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“Isso daí tem muita Mironga!” Um estudo sobre atos mágicos na Folia de Reis

“This has a lot of Mironga!" A study on magical acts in the Folia de Reis

Resumos

Resumo: Este artigo centra-se na análise simbólica das rezas e orações fortes operadas em situações liminares do giro das folias de reis. Esses saberes estão relacionados à existência do Livro de São Cipriano, um compêndio de rezas e práticas mágicas marcadas por restrições e proibições relacionadas às ideias de bruxaria, feitiçaria e magia. Para a realização desse trabalho, lanço mão da etnografia realizada por mim entre os anos de 2010 e 2017 junto ao mestre Fumaça, da Bandeira Nova Flor do Oriente, sediada na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro.

Palavras-chave:
Folia de reis; Rezas e orações fortes; Livro de São Cipriano


Abstract: This article focuses on the symbolic analysis of the rezas and orações fortes (prayers) performed in liminal situations of the folia de reis. This knowledge is related to the existence of the Book of Saint Cyprian, a compendium of prayers and magical practices marked by restrictions and prohibitions related to the ideas of witchcraft, sorcery, and magic. To carry out this work, I use the ethnography realized by me between the years 2010-2017 with the master Fumaça of the Bandeira Nova Flor do Oriente, based in the metropolitan area of the state of Rio de Janeiro.

Keywords:
Folia de Reis; Prayers; Book of Saint Cyprian


A Folia de Reis Bandeira Nova Flor do Oriente

As folias de reis são grupos rituais de devotos promesseiros cuja principal prática é a realização de circuitos festivos que colocam em circulação cantorias, instrumentos, rezas, comidas, ofertas, pessoas, santos e devoções. Esses circuitos são chamados giros ou jornadas,1 1 Ao longo deste trabalho, os grifos em itálico ressaltam os termos próprios ao universo pesquisado. e obedecem a um calendário religioso, a epifania dos Santos Reis, que se estende da madrugada do dia 24 de dezembro ao dia 6 de janeiro. Em algumas localidades da região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, esse período se prolonga até o dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro da capital fluminense e santo de devoção de inúmeros foliões. No período da epifania, os devotos cantadores saem da sede 2 2 Local onde são guardados os instrumentos, indumentárias e, principalmente, a bandeira de reis. Na maioria das vezes a sede se encontra na casa do mestre da folia de reis. do grupo, vestidos com suas fardas e empunhando seus instrumentos. À frente dos promesseiros encontra-se a bandeireira, o folião ou a foliã responsável por conduzir o símbolo máximo da folia - a bandeira - que representa os Santos Reis. Ao seu lado seguem o mestre e o contramestre - o que demonstra a hierarquia do reisado. O mestre geralmente é o dono da Folia e proprietário dos instrumentos e indumentárias, é também o principal regente das cantorias, denominadas profecias, que são entoadas nas casas dos devotos anfitriões.

O mestre é aquele que detém o fundamento, o repertório de narrativas míticas sobre a jornada bíblica da Sagrada Família e dos Santos Reis para adoração e anunciação cantada do nascimento do filho de Deus - a devoção da folia de reis é entendida como uma missão sagrada deixada pelos Santos Reis aos devotos, encarregando-os de espalhar a anunciação de Cristo (Pereira 2014PEREIRA, Luzimar Paulo. (2014), “O Giro dos Outros: fundamentos e sistemas nas folias de Urucuia, Minas Gerais”.Mana, v. 20, nº 3:545-573.; Bitter 2010BITTER, Daniel. (2010), A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de Janeiro: 7Letras/Iphan/CNFCP.; Chaves 2009CHAVES, Wagner Neves Diniz. (2009), A bandeira é o santo e o santo não é a bandeira: práticas de presentificação do santo nas folias de reis e de São José. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Souza 2020SOUZA, Luiz Gustavo Mendel. (2020), Giros Urbanos: Uma etnografia da festa do arremate da folia de reis no estado do Rio de Janeiro. Belo Horizonte: Ancestre.). O fundamento é a base cosmológica para orientação, organização e realização da folia.3 3 A aproximo-me aqui do entendimento de Stanley Tambiah (2018:141) para quem cosmologia quer dizer “o corpo de concepções que enumeram e classificam os fenômenos que compõem o universo como um todo ordenado, e as normas e os processos que o governam”. Em suma, a cosmologia seria um elemento organizacional que relaciona forma e conteúdo na performance ritual.

Para além do mestre e dos cantadores instrumentistas, há um personagem de suma importância para as folias, o palhaço. Ele é o elemento que destoa de todo o grupo, sendo suas indumentárias feitas de tecidos coloridos, fitas e guizos; ostenta máscaras grotescas ornadas com chifres, dentes e cabelos sintéticos.4 4 Diferentemente das indumentárias dos demais foliões, que pertencem ao mestre, os trajes dos palhaços e suas máscaras são do próprio devoto que as vestem. Carrega consigo cajados e, enquanto a folia realiza as profecias pedindo a entrada do Santo nas casas e distribuindo bênçãos, o palhaço permanece do lado de fora a gritar e brincar com quem assiste o reisado. No fundamento os palhaços representam os soldados do imperador Herodes que perseguiram os Santos Reis para encontrar e assassinar o menino Jesus, mas que se perderam pelo caminho. Na narrativa mítica esses soldados se arrependeram e hoje estão à disposição da folia para a proteção da bandeira. Na ausência desses soldados, isto é, quando não há um palhaço no giro da folia, o mestre precisa mobilizar determinados saberes para proteger os seus em meio à missão da jornada sagrada.

Este artigo apresenta uma análise simbólica sobre o uso de rezas e orações fortes 5 5 Dentre os folcloristas, o termo “orações fortes” é o mais utilizado (ver Cascudo 1999), mas entre os foliões a expressão rezas fortes é mais recorrente. Por isso, quando me refiro a tais categorias, vou citá-las como rezas e orações fortes. pelo mestre para proteção da folia de reis. Como veremos no decorrer do texto, esses conhecimentos estão relacionados ao Livro de São Cipriano, em suma, um compêndio de saberes marcados por interdições e proibições relacionadas às ideias de bruxaria, feitiçaria e magia. Primeiramente, serão apresentados relatos sobre a manifestação de entidades mágicas durante os giros da folia e o quanto a figura do palhaço, o guardião da folia, se torna o principal alvo desses seres sobrenaturais. Em seguida, veremos como a ausência do palhaço exige que o mestre acione determinados saberes carregados associados ao Livro de São Cipriano. Por último, será tratado como o mestre e o palhaço operam com as rezas e orações fortes e recorrem a santos fortes para manter a ordem cosmológica da folia.

Para tanto, lanço mão da etnografia que realizei entre os anos de 2010 e 2017 junto ao mestre Fumaça (Antônio José da Silva), fundador e dono da Folia de Reis Bandeira Nova Flor do Oriente, que realiza suas jornadas na região metropolitana do Rio de Janeiro desde os anos 1970.

A ausência do Guardião da folia

Cheguei à casa do mestre Fumaça às 22 horas do sábado, dia 18 de janeiro de 2014Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, março de 2014.. Fazia muito calor e alguns foliões estavam sentados sem camisa na calçada em frente ao terreno do mestre. Com o passar do tempo, os que faltavam começaram a chegar, mas nenhum sinal de Alan, o palhaço da folia, que morava ali no quintal da casa do mestre. Perguntei o que estava acontecendo e Jorge me disse que Alan viria de um serviço que ele tinha arrumado, mas que chegaria antes da folia sair pro giro (Nota do caderno de campo, São Gonçalo, janeiro de 2014).

Desde 2013 que Alan havia se comprometido a sair como palhaço da Bandeira Nova Flor do Oriente. Tanto ele quanto o mestre Fumaça me disseram que tal acordo foi estabelecido com o mestre Waldir, da Estrela da Guia, uma folia de Campo Grande, zona oeste do Rio, a qual Alan pertencia. Certa vez ele me disse: “Eu já acompanho a folia Estrela da Guia há um tempão já! Lá eu já saí tocando todos os instrumentos, um em cada ano, já cheguei a sair de contramestre algumas vezes. Eu saía desde criancinha como palhaço do mestre Waldir. Mas aí eu quis dar uma ajuda na folia do Fumaça, ele mais as filhas dele!”

A realização da jornada pelas ruas, encruzilhadas e caminhos durante a madrugada possibilita o entrecruzamento dos foliões e devotos tanto com entidades quanto com pessoas potencialmente perigosas. Relaciono aqui a encruzilhada com a cosmologia da umbanda, onde nos cruzamentos de ruas compreende-se um entrecruzamento de mundos físico e metafísico. A encruzilhada é um dos territórios de Exu, entidade mensageira e relacionada aos caminhos (Mourão 2012MOURÃO, Tadeu. (2012), Nas encruzilhadas da cultura. Rio de Janeiro: Aeroplano.). Como será demonstrado mais adiante, o universo da folia de reis da região metropolitana do Rio de Janeiro entrecruza muitas características do catolicismo e da umbanda. Os relatos sobre esses contatos, no contexto da realização dos giros, são diversos. Nesses casos, visando aplacar as tensões com os espíritos da rua, o mestre aciona rezas voltadas para a proteção da folia e dos foliões. Em uma de nossas conversas, Alan me contou uma história que se passou quando ainda era criança:

Uma vez eu estava saindo de palhaço com meus tios e estávamos deitados em um terreno do lado de fora do terreiro [de Umbanda]. Era eu e mais três palhaços, todos muito bons, a gente estava deitado e aí a gente ouviu uma voz, assim: “Psiu! Ei, vocês!”. A gente se levantou e foi ver o que era, era um Saci! Ele estava acenando com a mão, chamando a gente para ir a onde ele estava. Meu tio me olhou e disse: “Não vai lá não! Deixa isso pra lá!”. Depois nós fomos ver onde ele estava, era atrás de uma cerca de arame farpado, se tivéssemos ido lá, a gente tinha se lascado todo! É muito perigoso sair no giro sem ter essas maldades. Você tem sempre que estar muito ciente dessas coisas. (Alan, nota do caderno de campo, São Gonçalo, janeiro de 2015)

Nessa narrativa, observo como o palhaço da folia acaba por se tornar o alvo potencial dos perigos incitados pelas entidades espirituais (Bitter 2010BITTER, Daniel. (2010), A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de Janeiro: 7Letras/Iphan/CNFCP.; Souza 2020SOUZA, Luiz Gustavo Mendel. (2020), Giros Urbanos: Uma etnografia da festa do arremate da folia de reis no estado do Rio de Janeiro. Belo Horizonte: Ancestre.), e “ter essas maldades” é essencial para o guardião da folia proteger a si próprio. Daniel Bitter (2010) se aprofundou nessas questões:

Talvez por isso o mestre e o palhaço apareçam como alvos privilegiados da ação de bruxaria, muitas vezes ocasionada por disputas e rivalidades, onde pode estar em jogo a manutenção de certo prestígio pessoal. Palhaços ficam mudos ou desmaiam e atribuem o fato, com frequência, a ações malfazejas realizadas por grupos de foliões e palhaços rivais. Por esta razão, muitos são os preparativos que um palhaço deve realizar antes de se fardar e sair numa folia [...] (Bitter 2010BITTER, Daniel. (2010), A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de Janeiro: 7Letras/Iphan/CNFCP.:182).

Assumir a função de palhaço no ritual exige estar sempre alerta e a par de um conjunto de conhecimentos importantes para preservar não apenas a sua integridade moral, mas a própria vida. Por isso sua ausência poderia ocasionar algo trágico em meio aos giros das folias. Volto às minhas notas de campo de 2014:

O mestre estava andando de um lado para o outro em seu quintal, quando me perguntou a hora. Disse-lhe que já eram 1h15 da madrugada. O mestre havia aguardado a chegada do seu palhaço durante todo esse tempo, geralmente as folias se preparam para iniciar seus giros exatamente à meia-noite. Fumaça pediu para que todos os seus foliões se fardassem, pois iria iniciar os preparativos para a retirada da bandeira do altar. Posicionei-me do lado de fora da sede, próximo à janela que dá acesso à sala, escutando a reza do mestre para a retirada da bandeira. Em meio à ladainha (rezas pedindo auxílio aos santos), percebi uma dramática alteração em sua voz, assumindo um tom forte de repreensão, quase como um clamor desesperado, com palavras que me fizeram pegar um tanto desajeitado o celular para anotar: “Quem não gosta dessa bandeira Se despeça e vá embora Pra mim ela sempre foi leve! São Marcos e São Cipriano Eu estou pedindo com amor Amarre meus inimigos E joga eles nas águas virgens Pai o filho e o espírito santo Nessa hora abençoada Meu Deus e pai eterno Eu vou parar meus instrumentos” (Nota do caderno de campo, São Gonçalo, 18 de janeiro de 2014).

Percebendo a seriedade daquelas palavras, comecei a me interessar pela figura de São Cipriano, mencionada na prece. Conversando com o mestre Fumaça sobre esse episódio, ele me falou da importância de se pedir a interseção dos santos fortes nessas horas:

Colocar a folia na rua é uma coisa muito perigosa, até mesmo com o palhaço, imagina sem ele?! Por isso, precisamos pedir ajuda aos santos, quando não temos o palhaço temos que ter mais cuidado ainda, por isso eu rezei pra São Cipriano e São Marcos, pois eles são santos fortes que ajudam contra quem quer o mal da folia (Mestre Fumaça, nota do caderno de campo, São Gonçalo, 28 de janeiro de 2014Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, março de 2014.).

Não foi por acaso que o mestre apelou a esses dois santos, pois eles são as potências que encarnam a possibilidade de amansar os possíveis perigos que se manifestariam durante o giro da folia. Para poder dar continuidade à sua missão, o mestre Fumaça evocou os santos capazes de conter os riscos e perigos oferecidos por esse espaço liminar do ritual da folia que é a rua. Segundo Van Gennep (1997GENNEP, Arnold van. (1997), Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes.:36), “qualquer pessoa que passe de um [território] para outro acha-se assim, material e mágico-religiosamente, durante um tempo mais ou menos longo em uma situação especial, uma vez que flutua entre dois mundos”.

“Nunca se sabe o que nós podemos encontrar lá fora”, disse-me o folião Geraldo na primeira vez em que Alan se ausentou da missão sem avisar ao mestre. O lá fora é o lugar do incerto, do imprevisível, o que faz com que as rezas feitas pelo mestre para retirar a bandeira do altar e sair à rua sejam direcionadas aos santos protetores. Esse ritual é realizado com extremo cuidado e só se inicia com a presença de todos os foliões já fardados e munidos de seus instrumentos. O mestre Fumaça se posiciona em frente ao altar acompanhado do contramestre e da bandeireira. Em silêncio, acende uma vela ao lado do copo d’água abaixo da bandeira. Esse rito pode ser interpretado pela multivocalidade e polissemia de que nos fala Victor Turner (2005TURNER, Victor. (2005), Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: Eduff.) quando

um único símbolo pode representar várias coisas. Essa propriedade dos símbolos individuais é verdade para o ritual como um todo, pois uns poucos símbolos têm de representar uma cultura inteira e seu ambiente material. [...] Cada símbolo dominante tem um ‘leque’ ou ‘espectro’ de referentes, os quais são interligados pelo que é geralmente um simples modo de associação, cuja própria simplicidade permite a ele interconectar uma grande variedade de (Turner 2005TURNER, Victor. (2005), Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: Eduff.: 85).

Aqui, a vela e o copo d’água no altar adquirem vários significados. Segundo o mestre, a “água é para que nunca falte nem o que comer nem o que beber tanto para os meus foliões quanto para os meus devotos”. Já a vela acesa simboliza “a luz que alumia e guia os foliões em meio a sua missão sagrada, assim como a estrela que guiou os três reis”. Além de representar a estrela, essa mesma chama é dedicada “aos santos anjos que protegem os foliões e a bandeira em meio à jornada”. Os dois elementos rituais são depositados no altar quando se retira a bandeira para as jornadas. A água e a chama representam a agência dos santos, que garantem alimento e proteção durante a missão sagrada; ambos os elementos rituais são recolhidos só após o retorno da bandeira ao altar.

Os versos entoados pelo mestre e cantados pelos foliões são sempre iniciados com a seguinte profecia: “Salve meu Deus e Nossa Senhora / Vou começar minha cantoria”. Todos os foliões ali presentes iniciam a cantoria rogando (salve) ao apelo de Deus e Nossa Senhora para dar início ao rito de retirada da bandeira da sede. Os demais versos entoados pelo mestre focam na realização da missão que herdou dos Santos Reis Magos, para que eles o ajudem a completar a devoção.

Mas é nos últimos versos da profecia que são invocadas as entidades responsáveis pela proteção dos foliões e da bandeira:

Que o nosso anjo da guarda Proteja o nosso guardião Que o anjo da guarda Proteja os nossos caminhos Proteja os meus folião Nessa hora abençoada Eu vou parar meus instrumentos

Como os dados da pesquisa de campo se revelaram mais frutíferos em relação a São Cipriano, as próximas páginas referem-se a esse santo e ao modo pelo qual são adquiridos os conhecimentos sobre rezas e orações fortes.6 6 Esse é um tema tem mobilizado os pesquisadores há algum tempo. Patrícia Monte-Mór (1992) apontou a relação entre as práticas rituais da folia e da Umbanda, assim como Daniel Bitter (2010) e Wagner Chaves (2003). Luzimar Pereira (2009) também deu ênfase às malinagens que atrapalhavam os foliões em meio ao giro e menciona em sua tese a relação disso com o Livro de São Cipriano.

São Cipriano entre o Livro e a Reza

Em um domingo à tarde fui à casa do mestre Fumaça disposto a inquiri-lo sobre como conheceu e como teve acesso ao Livro de São Cipriano 7 7 Como os próximos tópicos visam explorar a aquisição do objeto ritual e sua relação com a hagiografia do santo, me referirei a ele apenas como o Livro. . Quando perguntei ao mestre sobre a reza, tive a seguinte resposta:

- Ih rapaz, isso aí tem muita mironga! Eu nem sei como fui acabar me envolvendo com isso daí! Na verdade, eu estava com uma moça na época e eu era bem jovem, ela era espírita8 8 Na maioria das vezes, quando conversamos sobre denominações religiosas, o mestre e os demais foliões utilizam a categoria “espírita” para se referir aos umbandistas. , sabe!? Aí ela me pediu para que eu comprasse o Livro de São Cipriano para a gente ler junto… mas é uma coisa muito esquisita, muito esquisita e perigosa. - Por que o senhor diz que é esquisito e perigoso? - Ué, porque quando você começa a ler, você não consegue mais parar, tipo você pega o livro - o mestre começa a gesticular como se tivesse o livro em sua perna, folheando-o com os dedos - e começa a ler uma página, mas aí você diz assim: depois dessa eu vou dormir! Mas você fica meio sem vontade de deixar de ler, aí você deixa o livro de lado, logo dá vontade de começar a ler de novo… Quando você percebe você tá lendo outra página. Aí você não consegue parar de ler o livro! - E o senhor tem esse livro ainda? - Tenho! Tenho sim! - E ele está aqui? - Não, mas por quê? Você quer ver o livro? - Sim, o senhor poderia me emprestar? - Não tem pra que você ter contato com essas coisas, você é um rapaz bom, tem uma cabeça muito boa! Não tem pra que você começar a conhecer essas coisas, porque quando você lê, você começa a conhecer coisas que você não conhecia e não precisava conhecer. São coisas ruins, energia carregada, as pessoas fazem coisas ruins com isso, coisas que você não precisa saber, entende? - Tudo bem, mas o senhor tem esse livro aqui? - Aqui não! Eu tenho um quarto na casa de uma tia minha,9 9 Essa parente à qual o mestre se refere é uma das devotas que abre as portas de sua casa para receber a folia Nova Flor do Oriente no bairro do Boassu em São Gonçalo. de quando eu morava com ela. Lá tem um quartinho com umas coisas minhas. Eu deixei muita coisa minha lá, não trouxe pra cá não. - Por quê? - Porque eu tinha meus filhos pequenos para criar e não podia deixar uma coisa dessas dando mole! Imagina se um deles pega pra ler o livro, ia dar problema. (Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, fevereiro de 2014Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, fevereiro de 2014.).

Nesse caso, há uma dificuldade em delimitar as categorias êmicas relacionadas a feitiçaria, bruxaria e magia, pois, como veremos adiante, elas variam de acordo com o símbolo operado. Na maioria das vezes, quando a categoria mironga é acionada, ela se refere à magia e à feitiçaria. Porém, como tais magias e feitiçarias estão relacionadas à aquisição de conhecimento das rezas e orações fortes contidas no Livro de São Cipriano, a categoria bruxaria também é integrada ao léxico dos foliões. Mas, para delimitar operacionalmente as próximas análises, vou diferenciar bruxaria de feitiçaria a partir de uma definição de Victor Turner, para quem “a bruxaria, em resumo, pode ser inconsciente e involuntária, embora seja frequentemente intencional, herdada e inerente. A feitiçaria é sempre consciente e voluntária, é ensinada e frequentemente comprada” (Turner 2005:166). Essa interpretação se aproxima do estudo de Evans-Pritchard (1978EVANS-PRITCHARD, Edward E. (1978), Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) que considera a feitiçaria uma magia instrumental, enquanto a bruxaria seria aquela realizada sem nenhuma mediação material.

Ter contato com o Livro significa, para o mestre, ter acesso a níveis de informações proibidas. Essa sabedoria serve para se preparar contra eventualidades por meio de rezas e orações fortes, que podem ser classificadas aqui como bruxaria ou feitiços. O Livro tem a propriedade da magia contagiosa, por isso o mestre Fumaça repreendia meu súbito interesse pelo objeto. Ele está intimamente relacionado à mironga, uma categoria nativa que se aproxima da noção de mistério e conhecimentos sobre feitiçaria. Em seu Dicionário da Religiosidade Popular, Francisco van der Poel, o Frei Chico, oferece a seguinte definição:

Mironga [Do quimbundo “mulonga”, palavreado.] Segredo, mistério, doutrina sagrada, fundamento. […] No jongo e no candombe tem mironga. Os segredos são transmitidos dos mais velhos aos novatos. […] Especificamente é feitiço ou amarração como neste ponto de preto velho: Pai Benedito vem chegando/ todo mal ele vai levando/ caminhou, caminhou,/ no terreiro ele saravou/ a mironga ele retirou ô/ e seus filhos ele saravou.// Há mironga em fontes, pedreiras e matas onde moram os encantados. A quimbanda pratica mirongas. (Van der Poel 2013VAN DER POEL, Francisco. (2013), Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura.:645).

A mironga está associada à magia e às energias carregadas que, na cosmologia dos meus interlocutores, conseguem mexer com o mundo dos vivos e dos mortos. É uma forma de amarrar (controlar ou neutralizar) as possíveis eventualidades, seja no cotidiano ou no ritual. E, por conter tais saberes, o Livro exerce sobre seus operadores uma agência que poderia instaurar - nos termos de Mary Douglas (1966DOUGLAS, Mary. (1966), Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva.)10 10 O perigo em se mexer com “coisas carregadas” geradoras de desordemencontra uma explicação na interpretação de Mary Douglas quando ela nos diz que “Se é verdade que a desordem destrói o arranjo dos elementos, não é menos verdade que lhe fornece os seus materiais. Quem diz ordem diz restrição, seleção dos materiais disponíveis, utilização de um conjunto limitado de todas as relações possíveis. Ao invés, a desordem é, por implicação, ilimitada; não exprime nenhum arranjo, mas é capaz de gerá-lo indefinidamente. É por isto que aspirando à criação de ordem, não condenamos pura e simplesmente a desordem. Admitimos que esta destrói os arranjos existentes; mas também que tem potencialidades. A desordem é pois, ao mesmo tempo, símbolo de perigo e de poder” (Douglas 1966:72). - o caos, a desordem e o perigo, além de contagiar seu usuário. Para compreender a complexidade do contágio mágico no ato da pronúncia de tais rezas do Livro, aproprio-me das reflexões de Tambiah (2018TAMBIAH, Stanley. (2018), Cultura, Pensamento e Ação Social: uma perspectiva antropológica. Petrópolis: Ed. Vozes.), onde o autor aproxima as categorias analíticas de Frazer - sobre o caráter de semelhança e contiguidade presentes na magia simpática - à linguística de Jackobson - sobre o caráter metafórico e metonímico da linguagem. E ainda propõe uma releitura da obra The Coral Garden, de Malinowski, compreendendo a importância da enunciação de determinadas palavras para a eficácia do ritual. Segundo Tambiah (2018:39):

Desde que as palavras existem e são, de certa forma, agentes em si mesmas que estabelecem conexões e relações entre homens, assim como entre homens e o mundo, e são capazes de ‘agir’ sobre eles, elas são uma das representações mais realísticas que temos do conceito de força que não é diretamente observável e nem uma noção metafísica que achamos necessário usar.

Aproximando-me de tais reflexões, entendo as invocações e rezas fortes como atos performativos. Invocar São Cipriano em uma reza corresponderia à capacidade metafórica da palavra, conjurando feitiços ou se protegendo deles. Da mesma forma, o contato com o Livro poderia ser analisado como a sua capacidade metonímica, quando se tem acesso aos escritos - as partes do conhecimento - atribuídos ao santo.

Para os meus interlocutores, o poder do Livro estaria na capacidade de fornecer instrumentos para a intervenção em certas situações através de suas rezas e orações fortes, mobilizando forças espirituais. O conhecimento nele contido precisa ser operado com responsabilidade, uma vez que pode ser usado para o bem ou para o mal. Por isso, o mestre pode utilizar estrategicamente as rezas no momento da cantoria. Assim como o fez Daniel Bitter (2010BITTER, Daniel. (2010), A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de Janeiro: 7Letras/Iphan/CNFCP.:174), aproximo-me da noção de “sagrado impuro” de Durkheim (2008DURKHEIM, Émile. (2008), As formas elementares da vida religiosa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes.)11 11 Durkheim (2008:366) utiliza as noções de “sagrado puro e o sagrado impuro, entre o sagrado fasto e o sagrado nefasto” para compreender o “rito negativo” em relação ao “rito positivo”. Ele nos fala das interdições e posturas ascéticas da realização de “ritos positivos” para que se possa lidar com o sagrado (saccer: separado). para compreender como o mestre da folia de reis pôde utilizar-se do conhecimento contido em um livro de bruxaria para rezar a ladainha ao retirar a bandeira do altar. O “sagrado impuro” seria, na folia de reis, a máscara do palhaço (Bitter 2010), mas, na ausência desta, o mestre pode recorrer ao “sagrado nefasto”, que são as rezas e orações fortes contidas no Livro.

Luzimar Pereira também se debruçou sobre a operação desses conhecimentos, chamados malinagens pelos foliões de Urucuia, Minas Gerais, onde realizou sua pesquisa:

Nos contextos específicos das folias urucuianas, a noção [de malinagem] parece se referir a todo este conjunto de saberes rituais que se aproximam dos conceitos de “bruxaria” e “feitiço”, responsáveis por bromar (bagunçar, atrapalhar, embromar, embaralhar) o cantorio dos foliões. As armas da malinagem são de vários tipos; assim como são seus contra-venenos. As primeiras podem ser acionadas através de orações misteriosas, transmitidas através de livros ocultos ou de boca em boca, ou por meio de pequenos ritos manuais, como, por exemplo, bater um pilão vazio enquanto os cantadores estão na residência. (Pereira 2009PEREIRA, Luzimar Paulo. (2009), Os giros do sagrado: um estudo etnográfico sobre as folias em Urucuia.Tese de Doutorado em Sociologia e Antropologia Cultural, Universidade Federal do Rio de Janeiro.:252).

O mestre e o pedido de licença para entrar nos terreiros de umbanda e candomblé

O nome Cipriano também é associado às religiões afro-brasileiras pela linha de Preto-Velho da Umbanda (Maggie 1977MAGGIE, Yvonne. (1977), Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar .:164). Assim como as demais definições do santo bruxo, essa linha está relacionada às artes divinatórias, capacidade de combate a feitiços e magia negra. Os pretos-velhos, também conhecidos como vovôs e vovós, são manifestações de espíritos de ex-escravizados que teriam sido feiticeiros e guerreiros. Foi no terreiro de Maria de Xangô - mãe de santo que sai na folia do mestre Fumaça e cujo terreiro é frequentado pela família do mestre e visitado pelos foliões durante o giro - que tive meu primeiro contato com o preto-velho Cipriano. Uma imagem de um metro e meio de altura sobressaía dentre os demais santos no congá12 12 Congá ou gongá (Cacciatore 1977:135) é o altar principal do terreiro de Umbanda materializado numa grande mesa, onde são encontradas as imagens de santos católicos, estatuetas de caboclos e pretos velhos, também sendo depositadas as guias da mãe de santo. , rodeado de vovôs e vovós. Um homem negro e forte que ostentava longos cabelos e barbas brancas, indicando o pesar da idade, estava ajoelhado em cima de um toco de madeira com as mãos unidas em prece, nelas se encontrando pendurada uma guia de contas pretas e brancas. A imagem estava à esquerda, próximo ao altar de Omolú (também chamado Obaluaê), orixá associado aos mistérios do manuseio das ervas, cura de doenças, combate à feitiçar ia. Yvonne Maggie (1977:164) ensina que a posição no congá corresponde ao lugar ocupado pela entidade nas Linhas da Umbanda.

Ao perguntar ao mestre sobre a relação entre os giros da folia e os terreiros de Umbanda, obtive a seguinte resposta:

Quando eu entro no terreiro eu não tenho isso de cantar pros santos não! Eu chego e falo: “Dá licença pra entrar nessa santa casa/ Pra cantar reis pra essa santa religião”. Tá vendo? Eu falo santa religião pra respeitar quem chama a folia de reis, porque folia de reis é coisa da Bíblia, é católico (Entrevista com mestre Fumaça, São Gonçalo, fevereiro de 2015Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, fevereiro de 2015.).

Na fala do mestre, há uma clara separação entre o que seria a prática da devoção católica e as práticas religiosas da Umbanda, mas o que constato é que existe um continuum entre essas duas práticas mediado pelo giro. Ao acompanhá-lo durante a jornada, notei que havia uma preocupação por parte do mestre em entoar profecias para os santos presentes nos altares dos terreiros de umbanda e candomblé, e não apenas para a santa religião. Em um giro realizado em janeiro de 2016, no terreiro de candomblé Arassá Aramegê Oxóssi Angolê Milagre do Obaluaê, de dona Rosinha, o mestre e o contramestre entoavam em seu pedido de licença, repetidos pelos demais foliões, os seguintes versos:

No clarão daquela estrela, ave Maria O devoto da morada/ abre a porta, ave Maria Encontrar as portas abertas/ Pra tirar meus folião da chuva, ave Maria Meu devoto da morada/ a chuva está caindo Pergunto pro senhor/ onde moram os três reis, oh, virgem Maria Pai, o filho e o espírito santo/ eu vou cantar minhas profecias Os três reis estavam dormindo/ em um sono profundo Encontramos a porta aberta/ Recebe nossa bandeira Vou saudar os quatro santos/ que é a nossa obrigação, Oh, virgem Maria Salve as três velas acesas/ Em nome dos três reis magos, Oh, virgem Maria São Baltazar, São Gaspar e São Belquior E mais a vela do santo/ em seu congá O pai o filho e o espírito santo/ e São José Bendito louvado seja/ Deus abençoe nossas palavras Pelo cálice abençoado e a hóstia consagrada Ponho meus joelhos em terra/ já cumpri minha missão Vou descansar meus folião.

Os primeiros cantos entoados mencionam que o “clarão da estrela os guiou até aquela morada” e, após “encontrar as portas abertas”, o mestre e seus foliões pedem que o “devoto receba a bandeira”. Uma das filhas de mãe Rosinha pega a bandeira e encaminha-se para o congá; logo em seguida, as profecias são retomadas “para saudar os quatro santos”, pois seria a “obrigação dos reiseiros” ali presentes. Os “quatro santos saudados” que estavam no altar eram Santo Antônio, Nossa Senhora da Conceição, Santa Bárbara e São Jerônimo, que são sincretizados, com os orixás Ogum, Oxum, Iansã e Xangô, respectivamente. O próximo passo é “dar um salve para as três velas acesas” que representam os três reis magos, e mais a quarta vela, que estava depositada no assento de São Lázaro, sincretizado com Obaluaê e Omulú, acima do congá. Mestre Fumaça elaborou a construção de suas profecias em cumprimento às entidades do terreiro. É importante enfatizar que, em todo o processo ritual, não houve uma especificação, por parte do mestre ou foliões, sobre a identificação das entidades - elas foram tratadas como santos.

Em certa ocasião, o mestre disse-me que “onde somos chamados, a gente vai. O reis é uma missão sagrada e nós gostamos de levar para a casa das pessoas que nos convidam”. Quando perguntado se já foi chamado para cantar reis em alguma igreja, ele respondeu que não. Por outro lado, não há distinção por parte dos foliões em “cantar reis nas casas dos devotos ou nos terreiros”.

Inspirado na “antropologia do conhecimento” de Fredrik Barth, o antropólogo Wagner Chaves (2003CHAVES, Wagner Neves Diniz. (2003), Na jornada de santos reis: uma etnografia da folia de reis do mestre Tachico. Rio de Janeiro, 2003. 143 f. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) analisou, em sua pesquisa sobre a folia de reis do mestre Tachico em Rio das Flores, na região serrana fluminense, as “tradições do conhecimento” relacionadas à história de vida do mestre e a sua transmissão em meio à prática da folia. Chaves (2003:99) também chamou atenção para o “corpus de conhecimento” (Barth 2000BARTH, Fredrik. (2000), An anthropology of knowledge. Current Anthropology, Chicago: The University of Chicago Press, vol. 43, nº 1: 1-18.) que ele denominou o “saber dos segredos”. Este seria um conjunto de saberes necessários, tanto para o mestre quanto para o palhaço, para proteção contra qualquer infortúnio.

Utilizo-me desse estudo para pensar o quanto as tradições de conhecimento são empregadas durante a prática dos giros. Mais especificamente, como a responsabilidade de levar os santos aos mais variados circuitos exige do mestre e de seus foliões, palhaços e bandeireira, o domínio de um corpus de conhecimento necessário para a proteção física, moral e espiritual de todas as pessoas e objetos rituais envolvidos.

Esse entendimento nos permite nos debruçar sobre a noção de giro, que, assim como o círculo, não tem início, meio e fim. A realização do giro amplia a possibilidade das práticas de devoção por meio da definição do seu trajeto. Na folia que pesquisei, ele se inicia com os rituais de retirada da bandeira da sede do mestre Fumaça, tem seu desenvolvimento na trajetória estabelecida pelos foliões em suas cantorias e visitações às casas dos devotos, se encerrando com o retorno à sede e com o ritual da entrega da bandeira. Aqui, nós temos um roteiro do ritual, mas as ações que ocorrem no “período liminar” - nos deslocamentos da folia entre uma estação e outra - ampliam as possibilidades sociais, devocionais e culturais do giro. Ao colocar o santo e a folia na rua, o mestre, o palhaço e os demais foliões se relacionam com um amplo universo de devoções, redes de sociabilidade e saberes carregados.

Credo cruzado ué! Os palhaços e seus pedidos de licença para entrarem nos terreiros de umbanda e candomblé

Em uma de nossas visitações em busca das ofertas 13 13 É a forma de retribuição do devoto por ter recebido o santo em sua casa. A oferta é um conjunto de práticas como a doação em forma de dinheiro à bandeira ou o oferecimento de comidas e bebidas aos foliões no período do giro. , o mestre Fumaça me contou sobre o tempo em que atuou como palhaço de folia:

-Quando eu era mais novo saía de palhaço na folia daqui de São Gonçalo, era eu e mais dois palhaços, o Jamil e o Meia-Noite. Nós fomos a um terreiro de um pai de santo que se orgulhava de receber a folia de reis, todo ano ele recebia tudo que é folia de São Gonçalo. Aí nós chegamos lá, a folia cantou, fez as rezas e isso. Na hora da brincadeira de palhaço, o Jamil e o Meia-Noite me disseram pra ir na frente e eu fui. Eu era novo na folia e queria mostrar que não ficava atrás de qualquer um, não. Aí eu fiquei cabreiro, senti que tinha alguma coisa estranha ali. Logo eu reparei que o pai de santo reparava muito em mim. Aí eu fui lá fora no meio do mato, virei minha farda, coloquei ela toda ao contrário. Enquanto eu ia colocando a farda ao contrário eu rezei o credo cruzado. - Credo Cruzado? O que é isso? - Credo Cruzado ué! É rezar o pai nosso de traz pra frente. - E pra que serve? - Pra se proteger! Se alguém tivesse feito alguma coisa muito séria, rezar o credo cruzado desfaz estas coisas ruins. É uma forma de se fechar pra essas ruindades. Aí eu comecei a brincadeira, quando eu cheguei na porta eu disse: “Eu ouvi dizer que o dono dessa casa/ oferece uma festa muito boa/ O palhaço da folia fica aqui fora/ Peço licença, pois da porta pra dentro/ Quem entra é a minha pessoa”. Quando eu falei: “Quem entra é a minha pessoa”, eu tirei a máscara, porque quem ia entrar era a minha pessoa. Aí eu tirei a máscara e coloquei num canto. Mais pra frente, eu reparei que tinha uma vela acesa lá no portão, então eu pedi licença ao dono da porteira, pro cruzeiro (o lugar onde vivem as almas) e perguntei ao dono do terreiro se eu podia fazer a minha chegada e bater cabeça no altar,14 14 Segundo Yvonne Maggie, bater cabeça significa: “Cerimônia de reverência diante do altar, onde estão colocadas as imagens dos Orixás, e a Mãe ou Pai-de-Santo do terreiro” (1977:158). para falar com os santos. Ele então me deu a licença e foi pegar a vela, depois se encaminhou ao altar com a vela acesa. Pra entrar no terreiro eu tirei a minha máscara e pedi a permissão do pai de santo. Ele deu a permissão e abriu o véu do altar, então eu fui lá, bati cabeça e cantei pros santos. Aí eu terminei de cantar e o dono do terreiro ficou todo prosa, ele disse pro Manel, que era o dono da folia na época, para que me chamasse sempre, que eu era um bom palhaço, pois, de todas as folias que tocaram naquele centro, nenhum palhaço passou da porta. Aí o Jamil e o Meia-Noite ficaram me elogiando. Em todas as casas que nós passamos depois, a gente ficou se desafiando no verso, mas os dois palhaços me respeitaram pra caramba depois daquele dia (Mestre Fumaça, nota do caderno de campo, São Gonçalo, 3 de março de 2014Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, março de 2014.).

O mestre Fumaça, que na época se apresentava como o palhaço Sapeca, utilizou-se dos conhecimentos da umbanda para realizar sua performance. E foi se apropriando desses códigos que ele conseguiu fazer sua entrada no terreiro. A utilização desses saberes carregados não acarretaria um trânsito religioso entre umbanda e catolicismo, mas um fluxo de práticas próprias do “habitus flexibilizador” que marca a vida religiosa brasileira (Sanchis 2001SANCHIS, Pierre (Org.). (2001), Fiéis & cidadão: percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj.; 2008SANCHIS, Pierre. (2008), “Cultura brasileira e religião. Passado e atualidade”. Cadernos CERU, série 2, vol. 19, nº 2:71-92.).15 15 Inspiro-me em Pierre Sanchis para compreender que esses saberes carregados estariam inseridos em um contexto histórico brasileiro identificado como tradicional marcado pelo habitus flexibilizador e pela porosidade religiosa. A religião, tal qual a cultura, não seria estática, sendo passível de modificações sociais e históricas. Neste aspecto, o autor se apropria do conceito de “sociogênese” de Norbert Elias para compreender o caráter desse habitus. Pierre Sanchis não afirma que um fato social determine a história da religião, mas a importância de notar a contribuição desta “para montar, no interior do sistema sociocultural e psicossocial que caracterize seus atores, um habitus” (Sanchis 2001:25). Ao se apropriar dessas categorias analíticas, ele visa identificar a possibilidade de estudo da “religião dos brasileiros”, problematizando o conceito de sincretismo religioso. Nesta perspectiva, temos a proposição de um trânsito de práticas culturais dentro das religiões. Afinal, a noção de trânsito religioso “implicaria no abandono da primeira religião” (Sanchis 2008:89).

O credo cruzado é utilizado, antes de qualquer coisa, para proteger seu enunciador - o palhaço - contra possíveis ataques mágicos. De acordo com Van Der Poel (2013), essa reza também é chamada de “credo revoltado”, “credo às avessas”, enfim, o credo

rezado de trás pra frente. Segundo alguns, o credo revoltado faz parecer o diabo. É rezado nas costas de uma pessoa para descobrir se é feiticeiro ou faz bruxaria. Segundo depoimento popular, todas as rezas rezadas de trás para adiante, principalmente o credo e a salve-rainha, viram oração de São Marcos, fica muito brava contra a Lei de Deus. Se quiser atrasar uma pessoa, basta rezar uma delas na intenção daquela pessoa (Van Der Poel 2013:267).

A “força desse credo” é invocada para “fechar o corpo”. É rezado na hora do medo, do perigo ou do mau tempo, contra a aparição de almas ou contra bruxarias. Às vezes, dizem apenas as palavras iniciais (Van der Poel 2013). Como uma persona liminar, o palhaço deveria conhecer não apenas as rezas contra feitiço, mas também os domínios das entidades da umbanda para pedir licença e autorização em sua chegada ao terreiro.

A primeira potência a ser consultada pelo palhaço é o Dono da Porteira, que é Exu - sua “casa” ou “tronqueira” fica na entrada do terreiro, onde são guardadas as suas várias imagens e ferramentas. É obrigatório quando se chega a um terreiro pedir licença ou prestar reverência aos exus, pois são os seus guardiões (Mourão 2012MOURÃO, Tadeu. (2012), Nas encruzilhadas da cultura. Rio de Janeiro: Aeroplano.).

Em duas oportunidades presenciei os palhaços Chico Preto e Dengoso se dirigirem ao “Senhor das ruas” antes de realizarem suas chegadas ao terreiro:

De dia reina o Sol De noite reina a Lua. Pra fazer minha chegada Peço licença ao Tranca Rua

Um bom palhaço precisa dominar esses conhecimentos e rezas para poder sair junto às folias de reis. Para portar a máscara é preciso ser conhecedor das interdições rituais às quais está sujeito. Não foi por acaso que Sapeca, logo após ter rezado o credo cruzado e vestido pelo avesso a farda de palhaço, retirou a máscara para pedir “licença para sua pessoa”. Mesmo sem o objeto ritual, ele continuou sua chegada pedindo ao devoto dono do terreiro que retirasse a vela do cruzeiro. Após a liberação do anfitrião, este se pôs a pegar a vela para acompanhar o palhaço até o altar para que batesse cabeça em homenagem a todos os santos.

Durante um giro no terreiro de Maria de Xangô, perguntei ao palhaço Alan se não queria se juntar à folia do lado de dentro, no que ele me respondeu:

- Não é assim, não! O palhaço não pode sair entrando no terreiro ao léu. Se a gente não prestar atenção e fizer qualquer besteira, a folia fica presa lá dentro. - Como assim, ficar presa? - Fica presa, ué! Ninguém sai! Se você desrespeitar algum espírito, ele pode ficar chateado e aí prende a pessoa, aí a folia fica toda lá dentro. - Mas como o espírito prende a pessoa? - O camarada pode cair bolado16 16 Cair bolado pode ser interpretado tanto como uma incorporação indesejada quanto um estágio de incorporação de quem ainda não foi iniciado. no chão e só levanta quando a entidade quiser! -Mas aí é muito tempo? Como que faz? -Ih, isso aí é com as entidades, só com muita reza… Eu já saio há muito tempo, já vi muita coisa no giro. (Alan, nota do caderno de campo, São Gonçalo, 20 de março de 2014).

Mais uma vez, Pierre Sanchis (2001SANCHIS, Pierre (Org.). (2001), Fiéis & cidadão: percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj.; 2008) oferece uma luz para compreendermos o trânsito do palhaço em meio à “porosidade religiosa” das práticas rituais da folia de reis. O sincretismo religioso não seria simplesmente a aglutinação das práticas religiosas, pelo contrário, as práticas rituais de cada religião estão muito bem delimitadas. O que o palhaço faz é transitar pelas religiões tendo que compreender as interdições rituais de cada uma delas, respeitando e pedindo licença a todas as entidades, pois qualquer vacilo pode representar um risco para todo o grupo de foliões - como foi o caso narrado por Alan.

Fechando o círculo

À luz do que discutimos nas páginas anteriores, percebo que invocação de São Cipriano por Mestre Fumaça durante o ritual de retirada da bandeira do altar não é uma prática estranha à devoção aos Santos Reis. Renata Menezes (2004MENEZES, Renata de Castro. (2004), A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade em um convento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.) fala em “combinação de devoções” para se referir à capacidade do devoto de “somar” as potências dos santos, gerando maior possibilidade de obtenção de alguma graça ou proteção mediante alguma situação grave. Nas palavras da antropóloga, a combinação de devoções

pode não apenas “somar” a força dos santos, mas “unir” seus campos específicos de intervenção. Ser devoto de vários santos de especialidades diferentes -sejam estas a proteção de determinadas profissões, a cura de doenças específicas, a defesa de partes do corpo - pode tornar a pessoa resguardada nas diversas áreas em que seus santos protetores atuem (Menezes 2004MENEZES, Renata de Castro. (2004), A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade em um convento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.:202).

Trazendo essa ideia para o universo da folia, pode-se dizer que as combinações de devoções são comuns durante os versos para retirada da bandeira. Na cantoria, invoca-se uma gama de entidades: o Pai; o filho; o Espírito Santo; a Sagrada Família; os Santos Reis; meu Anjo da Guarda; São Sebastião. A combinação de devoções é um fator crucial nesse ritual, pois pede-se a proteção para os foliões e para o próprio santo materializado na bandeira (Bitter 2010BITTER, Daniel. (2010), A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de Janeiro: 7Letras/Iphan/CNFCP.). Retomando o caso da ausência do palhaço, o guardião da folia, vimos que São Cipriano foi incorporado ao panteão de santos católicos para assumir o papel de protetor contra possíveis ataques mágicos. O mestre Fumaça estava prestes a colocar a folia de reis na rua sem o seu guardião, foi nesse momento que o mestre acionou a reza forte, combinando devoções.

Neste sentido, a potência do santo bruxo é combinada a outras devoções mais convencionais da folia (Sagrada Família, Santos Reis, Anjo da Guarda, São Sebastião etc.) em substituição ao guardião, “amarrando os inimigos e jogando nas águas virgens”. Essa invocação pode ser interpretada como uma “demanda” (Maggie 1977MAGGIE, Yvonne. (1977), Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar .), o que indica a necessidade de se acionar a potência da própria bruxaria para neutralizá-la.

São Cipriano foi invocado pela força protetora contida na sua qualidade de feiticeiro. Na ausência do palhaço, torna-se necessária a apelar a um “santo forte” capaz de amenizar os perigos mágicos presentes na rua e até mesmo nas casas (ou nos terreiros) dos devotos. Utilizo-me da expressão “amenizar”, pois o acionamento do santo não garante o controle total do perigo. Se houver algum problema no decorrer do giro, a relação de confiança entre os devotos e o santo não será abalada, afinal - nos diz o mestre Fumaça - “tudo ocorre de acordo com a vontade de Deus! O que a gente faz é pedir a ajuda do santo pra nos ajudar e nos proteger para cumprir a missão!”.

Isso daí tem Mironga!

A mironga também serve de amparo para a explicação sobre o envolvimento de São Marcos e São Cipriano com a magia. Segundo o mestre Fumaça, “São Marcos seria o santo da magia branca e São Cipriano o santo da magia de cor, da magia negra”. Quando perguntei sobre eles, o mestre respondeu: “Ih! Isso daí… Isso daí tem muita Mironga!”. Como já disse anteriormente, a mironga, para muitos praticantes das religiosidades afro-brasileiras e ritos populares, se aproximaria da noção de magia e feitiçaria. Ao ser questionado sobre essa categoria, ele procurou demarcar, no universo da folia de reis, as fronteiras, sendo, para ele, religião, de um lado, e mironga, de outro. Para o mestre, as figuras de São Marcos e São Cipriano são a personificação de potências cristãs que estariam ligadas de distintas formas ao campo da magia.

Quando fui adiante e perguntei ao mestre sobre o que seria magia branca e magia de cor, ou negra, ele me respondeu:

Olha, muito tempo atrás, no tempo da Bíblia, existiam dois santos que eram… Como eu posso dizer… contrários! Quando um fazia uma coisa de um jeito, o outro ia lá e desfazia. Eles eram muito falados por que eles sabiam dessas coisas de mironga. Um era responsável por acalmar as coisas e deixar tudo no lugar, o outro era conhecido por bagunçar as coisas, as pessoas o procuravam para mudar as coisas, entende? São Marcos era um santo muito inteligente, Santo Manso17 17 Note que na narrativa do mestre Fumaça não há uma separação entre São Marcos e São Manso (S. Amanso ou S. Manso). A característica de amansar é atribuída a S. Marcos. , e ele era o santo mais calmo, capaz de amansar os animais, de acalmar as coisas, mas ele fazia isso com reza, não precisava de usar nada, nem mesmo animal. Daí ele era envolvido com magia branca. Já o São Cipriano, não. Ele era famoso por conseguir fazer as coisas por meio da magia, mas para conseguir mexer com isso ele precisava de sangue de animal. Tipo, se você precisa de alguma coisa, ele ia lá no livro dele e via: “Olha você precisa de matar bicho!” Pra uma coisa ele pedia pra matar um bode, pra outra coisa ele pedia pra matar um carneiro… e por aí vai. Mas sempre precisava de matar bicho, de sangue, por isso que ele era envolvido com magia de cor, porque precisa de sangue. Essas coisas também são chamadas de magia negra (Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, março de 2014Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, março de 2014.).

O que me chamou a atenção inicialmente nesse relato é que, para mestre Fumaça, a história desses santos estaria diretamente ligada à Bíblia, mas, ao iniciar a fala sobre eles, o mestre fez questão de demarcar a fronteira entre as práticas mágicas e a religião cristã. As narrativas sobre as origens míticas dos dois não delimitam o seu caráter sagrado ou profano, ambos pertencem à mesma esfera sagrada, a Bíblia. Roger Caillois (1989CAILLOIS, Roger. (1989). Le sacré de transgression: théorie de lafête. In: R. Caillois. L’hommeetlesacré. Paris: Gallimard.:20) alerta para um sagrado que também é “impuro e caótico”, que nos remete ao “caos primordial”, onde “o universo inteiro era plástico, fluido e inesgotável”. São Marcos e São Cipriano compõem uma esfera sagrada, envolta de “magia e sangue de animal”, própria da “Idade do Ouro” de que nos fala Caillois.

Porém, mestre Fumaça foi muito enfático em uma de nossas conversas sobre o assunto: “isso não tem nada a ver com a folia de reis e a nossa missão, isso é outra coisa! Quando a gente sai no reis, nós nos preocupamos em fazer nossa missão, nossa devoção, tudo direitinho. Isso daí [as rezas para os dois santos] é outra coisa, não tem nada a ver com o Reis não.” (Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, março de 2014). Por isso, aproprio-me das noções de sagrado durkheimianas para compreender as categorias nativas que apareceram em meu campo. Tanto Fumaça quanto os demais foliões, ao relatarem suas histórias sobre rezas fortes, eram categóricos em separar o que era do Reis (sagrado puro) e o que era outra coisa (sagrado nefasto).

O mestre Fumaça queria deixar claro que a história que ele contaria, sobre as mirongas, não tinha ligação com o cristianismo ou com a folia de reis, era sobre outra coisa. Neste ponto, dois autores que nos ajudam a pensar a questão são Marcel Mauss e Henri Hubert, quando chamam de Rito Mágico

todo rito que não faz parte de um culto organizado, rito privado, secreto, misterioso, e que tende no limite ao rito proibido. Dessa definição, levando em conta a que demos dos outros elementos da magia, resulta uma primeira determinação de sua noção. Percebe-se que não definimos magia pela forma de seus ritos, mas pelas condições nas quais eles se reproduzem e que marcam o lugar que ocupam no conjunto dos hábitos sociais (Mauss & Hubert 2003MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. (2003), Esboço de uma teoria geral da magia. In: M. Mauss. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify.:60-61).

Quando mestre Fumaça diz que “isso tem muita mironga”, ele está a demarcar a separação entre as práticas da devoção cristã e o ritual mágico. Para exercer o seu papel de mestre da folia de reis é necessária a articulação desses discursos, pois a eficácia do ritual - e o prestígio do mestre -está sendo avaliada a todo o momento, seja pelos foliões, pelos devotos ou pelos pesquisadores. Tal como na definição de Mauss e Hubert, existe no discurso do mestre Fumaça a demarcação de uma fronteira social entre a “prática religiosa e o ato mágico”. Mas esse afastamento é puramente discursivo, pois, como se vê, os dois personagens citados são associados à Bíblia e reconhecidos como potências no universo do catolicismo não oficial. Além da dupla de santos, o palhaço também está inserido nessa lógica. Primeiramente, sua presença na folia é legitimada pela fala do mestre e dos foliões que os identificam como os soldados de Herodes. O “perseguidor de Cristo” teria se arrependido e se tornado “o guardião da folia de reis” para permitir que se cumprisse a missão sagrada. Esse personagem traz consigo as marcas da perseguição, sua roupa de retalhos, segundo Fumaça, é um “disfarce para que ninguém os reconheça”. Já a máscara, em seu sentido cósmico, se assemelha a “um talismã, um amuleto, ou ainda como as carrancas monstruosas de embarcações, objetos que visam a afastar maus espíritos. Isso se dá através de uma espécie de jogo mimético, no qual mais uma vez a aparência e a interpretação do mundo visível estão em questão” (Bitter 2010BITTER, Daniel. (2010), A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de Janeiro: 7Letras/Iphan/CNFCP.:182).

Nesse sentido, o palhaço exerce uma função ritual importante para a folia, pois o seu vínculo com o universo da magia é muito forte. Vestindo a máscara, ele se torna o guardião da folia, retendo ataques mágicos, bruxaria e feitiçaria. Por isso, na sua ausência, abre-se uma brecha para uma indesejável situação ritual no período liminar durante o giro. Nesse contexto de risco, os dois santos fortes são adicionados ao circuito de práticas devocionais sancionados para a proteção da bandeira e dos foliões e para a realização da missão sagrada. O mestre diz saber dessas questões de mironga, pois ele está à frente de seus foliões e, nos ensina, “nesse mundo tem muita maldade, e nós temos que estar preparado para tudo!”.

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  • Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, fevereiro de 2014.
  • Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, março de 2014.
  • Entrevista com Mestre Fumaça, São Gonçalo, fevereiro de 2015.
  • 1
    Ao longo deste trabalho, os grifos em itálico ressaltam os termos próprios ao universo pesquisado.
  • 2
    Local onde são guardados os instrumentos, indumentárias e, principalmente, a bandeira de reis. Na maioria das vezes a sede se encontra na casa do mestre da folia de reis.
  • 3
    A aproximo-me aqui do entendimento de Stanley Tambiah (2018:141) para quem cosmologia quer dizer “o corpo de concepções que enumeram e classificam os fenômenos que compõem o universo como um todo ordenado, e as normas e os processos que o governam”. Em suma, a cosmologia seria um elemento organizacional que relaciona forma e conteúdo na performance ritual.
  • 4
    Diferentemente das indumentárias dos demais foliões, que pertencem ao mestre, os trajes dos palhaços e suas máscaras são do próprio devoto que as vestem.
  • 5
    Dentre os folcloristas, o termo “orações fortes” é o mais utilizado (ver Cascudo 1999CASCUDO, Luís da Câmara. (1999), Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro.), mas entre os foliões a expressão rezas fortes é mais recorrente. Por isso, quando me refiro a tais categorias, vou citá-las como rezas e orações fortes.
  • 6
    Esse é um tema tem mobilizado os pesquisadores há algum tempo. Patrícia Monte-Mór (1992MONTE-MÓR, Patrícia. (1992), Hoje é dia de santo reis: um estudo de cultura popular no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) apontou a relação entre as práticas rituais da folia e da Umbanda, assim como Daniel Bitter (2010) e Wagner Chaves (2003). Luzimar Pereira (2009) também deu ênfase às malinagens que atrapalhavam os foliões em meio ao giro e menciona em sua tese a relação disso com o Livro de São Cipriano.
  • 7
    Como os próximos tópicos visam explorar a aquisição do objeto ritual e sua relação com a hagiografia do santo, me referirei a ele apenas como o Livro.
  • 8
    Na maioria das vezes, quando conversamos sobre denominações religiosas, o mestre e os demais foliões utilizam a categoria “espírita” para se referir aos umbandistas.
  • 9
    Essa parente à qual o mestre se refere é uma das devotas que abre as portas de sua casa para receber a folia Nova Flor do Oriente no bairro do Boassu em São Gonçalo.
  • 10
    O perigo em se mexer com “coisas carregadas” geradoras de desordemencontra uma explicação na interpretação de Mary Douglas quando ela nos diz que “Se é verdade que a desordem destrói o arranjo dos elementos, não é menos verdade que lhe fornece os seus materiais. Quem diz ordem diz restrição, seleção dos materiais disponíveis, utilização de um conjunto limitado de todas as relações possíveis. Ao invés, a desordem é, por implicação, ilimitada; não exprime nenhum arranjo, mas é capaz de gerá-lo indefinidamente. É por isto que aspirando à criação de ordem, não condenamos pura e simplesmente a desordem. Admitimos que esta destrói os arranjos existentes; mas também que tem potencialidades. A desordem é pois, ao mesmo tempo, símbolo de perigo e de poder” (Douglas 1966:72).
  • 11
    Durkheim (2008:366) utiliza as noções de “sagrado puro e o sagrado impuro, entre o sagrado fasto e o sagrado nefasto” para compreender o “rito negativo” em relação ao “rito positivo”. Ele nos fala das interdições e posturas ascéticas da realização de “ritos positivos” para que se possa lidar com o sagrado (saccer: separado).
  • 12
    Congá ou gongá (Cacciatore 1977:135) é o altar principal do terreiro de Umbanda materializado numa grande mesa, onde são encontradas as imagens de santos católicos, estatuetas de caboclos e pretos velhos, também sendo depositadas as guias da mãe de santo.
  • 13
    É a forma de retribuição do devoto por ter recebido o santo em sua casa. A oferta é um conjunto de práticas como a doação em forma de dinheiro à bandeira ou o oferecimento de comidas e bebidas aos foliões no período do giro.
  • 14
    Segundo Yvonne Maggie, bater cabeça significa: “Cerimônia de reverência diante do altar, onde estão colocadas as imagens dos Orixás, e a Mãe ou Pai-de-Santo do terreiro” (1977:158).
  • 15
    Inspiro-me em Pierre Sanchis para compreender que esses saberes carregados estariam inseridos em um contexto histórico brasileiro identificado como tradicional marcado pelo habitus flexibilizador e pela porosidade religiosa. A religião, tal qual a cultura, não seria estática, sendo passível de modificações sociais e históricas. Neste aspecto, o autor se apropria do conceito de “sociogênese” de Norbert Elias para compreender o caráter desse habitus. Pierre Sanchis não afirma que um fato social determine a história da religião, mas a importância de notar a contribuição desta “para montar, no interior do sistema sociocultural e psicossocial que caracterize seus atores, um habitus” (Sanchis 2001:25). Ao se apropriar dessas categorias analíticas, ele visa identificar a possibilidade de estudo da “religião dos brasileiros”, problematizando o conceito de sincretismo religioso. Nesta perspectiva, temos a proposição de um trânsito de práticas culturais dentro das religiões. Afinal, a noção de trânsito religioso “implicaria no abandono da primeira religião” (Sanchis 2008:89).
  • 16
    Cair bolado pode ser interpretado tanto como uma incorporação indesejada quanto um estágio de incorporação de quem ainda não foi iniciado.
  • 17
    Note que na narrativa do mestre Fumaça não há uma separação entre São Marcos e São Manso (S. Amanso ou S. Manso). A característica de amansar é atribuída a S. Marcos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Jun-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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