém vai na árvore, colhe o bife e come. Eu começo com essa ironia para tentar aqui ilustrar o fato de que nós estamos tratando aqui de uma hipocrisia. Estamos tratando aqui do que esta Corte já chamou de racismo religioso. O Brasil tem o maior rebanho bovino do planeta. Nem a Índia, que não consome carne animal por preceito religioso, tem um rebanho bovino que o Brasil tem. A Índia tem o segundo maior rebanho bovino do planeta, nós temos o maior rebanho bovino do planeta. Segundo o Ministério da Agricultura, a cada segundo a indústria do agrobusiness abate 180 frangos, um porco e um boi, portanto nesse período que eu estou importunando vossas excelências com a minha sustentação, dá uma ideia da carnificina que terá ocorrido, nesses poucos minutos que estou ocupando a tribuna com muita honra. Portanto é impressionante que há estatísticas no Brasil que comprovam que, nas periferias das cidades, jovens negros são chacinados como animais, mas não há comoção na sociedade brasileira. Não vejo instituição jurídica ingressar com medida judicial para evitar a chacina de jovens negros, mortos como cães na periferia, mas a galinha da macumba… parece que a vida da galinha da macumba vale mais do que a vida de milhares de jovens negros. É assim que coisa de preto é tratada no Brasil, a vida de preto não tem relevância nenhuma, a vida de preto não causa comoção social, a vida de preto não move instituições jurídicas, mas a galinha da religião de preto… ah, mas essa vida tem que ser radicalmente protegida! Nós estamos tratando disso aqui. Nós estamos tratando do fato de que judeus tem abate religioso para fins alimentares e para fins litúrgicos. (Hédio Silva Júnior)7 7 Neste trabalho realizamos duas formas de nomear os interlocutores: 1) quando suas falas são públicas, veiculadas em meios de comunicação, mantemos o nome dos interlocutores, como o caso do advogado Hédio da Silva Júnior e o ministro Edson Fachin; 2) quando as falas aconteceram durante o trabalho de campo, utilizamos nomes fictícios como forma de preservá-los. (grifos nossos).

A exposição de Hédio Silva Júnior explicita que o abate religioso praticado nos terreiros não é entendido com a mesma legitimidade do que os abates halal e kosher, praticados por muçulmanos e judeus, respectivamente. Seus argumentos apontam para uma perseguição religiosa instaurada no país e evidencia a discriminação racial, uma vez que os terreiros e suas práticas são percebidos como “coisa de negros”, sendo, portanto, desconsiderados (Cardoso de Oliveira 2004CARDOSO DE OLIVEIRA, Luiz Roberto. (2004), Honra, dignidade e reciprocidade. Série Antropologia. Brasília: UnB.) e desqualificados tal como a vida dos jovens negros.

“Comida de preto” e “comida de santo”: estratégias de mobilização e a construção de uma agenda política nacional

A inserção do “racismo religioso” em uma agenda política nacional na última década trouxe à baila (ao tempo que se consolidou através da) a discussão sobre a capacidade de organização e de mobilização dos afrorreligiosos a partir da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)8 8 A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi ratificada pelo Brasil, por meio do Decreto nº 5.051/2004. . A normativa assegura às populações tradicionais o direito à autodefinição e a autodeterminação (Morais; Jaime 2017MORAIS, Mariana Ramos de; JAYME, Juliana Gonzaga. (2017), “Povos e comunidades tradicionais de matriz africana: uma análise sobre o processo de construção de uma categoria discursiva”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 17, nº 2: 268-283.), dentre outros direitos, reconhecendo a estreita relação existente entre essas coletividades, os seus territórios tradicionais e os recursos naturais que utilizam para sua reprodução física, cultural, social e econômica, sejam eles utilizados de maneira permanente ou temporária.

Em 2011, a 4ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), que incorporou o I Encontro Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional da População Negra e dos Povos e Comunidades Tradicionais,9 9 O encontro teve como objetivo a discussão de políticas públicas diferenciadas, voltadas para um recorte étnico-racial e de gênero, visando a promoção da equidade e do desenvolvimento social no Brasil. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/conferencia/encontros-tematicos. Acesso em: 13/09/2019. promovidos pelo governo federal, reunindo representantes de todos os estados do país, na cidade de Salvador, deliberou como compromisso: “Apoiar e implementar a criação de um Fórum Permanente para povos de terreiros, garantindo recursos humanos, orçamentários e financeiros, estimulando intercâmbio de saberes e experiências” (Consea 2011:41).10 10 Disponível em: https://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Seguranca_alimentar_IV/relatorio_preliminar_4_conferencia_seguranca_alimentar_nutricional.pdf. Acesso em: 30/11/2021.

A mobilização dos afrorreligiosos tinha por base a ideia de que a proposta de criminalizar o abate religioso se dava como “uma das estratégias dos evangélicos para acabar definitivamente com os terreiros”, bem como destacar, no documento final da 4ª CNSAN, as deliberações sobre o reconhecimento de que o abate religioso nos terreiros estava entre as premissas de alimentação adequada dos Povos Tradicionais de Matrizes Africanas. Assim, o Consea posicionou-se a favor do abate religioso, condenando a possibilidade de sua criminalização. Como estratégia, os afrorreligiosos incluíram a ata desse encontro no Processo que tramitava no STF, constando essa posição.

A ideia de fazer valer o direito à alimentação tradicional, entendida como um “direito sagrado”, ou seja, como uma forma de respeito às práticas ritualísticas tradicionais (Campello; Bairros 2011CAMPELLO, Tereza; BAIRROS, Luiza. (2011), “Apresentação”. In: Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Alimento: Direito Sagrado. Brasília: MDS; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação.:16), segundo a qual é interdito o desperdício, por ser um fator de desequilíbrio das forças vitais. Como o objetivo da “alimentação tradicional” é a manutenção do equilíbrio social das comunidades (humanas e não humanas) que se alimentam (Flor do Nascimento 2015FLOR DO NASCIMENTO, Wanderson. (2015), “Alimentação socializante: notas acerca da experiência do pensamento tradicional africano”. Revista das Questões. nº 2: 62-74.),11 11 Os não humanos que são alimentados nos terreiros são os assentamentos das divindades, a quem são dadas oferendas - água, frutas, cereais, algumas partes dos animais - para que tenham o Axé, que faz com que a comunidade permaneça em harmonia. não necessariamente há um diálogo com as discussões que envolvem a definição de “soberania alimentar” nos termos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Nos termos da FAO, o que importa é equacionar o excedente da produção de gêneros alimentícios em países desenvolvidos e a escassez de alimentos em lugares onde o clima ou as guerras resultaram em “fome” para as populações (Chonchol 2005CHONCHOL, Jacques. (2005), “A soberania alimentar”. Estudos avançados, 19: 33-48.).

Para os afrorreligiosos não se trata de falar sobre escassez de alimentos, já que os terreiros se representam e se constituem como ambiente de fartura de comida. Para essas comunidades e seus adeptos, a questão central da segurança alimentar não está em combater a nzala - que é o termo utilizado por diversas comunidades de terreiro para se referir ao “apetite” ou “vontade de comer”. Ressalte-se que a palavra “fome” é interditada nessas comunidades. É comum ouvir dos afrorreligiosos que fome é uma coisa que não os pertence. “Temos apetite, nzala, vontade de comer. Fome, não!” Fome para os terreiros significa penúria, quando se tem apetite (nzala) e não se tem o que comer. Essa é uma questão central nesta discussão, uma vez que “fome” é o contrário de Axé, categoria êmica, que tanto pode indicar força, uma entidade etérea, espiritual, como prosperidade e fartura. Dizer que “uma pessoa tem Axé”, por exemplo, significa que a pessoa tem prosperidade, bons caminhos, ou também que é portadora do conhecimento ancestral, o que invariavelmente representa uma pessoa equilibrada, que está em harmonia com o sagrado12 12 O caráter polissêmico e polifônico do axé foi analisado por Capone (2004), salienta-se que neste artigo o que importa é destacar que alimentar o Axé implica em dar conta de um modo ampliado de prover uma comunidade de modo a conectá-la entre si e com os deuses e ancestrais. A transmissão do Axé significa, portanto, a troca de energia e de comunicação entre mundos, que fortalece laços, dando a fartura um sentido próprio, segundo o qual saciar a vontade de comer é concretizar aquilo que se deseja para si e para o mundo à sua volta. . A penúria é indicativa de que a pessoa/a comunidade não tem Axé e, portanto, está em desarmonia com a ancestralidade - o que não é só uma vergonha, mas uma desonra entre essas comunidades. Por esse motivo, nas questões que envolvem Segurança Alimentar e Nutricional nos terreiros o que importa é positivar a alimentação tradicional, que tem sido demonizada13 13 Salienta-se que este é um processo político que, historicamente, reinterpreta divindades não cristãs como portadoras do mal, resultando em processos de pânico moral e desqualificação dos acusados. de muitas formas.

Para os interlocutores, a demonização tem feito com que os terreiros se envergonhem de oferecer nas festas públicas a “comida tradicional”, entendida como aquela transmitida de geração em geração, própria e significativa para um dado grupo social. No caso das tradições de matriz africana nos referimos não às receitas em si, mas aos ritos coletivos da alimentação - o “ajeum” (para as comunidades Nagô/Yorubá), “adonum” (para os Fon) e “makuria14 14 De acordo com a Mametu de Inkise Arlene de Katendê (RJ), escreve-se Makuria, mas a pronúncia é Makudia. Kúria = kúdia = comida ou comer. (Congo-Angola). Um exemplo é a substituição da oferta da mesa de comidas tradicionais no dia de Cosme e Damião por brinquedos. As comidas tradicionais são aquelas que, invariavelmente, são oferecidas aos deuses, como o Caruru e o Amalá (feitos à base de quiabo, servido para Ibeji e Xangô, respectivamente), o milho branco (servido para Oxalá), o deburu (milho-alho estourado em areia de rio ou praia, oferecido a Obaluaê), o doce de batata-doce (servido a Oxumarê), o acarajé (bolinho de feijão fradinho, oferecido a Iansã), cujo preparo necessita não apenas dos ingredientes, mas envolve a dimensão religiosa, de rezas e procedimentos específicos em seu preparo. Os efeitos da demonização na alimentação tradicional são percebidos nas festas públicas nas quais os terreiros se sentem obrigados a servir “comida de branco”.

“Comida de branco” é uma categoria êmica que tanto pode estar relacionada ao fast-food quanto ao cardápio que incorpora pratos como estrogonofe, lasanha etc., bem como aos modos de servir a alimentação, sob a forma de buffet, que são interpretados como processos de modernização dos terreiros (Sousa Júnior 2014SOUSA JÚNIOR, VilsonCaetano de . (2014), “Comida de santo e comida de branco”. Revista Pós Ciências Sociais, vol. 11, nº 21: 127-142.). Essas comidas não são proibidas na alimentação cotidiana das pessoas, possuem momentos próprios para o consumo e, muitas vezes, são preparadas em locais distintos. Não é raro que nos terreiros existam duas cozinhas: a “cozinha de Axé”, que serve apenas para preparar as comidas tradicionais, oferecidas aos orixás, inkices e voduns, onde só as mulheres iniciadas e que são as mais velhas da comunidade têm acesso,15 15 Esse é o princípio que rege a “cozinha de Axé”, mas evidentemente sabemos que, na prática, essa determinação pode ser flexibilizada em função de situações específicas em cada terreiro, que é um território autonômo. e a “cozinha de branco”, onde são preparadas as comidas do dia a dia da comunidade ou as que são oferecidas aos visitantes em dias de festividades públicas. Importante ressaltar que toda comida produzida nos terreiros, mesmo as de “branco”, podem ser oferecidas aos deuses.16 16 Um exemplo é o bolo, muito comum em várias festividades. Ao cortá-lo, o primeiro pedaço sempre é oferecido às divindades. É comum que se ofereça diariamente a comida produzida, tradicional ou não, a determinadas divindades. Essa oferenda, sua frequência e regularidade são definidas por cada terreiro, de acordo com o entendimento dos seus líderes. No entanto, essa divisão, que informa um espaço próprio no que diz respeito ao preparo da comida sagrada, pode vir ou não acompanhada de um cômodo específico (para a “cozinha de Axé”, por exemplo) com material próprio como panelas, pratos e talheres (facas e colheres de pau), e que não podem ser utilizadas para outras finalidades. Porém é comum que nos terreiros onde exista apenas uma única cozinha sejam acionadas outras formas de sacralização do ambiente para preparação da comida tradicional, como o acendimento de uma vela e um copo com água ao lado do fogão.

Para os afrorreligiosos, o fundamental na discussão em torno da soberania alimentar é fazer com que a sociedade entenda que a comida tradicional dos terreiros se constitui como uma alimentação equilibrada e saudável, feita a base de grãos, raízes, chás, legumes, cereais e proteínas. Outro ponto relevante é que os terreiros abrigam pessoas que, muitas vezes, só se alimentam das comidas que são produzidas e oferecidas nesses locais. A ideia de que nos terreiros se “come com os deuses” também está diretamente associada à distribuição de alimentos aos mais pobres, moradores dos arredores dos terreiros, que são os que “não têm comida” para o consumo.

Aqui está outra forma de pensar a prosperidade e a fartura de comida para os interlocutores - sua multiplicação. Essa relação só faz sentido quando se sabe que não oferecer comida (a todos, sem distinção) é outro interdito nos terreiros. Um dos casos mais conhecidos é o de Pai Procópio17 17 Procópio Xavier de Souza (Bahia, 1880-1958) “Ogunjobi”, sacerdote fundador do Ilê Ogunjá, situado no Baixão, antigo Matatu Grande, em Salvador. e sua famosa Feijoada do Ogum. Há várias versões sobre os motivos que levaram Ogum a determinar, como multa, que Pai Procópio servisse uma feijoada para todos (e qualquer pessoa) que chegassem ao seu terreiro. As duas mais contadas entre os afrorreligiosos é a de que, durante uma festa do Ogum, um mendigo fora expulso do terreiro por estar andrajoso, sendo proibido de participar dos festejos; ou a de que Pai Procópio teria brigado com um filho de santo, expulsando-o do terreiro sem lhe servir comida. Nas duas versões, Ogum teria determinado que fosse feita uma feijoada para ser servida “a todo mundo”, como forma de punição a Pai Procópio. Aqui o sentido de servir a feijoada é a de restaurar uma ofensa. A multa como uma reprimenda pública é a forma como as divindades impõem uma pena a quem não cumpre os princípios éticos dos terreiros, popularmente acionados como Lei do Santo. No caso de Pai Procópio, ao transgredir o princípio ético de oferecer comida a quem está presente (ou que chega) no terreiro, Ogum determinou, sob forma de multa, que ele anualmente servisse uma feijoada para “todo mundo”. A Feijoada do Ogum de Pai Procópio, com o passar do tempo, transformou-se em uma prática de vários terreiros no país e, atualmente, é considerada uma tradição. É nesses termos que ofertar alimentos se constitui em um princípio basilar para essas comunidades.

O princípio é que haja comida para todos. No entanto, a organização das cozinhas nos terreiros não se dá da maneira como praticamos domesticamente, o planejamento de determinada quantidade de comida se faz de acordo com uma previsão de pessoas a alimentar. A regra é fazer comida para um contingente de pessoas que não está (nem pode ser) previsto, uma vez que “quem chegar ao terreiro precisa comer ou que é preciso ter comida para quem chegar”. A imprevisibilidade da quantidade de pessoas que compartilham da comida nos terreiros, seja nas festas ou no cotidiano, é a chave para entender como é acionado o sentido de Axé/fartura/prosperidade/multiplicação pelos afrorreligiosos. Ter comida para servir a todos é indicativo de que há Axé na comunidade. Desse modo, o que faz com que os terreiros tenham comida suficiente para alimentar uma quantidade imprevisível de pessoas está diretamente relacionado a uma ideia metafísica de multiplicação, entendida como o Axé da comunidade. Mesmo que seja necessário fazer mais comida para alimentar os presentes ou que as sobras sejam ofertadas a vizinhança e comunidade do entorno dos terreiros, a regra é que o alimento está disponível a todos.

A defesa da “comida tradicional” como garantidora da soberania alimentar nos terreiros tem duas perspectivas complementares:

1) a primeira é a centralidade no enfrentamento à demonização do alimento produzido por essas comunidades. Para os afrorreligiosos, o entendimento relativo à soberania alimentar está na defesa de que a comida tradicional seja reconhecida como patrimônio imaterial dos terreiros, por ser fundamental para a reprodução dos modos de vida dessas comunidades, que seguem uma ética alimentar própria. Essa dimensão de soberania ganhou destaque devido ao risco de que o abate religioso fosse proibido pelo Supremo Tribunal Federal;18 18 Depois de 14 anos de tramitação, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em março de 2019, por unanimidade, que é constitucional o sacrifício de animais em cultos religiosos de matriz africana. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&queryString=Recurso%20Extraordin%C3%A1rio%20RE%20494601&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 29/11/2021.

2) A segunda é alçar os terreiros como locais promotores da segurança alimentar - seja dos adeptos, dos frequentadores e das populações do entorno. Os afrorreligiosos entendem que a fartura em gêneros alimentícios faz com que os terreiros garantam a alimentação de várias pessoas.

A retração da oferta das comidas produzidas nos terreiros em celebrações, como as que acontecem no dia de Cosme e Damião,19 19 “A devoção a Cosme e Damião é antiga no Brasil. Já em 1535, foi construída a primeira igreja em homenagem aos gêmeos na cidade de Igarassu, litoral e Pernambuco e região metropolitana do Recife” (Dias 2013:306). já foi observada por Dias (2013DIAS, Julio Cesar Tavares. (2013), “Um simples doce - dar e receber o doce de Cosme e Damião no contexto do pluralismo exclusivista”. Perspectivas Sociais, (1). ), que aponta que o “caso do Doce de Cosme e Damião demonstra a forma como os evangélicos se relacionam com outras religiões, no caso, o Catolicismo e as religiões afro-brasileiras” (Dias 2013:308). Nesse ponto, o autor descreve como se dá a prática da igreja neopentecostal Projeto Vida Nova, localizada na Vila da Penha, zona norte da cidade do Rio de Janeiro:

Essa igreja troca com as crianças o saquinho com os doces de Cosme e Damião, por outro com balas abençoadas e um exemplar da Bíblia “para comer orando”. A estampa dos sacos da igreja em vez de terem as imagens de Cosme e Damião têm os dizeres estampados: “Jesus, o único protetor das crianças.” Os saquinhos de Cosme e Damião que a igreja recolhe nessa espécie de escambo são depois queimados, representando o fim de todo mal direcionado contra as crianças. Conforme o pastor Isael, a igreja chega a distribuir cerca de dez mil sacolinhas. (Dias 2013DIAS, Julio Cesar Tavares. (2013), “Um simples doce - dar e receber o doce de Cosme e Damião no contexto do pluralismo exclusivista”. Perspectivas Sociais, (1). :310)

O direito à “alimentação tradicional” compreende a prática (soberana, porque garante a tradição) dos terreiros de assegurar o reconhecimento da alimentação votiva como saudável. Para os afrorreligiosos, esse reconhecimento está diretamente relacionado à ideia de que os terreiros são locais onde há preocupação com a alimentação das pessoas e, mais ainda, onde o ato da alimentar é sagrado, sustentável e saudável. É desse modo que é feita a justificativa de que sejam elaboradas e estabelecidas políticas de incentivo à agricultura e à criação de pequenos animais nestes locais.

Segundo os afrorreligiosos, fazer valer direitos com base na perspectiva legal da Convenção 169 da OIT é afiançar que os terreiros possam minimamente produzir o que consomem e serem reconhecidos como locais de promoção de segurança alimentar. Mesmo que o incentivo seja apenas para a produção das ervas, hortaliças ou de criação de frangos - que são a base da alimentação, segundo o entendimento dos afrorreligiosos, essa é uma das formas de produzir fonte de renda e respeito para os terreiros. Apesar de saberem que a produção de víveres nem sempre é possível, porque os terreiros em sua maioria estão em área urbana, os afrorreligiosos acreditam que ainda há espaço para o desenvolvimento dessas produções nas cidades.

Nesse sentido, a soberania alimentar está diretamente relacionada à construção do respeito aos modos de vida dos povos de matriz africana, que o entendem como uma forma de reconhecimento mútuo que se negocia socialmente (Sennet 2004SENNETT, Richard. (2004), A corrosão do caráter - consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 8º ed.) e que não se dá apenas por meio da produção de ervas e hortaliças ou a criação de animais. Propõe-se também que os afrorreligiosos entendem que a “dignidade” é uma luta política travada “na busca pelo respeito de si pelos outros (que) começa pela descoberta do autorrespeito, encontrando nele a dignidade e a honra vilipendiada” (Cardoso de Oliveira 2005CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (2005), “Identidade étnica, reconhecimento e o mundo moral”. Revista Anthropológicas, vol. 16, nº 2: 9-40.:38). A produção do respeito para os interlocutores significa atuar soberanamente sobre as suas práticas alimentares, incluindo a produção de víveres alimentícios, porque aciona a possibilidade de ser reconhecido - conceito que mobiliza o campo das religiões afro e demarca a narrativa que não é a de luta contra a intolerância religiosa, nem a favor da liberdade de culto, como tem sido observado em outros contextos etnográficos das mobilizações afrorreligiosas (Miranda 2020MIRANDA, Ana Paula Mendes de. (2020), “‘Terreiro politics’ against religious racism and ‘christofascist’ politics”. Vibrant, vol. 17: 1-20.), mas, sim, pelo respeito às tradições de matriz africana (Miranda; Boniolo 2017MIRANDA, Ana Paula Mendes de; BONIOLO, Roberta Machado. (2017), “‘Em público, é preciso se unir’: conflitos, demandas e estratégias políticas entre religiosos de matriz afro-brasileira na cidade do Rio de Janeiro”. Religião e Sociedade , vol. 37, nº 2: 86-119. ).

Para além do enfrentamento à criminalização do abate religioso e à demonização das comidas tradicionais, a produção de víveres também é entendida como a justificativa para que os terreiros sejam classificados a partir das diretrizes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é o mesmo entendimento adotado para a defesa dos territórios indígenas e dos quilombolas, Morais e Jayme (2017MORAIS, Mariana Ramos de; JAYME, Juliana Gonzaga. (2017), “Povos e comunidades tradicionais de matriz africana: uma análise sobre o processo de construção de uma categoria discursiva”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 17, nº 2: 268-283.) já haviam observado uma mudança discursiva em relação aos terreiros, que passaram a acionar a categoria povos tradicionais de matriz africana para se autodenominarem visando o acesso às políticas públicas, no período entre 2003 e 2016.20 20 Este período (2003 a 2016) compreende os governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores, responsáveis pela criação de decretos e equipamentos públicos (como os Conselhos Federais de participação popular, Secretaria Especial de Políticas Públicas de Igualdade Racial, Secretaria Especial da Mulher etc.) que institucionalizaram políticas de reconhecimento e de acesso a garantias sociais aos grupos historicamente excluídos. Para os afrorreligiosos, o que justifica o entendimento de que essas comunidades se constituem como Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana é que o reconhecimento exclusivamente da dimensão religiosa das suas práticas não é capaz de garantir nenhum direito, frente ao cenário de violência ao qual estão expostos.

A carne como centro da alimentação e prosperidade

A ideia de comida tradicional considera a fluidez e interpenetração de diferentes práticas (Capone 2004CAPONE, Stefania. (2004), A busca da África no candomblé. Rio de Janeiro: Pallas.). Para os afrorreligiosos, o que está em jogo para definir uma prática como tradicional se constitui a partir da ideologia21 21 Utilizamos o conceito de ideologia conforme proposto por Louis Dumont (1992), que a entende como um conjunto de ideias e valores que orientam as práticas e as moralidades de determinada sociedade. que estabelece os modos (que conformam as vidas dos adeptos) pelos quais as tradições são perpetuadas.

Determinar o que é (ou não) tradicional diante da pluralidade de práticas e ritos que promovem diferenças abissais entre os Povos de Matriz Africana é um processo que se dá por contraste: “para saber o que a gente é foi preciso estabelecer o que a gente não é.” Conforme essa compreensão, a Umbanda de mesa branca22 22 Refere-se ao culto de entidades da Umbanda (Caboclos, Pretos Velhos e Exus) em diálogo com as práticas e o entendimento kardecistas. e o kardecismo, apesar de terem incorporação e até mesmo oferendas às divindades, não se enquadram como comunidades tradicionais, porque suas práticas não estão alinhadas com as formas de viver dos antepassados e por perpetuarem uma ideologia branca, cristã. A branquitude (Almeida 2019ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. (2019), A luta por um modo de vida: as estratégias e as narrativas de enfrentamento ao racismo religioso dos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Niterói: Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.) se explicita de forma ainda mais tensionada com o que os interlocutores identificam como “Candomblé Vegano”, também chamado de “verde” ou “vegetariano”.

A ideia de um “Candomblé Vegano”23 23 Cabe registrar que não realizamos pesquisa etnográfica junto a grupos que se autoproclamam dessa forma, aqui nos referimos ao modo pelo qual os nossos interlocutores reproduzem termos que circulam neste campo religioso, o que pode ser demonstrado por materiais disponíveis nas redes sociais. Disponível em: https://educayoruba.com/candomble-vegetariano-sem-sacrificios-existe-ele-diz-que-sim-leia-e-entenda/#:~:text=Ela%20%C3%A9%20vegetariana%20e%20sendo,gr%C3%A3o%20de%20areia%20do%20nada. Acesso em: 10/04/2022. é compreendida pelos interlocutores como uma expressão do “embranquecimento” das práticas tradicionais. Trata-se de expressão usada para criticar os líderes de comunidades de terreiros que aboliram o abate de animais como princípio fundante das suas práticas. Apesar de defendida, desde a década de 1990, por Pai Agenor Miranda,24 24 Nascido em Angola e iniciado no Ilé Asé Opo Afonjá para Oxalá, Agenor Miranda (1907-2004) tornou-se um dos mais procurados e respeitados Olwo - sacerdote que consulta o Oráculo de Ifá - do Brasil. Ele defendia publicamente o fim do abate animal. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fe/fe14.htm. Acesso em: 10/04/2022. considerado um dos mais respeitados guardiões das tradições do Candomblé, a negação do abate e do consumo de animais nos terreiros é percebida pelos interlocutores desta pesquisa como uma “invenção de branco” porque deturpa e desrespeita os princípios cosmológicos (Herzfeld 2014HERZFELD, Michael. (2014), Antropologia Cultural: prática teórica na cultura e na sociedade. Petrópolis: Editora Vozes.) dos terreiros. Nesse quesito, os interlocutores apontam que é fundamental para a manutenção dos seus modos de vida o consumo da carne do animal, cujo “Axé vermelho” é responsável por “dar vida” aos assentamentos e aos próprios iniciados. Juana Elbein dos Santos (1992) discutiu a importância das cores dos elementos em ritos mágico-religiosos como manifestação dos Axés. Assim, o Axé branco está presente na água, lágrima e saliva; o Axé vermelho, no epo pupá (dendê) e no sangue dos animais, e o Axé preto, nos minerais e no sumo das folhas (Santos 1992). A alegação de que as folhas constituem o “sangue verde” não é bem recebida por nossos interlocutores, para quem a energia das folhas (Barros 1993BARROS, José Flavio Pessoa de. (1993), O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais no candomblé Jeje-Nagô do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Pallas.) tem um papel específico que não pode substituir o “Axé vermelho”.

O que importa é evidenciar que a “invenção de branco” comprova a racialização de práticas que afastam os adeptos do convívio e contato do que é percebido como fundamento ancestral africano desses cultos. Desse modo, negar os animais como parte da alimentação humana (e dos deuses), além de apontar para a incompreensão da dimensão simbólica fundante desse rito como troca (Hubert & Mauss 2001HUBERT, Henri; MAUSS, Marcel (2001 [1899]), “Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício”. In: M. Mauss. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva. [1899]), representa uma adequação da concepção religiosa do candomblé a um público que pensa o abate de animais como uma coisa “primitiva” - com toda carga preconceituosa contida nesta expressão - e que, portanto, deveria ser eliminada.

Sobre esse ponto não é incomum que os interlocutores acionem a justificativa para a distribuição da carne (eran) ser fundamental, com base no mito de Oxóssi, Rei e Senhor da caça, aquele que matou o Malu (um boi gigante, figura mitológica dos povos yorubás) e trouxe o seu eran (carne) para que a comunidade pudesse se alimentar. De forma jocosa, alguns afrorreligiosos afirmam que “Oxóssi não tem arco e flecha para caçar alface!”. Para eles, a divisão da carne (eran) dos animais abatidos religiosamente entre todos os membros da comunidade é o que os liga a Oxóssi e se constitui na forma mais essencial de louvá-lo, remetendo a ideia de que as comunidades de terreiro descendem dos povos caçadores que, de muitas maneiras, ainda hoje são reverenciados no continente africano.25 25 De acordo com Souza (2018), os costumes e as leis entre vários povos africanos eram mantidos pelo Clã dos Caçadores. É por isso que nos terreiros se pede que “Oxóssi traga caça gorda”, para que se possa alimentar a todos. É isso o que representa, para os terreiros, a ideia de fartura ligada ao consumo de carne.

Ao invocar um dos itans contados nos terreiros sobre a forma como Oxóssi aplacou a nzala de toda comunidade do reino de Alaketu, vencendo e matando o grande boi (Malu) e distribuindo o seu eran (carne), aciona-se o pensamento cosmológico como norteador do que se entende como tradicional. Isso sem contar que são as carnes dos animais oferecidas por meio do abate religioso que se faz possível que a comunidade possa consumi-las nos períodos iniciáticos26 26 Durante os períodos de recolhimento - que é quando se inicia uma pessoa ou quando se cumprem os preceitos etários (1, 3, 7 anos) - a única fonte de proteína animal possível são as carnes dos animais abatidos religiosamente. e distribuir proteína animal para seus adeptos e para o entorno. Os afrorreligiosos representam que nas tradições africanas, a distribuição da carne da caça é um ponto central que orienta as práticas de alimentação. Esse seria um dos motivos que faz com que o “candomblé vegano”, que tem como fundamento não consumir carne, seja percebido como uma “aberração”, ou seja, “coisa de branco”.

O candomblé vegano é considerado de “alienígenas” às práticas dos terreiros, por transgredir o que se entende como um princípio basilar da alimentação tradicional. A questão não está apenas na substituição da proteína animal por outras iguarias alheias às consumidas pelas comunidades de terreiro, mas porque é somente através da manipulação tradicional dos elementos rituais, que contém os Axés “brancos, vermelhos e pretos”, que se tem a possibilidade de reprodução dos procedimentos mágico-religiosos. Nesse sentido, os “veganos” estariam promovendo uma grande ofensa a Oxóssi e ao Clã dos Caçadores. Sendo essa ofensa uma transgressão de um princípio ancorado na cosmologia, ele se torna passível, inclusive, de reprimenda das divindades, como a ocorrida com Pai Procópio. Nesses termos, o candomblé vegano é “coisa de gente branca” porque significa a completa falta de conhecimento e a negação da cosmologia que orienta essas tradições.

O consumo de carne no entendimento dos terreiros se constitui como uma prática central de culto a Oxóssi e, portanto, informa uma obrigação moral que orienta essas comunidades de compartilhar ritualmente a carne sagrada. Está na chave das trocas econômicas entre humanos e divindades, uma vez que ao dar a oferenda às divindades, eles as recebem e, ao ficarem satisfeitos, retribuem a oferenda em forma de fartura de alimento, que deve ser consumido entre as pessoas - sejam adeptos, visitantes dos terreiros ou ainda com a vizinhança. Nesse caso, a fartura de alimentos ofertados e consumidos nos terreiros significa a satisfação dos deuses. É a retribuição divina em relação às oferendas recebidas, simbolizada em forma de fartura, o que atesta a eficácia do rito sacrifical. Nesse quesito, o sentido conferido à sacralização não se constitui com a exclusiva finalidade de consagrar (ou tornar sagrado), pois é necessário que se perceba o efeito prático de retribuição das divindades em forma de fartura de comida, para além da eficácia simbólica. Tavares e Bassi (2012TAVARES, Fátima; BASSI, Francesca (org.). (2012), Para além da eficácia simbólica: estudos em ritual, religião e saúde. Salvador: Edufba.) apontam novas abordagens e desafios teóricos a respeito do conceito da “eficácia simbólica” nos casos de rituais aplicados com objetivo de cura de doenças. Segundo as autoras, a questão não está em discutir o mérito do conceito elaborado por Lévi-Strauss, “mas de considerar aquelas posições teórico-metodológicas da antropologia que consentem pensar na eficácia dos rituais para além da dimensão ordenadora das representações” (Tavares; Bassi 2012:18).

Desse modo, ter uma grande quantidade de alimentos é a manifestação fáctica de que as divindades estão satisfeitas com o rito sacrificial, realizado de forma adequada, de acordo com a tradição (Asad 2017; Almeida 2019ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. (2019), A luta por um modo de vida: as estratégias e as narrativas de enfrentamento ao racismo religioso dos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Niterói: Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.). Não basta que o rito aconteça para que o “profano” se torne “sagrado”. Considerando a vulnerabilidade econômica e social dos terreiros, a abundância de comida é compreendida como a retribuição das divindades (que estão satisfeitas) aos humanos.

A equiparação de “branco”, como categoria racial à condição de cristão, ganha uma dimensão importante, porque propõe uma interpretação diferenciada em relação ao que pensamos sobre as práticas sincréticas, uma vez que não se trata de estabelecer uma régua que meça a pureza ou degeneração das práticas e ritos com base em símbolos católicos.

Percebe-se que o “branco”, que é uma categoria de acusação para os afrorreligiosos, não tem a pretensão de desqualificar práticas percebidas como sincréticas (Ferretti 2013FERRETTI, Sergio. (2013), Repensando o sincretismo. São Paulo: Edusp; Arché. ) nos terreiros. Como exemplo, a realização dos ritos para Oxalá na Sexta-Feira Santa, quando os cristãos celebram a paixão e morte de Jesus Cristo, é compreendida como tradicional pelos afrorreligiosos. Nessa data é comum que os terreiros realizem os rituais que incluem o uso de vestimentas brancas e o consumo de comidas e animais específicos (como peixes, milho branco, inhame, caracóis etc.). A princípio, o que parece ser uma reverência dos terreiros à morte de Jesus Cristo é interpretado como uma apropriação do calendário católico para a realização da reverência à Oxalá, tratando-se de um rito que só passa a ser compreendido como tradicional porque subverte o catolicismo.

“O Dono da faca”

A produção sobre as controvérsias públicas sobre o abate religioso no Rio Grande do Sul (Oro 2005ORO, Ari Pedro. (2005), “O sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras: análise de uma polêmica recente no Rio Grande do Sul”. Religião e Sociedade , 25 (2): 11-31. ; Possebom 2007POSSEBON, Roberta Mottin. (2007), A reação das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul: conflitos com neopentecostais e defensores dos animais. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. ; Peixoto 2014PEIXOTO, Esdras Gusmão de Holanda. (2014), “Religião, sacrifício e controvérsia: disciplinando sacrifícios de animais em cultos afro-brasileiros no sertão pernambucano”. Revista Eletrônica Discursus Juridicus, vol. 1, nº 1: 218-245.; Oliveira, Chagas, Silva, Lima 2020OLIVEIRA, Ilzver de Matos; FEITOSA NETO, Pedro Meneses; CHAGAS, Érica Maria Delfino; LIMA, Caio Gonçalves Silveira. (2020), “A exigência de licenciamento ambiental para terreiros na cidade de Aracaju: o debate sobre racismo religioso nos autos de uma Ação Civil Pública”. In: 32ª REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, Rio de Janeiro. ; Lima, Oliveira 2015LIMA, Kellen Josephine; OLIVEIRA, Ilzver de Matos. (2015), “Liberdade religiosa e a polêmica em torno da sacralização de animais não-humanos nas liturgias religiosas de matriz africana”. Revista Brasileira de Direito, vol. 11, nº 1: 100-112.) nos ajudou a pensar sobre dois acontecimentos no Rio de Janeiro, orientando nossas análises em direções até então pouco observadas: o primeiro ocorreu em março de 2017, e o segundo, em setembro do mesmo ano.

Em março de 2017, acompanhamos a campanha promovida pelo Grupo de Estudos Braulio Goffman (GEBG), para que fosse usado o “nome certo” da prática ritualística, que teve a rede social Facebook como veículo de comunicação e interação entre os religiosos dos diversos segmentos afro. Foi a partir dessa campanha que passamos a observar as reações e comentários dos adeptos dessas religiões em relação às categorias acionadas pelos próprios religiosos. Para um dos membros do GEBG, desde “que a polêmica envolvendo o abate religioso ganhou dimensão nacional”, ele tem orientado os pais e mães de santo que frequentam o GEBG a se referirem a “matança” - categoria nativa que informa a imolação de animais - ou “sacrifício”, por “abate religioso”. Para ele, “embora diversas vertentes da Umbanda não pratiquem o abate, esta é uma prática central para os religiosos do Candomblé, Batuque, Xangô, Mina etc. porque está diretamente ligada à alimentação nos terreiros”.

“Abate religioso” é uma forma mais correta de expressar o que nós fazemos. “Matança” quem faz são os matadouros e frigoríficos, e é uma palavra ruim porque aprofunda o preconceito que a população já tem contra nós. Temos o direito de fazer o abate religioso para nos alimentar. Negar isso é uma afronta à liberdade religiosa. Foi por isso que nós fizemos uma campanha no Facebook. As pessoas precisam parar de achar que somos cruéis e que fazemos matanças e começar a chamar as coisas pelo nome certo. Não é sacrifício. É abate!” (Ogã de Xangô).

Conforme este interlocutor há uma questão subjacente nesta campanha, porque não existe uma forma única de se classificar os rituais, devido a diversidade das práticas das centenas de povos africanos (Congo/Angola, Nagô/Yoruba, Fon) que constituíram os ritos e liturgias nos terreiros (Almeida 2019ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. (2019), A luta por um modo de vida: as estratégias e as narrativas de enfrentamento ao racismo religioso dos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Niterói: Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.). Para ele, o problema está que “matança”, apesar de também não ser um termo pacificado entre os adeptos,27 27 Há terreiros que usam as expressões “corte”, “holocausto”, “aperé” - este último é o termo Yorubá para se referir ao ato do sacrifício de animais. é popularmente mais usado para se referir ao “abate de animais”. “Evidente que tem uma carga negativa, que associa a ‘morte’ às práticas dos terreiros. É por isso que a gente precisa mudar. Nós não matamos. Nós oferecemos os animais aos deuses e celebramos a vida” (Ogã de Xangô).

Ainda que não seja factível falar em um único termo para o abate religioso (nem para nenhuma outra prática dos terreiros), uma vez que elas são diversificadas, têm sistema de autogestão (o que faz com que cada “casa seja uma casa” diferente) e se organizem com base em redes de sociabilidades cuja hierarquia revela-se contextual, é possível apontar premissas gerais de como a prática do abate é realizada. Segundo ele, assim como no caso dos judeus e dos muçulmanos, o animal também é primeiramente oferecido às divindades por um sacerdote, preparado especificamente para essa função. Nos terreiros, o abate pode ser realizado para imolar bovinos, ovinos, caprinos, suínos e frangos. Porém, para que possa ser consumido pela comunidade religiosa, o animal não pode sofrer, sua morte deve ser instantânea, e todo o sangue deve ser drenado antes da carne ser colocada para consumo.28 28 A drenagem do sangue do animal faz com que sua conservação seja mais eficiente. A prática também é observada no abate kosher: http://carnenossa.blogspot.com.br/2010/12/abates-religiosos-shechitah-abate.html. Acesso em: 18/08/2018.

Tem uma pessoa preparada para fazer o sacrifício nos terreiros: é o Axogun 29 29 Nos terreiros Nagôs/Yorubás e na maioria dos de tradições Fon. Nos terreiros Congo/Angola, a função é realizada pelo “kambondu Tatá Pokó”, sendo o abate chamado de “ku batula”. , que só pode ser do sexo masculino. É o “Dono do Obé”30 30 Dono do “Obé” significa Dono “da faca”, em Nagô/Yoruba. Na maioria dos terreiros, as facas ritualísticas não são utilizadas cotidianamente e ficam guardadas junto a outros objetos sagrados. no terreiro. Em muitas casas, o Axogun é iniciado para o orixá Ogun - porque esse é o Orixá que é o Senhor de todos os metais e, por correspondência, da faca. Para abater o animal, o bicho não pode estar doente ou ferido nem ser maltratado, não pode sofrer. Se o cabrito berrar, não podemos sacrificá-lo. Antes é preciso pedir permissão à Ogun, com rezas e cantigas. Depois, é feita uma reza que entrega o animal aos deuses. Nesse momento que agradecemos pela vida do bicho e pela oportunidade de dividir a carne entre nós - os membros do terreiro e até mesmo os vizinhos! - e os deuses. As pessoas que estão recolhidas para iniciação, só podem se alimentar com as carnes dos animais que foram abatidos sob esses ritos. Essas carnes, para nós, são sagradas porque contêm Axé, e é por isso que as comemos e dividimos entre todos os membros da comunidade. (Ogã de Xangô)31 31 Nem todo abate é realizado por faca. Há interditos para a utilização do aço para imolação de alguns animais como caracol, pombo e a galinha d’angola.

Essa narrativa chama atenção não apenas para o desenvolvimento do sistema classificatório em torno da questão, mas principalmente em relação às disputas entre as categorias utilizadas pelos afrorreligiosos. O episódio demonstra que as categorias “abate religioso”, “sacrifício” e “matança” têm sido acionadas como sinônimas pelos religiosos, mas promovem compreensões diferenciadas. Essa percepção dos interlocutores não pode ser desconsiderada, uma vez que sabemos que, “o jogo de oposição categorial não é simplesmente um jogo semântico, metafórico, estético. (...) É um jogo de poder, feito pelo uso da linguagem” (Malomalo 2015MALOMALO, Bas’llele. (2015), “Branquitude como dominação do corpo negro: diálogo com a sociologia de Bourdieu”. Revista ABPN, vol. 6, nº 13: 175-200.:179). Ou seja, a preocupação dos membros do GEBG em usar “o termo correto” para referir-se às práticas alimentares nos terreiros evidencia que os religiosos intuíram que, dependendo dos usos que se faz das categorias, as percepções (Miranda 2016MIRANDA, Ana Paula Mendes de. (2016), Burocracia e fiscalidade: uma análise das práticas de fiscalização e cobrança de impostos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris.) se diferenciam no sentido.

A classificação das coisas e dos fenômenos não pode ser entendida apenas como uma atividade racional em sentido restrito, mas a partir de um jogo de moralidades que estabelece sentido e ordenamento de suas existências. O campo empírico construído junto ao GEBG mostra que os interlocutores estão preocupados em como classificam especificamente um ritual religioso, pois perceberam que o sistema classificatório acessado de forma pública pode ser uma ferramenta de acesso (ou de afastamento) aos seus direitos e, colocá-los ainda mais em risco, frente ao aumento dos casos de racismo religioso (Almeida 2019ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. (2019), A luta por um modo de vida: as estratégias e as narrativas de enfrentamento ao racismo religioso dos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Niterói: Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.).

Podemos afirmar que essa busca por compreender as classificações das (e para as) sociedades, tão cara à Antropologia, foi o ponto de partida para o desenvolvimento da teoria de Durkheim (1970DURKHEIM, Émile. (1970), “Representações individuais e representações coletivas”. Sociologia e Filosofia, 2: 9-43.), uma vez que ele partiu da tese de que as modalidades do entendimento se originavam da classificação simbólica dos objetos (Giddens 1978GIDDENS, Anthony. (1978), Novas regras do método sociológico: uma crítica positiva das sociologias compreensivas. Rio de Janeiro: Zahar.:78), abrindo um campo de estudos sobre a dimensão simbólica das práticas sociais. Para ele, “categorias são aquelas noções que permeiam todas as classificações e ordenamentos que fazemos do mundo, são noções que permitem o equacionamento entre realidades distintas” (Cardoso de Oliveira 2011:4).

Abate religioso e o mercado internacional

O post da campanha do GEBG chegou a mais de 200 compartilhamentos e mais de mil curtidas e reações na rede social, durante o período que monitoramos. Para os interlocutores do GEBG, esses números - que foram comemorados como expressivos - demonstram a repercussão da campanha pelo “nome correto” da prática de abater animais nos terreiros. “O abate religioso é uma classificação internacional, protegida como direito fundamental pelas Nações Unidas. É isso que nós fazemos. Nós não matamos, não sacrificamos. Nós comemos a carne que é oferecida aos deuses”. Eles acreditam que, desse modo, é possível contribuir para que adeptos e sacerdotes dos terreiros comecem a mudar a forma de se referirem ao “sacrifício”. “Estamos numa situação muito séria. Mesmo que o STF reconheça os nossos direitos, temos uma sociedade inteira a nos criminalizar”, comentam os membros do GEBG.

Percebe-se, no entanto, que o esforço da campanha não visa somente conscientizar os adeptos sobre como se referir publicamente à prática da imolação, optando pela categoria jurídica do “abate religioso” como classificação do Direito Internacional. A preocupação dos membros do GEBG é, de algum modo, tentar minorar o racismo religioso que tem agredido cotidianamente os terreiros. “A gente já é atacado todo dia... e o povo ainda insiste em ficar dizendo que ‘faz matança’”.

Por outro lado, a aposta dos interlocutores é também a de evidenciar que o abate religioso é uma categoria que informa um mercado em crescimento para a agroindústria brasileira. Segundo dados do último Relatório Global do Estado da Economia Islâmica, em 2019, o Brasil era o maior exportador mundial de comida halal, com exportações de US$ 16,2 bilhões nesse tipo de produto, 12% a mais do que o segundo colocado, a Índia, que negociou US$ 4,4 bilhões.32 32 . Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-10/brasil-e-o-maior-exportador-de-comida-halal-no-mundo. Acesso em: 30/11/2021. Em 2018, o Brasil faturou cerca de U$$ 380,5 milhões com as exportações destinadas a Israel. Os embarques de carne kosher geraram em torno de U$$ 83,0 milhões em receita, ou, 21,8% do total arrecadado. Essa participação ilustra o peso do mercado kosher nas relações comerciais entre os dois países.33 33 Disponível em: https://www.scotconsultoria.com.br/noticias/artigos/50215/abates-%3Ci%3Ehalal%3Ci%3E-e-%3Ci%3Ekosher%3Ci%3E.htm. Acesso em: 30/11/2021. Além disso, o abate religioso garante o direito humano à “alimentação adequada”, conforme o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Sua definição foi ampliada em outros dispositivos do Direito internacional, como o artigo 11 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e o Comentário Geral nº 12 da ONU, que a define como “adequada ao contexto e às condições culturais, sociais, econômicas, climáticas e ecológicas de cada pessoa, etnia, cultura ou grupo social” (Conselho de Segurança Alimentar 2015).34 34 “O direito humano à alimentação.” Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/artigos/2014-1/direito-humano-a-alimentacao-adequada-e-soberania-alimentar. Acesso em: 16/10/21.

O compromisso do Brasil em respeitar as práticas religiosas de grupos diferenciados no espaço público segue em conformidade com a Constituição Federal de 1988, que dispõe (artigo 5º, VI) que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”, além de assegurar (artigo 5º, VIII) que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei”.

Outro dado que nos chamou atenção entre os membros do GEBG é a compreensão que eles têm quanto ao “motivo” que fez com que a prática alimentar dos terreiros se tornasse uma pauta que mereça julgamento na Suprema Corte do país. Segundo eles, é o racismo vigente na sociedade brasileira, o que está por trás de toda este debate: “O problema nos terreiros é o reflexo do racismo e da desigualdade. Por que ninguém contesta o sacrifício halal e kosher? Sabe por quê? Não é o sacrifício é a religião da gente que incomoda” (Marcus de Oxossi).

Para os interlocutores, para além do uso de uma categoria “correta”, é preciso enfrentar a dinâmica de desigualdade racial que, segundo eles, é constitutiva da sociedade brasileira, e que está no cerne das disputas que envolvem este debate.

“Prática doméstica que não dá lucro”

Em setembro de 2017, em um encontro entre os membros do Grupo de Estudos Bráulio Goffman e do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma), a pauta foi identificar os motivos que faziam com que o abate religioso dos terreiros causasse tanta comoção pública. O racismo vigente na sociedade brasileira se constituía, até então, como o único motivo da discriminação. No entanto, os afrorreligiosos ao analisarem a forma como o abate é realizado, entenderam que por ser uma prática “doméstica”, ou seja, feita dentro dos terreiros, de forma artesanal, que não gera lucro, é algo possível de ser perseguido, exatamente porque não há quem tenha interesse “econômico” em defendê-lo. O consenso entre os presentes sobre os principais motivos da criminalização do abate religioso nos terreiros foi a de que:

O problema [do abate] está em que nós não damos lucro. Não é só o racismo que está por trás dos discursos dos fundamentalistas e dos ambientalistas. Ao contrário dos judeus e muçulmanos, os terreiros realizam suas práticas alimentares em relação ao abate religioso de forma doméstica desde que os primeiros africanos chegaram aqui. E é isso que eles não admitem: não damos lucros para a agroindústria. (Manoela de Dandalunda)

A ideia de “não dar lucro” e de ser uma “prática doméstica” é descrita na pesquisa de Leandro (2015LEANDRO, Marcos E. da Silva. (2015), 30 anos do Ilé Omiojuaró: arte, educação e ativismo nas redes de Mãe Beata de Iyémonjá. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.),35 35 O autor analisa as práticas do abate no Omiojuaro, tradicional terreiro do Rio de Janeiro. que propõe uma comparação entre as práticas do abate religioso e do doméstico.

Um dia consegui driblar a vigilância imposta e, de cima do telhado, consegui observar minha mãe cortando o pescoço do animal, que tremia e debatia suas asas até ir parando lenta e gradativamente. Duas coisas me chamaram a atenção nesse episódio: em primeiro lugar, a quantidade de sangue que jorrava do pescoço da ave, nunca tinha visto algo parecido; em segundo lugar e mais curioso ainda, foi o gesto de minha mãe ao apontar o pescoço do animal sem cabeça para o chão esguichando todo aquele sangue como se fosse água saída da mangueira que regava os lírios. Tempos depois, já adolescente, minha mãe explicou que o sangue de qualquer animal morto para nos alimentar, tem que retornar à terra. Minha mãe era Testemunha de Jeová, ainda assim nunca deixou de cumprir esse ritual quando abatia uma ave para alimentar a si e aos seus filhos. Refleti.” (Leandro 2015LEANDRO, Marcos E. da Silva. (2015), 30 anos do Ilé Omiojuaró: arte, educação e ativismo nas redes de Mãe Beata de Iyémonjá. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.:18)

Neste ponto podemos entender que, ainda que desconsidere os procedimentos litúrgicos, a descrição da prática pelo autor sugere que a há uma semelhança entre o rito praticado nos terreiros e o que é feito de forma doméstica ou “profana”. No entanto, o que está em jogo é que sendo com finalidade religiosa (sagrada) ou não, a prática de imolar animais que se dá de forma doméstica não é interessante para a indústria e, por esse motivo, não suscita defesas ou interesses que a proteja.

Considerações finais

A controvérsia em torno do abate religioso nos terreiros segue em aberto, apesar de a decisão do Supremo afirmar que os povos de terreiro têm o direito de fazê-lo. A decisão do STF, por meio do voto do ministro Edson Fachin, confirmou que a constitucionalidade da lei de proteção animal é compatível com a preservação da liberdade religiosa no Brasil, assegurando o direito de realização do “sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”. Todos os votos sinalizam que essa situação contempla todas as religiões, mas salientam que a estigmatização em relação à matriz africana é histórica, daí a necessidade de se reafirmar que esse direito precisa ser resguardado.

Tal afirmação segue sendo objeto de questionamento, em nome do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que para alguns juristas deveria se sobrepor ao direito à liberdade religiosa. De acordo com Ilzver de Matos Oliveira et al. (2020OLIVEIRA, Ilzver de Matos; FEITOSA NETO, Pedro Meneses; CHAGAS, Érica Maria Delfino; LIMA, Caio Gonçalves Silveira. (2020), “A exigência de licenciamento ambiental para terreiros na cidade de Aracaju: o debate sobre racismo religioso nos autos de uma Ação Civil Pública”. In: 32ª REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, Rio de Janeiro. ), essa argumentação representa como o Direito Ambiental, que se apresenta como “pós-moderna”, por conta de sua luta pelo meio ambiente, tem se transformado em uma nova arma de perseguição aos povos tradicionais de terreiro, porque deturpa as relações que esses povos possuíram e possuem com a natureza, que lhes é um elemento constitutivo.

A decisão do STF teve algumas consequências. Ao reconhecer o direito ao abate religioso, obteve-se uma conquista - o reconhecimento de que esse rito ocorre sem crueldade. Aconteceu também a confirmação de que a criminalização das práticas rituais de povos tradicionais é uma manifestação de racismo nas suas mais variadas formas de manifestação. É neste cenário que a afirmação dos direitos à comida tradicional tem sido uma pauta central de enfrentamento ao racismo religioso, alicerçada no Direito Internacional. Diante do crucifixo no plenário do STF e de afrorreligiosos paramentados foi confirmado que a “galinha da religião de preto” segue incomodando os que vestem calçado de couro e chamam de “seita” as populações de terreiro.

O reconhecimento do direito ao abate permitiu evidenciar como a racialização das políticas públicas se dá no Brasil, de modo atomizado. Ao reconhecer a dimensão tradicional e religiosa nesse caso, deixou-se de lado que há outras discriminações atingindo os mesmos sujeitos, seja sob a forma do genocídio dos jovens citado por Hédio Silva, seja pelos “atentados” (Almeida 2019ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. (2019), A luta por um modo de vida: as estratégias e as narrativas de enfrentamento ao racismo religioso dos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Niterói: Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.) que os terreiros seguem sendo alvo. As marcas étnicas de africanidade (Pereira 2020PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. (2020), “Alteridade e raça entre África e Brasil: branquidade e descentramentos nas Ciências Sociais brasileiras”. Revista de Antropologia, vol. 63, nº 2: e170727.) seguem sendo ocultadas pelas políticas oficiais de branqueamento que orientam o “racismo cordial” e suas estratégias de apagamento e minimização dos conflitos.

Referências

  • ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. (2019), A luta por um modo de vida: as estratégias e as narrativas de enfrentamento ao racismo religioso dos membros do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana Niterói: Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.
  • ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. (2015), Quem foi que falou em igualdade? Rio de Janeiro: Autografia.
  • BARROS, José Flavio Pessoa de. (1993), O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais no candomblé Jeje-Nagô do Brasil Rio de Janeiro: Editora Pallas.
  • CAMPELLO, Tereza; BAIRROS, Luiza. (2011), “Apresentação”. In: Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Alimento: Direito Sagrado Brasília: MDS; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação.
  • CAPONE, Stefania. (2004), A busca da África no candomblé Rio de Janeiro: Pallas.
  • CARDOSO DE OLIVEIRA, Luiz Roberto. (2004), Honra, dignidade e reciprocidade Série Antropologia. Brasília: UnB.
  • CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (2005), “Identidade étnica, reconhecimento e o mundo moral”. Revista Anthropológicas, vol. 16, nº 2: 9-40.
  • CEFAÏ, Daniel. (2009), “Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 2(4): 11-48.
  • CHONCHOL, Jacques. (2005), “A soberania alimentar”. Estudos avançados, 19: 33-48.
  • DIAS, Julio Cesar Tavares. (2013), “Um simples doce - dar e receber o doce de Cosme e Damião no contexto do pluralismo exclusivista”. Perspectivas Sociais, (1).
  • DUMONT, Louis. (1992), Homo hierarchicus: o sistema das castas e suas implicações São Paulo: Edusp.
  • DURKHEIM, Émile. (1970), “Representações individuais e representações coletivas”. Sociologia e Filosofia, 2: 9-43.
  • FERNANDES, Tania. (2022), “Se não é ‘tradição’ é ‘aberração?’: disputas por legitimidade articuladas em linguagem jocosa por candomblecistas do Rio de Janeiro”. Revista Antropolítica, vol. 54, nº 1: 90-115.
  • FERRETTI, Sergio. (2013), Repensando o sincretismo São Paulo: Edusp; Arché.
  • FLOR DO NASCIMENTO, Wanderson. (2015), “Alimentação socializante: notas acerca da experiência do pensamento tradicional africano”. Revista das Questões nº 2: 62-74.
  • GIDDENS, Anthony. (1978), Novas regras do método sociológico: uma crítica positiva das sociologias compreensivas Rio de Janeiro: Zahar.
  • GOMES, Edlaine Campos; OLIVEIRA, Luís Cláudio de. (2021), “Memórias documentadas do grupo ‘Tradição dos Orixás’: reações, resistência e ressonâncias afro-brasileiras dos anos 1980”. Religião e Sociedade, vol. 41, nº 3: 25-49.
  • GOULART, Julie Barrozo. (2019), “A luta pela liberdade religiosa no Rio de Janeiro: a CCIR e suas estratégias de mobilização”. In: A. P. M. de Miranda; F. R. Mota; L. Pires (org.). As crenças na igualdade Rio de Janeiro: Autografia .
  • HERZFELD, Michael. (2014), Antropologia Cultural: prática teórica na cultura e na sociedade Petrópolis: Editora Vozes.
  • HUBERT, Henri; MAUSS, Marcel (2001 [1899]), “Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício”. In: M. Mauss. Ensaios de Sociologia São Paulo: Perspectiva.
  • LEANDRO, Marcos E. da Silva. (2015), 30 anos do Ilé Omiojuaró: arte, educação e ativismo nas redes de Mãe Beata de Iyémonjá Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • LIMA, Kellen Josephine; OLIVEIRA, Ilzver de Matos. (2015), “Liberdade religiosa e a polêmica em torno da sacralização de animais não-humanos nas liturgias religiosas de matriz africana”. Revista Brasileira de Direito, vol. 11, nº 1: 100-112.
  • MALOMALO, Bas’llele. (2015), “Branquitude como dominação do corpo negro: diálogo com a sociologia de Bourdieu”. Revista ABPN, vol. 6, nº 13: 175-200.
  • MALUF, Sônia Weidner. (1999), “Antropologia, narrativas e a busca de sentido”. Revista Horizontes Antropológicos, vol. 5, nº12: 69-82.
  • MIRANDA, Ana Paula Mendes de. (2016), Burocracia e fiscalidade: uma análise das práticas de fiscalização e cobrança de impostos Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris.
  • MIRANDA, Ana Paula Mendes de. (2020), “‘Terreiro politics’ against religious racism and ‘christofascist’ politics”. Vibrant, vol. 17: 1-20.
  • MIRANDA, Ana Paula Mendes de; BONIOLO, Roberta Machado. (2017), “‘Em público, é preciso se unir’: conflitos, demandas e estratégias políticas entre religiosos de matriz afro-brasileira na cidade do Rio de Janeiro”. Religião e Sociedade , vol. 37, nº 2: 86-119.
  • MONTERO, Paula. (2012), “Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso”. Religião e Sociedade , vol. 32, nº 1: 167-183.
  • MORAIS, Mariana Ramos de; JAYME, Juliana Gonzaga. (2017), “Povos e comunidades tradicionais de matriz africana: uma análise sobre o processo de construção de uma categoria discursiva”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 17, nº 2: 268-283.
  • NUNES, Victor Hugo Basilio. (2018), “‘Ilê Oju Odé’: o candomblé na perspectiva decolonial”. In: Anais Eletrônicos do Congresso Epistemologias do Sul. vol. 2, nº: 1.
  • OLIVEIRA, Ilzver de Matos; FEITOSA NETO, Pedro Meneses; CHAGAS, Érica Maria Delfino; LIMA, Caio Gonçalves Silveira. (2020), “A exigência de licenciamento ambiental para terreiros na cidade de Aracaju: o debate sobre racismo religioso nos autos de uma Ação Civil Pública”. In: 32ª REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, Rio de Janeiro.
  • ORO, Ari Pedro. (2005), “O sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras: análise de uma polêmica recente no Rio Grande do Sul”. Religião e Sociedade , 25 (2): 11-31.
  • ORO, Ari Pedro et al (2012), A religião no espaço público: atores e objetos São Paulo: Terceiro Nome.
  • PEIXOTO, Esdras Gusmão de Holanda. (2014), “Religião, sacrifício e controvérsia: disciplinando sacrifícios de animais em cultos afro-brasileiros no sertão pernambucano”. Revista Eletrônica Discursus Juridicus, vol. 1, nº 1: 218-245.
  • PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. (2020), “Alteridade e raça entre África e Brasil: branquidade e descentramentos nas Ciências Sociais brasileiras”. Revista de Antropologia, vol. 63, nº 2: e170727.
  • POSSEBON, Roberta Mottin. (2007), A reação das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul: conflitos com neopentecostais e defensores dos animais Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
  • RUFINO, Luiz. (2016), “Performances afro-diaspóricas e decolonialidade: o saber corporal a partir de Exu e suas encruzilhadas”. Antropolítica-Revista Contemporânea de Antropologia, 40: 54-80.
  • SENNETT, Richard. (2004), A corrosão do caráter - consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo Rio de Janeiro: Record, 8º ed.
  • SOUSA JÚNIOR, VilsonCaetano de . (2014), “Comida de santo e comida de branco”. Revista Pós Ciências Sociais, vol. 11, nº 21: 127-142.
  • SOUZA, Victor Martins. (2018), “Uma percepção africana dos Direitos Humanos: a Carta Mandinga”. Capoeira-Humanidades e Letras, vol. 4, nº 1: 1-18.
  • TAVARES, Fátima; BASSI, Francesca (org.). (2012), Para além da eficácia simbólica: estudos em ritual, religião e saúde Salvador: Edufba.
  • 1
    Refere-se aos ativistas que empreendem a luta antirracista, cujas mobilizações são oriundas ou envolvem os terreiros, o termo procura delimitar um perfil de atores que, mesmo atuando em diferentes movimentos sociais, inclusive o movimento negro, pretende ressaltar seu pertencimento religioso às tradições afro como sua principal característica identitária. Ver: Miranda, 2020; Almeida, Silva (no preloALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. (2015), Quem foi que falou em igualdade? Rio de Janeiro: Autografia.).
  • 2
    Conforme a autora: “uma forma de ‘incerteza compartilhada’ (...) trata-se de compreender como um conjunto de fatos é reunido em um debate público, quais os processos de tradução que transformam o sentido da linguagem ordinária em um problema social” (Montero 2012:178).
  • 3
    Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no Grupo de Trabalho Controle Social, Segurança Pública e Direitos Humanos, no VIII Seminário Nacional de Sociologia e Política, em Curitiba (2017).
  • 4
    O GEBG é uma organização sem fins lucrativos constituído por adeptos e sacerdotes das religiões afro (Umbanda, Candomblé e Afro-indígenas), cujo objetivo é o de combater o preconceito contra as religiões afro-brasileiras e incentivar a formação cultural e política dos seus adeptos. Realizamos trabalho de campo junto ao grupo desde março de 2014.
  • 5
    O Fórum reúne adeptos e lideranças dos terreiros com intuito de popularizar a legislação internacional (Convenção 169 da OIT) que prevê garantias aos terreiros nos mesmos moldes que aos territórios quilombolas e indígenas. A ideia de que os terreiros se constituem como “Povos Tradicionais de Matriz Africana” será apresentada mais adiante.
  • 6
    Refere-se à classificação internacional, de acordo com o Artigo 169 da OIT, adotada pelos ativistas dos terreiros para reivindicação e garantia de direitos. Ver: Morais e Jayme, 2017.
  • 7
    Neste trabalho realizamos duas formas de nomear os interlocutores: 1) quando suas falas são públicas, veiculadas em meios de comunicação, mantemos o nome dos interlocutores, como o caso do advogado Hédio da Silva Júnior e o ministro Edson Fachin; 2) quando as falas aconteceram durante o trabalho de campo, utilizamos nomes fictícios como forma de preservá-los.
  • 8
    A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi ratificada pelo Brasil, por meio do Decreto nº 5.051/2004.
  • 9
    O encontro teve como objetivo a discussão de políticas públicas diferenciadas, voltadas para um recorte étnico-racial e de gênero, visando a promoção da equidade e do desenvolvimento social no Brasil. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/conferencia/encontros-tematicos. Acesso em: 13/09/2019.
  • 10
    Disponível em: https://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Seguranca_alimentar_IV/relatorio_preliminar_4_conferencia_seguranca_alimentar_nutricional.pdf. Acesso em: 30/11/2021.
  • 11
    Os não humanos que são alimentados nos terreiros são os assentamentos das divindades, a quem são dadas oferendas - água, frutas, cereais, algumas partes dos animais - para que tenham o Axé, que faz com que a comunidade permaneça em harmonia.
  • 12
    O caráter polissêmico e polifônico do axé foi analisado por Capone (2004), salienta-se que neste artigo o que importa é destacar que alimentar o Axé implica em dar conta de um modo ampliado de prover uma comunidade de modo a conectá-la entre si e com os deuses e ancestrais. A transmissão do Axé significa, portanto, a troca de energia e de comunicação entre mundos, que fortalece laços, dando a fartura um sentido próprio, segundo o qual saciar a vontade de comer é concretizar aquilo que se deseja para si e para o mundo à sua volta.
  • 13
    Salienta-se que este é um processo político que, historicamente, reinterpreta divindades não cristãs como portadoras do mal, resultando em processos de pânico moral e desqualificação dos acusados.
  • 14
    De acordo com a Mametu de Inkise Arlene de Katendê (RJ), escreve-se Makuria, mas a pronúncia é Makudia. Kúria = kúdia = comida ou comer.
  • 15
    Esse é o princípio que rege a “cozinha de Axé”, mas evidentemente sabemos que, na prática, essa determinação pode ser flexibilizada em função de situações específicas em cada terreiro, que é um território autonômo.
  • 16
    Um exemplo é o bolo, muito comum em várias festividades. Ao cortá-lo, o primeiro pedaço sempre é oferecido às divindades.
  • 17
    Procópio Xavier de Souza (Bahia, 1880-1958) “Ogunjobi”, sacerdote fundador do Ilê Ogunjá, situado no Baixão, antigo Matatu Grande, em Salvador.
  • 18
    Depois de 14 anos de tramitação, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em março de 2019, por unanimidade, que é constitucional o sacrifício de animais em cultos religiosos de matriz africana. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&queryString=Recurso%20Extraordin%C3%A1rio%20RE%20494601&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 29/11/2021.
  • 19
    “A devoção a Cosme e Damião é antiga no Brasil. Já em 1535, foi construída a primeira igreja em homenagem aos gêmeos na cidade de Igarassu, litoral e Pernambuco e região metropolitana do Recife” (Dias 2013:306).
  • 20
    Este período (2003 a 2016) compreende os governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores, responsáveis pela criação de decretos e equipamentos públicos (como os Conselhos Federais de participação popular, Secretaria Especial de Políticas Públicas de Igualdade Racial, Secretaria Especial da Mulher etc.) que institucionalizaram políticas de reconhecimento e de acesso a garantias sociais aos grupos historicamente excluídos.
  • 21
    Utilizamos o conceito de ideologia conforme proposto por Louis Dumont (1992DUMONT, Louis. (1992), Homo hierarchicus: o sistema das castas e suas implicações. São Paulo: Edusp.), que a entende como um conjunto de ideias e valores que orientam as práticas e as moralidades de determinada sociedade.
  • 22
    Refere-se ao culto de entidades da Umbanda (Caboclos, Pretos Velhos e Exus) em diálogo com as práticas e o entendimento kardecistas.
  • 23
    Cabe registrar que não realizamos pesquisa etnográfica junto a grupos que se autoproclamam dessa forma, aqui nos referimos ao modo pelo qual os nossos interlocutores reproduzem termos que circulam neste campo religioso, o que pode ser demonstrado por materiais disponíveis nas redes sociais. Disponível em: https://educayoruba.com/candomble-vegetariano-sem-sacrificios-existe-ele-diz-que-sim-leia-e-entenda/#:~:text=Ela%20%C3%A9%20vegetariana%20e%20sendo,gr%C3%A3o%20de%20areia%20do%20nada. Acesso em: 10/04/2022.
  • 24
    Nascido em Angola e iniciado no Ilé Asé Opo Afonjá para Oxalá, Agenor Miranda (1907-2004) tornou-se um dos mais procurados e respeitados Olwo - sacerdote que consulta o Oráculo de Ifá - do Brasil. Ele defendia publicamente o fim do abate animal. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fe/fe14.htm. Acesso em: 10/04/2022.
  • 25
    De acordo com Souza (2018SOUZA, Victor Martins. (2018), “Uma percepção africana dos Direitos Humanos: a Carta Mandinga”. Capoeira-Humanidades e Letras, vol. 4, nº 1: 1-18.), os costumes e as leis entre vários povos africanos eram mantidos pelo Clã dos Caçadores.
  • 26
    Durante os períodos de recolhimento - que é quando se inicia uma pessoa ou quando se cumprem os preceitos etários (1, 3, 7 anos) - a única fonte de proteína animal possível são as carnes dos animais abatidos religiosamente.
  • 27
    Há terreiros que usam as expressões “corte”, “holocausto”, “aperé” - este último é o termo Yorubá para se referir ao ato do sacrifício de animais.
  • 28
    A drenagem do sangue do animal faz com que sua conservação seja mais eficiente. A prática também é observada no abate kosher: http://carnenossa.blogspot.com.br/2010/12/abates-religiosos-shechitah-abate.html. Acesso em: 18/08/2018.
  • 29
    Nos terreiros Nagôs/Yorubás e na maioria dos de tradições Fon. Nos terreiros Congo/Angola, a função é realizada pelo “kambondu Tatá Pokó”, sendo o abate chamado de “ku batula”.
  • 30
    Dono do “Obé” significa Dono “da faca”, em Nagô/Yoruba. Na maioria dos terreiros, as facas ritualísticas não são utilizadas cotidianamente e ficam guardadas junto a outros objetos sagrados.
  • 31
    Nem todo abate é realizado por faca. Há interditos para a utilização do aço para imolação de alguns animais como caracol, pombo e a galinha d’angola.
  • 32
    . Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-10/brasil-e-o-maior-exportador-de-comida-halal-no-mundo. Acesso em: 30/11/2021.
  • 33
    Disponível em: https://www.scotconsultoria.com.br/noticias/artigos/50215/abates-%3Ci%3Ehalal%3Ci%3E-e-%3Ci%3Ekosher%3Ci%3E.htm. Acesso em: 30/11/2021.
  • 34
    “O direito humano à alimentação.” Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/artigos/2014-1/direito-humano-a-alimentacao-adequada-e-soberania-alimentar. Acesso em: 16/10/21.
  • 35
    O autor analisa as práticas do abate no Omiojuaro, tradicional terreiro do Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2021
  • Aceito
    04 Jul 2022
Instituto de Estudos da Religião ISER - Av. Presidente Vargas, 502 / 16º andar – Centro., CEP 20071-000 Rio de Janeiro / RJ, Tel: (21) 2558-3764 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: religiaoesociedade@iser.org.br