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Padrões de pedra, contos da memória e silêncio da história: o culto ao marco de fundação da cidade do Rio de Janeiro

Stone pillars, tales of memory and the silence of history: the cult of the Rio de Janeiro’s founding stone.

Resumos

O artigo aborda a relação entre relíquias históricas e narrativas fundacionais como foi configurada pela atuação dos museus públicos e das políticas de proteção aos monumentos históricos desde o século XIX. O enfoque recai sobre artefatos e monumentos de pedra que representavam a gênese longínqua de identidades coletivas a despeito da ausência de qualquer suporte documental, valendo-se apenas ao seu valor de antiguidade. Para tanto, apoia-se nos conceitos de ilusão museal, memória pública e rituais de memória. Propõe, então, um estudo de caso sobre o marco da cidade do Rio de Janeiro (hoje sob a guarda dos frades capuchinhos do Santuário de São Sebastião, no bairro da Tijuca), procurando reconstituir a sua vida social e o seu papel no culto ao padroeiro da cidade ao longo do tempo.

Palavras-chave:
Monumentos Históricos; Memória Pública; História Urbana


The article approaches the relationship between historical relics and foundational narratives as it was configured by the emergence of the public museums and the heritage crusade since the 19th century. The focus is on artifacts and monuments made of stone that represented the distant genesis of collective identities, even in the absence of any documentary support and relying only on their age value. To do so, it relies on the concepts of museum magic, public memory and rituals of memory. Finally, it proposes a case study on the stone marker of the city of Rio de Janeiro (today under the care of the Capuchin friars of the Sanctuary of St. Sebastian, in the Tijuca neighborhood), seeking to reconstitute its “social life” and its role in the cult of city’s patron over time.

Key words:
Historical Monuments; Public Memory; Urban History


Desde longa data, antigos marcos de pedra, que também costumam ser chamados de “padrões”, gozam de lugar privilegiado em museus ou sítios históricos de cidades brasileiras. No mais das vezes, são antigos demarcadores de terras rurais ou, em alguns poucos casos, marcos de posse, fincados em poucos pontos do litoral ao longo do primeiro quartel do século XVI. Contudo, muitos deles foram convertidos em monumentos urbanos ou peças de museus que remetem às origens de suas cidades ou regiões, a despeito da inexistência de quaisquer referências documentais seguras para tanto.

Diante disso, a sua transformação em monumentos evocativos de identidades locais ou regionais se valeu, quase sempre, apenas da rudeza material dos próprios artefatos: peças de cantaria, muitas vezes fragmentadas, quase sempre desprovidas de inscrições, salvo os mais grosseiros emblemas. Em outras palavras, para usar a terminologia consagrada por Alois Riegl, tais marcos puderam ser monumentalizados pois conjugavam o “valor histórico” com o “valor de antiguidade” (Riegl 2013RIEGL, Alois. (2013), O culto moderno dos monumentos e outros ensaios estéticos. Lisboa: Edições 70. :27-41). Ou seja, eles podiam evocar eficazmente (mesmo sem suporte documental algum) uma origem recuada em tempos distantes porque aparentavam ser originários dos mesmos tempos.

O efeito sensorial dos monumentos de antiguidade, ainda de acordo com Riegl, não só lhes permitia se desvencilhar mais facilmente das exigências críticas da cultura histórica como também embasavam as pretensões universalizantes dos monumentos de maneira só equiparável a do sentimento religioso (Riegl 2013RIEGL, Alois. (2013), O culto moderno dos monumentos e outros ensaios estéticos. Lisboa: Edições 70. :16). Aqui, a perenidade própria das pedras era reforçada pela sua longuíssima trajetória como material favorito das relíquias sagradas das mais diversas tradições religiosas. Desde a Alta Idade Média, igrejas e capelas de toda a Europa acumulavam uma variada série de objetos de pedra, como pedaços de rocha retirados do Gólgota ou seixos do Jordão, um fragmento da pedra tumular do Santo Sepulcro ou mesmo a lajota usada como tabuleiro de jogo pelos soldados romanos que crucificaram Jesus. Também comuns foram as relíquias ligadas ao martírio de santos, como a cadeira de São Gens, em Lisboa, ou a mó de moinho de São Vicente Mártir, em Valência. Cumpre notar que a analogia entre artefatos e sítios históricos de grande valor e relíquias sagradas não era apenas retórica, uma vez que a autenticidade de ambos os tipos de objetos estava baseada no suposto efeito exercido sobre as pessoas e não em relatos bem circunstanciados sobre a sua origem (Lowenthal 1992LOWENTHAL, David. (1992), “Counterfeit Art: Authentic Fakes?” International Journal of Cultural Property, vol. 1, nº 1: 79-103. :90-91).

Assim, soa estranho que os sentidos mais propriamente religiosos da noção de “culto” aos monumentos proposta por Riegl tenham podido ser tão longamente inadmitidos ou minorados pela maioria dos profissionais e estudiosos nele envolvidos. Coube à antropologia apontar o quanto museus e sítios históricos ainda estão embebidos em práticas algo ritualísticas, conforme proposto pela noção de museum magic, ou ilusão museal (Bouquet & Porto 2005BOUQUET, M. & PORTO, N. (ed.) (2005), Science, Magic, and Religion: the Ritual Process of Museum Magic. Oxford/New York: Berghahn Books. ). No tocante ao museu público oitocentista - já considerado, muito justificadamente, a “igreja oficial do mundo dos museus” (Macdonald 2005MACDONALD, Sharon (2005), “Enchantment and its dilemas: the museum as a ritual site”, in M. Bouquet & N. Porto (eds.) Science, Magic, and Religion: the Ritual Process of Museum Magic . Oxford/New York: Berghahn Books : 209-227. :213) - há de se reconhecer que grande parte de sua autoridade científica consistia em conferir valor documental unívoco a objetos de origens e procedências totalmente incertas, quando não espúrias. No caso dos museus de história, o chamado “complexo expositivo” (Bennett 1988BENNETT, Tony. (1988), “The exhibitionary complex”, New Formations, nº 4: 73-102. ; 2006BENNETT, Tony. (2006), “Civic seeing: Museums and the organization of vision”, in S. Macdonald (ed.) Companion to Museum Studies. Oxford: Blackwell: 263-281. ), bem como o trabalho especializado de curadores e técnicos, consistia em pouco mais do que o chancelar ou não pretensas relíquias históricas, como peças portadoras de uma verdade histórica de caráter imanente (Bittencourt 2000BITTENCOURT, José. (2000-2001), “Cada coisa em seu lugar: ensaio de interpretação do discurso de um museu de história”. Anais do Museu Paulista, 8/9: 151-174. -2001). De modo análogo, os monumentos históricos e artísticos tinham sua condição de relíquias nacionais fundamentadas em uma noção de autenticidade cujo matiz aurático traía o seu desejo de resistir a um mundo cada vez mais desencantado.

Ainda assim, considerar os aspectos ritualísticos da preservação do patrimônio não basta para compreender como os artefatos de pedra foram elevados à posição de relíquias históricas de grande destaque dentro dos acervos dos museus de história tradicionais. É preciso também atentar para como museus e sítios históricos procuraram reforçar valores e sentidos atribuídos a artefatos de pedra de origem reconhecidamente religiosa, como solidez, perenidade ou gravidade. Ou seja, no processo de construção de sua autoridade como espaço de um conhecimento científico, os museus, ao invés de combater tais atributos, deles se valeram para criar a ilusão museal de acesso direto ao passado. Cumpre, desse modo, recuar até o segundo quartel do século XIX, um momento decisivo tanto para a autonomia disciplinar da história como para a emergência da noção oitocentista de monumento histórico (Choay 2001CHOAY, Françoise. (2001), A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP.:125-139; Poulot 2009POULOT, Dominique. (2009), Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do monumento aos valores. São Paulo: Estação Liberdade.:157-196).

Artefatos de pedra e morfologia do tempo no “século da história”

A partir da década de 1830, o pensamento historicista reagiu vigorosamente às noções de indiferença do tempo e de inescrutabilidade do passado herdadas do ideal estético neoclássico. A poética das ruínas, que antes conferia um valor moralizante à natureza do Tempo, assumia então um aterrorizante matiz melancólico após as décadas de guerras revolucionárias que haviam engolfado a Europa, convertendo antigos monumentos e acervos artísticos em espólios de guerra (Stewart 2020STEWART, Susan. (2020), The Ruins Lesson: Meaning and Material in Western Culture. Chicago: University Press. :208 e ss.).1 1 Tendência comum a quase todos os românticos europeus, a melancolia das ruínas corporificava a perda de sentido e o isolamento do indivíduo ante a dissolução da antiga ordem. Foi traço marcante nas obras dos principais artistas e literatos do continente, desde Goethe e Caspar Friederich, na Alemanha, até Giacomo Leopardi, na Itália, passando pela Inglaterra de Byron, Shelley e Robert Adam. Em conformidade com a francofilia dos letrados brasileiros, foram autores franceses como Chateaubriand (1956) e Volney (1938) que mais contribuíram para a difusão do imaginário romântico das ruínas no país. Havia, portanto, uma necessidade premente de criar uma ilusão de fixidez temporal, já que a ruptura temporal então em curso - ao conceber o progresso como o próprio Espírito que moveria a história, e não mais como mero resultado da aplicação da razão ao mundo natural - implodiu por completo a noção aristotélica de um tempo estável (Koselleck 2021KOSELLECK, Reinhart. (2021), Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto / PUC-RJ.:283).2 2 Sobre o historicismo como filosofia da História, ver Reis (2006:207 e ss.).

Nesse contexto, a reação historicista buscou inverter os sentidos anteriormente atribuídos às ruínas e aos artefatos de pedra, fazendo deles suportes muito persuasivos acerca da perenidade das nacionalidades e das qualidades intrínsecas aos povos. Em poucas décadas, a melancolia das ruínas diante da implacabilidade do tempo havia dado lugar à crença quase inabalável de que os monumentos de pedra eram a mais perfeita corporificação do enraizamento das tradições nacionais no solo da pátria. Não surpreende, portanto, que o imaginário religioso sobre os objetos de pedra tenha sido reabilitado ao cabo desse processo.

É possível vislumbrar esse movimento já nos escritos dos primeiros grandes historiadores historicistas, como Jules Michelet, que, em sua preocupação em prover o leitor de uma vívida ambiência dos eventos históricos sob o seu exame, recorria frequentemente à moralização do mundo material. Um bom exemplo é a sua crítica ao esmaecimento da arte gótica tardia, quando a “deliciosa coqueteria” esculpida nas rochas já não mais transpareceria a “beleza severa” e purificada das primeiras catedrais, que sintetizou, potentemente, no célebre dístico: “a pedra tornou-se pão, o pão tornou-se Deus” (Michelet , 2014MICHELET, Jules. (2014), História da França , vol. 2. Rio de Janeiro: Luiz Fernando Moura Correia.:358 e 369-370).3 3 Aqui, Michelet fazia referência ao Evangelho de Lucas (4:3-4).

Contudo, foram os usos assumidos pelos artefatos de pedra nos museus e sítios históricos que melhor demonstraram a sua ambição de corporificar a utopia atemporal da nação como identidade que se projetava tanto no passado como no futuro, conforme concebida por Benedict Anderson (2008ANDERSON, Benedict. (2008), Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras. ). As galerias progressistas, antes voltadas para demonstrar o aprimoramento das artes e dos costumes, agora buscavam evidenciar a natureza atemporal das nações por meio da exibição de antigos artefatos elevados à condição de relíquias nacionais. Desse modo, entre 1830 e 1880, as décadas em que se constituíram tanto os acervos como a autoridade científica dos grandes museus europeus (Poulot 2013POULOT, Dominique. (2013), Museus e museologia. Belo Horizonte: Autêntica. :63), foram também a grande época das coleções nacionais de artefatos líticos. Enquanto museus ingleses e franceses exploravam fragmentos de catedrais e mosteiros góticos, seus congêneres italianos faziam o mesmo com tumbas e estátuas etruscas. Em Portugal e Espanha, foram pelourinhos e rolos de justicia e, na Irlanda e Escócia, antigos cruzeiros e vestígios de torres fortificadas.4 4 Em todos esses países, o olhar retrospectivo com base nas identidades nacionais deu ensejo às imagens míticas sobre as origens pré-históricas das nacionalidades que, de maneira análoga, encontraram em artefatos e sítios arqueológicos rupestres o mais conveniente suporte: os dolmens e menires bretões, os castros ibéricos e os discos espiralados célticos e estelas dos pictos.

Se a criação do Musée des Antiquités Gallo-Romaines, em 1862, por Napoelão III, consolidou definitivamente o poder evocativo do artefato de pedra ao reorganizar as antigas coleções epigráficas francesas sob a ótica da nacionalidade, a sua consagração como “agente” de um percurso ritualístico sobre as origens primevas da nação não tardou mais que alguns anos. Em 1874, o Germanisches Nationalmuseum, em Nuremberg, pôde representar o que era antes um sentimento nacional difuso se valendo apenas de réplicas em gesso de túmulos de reis, generais, clérigos e artistas da Idade Média e da Renascença. Dispostos ao longo do claustro da antiga abadia medieval que sediava o museu, os simulacros das campas de pedra expunham ao visitante uma imagem tangível da longa tradição nacional de uma Alemanha recém-unificada, em uma assumida alusão à Valhalla, o palácio celestial onde os heróis nórdicos seriam adorados - um estratégico contraponto do Panteão romano adotado pela França revolucionária (Kammel 2012KAMMEL, Frank M. (2012), “The Germanisches Nationalmuseum in Nuremberg: The Cultural Memory of a Nation without National Borders”. In D. Poulot et al. (eds) Great Narratives of the Past: Traditions and Revisions in National Museums. Conference proceedings from European National Museums: Identity Politics, the Uses of the Past and the European Citizen, Paris June 29 - July 1& 25-26 November 2011. Linköping: Sweden: 217-228.:221).

Em suma, em uma época em que a necessidade de conferir plasticidade à passagem do tempo era mais urgente do que nunca (Koselleck 2021KOSELLECK, Reinhart. (2021), Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto / PUC-RJ.:281), os museus conseguiram tornar os objetos de pedra a melhor metáfora para a resistência e a fixidez das identidades coletivas diante das rápidas e profundas transformações sociais que marcaram os séculos XIX e XX - a “Rocha de nossa salvação”5 5 Salmo 95:1 diante dos vagalhões da modernidade.

Artefatos de pedra e memória pública em museus brasileiros (1870-1930)

No Brasil, durante a chamada “era dos museus” (Schwarcz 1993SCHWARCZ, Lília M. (1993), O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870 -1930. São Paulo: Companhia das Letras. :57-58), as coleções de objetos históricos, em um primeiro momento, não tinham a pretensão de constituir o corpo perene da nação; preocupavam-se mais em arregimentar legitimidade política para elites locais ou regionais. Tal discrepância em relação ao modelo europeu de museu de história nacional deve algo ao fato de sua consagração ter correspondido às décadas de maior estabilidade política alcançada pelo Segundo Reinado, quando grande parte da memória pública do país estava corporificada (literalmente) em uma linhagem real de origem europeia, cujos rituais, cerimônias e mercês garantiam um sentido de continuidade único dentro do quadro americano. Além disso, não é de menor importância lembrar que a Igreja Católica constituía um verdadeiro “lugar de memória” do Estado nacional, uma vez que guardava os mais completos registros censitários aqui existentes e a sua vida litúrgica, como religião oficial do país, mantinha então um estatuto público que durou até 1889. Assim, enquanto repúblicas como México e Colômbia, ainda na primeira metade daquele século, principiavam coleções históricas que enalteciam suas elites dirigentes, no Brasil, a presença da família real, o Padroado e a distribuição de títulos de nobreza que evocavam topônimos regionais forjavam identidades coletivas de uma maneira análoga.6 6 Um estudo de caso interessante acerca do tipo de objetos valorizados por essas iniciativas pode ser conferido no estudo de Libardo Paredes sobre os dois estandartes atribuídos ao conquistador Francisco Pizarro existentes no Museu Nacional de Bogotá e na sede do Conselho Municipal de Caracas. Ver (Paredes 2021).

Desta forma, não admira que um dos únicos casos conhecidos de coleta objetos que remontassem às origens da nação tenha sido o do chamado marco de Cananéia, um padrão de posse português identificado por Francisco Adolfo de Varnhagen em 1859 e remetido para o IHGB em 1867, por ordens do Barão de Capanema.7 7 O marco está afastado do olhar público desde 1930, quando foi removido do hall de entrada da sede do Instituto e passou a frontear a mesa de trabalho do salão nobre. A remoção foi uma sugestão de Afonso Taunay ao ser empossado como sócio efetivo. Cumpre notar que, três anos antes, Taunay recebera um dos tenentes que apoiavam o mesmo marco como doação ao Museu do Ipiranga e, de maneira similar, o reduziu a um emblema de sua monumental apologia ao bandeirismo paulista, construída ao redor da escadaria monumental do Museu (Brefe 2003:251-258).

Apesar de ter havido algumas iniciativas localizadas de formações de coleções históricas - o maior destaque, certamente, coube ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, que desde a década de 1870 se preocupou em recolher peças e fragmentos de antigas construções do Recife, Olinda e Igaraçu -, o grande impulso ocorreu durante a República e foi motivado por diversos fatores. Primeiramente, há de se considerar que a grande autonomia atribuída aos estados pela constituição de 1891 reascendeu antigas dúvidas e disputas sobre as suas divisas, razão de ser de alguns Institutos Históricos e Geográficos então fundados, como o do Rio Grande do Norte e do Espírito Santo (Costa 2020COSTA, Bruno B. A. da. (2020), “A emergência do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte: como, para que e por quem foi criado?” Revista de História , nº 179:1-27. :4-5). Urgia, portanto, conferir aos estudos e pesquisas produzidos no âmbito estadual a legitimidade científica necessária para o seu respaldo perante as novas esferas de arbítrio criadas (Iumatti & Vellozo 2014IUMATTI, Paulo T. & VELLOZO, Júlio C. O. (2014), “Conhecimento, política e instituições no Brasil (1889-1934)”. Reflexos, nº 2: 1-72. :§ 15-20). Sem dúvida, esse contexto de institucionalização do conhecimento e de disputas políticas ajudou a conferir ao colecionismo histórico feito por museus e IHGs um acentuado valor ideológico, alimentando a construção de mitos históricos como o bandeirismo paulista, o republicanismo pernambucano e o marcialismo gaúcho.

Em segundo lugar, como argumentado por Helder Viana, não se deve esquecer que o regime republicano extinguiu não só o Padroado como todo o sistema de comemorações, cerimônias e mercês que girava ao redor da família real e desempenhava função das mais importantes para a legitimação política do Estado e para a construção da memória nacional. Logo, uma das primeiras tarefas do novo regime foi instituir espaços para a afirmação da memória pública, o que coube principalmente às autoridades municipais e estaduais. Iniciou-se aí uma ampla busca pela definição de marcos temporais e nomes heroicos do passado local e regional que, expostos ao olhar público por meio de comemorações, exposições e monumentos, conseguisse expressar o passado coletivo (Viana 2019:3-4).

Nessa ânsia por um arraigamento memorial, o imaginário historicista sobre os artefatos de pedra acabou por conferir grande destaque às coleções epigráficas, que, por sua longa relação com o antiquarismo, manifestavam uma proximidade quase epistêmica com a geografia e, particularmente, com a topografia (Eriksen 2014ERIKSEN, Anne. (2014), From Antiquities to Heritage: Transformations of Cultural Memory. New York: Berghann. :31-33). Em um período em que o estudo da história parecia estar subordinado ao da geografia devido à urgência das disputas territoriais e às interpretações mesológicas da nacionalidade (Iumatti & Velozo 2014IUMATTI, Paulo T. & VELLOZO, Júlio C. O. (2014), “Conhecimento, política e instituições no Brasil (1889-1934)”. Reflexos, nº 2: 1-72. :§13), a ligação intrínseca entre antiquarismo e espacialidade se revelava bastante útil para a consolidação de mitos fundacionais e narrativas sobre a ocupação do território. Compreende-se, desse modo, os motivos que, em 1922, levaram o Museu Histórico Nacional a converter o pátio do antigo Arsenal da Marinha em um espaço inteiramente dedicado à exposição de “restos” e fragmentos de construções, sugestivamente nomeado por Gustavo Barroso como “Arcadas das Pedras” (Ramos & Magalhães 2013RAMOS, Francisco R. L. & MAGALHÃES, Aline M. (2013), “Lições da pedra: usos do passado e cultura material”. História da Historiografia, nº 13, 2013: 96-113. :102-103 e Ferreira 2021FERREIRA, Maria de S. (2021), “O pátio das pedras e dos canhões”. In A. Magalhães et al. (org.) Pátio Epitácio Pessoa: entre pedras, canhões e arcadas. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional: 29-39. :32-34). Cabe lembrar também o caso do marco de Itamaracá, um grande padrão quinhentista, feito em mármore lioz, que assinalava a divisa entre as capitanias de Pernambuco e Itamaracá (Almeida 1891ALMEIDA, Francisco M. R. da. (1891), “Relatório apresentado ao Instituto Histórico de Goiana pela respectiva comissão de trabalhos históricos e arqueológicos na sessão de 29 de setembro de 1871”. Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, nº 40: 99-110. ; Mello 1970MELLO, José G. de. (1970), “A feitoria de Pernambuco, 1516-1535, e o sítio dos Marcos, 1646-1654”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , 287, abr. - jun.: 468-478. ). A peça foi identificada em 1870 e, desde 1917, se encontra disposta no centro do grande saguão fronteiro da sede do IAHGP, assinalando tanto a entrada do Museu como, metaforicamente, o início da história pernambucana. Por fim, mencione-se os marcos da sesmaria de Vila Rica, hoje no Museu da Inconfidência, onde estão expostos na sala dedicada às origens da cidade de Ouro Preto.8 8 Os marcos de pedra não correspondem aos marcos instalados quando da criação da vila, datando de meados do séc. XVIII. Em 1947, três deles foram identificados por Sylvio de Vasconcellos, diretor do SPHAN, em Minas Gerais, tendo ele doado um ao Museu da Inconfidência e outro à prefeitura municipal, que o manteve em seu poder até 2005, quando também foi cedido ao Museu. Desconheço o paradeiro do terceiro marco. Agradeço à Janine Ojeda, do Museu da Inconfidência, pelas informações.

Um caso exemplar, contudo, é o do marco de pedra pertencente ao Museu do Ipiranga, que foi tomado como um marco da sesmaria quinhentista doada por Martim Afonso de Sousa a Ruy Pinto nos contrafortes da Serra do Mar, em 1533 (Fig. 1). Rusticamente lavrado a partir de um bloco de gnaisse oriundo da própria Serra do Mar, ele fornecia uma poderosa imagem do mito do autoctonismo paulista (conforme defendido por Paulo Prado), principalmente quando contraposto ao mármore lioz dos padrões de posse portugueses dispostos ao longo do litoral.

Figura 1:
O marco do Museu do Ipiranga, com a legenda “marco de sesmaria quinhentista encontrado no litoral”

Não obstante essa versão ter sido desmentida posteriormente, ficando comprovado que se trata de um marco oitocentista, somente agora, em 2022, o Museu corrigiu a primeira atribuição (Cintra 2022CINTRA, Jorge P. (2022), “Quebrando paradigmas: líticos”. In J. Cintra (coord.) Territórios em disputa. São Paulo: Edusp: Museu Paulista da USP. :62-64).9 9 A refutação da atribuição original deveu-se ao historiador santista José da Costa Sobrinho, que, em ampla pesquisa nos arquivos cartoriais santistas, encontrou os autos de um processo acerca de disputa de terras na mesma área onde o marco foi encontrado que traz a descrição dos marcos ali colocados na ocasião. (Sobrinho 1957:132). A demora demonstra o grande valor das narrativas fundacionais e a eficácia dos artefatos de pedra em corporificá-las durante a era das relíquias históricas nos museus brasileiros. Também deixa claro como o poder das relíquias e monumentos de antiguidade em se desvencilhar dos ditames do saber histórico acabou por acentuar a clivagem entre memória e história, entre monumento e documento. Nesse sentido, poucos são os exemplos mais elucidativos do que o caso do chamado marco da cidade do Rio de Janeiro, cuja “vida social” (Appadurai 1986APPADURAI, Arjun (1986), The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. New York: Cambridge University Press. ), marcada por diversas conjecturas sobre a sua origem e função, ajuda a recompor a construção da memória pública carioca, em seus distanciamentos, confrontos e complementaridades com a historiografia urbana coetânea.

O marco de fundação da cidade do Rio de Janeiro: os contos da memória e o silêncio da história

A emergência da noção republicana de cidadania política, ainda que deveras limitada pelas restrições ao direito ao voto, impôs uma forte demanda por representações e espaços cívicos que ajudassem a conformar o corpo de cidadãos que se vissem, mesmo minimamente, como coparticipes em seu exercício. O fortalecimento da memória pública teve uma influência decisiva nessa questão e, por essa época, autoridades municipais e estaduais procuraram determinar datas precisas para a comemoração de eventos importantes da história local, por meio de feriados, cortejos e monumentos.10 10 Este processo foi muito bem demonstrado no estudo de Hélder Viana sobre a cidade de Natal (Viana 2019:7 e ss).

No caso da cidade do Rio de Janeiro, esse processo adquiriu força a partir da década de 1890 e acabou por definir o lugar ocupado até hoje pelo chamado “marco de fundação da cidade”, um pilar de mármore lioz que, desde época desconhecida, erguia-se junto ao cunhal da Igreja de São Sebastião, no morro do Castelo. O marco era frequentemente citado pelos cronistas e memorialistas da cidade, ainda que na maior parte das vezes se limitassem a reproduzir as palavras de Luiz Gonçalves dos Santos, o padre Perereca, que dedicara algumas poucas linhas ao tema em suas Memórias para servir à história do reino do Brasil (1825). Ali estão descritas as principais edificações do Morro do Castelo, “o primeiro berço desta cidade”, como a Igreja de São Sebastião, junto a qual “se vê um marco de pedra mármore de altura de quatro palmos com as Quinas Portuguesas em uma face, e na outra a Cruz da Ordem de Cristo” (Santos 2013SANTOS, Luís Gonçalves dos. (2013), Memórias para servir à história do reino do Brasil. Brasília: Senado Federal/ Conselho Editorial . :39).11 11 Embora utilize o termo “monumentos” para se referir às antigas edificações do Morro do Castelo, Antônio Duarte Nunes não faz qualquer menção a um marco fundacional da cidade (Nunes 1799:26). Tampouco o fazem outros antigos memorialistas cariocas, como monsenhor Pizarro e Araújo (1820) e Balthazar da Silva Lisboa (1834).

É possível que o padre Perereca conhecesse outra referência mais antiga ao marco, feita por Francisco de Castro Morais - por sua vez, conhecido como o “Vaca” -, governador da capitania do Rio de Janeiro à época do ataque do corsário francês Jean-François Duclerc, em 1710. Bem-sucedido em sua estratégia de defesa, Morais escreveu um importante manuscrito sobre o episódio, referenciando o morro do Castelo como o sítio de fundação da cidade, onde “ainda conservando a memória da antiguidade, está o padrão, reside a Matriz e se descobrem várias casas em ruínas” (Morais 1710MORAIS, Francisco de C. (1710), Narração ao assalto que os franceses fizeram ao Rio de Janeiro, governados por Duclerc, e a vitória que alcançou o governador da cidade Francisco de Castro Moraes no ano de 1710. Manuscrito, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. :4).12 12 O manuscrito foi escrito ainda em 1710 e pertence ao acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Embora nunca tenha sido publicado, é possível inferir que serviu de fundamento para estudos importantes sobre a cidade como o de Antônio Duarte Nunes e, provavelmente, o do Padre Perereca. Referido por Morais apenas como “o padrão”, seu significado, e talvez sua origem, deveria estar claro para ele e os seus leitores. Para o padre Perereca, por sua vez, o sentido e a função do pilar já estavam esquecidos e a destruição da maior parte do arquivo da Câmara em um incêndio ocorrido em 1790 não deixava solução à vista.

Assim, ao longo das décadas seguintes, as poucas linhas dedicadas ao tema pelo Padre Perereca foram diversas vezes reproduzidas, quase sem sofrer alterações, por cronistas como Moreira de Azevedo (1877AZEVEDO, Manuel D. M. de. (1877), Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades , vol. 1. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, .: 127), Vieira Fazenda (1905FAZENDA, José Vieira. (1905), “O morro do Castelo e os jesuítas”. Renascença, Rio de Janeiro, n. 46, jun. 1905: 256-262. :261) e Araújo Viana (1915VIANA, Ernesto A. (1915), “Das Artes plásticas no Brasil em geral e na cidade do Rio de Janeiro em particular”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , 78: 505-608. :523-524), em uma monotonia citativa que demonstra bem a preponderância da palavra escrita entre os letrados brasileiros. Joaquim Manoel de Macedo constituiu a notável exceção em relação a esse quadro e o seu famoso livro Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (1863) menciona algumas “tradições” populares a respeito do marco:

Perto da porta principal e do lado do Castello via-se erguido em frade de pedra, como o povo chama, tendo em uma de suas faces gravadas as cinco chagas e na outra uma cruz. Era tradição, mas tradição que me parece não ter fundamento, que debaixo dessa pedra fora sepultado o primeiro soldado que morrera nas pelejas do dia 20 de janeiro de 1567 (Macedo 2005MACEDO, Joaquim M. de. (2005), Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal/ Conselho Editorial. :511-512).

Afora essas observações, entretanto, nem Macedo nem qualquer outro que escrevera sobre o marco soubera precisar a sua função ou propósito. Parece ter sido Moreira de Azevedo, em seu Guia do Rio de Janeiro, que primeiro inquiriu sobre o seu sentido: “Que recordará essa pedra enterrada há séculos; indicará um túmulo ou será o marco de fundação da cidade?” (Azevedo 1877:127). Trata-se de uma referência importante, pois pela primeira vez o velho padrão de mármore foi indicado como o próprio marco fundacional, ao invés de ser apenas relacionado, de forma vaga, aos primórdios da cidade.

Alguns novos fatores podem ter contribuído para essa mudança nos sentidos atribuídos ao marco. Para começar, durante a década de 1870, houve uma renovação no interesse pelo passado das vilas e cidades brasileiras, conforme se nota no espaço conquistado pelo tema nos jornais e periódicos da época. Além da própria expansão da esfera pública por meio do incremento da imprensa o resgate das ideias federalistas nos círculos republicanos incentivava a demanda por novas representações do corpo político da nação. De fato, a proposta de fazer da comunidade de eleitores municipais a base fundamental da política brasileira invertia por completo a hierarquia representacional do Estado, até então dominada pela figura do Imperador. Assim, a emergência do padrão de pedra do Castelo como marco de fundação da cidade-sede da Corte diz respeito também à derrocada dos símbolos do Império e à busca por outros referenciais de legitimação política no contexto de crise do regime monárquico.

Além disso, a nova etiologia implicava (mesmo que tacitamente), o reconhecimento de um caráter instituidor e constituinte ao objeto até então inédito e que teve grande consequência nos escritos subsequentes sobre o tema. Já no ano seguinte à publicação do guia de Moreira de Azevedo, despontava a primeira representação iconográfica do velho marco: um croqui de Victor Meirelles que traz uma elevação das faces do pilar com inscrições e as suas dimensões aproximadas (Fig. 2). Embora não se conheçam nem a sua finalidade nem a circunstância com que entrou para o acervo da Biblioteca Nacional, ele indica que o marco adquiria uma visibilidade crescente.13 13 A data permite estipular que Meirelles tenha feito o croqui em um estudo inicial para o seu panorama da cidade (Cf. COELHO, 2007, p. 87) e que sua entrada na Biblioteca Nacional tenha se dado pelo interesse de Alfredo do Vale Cabral em epigrafia. Além disso, é provável que Vale Cabral já estivesse coligindo material para o seu extenso Guia do Viajante no Rio de Janeiro (1882), em que faz menção ao marco.

Figura 2:
“Padrão que existe ao lado da Igreja de S. Sebastião, no morro do Castello”. Vítor Meirelles, 1878. Lápis sobre papel, 20,8 x 13,2 cm.

O ponto alto dessa trajetória deu-se anos depois, quando o pintor Antônio Firmino Monteiro inseriu o marco em sua famosa tela sobre as origens cariocas, A fundação da cidade do Rio de Janeiro (1881), na qual ele aparece como um atributo importante da narrativa composta pelo pintor (Fig. 3). Disposto em primeiro plano e exibindo a face com o emblema da cruz, o marco serve de apoio à figura do indígena cristianizado, cuja compostura se contrapõe aos gestos animalescos dos “índios bravios”, ainda não civilizados pela fé cristã, em um potente elogio ao papel do catolicismo na formação da nacionalidade.14 14 Essa postura ganhava força nos anos finais do Império, fundamentada não apenas no papel histórico do catolicismo como também na defesa da catequese como a via mais promissora para a incorporação dos indígenas à sociedade brasileira. Para uma interpretação diferente sobre o mesmo aspecto da tela, ver Moreira (2016:85-87). Na imagem utilizada, optei pela gravura feita a partir da tela do que por ela em si, devido ao forte escurecimento da superfície na área em foco. A tela original está exposta no Palácio Pedro Ernesto, sede da Câmara Municipal.

Figura 3:
A fundação da cidade do Rio de Janeiro (detalhe). Antônio Firmino Monteiro, 1881. Gravura, 52 x 76 cm.

Quando a República foi proclamada, portanto, a imagem do padrão do Castelo como o marco de fundação da cidade já estava consolidada, apesar da ausência de qualquer evidência documental. Este quadro, contudo, sofreu uma brusca reviravolta a partir da década de 1890, quando a historiografia dedicada às origens da cidade passou a ser permeada pelo ideário positivista, cuja força e prestígio político perduraram alguns anos após a débâcle do governo de Floriano Peixoto. Embasada nos critérios de autenticidade dos documentos estabelecidos pela crítica histórica, a influência positivista acabou por relegar o marco de mármore a um lugar secundário nos intensos debates historiográficos sobre o surgimento da cidade durante a Primeira República.15 15 Para uma apreciação desses “longos e cansativos debates”, ver Abreu (2002). Uma circunstância importante no caso da historiografia urbana do Rio de Janeiro foi a contenda fundiária entre poder público municipal e donos de terrenos particulares na área central da cidade. Apesar de antiga, a reorganização municipal sob o ditame federalista deu força à disputa, que passou a pender de modo favorável para a municipalidade após 1893, quando foi apresentada a tese do jurisconsulto Carlos de Carvalho, então ministro do Exterior do governo de Deodoro da Fonseca. Valendo-se pioneiramente da crítica documental positivista, Carvalho conseguira desmontar os argumentos defendidos por Alexandre J. Mello Moraes - conhecido historiador da segunda metade do século XIX e autor de estudos que legitimavam a causa dos proprietários particulares. Ver Carvalho (1893); Mello Moraes (1881).

O ideário positivista marcou a primeira publicação patrocinada pela recém-criada prefeitura carioca, que promovera um concurso para premiar a melhor monografia sobre a história da cidade. O vencedor foi o jornalista e republicano de primeira hora Felisbelo Freire, cujo estudo História da cidade do Rio de Janeiro prezava sobremaneira pelo recurso à documentação de natureza oficial, coetânea aos fatos narrados (Knauss apud Santos 2018SANTOS, Maria F. dos. (2018), Felisbelo Freire, o IHGB e a polêmica em torno da obra História da cidade do Rio de Janeiro (1901) . São Critóvão: Dissertação de mestrado em História, UFS. :76).16 16 Para a história deste estudo e da polêmica dele decorrente, ver Santos (2018). Não surpreende, assim, que a sua única menção ao padrão do Castelo esteja em uma nota de rodapé que pontuava o estado ruinoso da Igreja de São Sebastião que, alheia aos embelezamentos urbanos, conservava “um marco de mármore, mudo testemunho da origem e desenvolvimento da hoje Capital Federal” (Freire 1912FREIRE, Felisbelo. (1912), História da cidade do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Tipografia da Revista dos Tribunais, volume 1. :71, nota 1). Ainda que admitisse sua relação com as origens da cidade, Freire não deu margem para tradições narradas ou supostas acerca de seu papel como marco fundacional.

Em verdade, a condição de “testemunha muda” de eventos ignorados será doravante o seu papel no âmbito da historiografia local, cada vez mais centrada na exegese da documentação existente, como se faz notar nos importantes trabalhos de Jayme Reis, Adolpho Morales de los Rios, Paulo Delgado de Carvalho e João Costa FerreiraFERREIRA, João da C. (1933), A cidade do Rio de Janeiro e seu termo: ensaio urbanológico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional . . Todos silenciaram ou fizeram uso apenas ilustrativo do objeto, então devidamente reduzido a uma “tradição” tão imprecisa quanto inofensiva. Somente entre os historiadores fortemente comprometidos com a historiografia conservadora do IHGB, como Max Fleiuss e Vieira Fazenda o marco encontrou alguma sobrevida, como se verá adiante.17 17 Sintomaticamente, foi também entre os sócios do IHGB que a legitimidade das reinvindicações municipais sobre os terrenos da cidade foi mais questionada. Ver Fazenda (1920:159-218).

Ao contrário do que se poderia esperar, o desprestigio do marco de mármore entre os historiadores da cidade não foi correspondido entre outros segmentos sociais que participavam da vida municipal. Em verdade, se deu justamente o oposto, alcançando ele um protagonismo nunca visto, em um claro indício de que surgia uma clivagem irreparável entre memória e história na vida pública carioca. A sua consagração como relíquia histórica da fundação da cidade teve início em 1896 (apenas alguns dias antes da instituição do concurso vencido por Felisbelo Freire), quando o prefeito Francisco Werneck de Almeida (outro republicano de primeira hora e membro da Constituinte de 1891ALMEIDA, Francisco M. R. da. (1891), “Relatório apresentado ao Instituto Histórico de Goiana pela respectiva comissão de trabalhos históricos e arqueológicos na sessão de 29 de setembro de 1871”. Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, nº 40: 99-110. ) decretou o dia 20 de janeiro como feriado cívico municipal “em comemoração dos fundadores” da cidade.18 18 Ver Decreto nº 229 - 10 de março de 1896. Collecção das Leis Municipaes e Vetos de 1895-1896, vol. II, 1897: 136.

O Rio de Janeiro republicano passava, assim, a contar com uma data cívica que incorporava, sob o verniz laico, os tradicionais festejos litúrgicos consagrados a São Sebastião. Ao longo dos anos seguintes, a procissão religiosa foi sendo encampada pelo poder público e divulgada amplamente pela imprensa. As colunas escritas quase ano a ano pelo memorialista Vieira Fazenda demonstram como os festejos do dia 20 de janeiro se recobriam de um tom solene e edificante. Em uma delas, publicada no jornal A Notícia, em 27 de janeiro 1907, o marco de mármore foi ele próprio o protagonista:

Todos quantos em piedosa romaria acompanharem hoje a tradicional procissão de S. Sebastião, não deixem de contemplar juncto ao cunhal da antiga Sé o único monumento que possuímos comemorativo da fundação da cidade do Rio de Janeiro. É uma simples pedra, sobre a qual tem passado mais de três séculos. Esse padrão, ahi fincado pelos primeiros povoadores, symboliza através dos tempos, a fé, o denodo, a perseverança com que eles souberam cavar os alicerces desta hoje grande capital e lembrará para sempre os memoráveis combates de Uruçumirim e Paranapuanº Aos olhos dos cariocas esse singelo marco deve ser objeto de muita veneração. Conservemo-lo para despertar em nossas almas as sublimes e santas sugestões do verdadeiro amor da pátria (Fazenda 1921FAZENDA, José Vieira. (1921), “Antiqualhas e memórias”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 140, 1ª parte. :145). 19 19 Em outra coluna, o historiador chegou a sugerir que a prefeitura resgatasse as procissões marítimas que comemoravam as batalhas de 1567 até o século XVII sob a forma de torneiros de regatas.

Para Vieira Fazenda, o marco tornava-se portador de valores cívicos importantes, assinalados nos emblemas inscritos em suas faces e em sua própria materialidade: a fé e o denodo correspondiam à cruz maltada e ao escudo português; a perseverança, às próprias qualidades atribuídas aos artefatos de pedra, conforme visto acima.

As comemorações republicanas da fundação da cidade tiveram o seu auge em 1910, quando os festejos do dia 20 de janeiro puderam contar, pela primeira vez, com o aporte de verbas públicas municipais, possibilitando uma suntuosidade até então só vista nos eventos organizados pelo governo federal. Mais do que arcar com os custos, a prefeitura assumiu também a direção geral dos festejos, mobilizando diversas repartições públicas para a sua realização. Desse modo, um dos pavilhões construídos para Exposição Nacional de 1908, na praia Vermelha (próximo ao local onde existira a Cidade Velha) voltou a sediar uma exposição de objetos históricos, enquanto os eventos mais solenes foram abrigados no Teatro Municipal, inaugurado meses antes. O ponto mais alto da programação, contudo, foi a “romaria cívica” à Igreja de São Sebastião, liderada pelo prefeito Serzedelo Correia e por representantes do IHGB e da Sociedade de Geografia. Na subida do morro do Castelo, trecho final do percurso iniciado na Avenida Central, o cortejo se deparou com caprichosos e requintados arranjos florais que adornavam as ruas e “principalmente, a praça onde está a igreja, em cuja face exterior se encontra o marco de fundação da cidade e em cujo recinto se acha o tumulo de Estácio de Sá” (Fig. 4).

Figura 4:
O marco encimado por uma coroa de flores para o aniversário da cidade, em 1910.

Por ordem do prefeito, os dois monumentos foram “belamente ornamentados com as mais preciosas flores naturais”.20 20 Cf. A IMPRENSA. (1910), “A festa da fundação da cidade”, A Imprensa, 16 out. 1910: 2. Em uma época em que as coroas de flores eram comumente associadas às glórias apoteóticas, também ao rejuvenescimento e à fecundidade, o ato de recobrir o marco em meio aos festejos ganhava um claro sentido de que os monumentos mais austeros e graves vicejariam novamente por meio do culto cívico ao passado.

A breve descrição permite perceber que a festa se constituía como um elaborado ritual de memória em que a atribuição de sentido ao passado era mediada por uma cerimonialização dos gestos, posturas e percursos daqueles que dela participavam (Viana 2019VIANA, Hélder do N. (2019), “A construção do espaço cívico: monumentos e rituais de memória na Natal republicana (1902-1922)”. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, 27: 1-44.:6). A importância desses ritos para a elite dirigente da cidade foi expressa pelo próprio Henrique Coelho Netto, escritor e então o orador oficial da prefeitura, que no palanque montado diante da Igreja de São Sebastião proclamou:

O povo não folheia alfarrábios, não tem tempo para esmerilhar assumptos - aprende a história ao sol, nas ruas. Não a decora. É necessário dar-lhe em documentos e em festas, estabelecendo, assim, pela imagem e pelas commemorações, o culto da tradição, essa força das raças.21 21 Discurso transcrito no jornal A Imprensa, 21 janº 1910: 2. Foi posteriormente incluído no livro Palestras da tarde, publicado pelo escritor no ano seguinte. Ver Coelho Netto (1911:123-124).

Alguns anos depois, em 1915, a cúpula do IHGB propôs e levou ao cabo a construção de um monumento que demarcasse o local da primeira sede municipal, junto ao morro Cara de Cão, comprovando que mesmo os letrados mais eruditos também recorriam a ritos de memória para perpetuar o “culto da tradição”. Capitaneada por Max Fleiuss e José Vieira Fazenda, a inauguração do marco “feito de granito nacional” ocorreu também em um 20 de janeiro. A iniciativa, que foi o arremate de um debate que se prolongou por mais de 60 anos acerca da exata localização da Cidade Velha,22 22 Para as disputas acerca do local de fundação da cidade, ver Abreu (2002:43). demonstrava o quanto até mesmo os mais eruditos historiadores ansiavam por um senso de continuidade entre os tempos fundacionais e o próprio presente, já que ocorreu logo após a conclusão do primeiro Congresso de História Nacional.

A inauguração do marco do morro Cara de Cão, antes de ter sido um capricho da cúpula do IHGB era, e continuou sendo, referendada por um volume crescente de ensaios histórico-topográficos que tentavam reconstituir a cidade à época de sua fundação, tais como o de Jayme Reis (1897REIS, Jayme. (1897), “A primeira fundação do Rio de Janeiro”. Revista Brasileira, 10, abr. - jun.: 296-316. ), Adolfo Morales de los Rios (1915RIOS, Adolfo M. de los. (1915), “Subsídios para a história da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Anais do Primeiro Congresso de História Nacional, vol. 1: 989-1350. ), Everardo Backheuser (1918BACKHEUSER, Everardo A. (1918), A faixa litorânea do Brasil meridional - hoje e ontem. Rio de Janeiro: B. Frères. ) e, mais tardiamente, Bernardo Sanmartin (1934SANMARTIN, Bernardo. (1934), Testemunhos fixadores do local e data da fundação da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro [s.n.]. ).23 23 Backheuser publicou uma das primeiras plantas reconstitutivas do sítio urbano carioca em meados do séc. XVI (Ver Backheuser 1918). Já Sanmartin, fotógrafo amador que publicara antes uma coletânea de livretos com fotos de antigas epigrafes e monumentos da cidade, recorreu ao uso de fotografias aéreas e mapas topográficos em cotejamento com a documentação histórica para construir seus argumentos (Ver Sanmartin 1928; 1934). Por trás dessa voga topográfica é possível identificar a percepção, mesmo não formulada, de que a cisão entre memória e história se acelerava em decorrência das grandes demolições promovidas nos bairros centrais e, principalmente, pela deslegitimação de antigos elos entre passado e presente promovida pelos novos paradigmas historiográficos, como fora o caso do marco do Castelo. Urgia, portanto, inscrever esses nomes no espaço, erigir placas comemorativas, erguer obeliscos e estátuas que pudessem materializar novos elos temporais em substituição aos que haviam sido prescritos.24 24 A tarefa, contudo, não se mostrou fácil, e os métodos discutíveis e hipóteses arbitrárias ou fantasiosas faziam sentir a ausência de indícios materiais mais sólidos, que restringissem o enfadonho enumerar das conjecturas - “até os indígenas nos têm legado algumas igaçabas”, escreveu em tom de desabafo um arrogante Adolfo Morales de los Rios (Rios 1915:1220). Em que pese o rigor técnico e o saber positivo com que o passado começava a ser esquadrinhado (Cf. Iumatti & Vellozo 2014IUMATTI, Paulo T. & VELLOZO, Júlio C. O. (2014), “Conhecimento, política e instituições no Brasil (1889-1934)”. Reflexos, nº 2: 1-72. ), muitas das páginas e páginas escritas para determinar os sítios exatos de localidades como a Cidade Velha, a “casa de pedra”, a Briqueterie, a aldeia de Uruçu-mirim, respondiam antes à necessidade aguda de restaurar a concretude de um passado já infenso à memória do que ao aprimoramento crítico e metodológico do saber historiográfico. Afinal, o que almejava o marco comemorativo junto ao forte São João senão exercer a mesma função da qual o marco do Castelo se vira destituído: a plena identificação de um objeto com um evento e lugar que o legitime como representação metonímica do passado?

O valor compensatório do marco comemorativo e das topografias históricas pode ajudar a explicar a pouca resistência oposta pelos historiadores do IHGB à derrubada do morro do Castelo, questão que dominou o debate urbanístico da cidade nos anos seguintes, polarizando o público entre defensores e opositores da empreitada.25 25 Ver Motta (1992:54-65); Nonato & Santos (2000:206-231). Entre os que propugnavam pela derrubada do morro do Castelo, estava José Vieira Fazenda, então secretário geral do IHGB - ironicamente, tornado epônimo do sentimentalismo desatinado atribuído aos opositores do desmonte. Médico de formação, Vieira Fazenda baseava a sua opção nos supostos benefícios higiênicos do desmonte do morro e, no seu modo de ver, todas as questões relativas à preservação das memórias fundacionais ali consagradas eram de fácil solução: “Pode-se conciliar a tradição com o salus populi e a remodelação de nossa urbs. Não quebrem o padrão da fundação da cidade, não atirem na Sapucaia os ossos de Estácio de Sá, e fica salva a pátria!” (Fazenda 1924FAZENDA, José Vieira. (1924), “Antiqualhas e memórias” Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , nº 149. :528, destaque meu). Era uma sugestão que revelava todo o poder da transformação desses artefatos em relíquias históricas: só eles bastariam para evocar a presença quase hierática do outeiro, mesmo após suas vertentes terem sido completamente varridas para dentro da Guanabara.26 26 O marco como relíquia histórica da cidade também foi uma imagem cara aos opositores do arrasamento do morro. Em 1920, o ilustrador J. Carlos, um dos mais ferrenhos críticos da demolição, fez dele um dos atributos que permitiam identificar a representação antropomorfizada do morro do Castelo como um ancião barbado em uma famosa ilustração para a capa da revista Careta, nº 648.

Aliás, foi justamente esse o primeiro fim para o qual se prestou o marco após o arrasamento do morro. A amplidão da Esplanada do Castelo, com o pilar de pedra chantado no lugar correspondente à sua antiga posição na cumeada do Castelo, era a própria imagem da modernização da cidade que o poder público queria divulgar durante as comemorações do Centenário da Independência. A visão foi tão significativa que perdurou alguns bons anos após encerrados os festejos da efeméride, quando o marco foi enfim devolvido aos Capuchinhos, que, desde 1938, o mantém em exibição junto à nave do seu novo santuário, no bairro da Tijuca.

Desde então, a sua presença na vida carioca se tornou mais rarefeita e as comemorações do IV Centenário da cidade, quando o marco deixou a Tijuca sobre um carro do Corpo dos Bombeiros para participar do cortejo cívico que abriu os festejos de 1965, devem ser vistas como o canto do cisne da sua trajetória como símbolo municipal. De lá para cá, as relíquias históricas da cidade vinculadas ao culto de São Sebastião (que incluíam também a campa de Estácio de Sá e a imagem do santo supostamente trazida à cidade por ele) envelheceram rapidamente, à medida que os códigos sociais que sustentavam a ritualização da memória da cidade caíam em desuso em decorrência da rápida metropolização.27 27 Sobre a imagem de São Sebastião, ver Knauss (2019:14-21). Não surpreende, assim, que o painel de azulejos da igreja dos capuchinhos - a última importante representação em que ocupam lugar de destaque -, tenha adotado uma linguagem visual tão semelhante a dos anúncios publicitários, como se a disputar a atenção dos transeuntes da Tijuca (Fig. 5)28 28 Embora não tenha conseguido apurar a data em que o painel foi instalado, certamente, se trata de obra posterior às comemorações do IV Centenário, época em que o tímpano da fachada ainda não contava com qualquer figuração. .

Figura 5:
Painel de azulejos no tímpano do Santuário de São Sebastião, na Tijuca.

Certamente, o desejo de conferir visibilidade às relíquias também foi motivado pela disputa entre o Iphan e os frades pela posse do marco e da campa de Estácio de Sá. Desde 1938, ano em que tombou as duas peças, o órgão federal manifestava seu descontentamento pelos capuchinhos terem mantido a sua guarda. Em 1969, quando o Iphan recebeu a solicitação de um projeto para o monumento a Estácio de Sá no Aterro do Flamengo, viu aí a chance de realocá-las em contexto mais apropriado à sua condição de artefatos históricos (Ver Leitte-Teixeira, 2016LEITTE-TEIXEIRA, Giulia A. B. (2016), Lúcio Costa e Estácio de Sá: monumento, cenotáfio e arquitetura. Porto Alegre: Dissertação de mestrado em Arquitetura e Urbanismo, Mackenzie. ). A opção por um painel “gráfico” seria um modo de publicitar a longa relação entre os frades capuchos e as relíquias da Sé Velha, legitimando a sua posse.

Da descrição de viagem à retórica do poder

Apesar de relegado à condição de “tradição local” pelo discurso historiográfico, o antigo padrão do Castelo teve uma longa vida social como relíquia histórica da cidade, cujo desprestígio recente não incorreu em questionamentos ao seu estatuto como marco fundacional. No entanto, conforme os postulados de Jacques Le Goff sobre as relações entre monumento e documento, uma vez compreendida a transformação do padrão de mármore em monumento fundacional, é possível recuperá-lo enquanto documento histórico, ou seja, como meio de elucidação - mesmo que incompleta e parcial - do passado ali referenciado (Le Goff 2013LE GOFF, Jacques. (2013), História e memória. Campinas: Editora da Unicamp.:492-495).

A restituição da trajetória de monumentalização do marco do Castelo deixou claro que a sua coesão discursiva foi obra paulatina, baseada no compromisso tácito de seus autores com as poucas referências consideradas confiáveis. Em contrapartida, o mesmo esforço coesivo amplifica o efeito dissonante causado pela descoberta de outras versões sobre a origem do marco que foram silenciadas desde a sugestão de Moreira de Azevedo sobre o seu caráter fundacional. Assim, cumpre aqui atentar para essa questão, uma vez que tais versões não só se mostram mais plausíveis, como jogam luz sobre outros usos monumentais do mesmo artefato.

Na última vez em que foi levantada como hipótese, esteve embasada em toda a autoridade do chefe da seção de manuscritos da Biblioteca Nacional, Alfredo do Vale Cabral (1851-1894), que, ainda em 1882, apontava que o pilar do Castelo se assemelhava mais a um padrão de posse do que a um monumento fundacional. Em seu célebre Guia do viajante no Rio de Janeiro, o mais rigoroso pesquisador de sua geração descreveu o marco se abstendo de qualquer menção à sua participação na fundação da cidade e foi ainda além, estabelecendo um interessante parâmetro comparativo:

Na parte em que a igreja faz uma esquina com o largo, vê-se colocado um antigo e notável monumento. É um marco de mármore branco, tendo n’uma face as quinas de Portugal e na outra a cruz de Christo. O Instituto Histórico do Brazil possue um marco, o de Cananea, egual a este. (Cabral 1882CABRAL, Alfredo do V. (1882), Guia do viajante no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ. Gazeta de Notícias. :262, destaque meu)

É bem possível que Vale Cabral, que desde 1873 vinha catalogando e organizando a seção de manuscritos da Biblioteca Nacional, tivesse ciência de que nenhum objeto semelhante ao marco tomara parte nos ritos de fundação de vilas e cidades portuguesas, no reino ou nas colônias - certamente a maior deficiência da explicação que se tornaria dominante.29 29 Sobre os ritos fundacionais das cidades e vilas coloniais, ver Andrade (2022:3-5). Mais importante, no entanto, foi a agudez de seu olhar, que (anos antes de sua admirável viagem de coleta epigráfica pelo Nordeste) já demonstrava o pendor do erudito bibliotecário para a pesquisa antiquária. Ter sabido se valer da comparação tipológica quando a consulta à documentação se mostrara infrutífera é a prova maior de sua invulgar vocação investigativa.

Em sua análise comparativa, Valle Cabral pôde contar apenas com o padrão quinhentista de Cananéia exposto na sede do IHGB, locado então no terceiro pavimento do Convento do Carmo, a menos de 600 metros do marco do Castelo. As discrepâncias morfológicas entre os dois artefatos, inclusive nos emblemas insculpidos, não o impediram de asseverar corretamente a semelhança entre as peças. Seus apontamentos, no entanto, tiveram pouca, ou nenhuma repercussão, permanecendo pouco explorados desde então, não obstante a clareza prístina de seu raciocínio.

Caso ele pudesse ter examinado o chamado Marco do Descobrimento, localizado em Porto Seguro, poderia ter contado com elementos mais sólidos que corroborariam a filiação do marco do Castelo aos padrões de posse portugueses. De fato, trata-se de dois artefatos em tudo semelhantes, tanto em suas proporções, como nas formas dos emblemas insculpidos e na técnica utilizada, como notado pelo rebaixo das superfícies do mármore sob as insígnias (Ver figuras 6, 7 e 8).30 30 As medidas do marco carioca são 163 x 38 x 22 cm (medição do autor). Não consegui encontrar medidas detalhadas do marco de Porto Seguro. A documentação consultada junto ao Arquivo Central do IPHAN, contudo, permite perceber que ambos têm um porte semelhante, com possível discrepância somente quanto à altura do marco baiano, que pode ser um pouco maior do que o seu congênere. Muito provavelmente, formavam par na mesma frota exploradora que, em algum momento do primeiro quartel do século XVI, dispôs um deles próximo à futura vila de Porto Seguro e o outro em um ponto ignorado da baía de Guanabara.31 31 Os marcos, possivelmente, estiveram ligados ao estabelecimento de feitorias para o comércio de pau-brasil, já que tanto Porto Seguro como a baía de Guanabara são regiões comumente apontadas como sedes desses entrepostos comerciais já nas primeiras décadas do séc. XVI. Ver Fernandes (2008) e Cancela (2012:60).

Figura 6:
Marco do Descobrimento, em Porto Seguro, face das armas.

Figura 7:
Marco do Descobrimento, em Porto Seguro, face da cruz.

O marco de Porto Seguro, porém, permaneceu desconhecido aos eruditos brasileiros durante todo o Oitocentos. Somente no limiar dos séculos XIX e XX, com a proximidade da efeméride do IV Centenário da viagem de Pedro Álvares Cabral, que o pequeno vilarejo de Porto Seguro começou a receber alguma notoriedade. Em 1899, duas gravuras mostrando os emblemas incrustados em suas faces foram publicadas em um relatório sobre o mapeamento da região feito pelo major Salvador Aragão a mando do governador Luiz Vianna. No ano seguinte, as mesmas gravuras foram reproduzidas em jornais cariocas que circularam no dia 22 de abril - fato que se repetiria durante o centenário da Independência, em 1922. Foi apenas a partir da década seguinte, com o início da atuação do SPHAN na região, que notícias detalhadas do marco começaram a circular com mais frequência.32 32 A atuação do órgão em Porto Seguro antecedeu em muito o seu tombamento, ocorrido apenas em 1968.

No entanto, a divulgação de informes e imagens do padrão de Porto Seguro em nada alterou a função fundacional atribuída ao marco carioca, em um movimento de inércia explicado tanto pelo bairrismo dos memorialistas cariocas como pelo desdém dos departamentos universitários. Assim, para encontrar observadores com a mesma opinião de Valle Cabral é preciso voltar (e não por coincidência, como se verá adiante) à mesma época em que o padre Perereca divulgou pela primeira vez a sua existência junto à Igreja de São Sebastião. O viajante inglês John Luccock parece ter sido o primeiro a dar notícia detalhada a seu respeito, ao descrever os edifícios mais notáveis do Rio de Janeiro:

Bem junto de um dos cantos da catedral, fica uma espécie de pilar de feldspato cinzelado, com cerca de quatro pés de altura acima do solo, dois de largo e um de espessura. Em sua face oriental estão gravadas as armas de Portugal, na de ocidente as insígnias da ordem de Cristo. Desconfio que foi trazido da Bahia, sendo provavelmente o mesmo marco por meio do qual se tomou posse do país para a coroa de Portugal. Foi decerto colocado na sua atual posição na época em que dali se expulsaram os nativos e se levantou a Igreja de São Sebastião (Luccock 1951LUCCOCK, John. (1951), Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Martins. [1820]:38).

O relato de Luccock foi publicado em 1820 e serviu de base para ao menos uma outra descrição posterior: a do pintor inglês Robert Burford, que publicou um folheto explicativo ao seu panorama do Rio de Janeiro, feito a partir de viagem realizada em 1823 (Burford 2012 [1828]BURFORD, Robert. (2012) [1828], “A Description of a View of the City of St. Sebastian, and the Bay of Rio Janeiro”. in C. Martins. Panoramas: a paisagem brasileira no acervo do Instituto Moreira Salles. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles. :10).33 33 Tradução livre. O termo feldspato tem aqui caráter generalista, devendo ser tomado como referência a grande dureza e aos tons pálidos da rocha empregada como material.

A relação entre o marco e o descobrimento do Brasil, apesar de inusitada, não é um caso isolado. Uma testemunha coetânea também fez afirmações no mesmo sentido: o comerciante letão Ernst Ebel, tendo estado na cidade em 1824, se referiu ao “notável marco de Pedra que Pedro de Cabral fincou para assinalar a descoberta do Brasil em 1500. Nele estão insculpidas a cruz maltada34 34 A tradução brasileira traz a palavra “milésimo” ao invés de “cruz maltada”. Trata-se, seguramente, de uma tradução truncada, talvez originada em um erro tipográfico ou de transcrição. Como a cruz maltada é denominada em alemão como tatzenkreuz algo semelhante a tausendstel (“milésimo”), pode ter sido essa a origem da confusão. e as armas de Portugal” (Ebel 1972 [1828]EBEL, Ernst. (1972), O rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo: Editora Nacional. :123).35 35 A extravagante afirmação surpreendeu o próprio tradutor Joaquim de Sousa Leão Filho que, em nota, considerou este como “o maior erro cometido pelo autor, em geral fidedigno e seguro em suas informações” (Ebel 1972:123, nota) Pela descrição de Ebel, que não deve necessariamente ser tomada como uma citação de Luccock, é possível inferir que a associação do marco do Castelo à descoberta do Brasil estaria já circulando entre a numerosa comunidade de estrangeiros não lusófonos no Rio de Janeiro na segunda década do séc. XIX. A maior congruência da versão de Luccock pode indicar que o relato de Ebel seria um relato de terceira mão e que a correlação entre o marco e o descobrimento da terra pode ter se originado entre os marinheiros e comerciantes ingleses, cuja frequentação de diversos portos da costa brasileira só fez aumentar desde a Abertura dos Portos.

Na realidade, a presença de embarcações inglesas, tanto mercantes como de guerra, no litoral do país superava mesmo a da própria Armada Nacional, que só seria estruturada durante o Primeiro Reinado. Articulados em torno de estadias mais ou menos demoradas no porto do Rio de Janeiro, os marinheiros e negociantes ingleses podiam ali se informar e trocar impressões sobre os principais portos e vilas da costa brasileira - inclusive Porto Seguro, que, como principal embarcadouro entre Vitória e Salvador, estava no itinerário de muitos marujos britânicos. O mais célebre dentre eles foi Thomas Lindley, cuja conhecida referência à suposta cruz erguida por Cabral em Porto Seguro é mais um indicativo de que a existência de antigos monumentos e padrões de posse era um aspecto chamativo nas caracterizações das localidades visitadas:

Vangloriam-se os habitantes de Porto Seguro de serem naturais do sítio onde o Brasil foi descoberto por Pedro Alvares Cabral. Ainda conservam, com grande veneração, a Santa Cruz erguida sob uma árvore frondosa por ocasião da primeira Missa solene” (Lindley 1969LINDLEY, Thomas. (1969), Narrativa de uma viagem ao Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Nacional. :157).36 36 Ainda que o inglês não forneça qualquer detalhe sobre as características dessa cruz, há alguns indícios que autoriza a hipótese do emblema da cruz de Cristo ter sido tomado como a própria cruz cabralina. Como as primeiras descrições da viagem de Cabral tenderam a truncar o teor da carta de Caminha, encontram-se menções ao erguimento de uma “cruz de pedra como padrão” (Castanheda 1552:64) ou de um “padrão de pedra com uma cruz” (Góis 1926:118). Há notícias mais bem circunstanciadas de cruzeiros propriamente ditos, feitos em madeira, que disputavam a mesma fama (Costa 1900:322-324).

Embora os relatos de Lindley, Burford e Ebel ajudem a contextualizar a rede de informações que foi se formando entre os círculos de estrangeiros no Brasil, são as correlações apontadas por Luccock que permitem estabelecer o grau de acuidade das observações em que tais descrições eram baseadas. Afinal, era a idêntica aparência entre o marco carioca e o de Porto Seguro, seu congênere baiano, que servia de fundamento à suposição de que ele teria sido trazido para o Rio de Janeiro após a derrota dos tamoios. Ainda que a explicação fornecida por Luccock fosse incorreta, a exatidão de sua observação revela que a correspondência entre os dois artefatos já era notada por marinheiros, militares e comerciantes ingleses em suas idas e vindas ao longo da costa.

Mais do que buscar contrapor o empirismo inglês ao saber livresco e oratoriano dos eruditos luso-brasileiros, vale lembrar aqui o postulado de Edward Said, segundo o qual todo discurso sobre as origens trai a necessidade de seu locutor de estabelecer autoridade (Said 1985SAID, Edward. (1985), Beginnings: Intention and Method. New York: Basic Book, 1985. :32-33). Assim, o que cumpre considerar agora é o ganho político em fazer de um marco de posse o símbolo do surgimento da cidade do Rio de Janeiro. Afinal, ao sugerir essa versão, Luiz Gonçalves dos Santos provia um antigo entreposto colonial, recém-convertido em capital de um império sob o risco de desintegração, com um símbolo inegável de autoridade e prevalência. Afinal, as quinas do escudo português ainda compunham as armas da Casa de Bragança reinante no Brasil, e a cruz da Ordem de Cristo igualmente se fazia presente na bandeira nacional adotada pelo novo império.

Independentemente de sua função original, a construção discursiva em torno do antigo padrão prosperou por fornecer um lastro simbólico à Corte que remontava às campanhas guerreiras contra indígenas e outras nações europeias. Algo bem parecido com o que foi feito nas décadas seguintes pelo próprio IHGB, que via nas guerras de conquista como a gênese da nacionalidade brasileira - os historiadores do instituto mostravam-se assim herdeiros das aspirações do Padre Perereca de dotar o reino com memórias que legitimassem a soberania recém-conquistada. Uma longa fortuna, que, sem dúvida, muito deveu à preponderância que a palavra escrita tinha na construção do conhecimento sobre o passado. Um logocentrismo que estava relacionado não só com a considerável restrição à circulação das imagens em um país continental e desigualmente desenvolvido, mas também com o valor ideológico da escrita na apropriação do passado histórico em um contexto colonial, no qual a memória era quase um privilégio do Estado.

Fundar, verbo transitivo, pretérito mais-do-que-imperfeito.

A relação entre memória e Estado em contextos coloniais pode auxiliar a compreender os sentidos atribuídos aos dois padrões ainda na época colonial, esclarecendo também os modos pelos quais foram conservados até a sua elevação ao estatuto de relíquias históricas. Assim, chama a atenção que ambos os marcos, além da semelhança tipológica, se equivalessem também quanto à posição em que estavam fixados: junto a igrejas matrizes primazes, isto é, as mais antigas de suas circunscrições. Ao centro das praças ou junto ao cunhal, o vínculo com as suas Matrizes é inquestionável.37 37 Sobre Porto Seguro, há o registro, feito pelo Major Aragão, de que o marco anteriormente estava chantado ao centro do largo defronte à igreja, tendo sido removido de lá para evitar o choque com de carros de bois e cargueiros (Aragão 1899:53). Ou seja, foram elas deliberadamente escolhidas como depositárias legítimas de tais objetos, onde mais propriamente deveriam ser expostos - tarefa à qual estiveram tradicionalmente incumbidas, como apontado por Krzysztof Pomian (Pomian 1990POMIAN, Krzysztof. (1990), Collectors and Curiosities: Paris and Venice, 1500 - 1800. Cambridge: Polity Press. :17).

Mais do que mera coincidência, tal semelhança aponta para uma provável ligação entre esses marcos e a apropriação do passado histórico, em particular as narrativas fundacionais, pelas “nobrezas da terra”. Ainda que faltem evidências claras a esse respeito, há uma série de elementos indiciais que permitem estabelecer essa relação, principalmente para o caso do marco do Rio de Janeiro. Primeiramente, há de se considerar o papel do prestígio guerreiro na reprodução social da classe dirigente da cidade do Rio de Janeiro. Em artigo já clássico, João Fragoso demonstrou como a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro foi regida pela distribuição de mercês e privilégios régios como recompensa à participação nas guerras de conquista contra os tupinambás e os franceses (Fragoso 2000FRAGOSO, João. (2000), “A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII)”. Topoi (Rio de Janeiro), vol. 1, nº 1: 45-122. ) E em artigo mais recente, o mesmo autor afirmou ter sido a manipulação de seu capital simbólico, mais do que a propriedade de terras ou a posse de grandes plantéis de escravos (bens cuja acumulação não era vedada a plebeus, mecânicos e comerciantes), o principal modo de reprodução social e manutenção do poder político das principais famílias fluminenses até meados do séc. XVIII. Desse modo, alianças matrimoniais e relações de reciprocidade desigual baseadas em uma economia do dom responderam pela duradoura influência política das linhagens dos conquistadores quinhentistas (Fragoso 2015FRAGOSO, João. (2015), “E as plantations viraram fumaça: nobreza principal da terra, Antigo Regime e escravidão mercantil.” História (São Paulo), vol. 34 nº 2: 58-107. ).

Nesse contexto, a remoção de um padrão de posse de seu sítio original para junto da igreja matriz pode ser entendida como um ato de manejo simbólico desses ideais de conquista por parte da nobreza da terra. A própria mobilização das famílias mais nobres em defesa do retorno da Sé para a Igreja de São Sebastião, após a sua transferência para a Igreja de Santa Cruz dos Militares, em 1734, devido ao seu mau estado é um elemento que ajuda a fundamentar essa hipótese.38 38 Nos anos seguintes à decisão, a Câmara da cidade se opôs aos que defendiam a construção de uma nova Sé, procurando angariar recursos para a reforma do velho templo (Cardoso 2019:236 e 253). Afinal, a Sé Velha, fundada por Estácio de Sá após a vitória das forças portuguesas, era a própria expressão de seu valor guerreiro e de seus feitos em prol da terra.

Certamente, o simbolismo próprio às igrejas matrizes, que constituíam o elemento fundamental da organização espacial urbana das vilas e cidades coloniais, já justificaria, por si só, a atenção especial por parte da elite local. O papel das guerras de conquista e a necessidade de se reafirmar socialmente frente à crescente importância da burocracia reinol e dos comerciantes de grosso trato, contudo, parecem ter estado na base do longevo vínculo entre a Igreja de São Sebastião e as linhagens senhoriais locais. A própria lápide de Estácio de Sá, ali colocada por ocasião da conclusão de obras na capela-mor custeadas por seu sobrinho Salvador de Sá, em 1583, é uma demonstração de como os descendentes dos conquistadores desde sempre fizeram da Velha Sé o centro de afirmação do seu prestígio social, reforçado também pelo teor religioso que recobria as narrativas sobre as guerras de conquista. Cabe lembrar que alguns dos mais antigos relatos sobre a fundação da cidade tratam essencialmente do martírio de Estácio de Sá, cuja morte precoce, em estado de graça, quando enfrentava os inimigos da Igreja, espelhava a do próprio santo patrono da cidade.39 39 Para uma análise detalhada sobre papel do culto público a São Sebastião no Rio de Janeiro colonial, ver Cardoso (2019).

Nesses termos, torna-se bastante plausível ver a remoção do marco de mármore para junto da Igreja de São Sebastião como parte importante da estratégica sobreposição da comemoração do martírio dos conquistadores ao culto ao padroeiro da cidade. Se teria sido esse um ato deliberado de forjamento de uma falsa evidência ou o resultado de uma atribuição errônea sobre o significado do marco, é algo que dificilmente será esclarecido um dia. O seu sentido, no entanto, parece agora bastante claro: servir como “memória da antiguidade” de uma classe senhorial cujo prestígio social e poder político estavam baseados na sua condição de descendentes dos primeiros conquistadores. Curiosamente, a tradição oral recolhida por Joaquim Manuel de Macedo, segundo a qual o padrão de mármore demarcava o túmulo de um soldado morto em 1567, pode então ser vista como um sinal da força da ideia do martírio guerreiro para a legitimação social das primeiras elites cariocas.

Poderia a mesma dinâmica explicar o caso do marco de Porto Seguro? Há alguns indícios a sugerir que sim. Em primeiro lugar, havia a tradição, referida pelo major Aragão, que atribuía a origem do marco a Pero de Campos Tourinho, o primeiro donatário de Porto Seguro (Aragão 1899:54). Além disso, a passagem da condição de capitania particular para a de capitania real certamente acarretou transformações sociais e necessidade de acomodamento de novos atores, como funcionários reinóis e militares (Ver Cancela 2012CANCELA, Francisco E. T. (2012), De projeto a processo colonial: índios, colonos e autoridades régias na colonização reformista da antiga capitania de Porto Seguro (1763-1808). Salvador: Tese de doutorado em História, UFBA. ) Em tal contexto de mudança, a mesma necessidade de validação social também pode ter despertado o interesse de membros da elite local pelo velho padrão de lioz.

Por fim, é possível concluir que o sentido essencialmente retrospectivo que o verbo “fundar” comportava nos primeiros relatos e descrições sobre o Rio de Janeiro (Knauss 2015KNAUSS, Paulo. (2015), “A França Antarctica e a conquista do Rio de Janeiro: história e memória.” In: P. R. Pereira (org.). 450 anos da cidade do Rio de Janeiro, Revista da Academia Carioca de Letras, edição comemorativa. Rio de Janeiro: Batel: 251-259. :256-257) continuava presente nas estratégias de legitimação social das nobrezas da terra, tanto no Rio de Janeiro, como em Porto Seguro.40 40 Conforme notado por Knauss, o verbo “fundar” era utilizado apenas em contextos recordativos, nos quais os feitos passados eram evocados fosse pelos testemunhos dos que os presenciaram ou pela representação feita por aqueles que os conheceram ou consultaram fontes tidas como fidedignas. Afinal, a transformação de um antigo padrão de posse em um monumento fundacional como meio de consolidar o protagonismo de linhagens familiares pela perpetuação da memória dos feitos de seus antepassados, acabava por atrelar o surgimento das municipalidades ao delas, “fundando” ambas no processo.

Considerações finais

O aspecto mais contraditório da história do marco carioca, certamente, está no fato de que o objeto que materializava a fundação da cidade foi sempre desconsiderado em sua própria materialidade. Ou melhor, a sua monumentalização como símbolo do nascimento da cidade, capital de um Império, passou obrigatoriamente pela sua estetização como ícone da cidade, lhe convertendo em artefato quase sacralizado, e, portanto, retirado e avesso aos exames críticos e análises comparativas que poderiam ter esclarecido a sua origem.

Efeitos notáveis da estetização do antigo padrão são visíveis ainda hoje. O Museu Histórico da Cidade, após a renovação ocorrida em fins da década de 1990, passou a expor o gradil de ferro que resguardava o marco enquanto ele ainda estava chantado junto ao cunhal da Igreja de São Sebastião. Construído entre o fim do séc. XIX e o início do séc. XX, trata-se de objeto dos mais interessantes, já que a inscrição “MARCO DO RIO”, fixada ao seu corpo em letras douradas, testemunha a sua consagração como relíquia histórica - além de ser, possivelmente, primeiro e mais antigo suporte expositivo da cidade. Contudo, a opção expográfica de adicionar uma réplica do marco em gesso, pintada com o mesmo tom bege do lioz português, acabou por ofuscar o gradil ao invés de valorizar o seu papel no processo de conversão do padrão em relíquia histórica (Fig. 8).

Figura 8:
O gradil histórico com a inscrição “Marco do Rio” e a réplica em gesso. Acervo do Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro.

Há que lembrar, para mais, que essa não foi a primeira vez em que uma réplica do marco foi encomendada pelo poder público, visto que, em 1973, outra cópia fiel fora disposta no interior do recém-construído Monumento a Estácio de Sá, no Aterro do Flamengo. Estabelecia-se, assim, uma contradição bastante elucidativa a respeito do seu valor expositivo em contextos museais: enquanto o marco original estava cada vez mais alheado da vida urbana carioca, as suas duplicatas continuavam a dar sustentação às narrativas fundacionais em museus e monumentos públicos. O “culto da tradição” que recobriu o marco de mármore se revela, assim, mais como uma estratégia de encobrimento do que um modo de conhecer o passado.

Nas últimas décadas, contudo, os estudiosos da cultura material têm procurado estabelecer uma distinção entre história e patrimônio, desincumbindo este de uma postura subsidiária aos ideais de verdade histórica e autenticidade (Poulot 2008POULOT, Dominique. (2008), “Um ecossistema do patrimônio.” In C. Carvalho et al. (org.) Um olhar contemporâneo sobre a preservação do patrimônio cultural material. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional . :32). Desde então, muitos objetos e artefatos puderam ter suas “vidas sociais” reconsideradas para além da “retórica das relíquias”, ou seja, sob uma ótica que não atribui ao objeto histórico um valor imanente por seu vínculo a personagens históricos ou eventos memoráveis (Menezes 2013MENEZES, Ulpiano B. de. (2013), “A exposição museológica e o conhecimento histórico”. In B Figueiredo & D. Vidal (org.). Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte: Fino Traço. :25).

Nesse sentido, os dois marcos aqui em consideração se encontram em situações diametralmente opostas. Em Porto Seguro, o velho padrão é referido como o Marco do Descobrimento e, envolvido por uma caixa de vidro no centro do largo da Matriz, ocupa lugar de destaque na efetivação do circuito expositivo do Museu Aberto do Descobrimento. Ainda que uma eventual placa explicativa atribua uma datação mais tardia ou mencione a Coroa Vermelha como o local do desembarque cabralino, todo o contexto expositivo reforça a sua validação como objeto-fetiche da descoberta do Brasil. Já no caso do Rio de Janeiro, o marco original está ainda vinculado ao culto religioso do padroeiro da cidade, enquanto réplicas são expostas em museus e monumentos públicos - sem contar o simulacro erguido junto ao morro Cara de Cão.

A inusitada situação oferece uma ótima oportunidade para a desfetichização do marco carioca enquanto relíquia histórica, uma vez que dispõe diante dos observadores uma oportunidade de compreender o processo de transformação dos seus usos e funções ao longo de mais de dois séculos (Menezes 2013MENEZES, Ulpiano B. de. (2013), “A exposição museológica e o conhecimento histórico”. In B Figueiredo & D. Vidal (org.). Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte: Fino Traço. :36). Em suma, enquanto o padrão de Porto Seguro, ao procurar representar a fundação da nacionalidade, consagra tardiamente uma concepção teleológica da história, o marco do Rio de Janeiro deslinda aos olhos dos interessados todo o processo de construção dos mitos de fundação da cidade.

Desse modo, cumpre apontar a pertinência da continuidade do marco sob a guarda dos franciscanos capuchinhos, já que a sua remoção para o monumento do Aterro do Flamengo representaria a revalidação de sua condição de relíquia histórica. Nem a sua transferência para um contexto propriamente museológico - em que pese a inovação marcante dos novos projetos expográficos - poderia oferecer lição tão prática sobre a condição do velho padrão como constructo ideológico do que deixá-lo permanecer no templo dedicado ao padroeiro da cidade.

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  • A Imprensa, 21 jan. 1910.
  • A Imprensa , 16 out. 1910.
  • Renascença , nº 46, jun. 1905.
  • 1
    Tendência comum a quase todos os românticos europeus, a melancolia das ruínas corporificava a perda de sentido e o isolamento do indivíduo ante a dissolução da antiga ordem. Foi traço marcante nas obras dos principais artistas e literatos do continente, desde Goethe e Caspar Friederich, na Alemanha, até Giacomo Leopardi, na Itália, passando pela Inglaterra de Byron, Shelley e Robert Adam. Em conformidade com a francofilia dos letrados brasileiros, foram autores franceses como Chateaubriand (1956CHATEAUBRIAND, François-René. (1956), O gênio do cristianismo. Rio de Janeiro: Jackson, 2 vs. ) e Volney (1938VOLNEY, Constantin F. de. C. (1938) [1791], As ruínas de Palmira: meditação acerca da destruição dos impérios. Lisboa: Livraria Renascença. ) que mais contribuíram para a difusão do imaginário romântico das ruínas no país.
  • 2
    Sobre o historicismo como filosofia da História, ver Reis (2006REIS, José Carlos. (2006), História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV. :207 e ss.).
  • 3
    Aqui, Michelet fazia referência ao Evangelho de Lucas (4:3-4).
  • 4
    Em todos esses países, o olhar retrospectivo com base nas identidades nacionais deu ensejo às imagens míticas sobre as origens pré-históricas das nacionalidades que, de maneira análoga, encontraram em artefatos e sítios arqueológicos rupestres o mais conveniente suporte: os dolmens e menires bretões, os castros ibéricos e os discos espiralados célticos e estelas dos pictos.
  • 5
    Salmo 95:1
  • 6
    Um estudo de caso interessante acerca do tipo de objetos valorizados por essas iniciativas pode ser conferido no estudo de Libardo Paredes sobre os dois estandartes atribuídos ao conquistador Francisco Pizarro existentes no Museu Nacional de Bogotá e na sede do Conselho Municipal de Caracas. Ver (Paredes 2021PAREDES, Libardo S. (2021), “Simbolos nacionales em cambio: el caso del estandarte real de Francisco Pizarro”. Fronteras De La Historia, vol. 26, nº(1: 12-36. ).
  • 7
    O marco está afastado do olhar público desde 1930, quando foi removido do hall de entrada da sede do Instituto e passou a frontear a mesa de trabalho do salão nobre. A remoção foi uma sugestão de Afonso Taunay ao ser empossado como sócio efetivo. Cumpre notar que, três anos antes, Taunay recebera um dos tenentes que apoiavam o mesmo marco como doação ao Museu do Ipiranga e, de maneira similar, o reduziu a um emblema de sua monumental apologia ao bandeirismo paulista, construída ao redor da escadaria monumental do Museu (Brefe 2003:251-258).
  • 8
    Os marcos de pedra não correspondem aos marcos instalados quando da criação da vila, datando de meados do séc. XVIII. Em 1947, três deles foram identificados por Sylvio de Vasconcellos, diretor do SPHAN, em Minas Gerais, tendo ele doado um ao Museu da Inconfidência e outro à prefeitura municipal, que o manteve em seu poder até 2005, quando também foi cedido ao Museu. Desconheço o paradeiro do terceiro marco. Agradeço à Janine Ojeda, do Museu da Inconfidência, pelas informações.
  • 9
    A refutação da atribuição original deveu-se ao historiador santista José da Costa Sobrinho, que, em ampla pesquisa nos arquivos cartoriais santistas, encontrou os autos de um processo acerca de disputa de terras na mesma área onde o marco foi encontrado que traz a descrição dos marcos ali colocados na ocasião. (Sobrinho 1957:132).
  • 10
    Este processo foi muito bem demonstrado no estudo de Hélder Viana sobre a cidade de Natal (Viana 2019:7 e ss).
  • 11
    Embora utilize o termo “monumentos” para se referir às antigas edificações do Morro do Castelo, Antônio Duarte Nunes não faz qualquer menção a um marco fundacional da cidade (Nunes 1799NUNES, Antônio Duarte. (1799), Almanach Histórico para a cidade de S. Sebastiam do Rio de Janeiro para o anno de 1799. Manuscrito, Biblioteca Nacional Digital. Disponível em Disponível em http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=62324 . Acesso em julho de 2022.
    http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/ind...
    :26). Tampouco o fazem outros antigos memorialistas cariocas, como monsenhor Pizarro e Araújo (1820ARAÚJO, José de S. A. Pizarro e. (1820), Memórias históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: imprensa Régia, 9 vs. ) e Balthazar da Silva Lisboa (1834LISBOA, Balthazar da S. (1834), Annaes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Seignot-Planchet, 7 vs. ).
  • 12
    O manuscrito foi escrito ainda em 1710 e pertence ao acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Embora nunca tenha sido publicado, é possível inferir que serviu de fundamento para estudos importantes sobre a cidade como o de Antônio Duarte Nunes e, provavelmente, o do Padre Perereca.
  • 13
    A data permite estipular que Meirelles tenha feito o croqui em um estudo inicial para o seu panorama da cidade (Cf. COELHO, 2007COELHO, Márcio C. (2007), Os panoramas perdidos de Victor Meirelles: aventuras de um pintor acadêmico nos caminhos da modernidade. Florianópolis: Tese de doutorado em História, UFSC. , p. 87) e que sua entrada na Biblioteca Nacional tenha se dado pelo interesse de Alfredo do Vale Cabral em epigrafia. Além disso, é provável que Vale Cabral já estivesse coligindo material para o seu extenso Guia do Viajante no Rio de Janeiro (1882), em que faz menção ao marco.
  • 14
    Essa postura ganhava força nos anos finais do Império, fundamentada não apenas no papel histórico do catolicismo como também na defesa da catequese como a via mais promissora para a incorporação dos indígenas à sociedade brasileira. Para uma interpretação diferente sobre o mesmo aspecto da tela, ver Moreira (2016MOREIRA, Giovana L. (2016), A construção da história nacional pelo pintor Antônio Firmino Monteiro entre 1879 e 1884. Juiz de Fora: Dissertação de mestrado em História, UFJF. :85-87). Na imagem utilizada, optei pela gravura feita a partir da tela do que por ela em si, devido ao forte escurecimento da superfície na área em foco. A tela original está exposta no Palácio Pedro Ernesto, sede da Câmara Municipal.
  • 15
    Para uma apreciação desses “longos e cansativos debates”, ver Abreu (2002ABREU, Mauricio de A. (2002) “O Rio de Janeiro quinhentista: debates e armadilhas” Rio Urbano (Revista da Região Metropolitana do Rio de Janeiro). Rio de Janeiro, vol. 1, nº 1: 42-51. ). Uma circunstância importante no caso da historiografia urbana do Rio de Janeiro foi a contenda fundiária entre poder público municipal e donos de terrenos particulares na área central da cidade. Apesar de antiga, a reorganização municipal sob o ditame federalista deu força à disputa, que passou a pender de modo favorável para a municipalidade após 1893, quando foi apresentada a tese do jurisconsulto Carlos de Carvalho, então ministro do Exterior do governo de Deodoro da Fonseca. Valendo-se pioneiramente da crítica documental positivista, Carvalho conseguira desmontar os argumentos defendidos por Alexandre J. Mello Moraes - conhecido historiador da segunda metade do século XIX e autor de estudos que legitimavam a causa dos proprietários particulares. Ver Carvalho (1893CARVALHO, Carlos A. de (1893), O patrimônio territorial da municipalidade do Rio de Janeiro e o direito enfitêutico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. ); Mello Moraes (1881MELLO MORAES, Alexandre J. (1881), O patrimônio territorial da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ. Camões. ).
  • 16
    Para a história deste estudo e da polêmica dele decorrente, ver Santos (2018SANTOS, Maria F. dos. (2018), Felisbelo Freire, o IHGB e a polêmica em torno da obra História da cidade do Rio de Janeiro (1901) . São Critóvão: Dissertação de mestrado em História, UFS. ).
  • 17
    Sintomaticamente, foi também entre os sócios do IHGB que a legitimidade das reinvindicações municipais sobre os terrenos da cidade foi mais questionada. Ver Fazenda (1920FAZENDA, José Vieira. (1921), “Antiqualhas e memórias”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 140, 1ª parte. :159-218).
  • 18
    Ver Decreto nº 229 - 10 de março de 1896. Collecção das Leis Municipaes e Vetos de 1895-1896, vol. II, 1897: 136.
  • 19
    Em outra coluna, o historiador chegou a sugerir que a prefeitura resgatasse as procissões marítimas que comemoravam as batalhas de 1567 até o século XVII sob a forma de torneiros de regatas.
  • 20
    Cf. A IMPRENSA. (1910), “A festa da fundação da cidade”, A Imprensa, 16 out. 1910A Imprensa , 16 out. 1910.: 2.
  • 21
    Discurso transcrito no jornal A Imprensa, 21 janº 1910A Imprensa, 21 jan. 1910.: 2. Foi posteriormente incluído no livro Palestras da tarde, publicado pelo escritor no ano seguinte. Ver Coelho Netto (1911COELHO NETTO, Henrique. (1911), Palestras da tarde. Rio de Janeiro: F. Briguiet. :123-124).
  • 22
    Para as disputas acerca do local de fundação da cidade, ver Abreu (2002ABREU, Mauricio de A. (2002) “O Rio de Janeiro quinhentista: debates e armadilhas” Rio Urbano (Revista da Região Metropolitana do Rio de Janeiro). Rio de Janeiro, vol. 1, nº 1: 42-51. :43).
  • 23
    Backheuser publicou uma das primeiras plantas reconstitutivas do sítio urbano carioca em meados do séc. XVI (Ver Backheuser 1918). Já Sanmartin, fotógrafo amador que publicara antes uma coletânea de livretos com fotos de antigas epigrafes e monumentos da cidade, recorreu ao uso de fotografias aéreas e mapas topográficos em cotejamento com a documentação histórica para construir seus argumentos (Ver Sanmartin 1928SANMARTIN, Bernardo. (1928), Testemunhos de inícios vários na ex-cidade de S. Sebastião, actual Capital Federal. Rio de Janeiro [s.nº], 1928-31, 3 vs.; 1934).
  • 24
    A tarefa, contudo, não se mostrou fácil, e os métodos discutíveis e hipóteses arbitrárias ou fantasiosas faziam sentir a ausência de indícios materiais mais sólidos, que restringissem o enfadonho enumerar das conjecturas - “até os indígenas nos têm legado algumas igaçabas”, escreveu em tom de desabafo um arrogante Adolfo Morales de los Rios (Rios 1915:1220).
  • 25
    Ver Motta (1992MOTTA, Marly S. (1992), A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: Ed. FGV / CPDOC. :54-65); Nonato & Santos (2000NONATO, José A. & SANTOS, Núbia M. (2000), Era uma vez o morro do Castelo: Rio de Janeiro: IPHAN. :206-231).
  • 26
    O marco como relíquia histórica da cidade também foi uma imagem cara aos opositores do arrasamento do morro. Em 1920, o ilustrador J. Carlos, um dos mais ferrenhos críticos da demolição, fez dele um dos atributos que permitiam identificar a representação antropomorfizada do morro do Castelo como um ancião barbado em uma famosa ilustração para a capa da revista Careta, nº 648.
  • 27
    Sobre a imagem de São Sebastião, ver Knauss (2019KNAUSS, Paulo. (2019), “A imagem de São Sebastião”. In KNAUSS, P., LENZI, I., MALTA, M. (org.) História do Rio de Janeiro em 45 objetos. Rio de Janeiro: Ed. FGV / Jauá: 14-21. :14-21).
  • 28
    Embora não tenha conseguido apurar a data em que o painel foi instalado, certamente, se trata de obra posterior às comemorações do IV Centenário, época em que o tímpano da fachada ainda não contava com qualquer figuração.
  • 29
    Sobre os ritos fundacionais das cidades e vilas coloniais, ver Andrade (2022ANDRADE, Francisco. (2022), “De símbolos da opressão a padrões de liberdade: a preservação de pelourinhos coloniais e o apagamento da memória da escravidão (sécs. XVI-XX)”. Revista de História, nº 181: 1-37. :3-5).
  • 30
    As medidas do marco carioca são 163 x 38 x 22 cm (medição do autor). Não consegui encontrar medidas detalhadas do marco de Porto Seguro. A documentação consultada junto ao Arquivo Central do IPHAN, contudo, permite perceber que ambos têm um porte semelhante, com possível discrepância somente quanto à altura do marco baiano, que pode ser um pouco maior do que o seu congênere.
  • 31
    Os marcos, possivelmente, estiveram ligados ao estabelecimento de feitorias para o comércio de pau-brasil, já que tanto Porto Seguro como a baía de Guanabara são regiões comumente apontadas como sedes desses entrepostos comerciais já nas primeiras décadas do séc. XVI. Ver Fernandes (2008FERNANDES, Fernando L. (2008), “A feitoria portuguesa do Rio de Janeiro”. História (São Paulo), vol. 27, nº 1:155-194. ) e Cancela (2012:60).
  • 32
    A atuação do órgão em Porto Seguro antecedeu em muito o seu tombamento, ocorrido apenas em 1968.
  • 33
    Tradução livre. O termo feldspato tem aqui caráter generalista, devendo ser tomado como referência a grande dureza e aos tons pálidos da rocha empregada como material.
  • 34
    A tradução brasileira traz a palavra “milésimo” ao invés de “cruz maltada”. Trata-se, seguramente, de uma tradução truncada, talvez originada em um erro tipográfico ou de transcrição. Como a cruz maltada é denominada em alemão como tatzenkreuz algo semelhante a tausendstel (“milésimo”), pode ter sido essa a origem da confusão.
  • 35
    A extravagante afirmação surpreendeu o próprio tradutor Joaquim de Sousa Leão Filho que, em nota, considerou este como “o maior erro cometido pelo autor, em geral fidedigno e seguro em suas informações” (Ebel 1972:123, nota)
  • 36
    Ainda que o inglês não forneça qualquer detalhe sobre as características dessa cruz, há alguns indícios que autoriza a hipótese do emblema da cruz de Cristo ter sido tomado como a própria cruz cabralina. Como as primeiras descrições da viagem de Cabral tenderam a truncar o teor da carta de Caminha, encontram-se menções ao erguimento de uma “cruz de pedra como padrão” (Castanheda 1552CASTANHEDA, Fernão L. (1552), História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses. Coimbra [s.n.], vol. 1. :64) ou de um “padrão de pedra com uma cruz” (Góis 1926GÓIS, Damião de. (1926), Crônica do felicíssimo rei D. Manuel. Coimbra: Imp. da Universidade, 1926, volume 1. :118). Há notícias mais bem circunstanciadas de cruzeiros propriamente ditos, feitos em madeira, que disputavam a mesma fama (Costa 1900COSTA, Candido. (1900), As duas Américas: em homenagem ao quarto centenário da descoberta do Brasil. Lisboa: Castello Branco e Alabern. :322-324).
  • 37
    Sobre Porto Seguro, há o registro, feito pelo Major Aragão, de que o marco anteriormente estava chantado ao centro do largo defronte à igreja, tendo sido removido de lá para evitar o choque com de carros de bois e cargueiros (Aragão 1899ARAGÃO, Salvador P. de C. (1899), Estudos sobre a Bahia Cabrália e Vera-Cruz. Salvador: Typ. De Reis e C.. :53).
  • 38
    Nos anos seguintes à decisão, a Câmara da cidade se opôs aos que defendiam a construção de uma nova Sé, procurando angariar recursos para a reforma do velho templo (Cardoso 2019CARDOSO, Vinícius M. (2019), Cidade de São Sebastião: poderes locais e o santo padroeiro do Rio de Janeiro, 1680 - 1760. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio/Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. :236 e 253).
  • 39
    Para uma análise detalhada sobre papel do culto público a São Sebastião no Rio de Janeiro colonial, ver Cardoso (2019CARDOSO, Vinícius M. (2019), Cidade de São Sebastião: poderes locais e o santo padroeiro do Rio de Janeiro, 1680 - 1760. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio/Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. ).
  • 40
    Conforme notado por Knauss, o verbo “fundar” era utilizado apenas em contextos recordativos, nos quais os feitos passados eram evocados fosse pelos testemunhos dos que os presenciaram ou pela representação feita por aqueles que os conheceram ou consultaram fontes tidas como fidedignas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2023
  • Aceito
    27 Nov 2023
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