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“Ela lá está abençoando esta diocese amada que pusemos sob sua guarda”: práticas culturais em torno do monumento mariano no Morro da Conceição na cidade do Recife (1904-1953)

“She is there blessing this beloved diocese that we have placed under her guardianship”: cultural practices around the Marian monument on Morro da Conceição in the city of Recife (1904-1953)

Resumos

O artigo analisa a formação e o desenvolvimento da Festa do Morro da Conceição, na cidade do Recife, durante a primeira metade do século XX. Em 1904 a Diocese de Olinda instalou um monumento em comemoração aos 50 anos do dogma da Imaculada Conceição, em um dos pontos mais visíveis da região, como parte do projeto de recatolização no Brasil. Inseridos nos debates da História Cultural, analisamos documentos eclesiásticos e periódicos, com o objetivo de compreender como a devoção foi construída, desenvolvida e consolidada em torno do lugar. Com isso, observamos que a hierarquia católica articulou a construção de um culto e a monumentalidade para fins sócio-políticos, alinhado aos projetos de evangelização e ocupação de espaços sociais pelos fiéis.

Palavras-chave:
Igreja Católica; Nossa Senhora da Conceição; Restauração Católica; Devoção Religiosa


The article analyzes the formation and development of the Morro da Conceição festival, in the city of Recife, during the first half of the 20th century. In 1904, the Diocese of Olinda installed a monument in celebration of the 50th anniversary of the dogma of the Imaculada Conceição, in one of the most visible points of the region, as part of the re-Catholicization project in Brazil. The article is inserted in the debates of Cultural History, we analyze ecclesiastical documents and periodicals, with the aim of understanding how devotion was built, developed and consolidated around the place. With this, we observe that the Catholic hierarchy articulated the construction of a cult and monumentality for socio-political purposes, aligned with evangelization projects and occupation of social spaces by the believers.

Keywords:
Catholic Church; Our Lady of Conception; Catholic Restoration; Religious Devotion


Introdução

A partir de 1904, o dia 8 de dezembro se tornou um dos mais importantes do calendário católico da Diocese de Olinda1 1 A Diocese de Olinda foi criada em 1676, pelo Papa Inocêncio XI (1611-1689). Em 5 de dezembro de 1910, a Sacra Congregationis Consistorialis, por ordem do Papa Pio X (1835-1914), a elevou à condição de Arquidiocese e Sede Metropolitana. O mesmo decreto criou a Diocese de Floresta, tornando esta e as Dioceses de Natal, Paraíba e Fortaleza sufragâneas da Sé de Olinda. No ano de 1918, por meio da Bula Cum Urbs Recife, do Papa Bento XV (1854-1922), a região eclesiástica passou a ser denominada Arquidiocese de Olinda e Recife (Sacra Congregationis Consistorialis 1910:945). e do estado de Pernambuco. Na data foi erigido um monumento mariano em homenagem aos 50 anos de proclamação do Dogma da Imaculada Conceição de Maria em um dos morros mais elevados da capital pernambucana, inserindo na paisagem um símbolo do que constituía uma das principais diferenças entre o catolicismo e as demais religiões cristãs: o culto a Maria. O momento também marcou o início das atividades de uma das mais importantes festas católicas do estado. Ainda que parte dos documentos religiosos e imprensa do período tenha destacado que a empreitada tinha um objetivo estritamente religioso, buscamos investigar as questões sociopolíticas que influenciaram e estimularam o empreendimento e desenvolvimento da Festa do Morro.

É importante enfatizar o cenário político e religioso no qual a Diocese de Olinda estava inserida para desenvolver os seus projetos no início do Novecentos. O contexto nacional influenciava diretamente o plano local, uma vez que antes mesmo da Constituição de 1891, o Decreto 119-A não só separou formalmente a Igreja do Estado, como também colocou as demais religiões cristãs em igualdade com o catolicismo, o que foi alvo de fortes críticas dos eclesiásticos. No entanto, a separação formal não ocasionou um rompimento efetivo, pois não encerrou a relação entre personagens da religião e outros da política, uma vez que essas esferas se estruturavam mutuamente, desde o período colonial, fortalecendo-se durante o Império.

Um dos principais problemas advindos do processo de secularização para a organização da Igreja Católica foi a livre concorrência no “mercado das almas” (Bourdieu 2015BOURDIEU, Pierre. (2015), Economias das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.:58). Ainda que tivesse maioria numérica, articular-se para ocupar espaços e demarcar terrenos era uma necessidade imediata no processo de reorganização eclesiástica realizado desde a separação do Trono e do Altar até meados do século XX. Em Pernambuco, no início dos anos 1900, havia duas vertentes religiosas que preocupavam a Mitra de Olinda, o espiritismo e, principalmente, o protestantismo. O receio causado por esta última era tão significativo que em 1902, no I Congresso Católico de Pernambuco, foi criada a Liga de Combate ao Protestantismo, com o objetivo de planejar e executar ações de propaganda e evangelização contra as outras religiões.

Outro ponto que merece destaque é a expressiva devoção a Nossa Senhora da Conceição que existia no estado de Pernambuco. Vários templos eram dedicados ao culto, além de altares onde ela não era a padroeira principal, sendo raro, na capital, uma igreja onde não houvesse uma imagem da santa. Entre as celebrações marianas, os recifenses nutriam especial carinho pelo culto à Imaculada Conceição (Cabral 2011CABRAL, Flávio José Gomes. (2011), “Um só rebanho e um só pastor”. In: C. A. S. Moura et al (orgs.). Religião, cultura e política no Brasil: perspectivas históricas. Campinas: IFCH/Unicamp.:46). A ideia de erguer um monumento ligado a essa devoção, já tradicional naquele momento, estava ligada diretamente aos apelos feitos pela Cúria Romana para que nas dioceses de todo o mundo fossem planejadas comemorações para o quinquagésimo aniversário de definição dogmática da Imaculada Conceição, que havia sido anunciada por Pio IX (1792-1878) em 8 de dezembro de 1854.

O Papa Leão XII (1810-1903) havia constituído uma comissão de cardeais encarregados de incentivar estes festejos e, tendo ele falecido em 1903, coube a Pio X (1835-1914) fomentar as comemorações no ano de 1904 (Moura & Lopes Neto 2020MOURA, Carlos André Silva de & LOPES NETO, José Pedro. (2020). “A invenção de uma devoção: Nossa Senhora da Conceição e o Morro do Arrayal na cidade do Recife (1904)”. História e Cultura, vol. 9: 467-490.:22). Para isso, em 2 de fevereiro daquele ano, o pontífice publicou a encíclica Ad diem illum laetissimum; no mesmo dia era divulgado no Recife o desejo do bispo de Olinda, Dom Luiz Raymmundo da Silva Britto (1840-1915), de construir em um dos pontos mais altos e visíveis da cidade um monumento mariano. A ideia já havia sido defendida pelo bispo em Carta Pastoral publicada em 27 de novembro do ano anterior.

No documento destinado ao clero e aos fiéis da diocese, o prelado defendia a historicidade da devoção, apresentando sua trajetória até a proclamação dogmática, tecia críticas aos protestantes por proferirem discursos que considerava agressivos ao dogma católico e apresentava um programa a ser seguido no território diocesano para as comemorações do ano seguinte. O terceiro ponto do programa apresentava a intenção de “No dia 8 de Dezembro de 1904 fazer celebrar, com maior esplendor, a festa da Conceição, e sendo possível, erigir algum monumento que ateste este grande jubilo do Catolicismo” (Britto 1903BRITTO, Luiz Raymmundo da Silva. (1903), Carta Pastoral. Recife: Esc. Typ. Salesiana. :7). É importante observar a articulação feita por Dom Luiz Britto na Pastoral entre a exaltação do culto a Maria e a crítica incisiva ao protestantismo. O seu discurso evidenciava a intenção de usar os festejos para além das comemorações, dando-lhes outras conotações, com temas políticos e sociais que eram importantes para sua diocese naquele período.

Neste artigo, apresentamos uma análise sobre a concepção do monumento, sua construção e o seu papel na sacralização do espaço onde foi instalado. Também investigamos o desenvolvimento da Festa do Morro ao longo da primeira década do século XX, suas mudanças e reconfigurações ocorridas a cada mês de dezembro, tendo elas sempre a imagem da representação da Virgem Maria como seu ponto principal. Na primeira parte do texto, destacamos as questões políticas que foram relacionadas à construção do monumento, abordando os discursos de intelectuais e políticos, bem como a sacralização do espaço e a monumentalização da fé. No segundo instante, apontamos como as táticas e as devoções dos fiéis moldaram a festa, propondo uma análise para além da dicotomia sagrado e profano.

O monumento da Imaculada Conceição

O desejo de Dom Luiz Britto foi publicado em periódicos de relevante circulação na capital pernambucana. A Provincia (1904a:1) e o Jornal do Recife (1904a:2) noticiavam que o prelado de Olinda manifestou a ideia de erigir uma grande estátua de Maria, com a invocação da Imaculada Conceição, que ficasse posicionada de modo a dominar a cidade e ser vista de várias partes. A Sociedade de São Vicente de Paulo foi encarregada do projeto. A comissão foi subdividida para que cuidassem de objetivos específicos: 1) solicitar o auxílio da imprensa no intuito de fazer conhecer e popularizar a ideia do monumento; 2) escolher um local conveniente, preferencialmente visível das diferentes partes da cidade, e determinar a forma do monumento, e 3) pedir auxílio dos sodalícios religiosos, particularmente das Pias Uniões das Filhas de Maria. O presidente da comissão ficou responsável por receber os donativos para efetivar o projeto (A Provincia 1904a:1; Jornal do Recife 1904a:2). As subcomissões demonstraram que havia um interesse de que o empreendimento fosse popularizado, tanto entre os leigos como entre os clérigos, também com objetivos de caráter financeiro.

A definição das tarefas delegadas à segunda subcomissão evidenciava que “a dominação geográfica da cidade era condição sine qua non para os fiéis e religiosos que encabeçavam o projeto” (Lopes Neto 2021LOPES NETO, José Pedro. . (2021) “De modo a dominar bem a cidade: o monumento mariano no Morro da Conceição”. Mosaico, vol. 14: 51-64.:55). Torna-se, então, imprescindível problematizar essa necessidade de dominação visual e de inserção na paisagem, considerando as finalidades pedagógicas de esculturas religiosas e o poder de perpetuação dos monumentos.

Ao passo que a estatuária sacra atua com representações, que podem agir como “[...] objetos de conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através de sua substituição pode uma ‘imagem’ capaz de reconstruir em memória e de o figurar tal como ele é” (Chartier 2002aCHARTIER, Roger. (2002a), A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL.:20), transmitindo e disseminando conhecimento eclesiástico (Burke 2017BURKE, Peter. (2017), Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Editora Unesp. :79), os monumentos possuem poder de perpetuação. Nessa perspectiva, materializar ideais por meio de um monumento permite que recordações não fiquem restritas à imaginação, mas que ocupem um lugar no espaço, para que o ato de recordar se configure em uma enunciação que dê sentido à vida dos grupos e dos indivíduos (Catroga 2015CATROGA, Fernando. (2015), Os passos do home como restolho do tempo. Memórias e fim do fim da História. Coimbra: Almedina.). Nessa perspectiva, defendemos que havia uma intenção de materializar a fé com fins catequéticos e políticos, por meio da demarcação do espaço e inserção na paisagem.

A divulgação do formato do monumento e do local onde seria instalado foram feitas em momentos distintos. A primeira foi apresentada no final do mês de junho de 1904, quando ainda não havia definição do local. Segundo a comissão, as proporções seriam modestas, mas representariam uma manifestação de piedade filial dos católicos para com Maria. A comissão também apresentou uma descrição do que seria erigido. O Jornal do Recife destacou:

Sobre um socó de alvenaria e cantaria de granito se eleva uma bela imagem da Virgem de 3 e meio metros de altura, de ferro burilado feita na casa Raffil que é uma das mais importantes de Pariz, na especialidade. Abriga a imagem uma pequena capela de ferro fundido. O soco tem 3 metros de altura sobre 4 de largura; haverá acesso para o pequeno recinto fechado por uma grade de ferro por pequena escada de ferro, colocada e oculta no fundo. Em tal recinto há espaço, porém, para a colocação de um altar, onde se possa celebrar o sacrifício da missa. Ainda não está fixado definitivamente o local em que será erigido o monumento. Este deverá ser uma das eminências nos arredores do Recife, de forma a ficar a imagem da Virgem dominando a cidade (Jornal do Recife 1904b:1)

Para a construção da obra foi doado à Diocese de Olinda um terreno no Arraial, um arrabalde da cidade do Recife. As tratativas não se apresentam de maneira detalhada nas fontes. Lafayette Bandeira, no Almanach de Pernambuco, em 1905BANDEIRA, Lafayette (1905), “Monumento á Immaculada Conceição no Arrayal”. Almanach de Pernambuco, Recife. Disponível em: Disponível em: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=228443&pagfis=3098 . Acesso em 10/06/2019.
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, apontava que a doação havia sido feita pela família Marinho, delineando apenas as medidas do terreno, com proporções de 120 metros de comprimento por 60 metros de largura, além de registrar que “[...] para a construção da estrada cederam todos os seus membros, sem discrepância de um só, uma facha de terreno de 5 metros de largura em toda a extensão da estrada” (Almanach de Pernambuco 1905:194). A exposição do engenheiro civil demonstra que a oferta não se tratou de obra de uma única pessoa, mas sim de toda uma família. É possível inferir que era uma família de posses na região, uma vez que a estrada foi projetada e executada para contornar o morro pelo lado nascente, com curvas de pequeno raio, para permitir não apenas o acesso dos fiéis que iriam prestar culto, mas também para facilitar o transporte dos materiais de construção necessários à obra, pois, pelo relevo do local, traçar uma rota mais curta e íngreme poderia prejudicar o trânsito dos materiais e, no futuro, de pessoas e carroças.

O terreno doado à empreitada da Diocese de Olinda ficava no topo de um morro chamado de Morro da Boa Vista.2 2 A nomenclatura da região é diversa das fontes, mas Morro da Boa Vista é predominante, sendo tratado também como monte ou outeiro. Há registros de Morro da Bela Vista, Morro da Boa Vista no Arraial, Morro do Arraial. O Almanach de Pernambuco dedicou uma seção ao Monumento da Conceição, redigida integralmente pelo engenheiro Lafayette Bandeira. Ele apresentou sua participação no projeto, dando detalhes do planejamento e execução das obras, relatando que o nivelamento da estrada foi feito tomando como referência a estação das oficinas da Great Western,3 3 A Great Western of Brazil Railway Company Limited era a companhia que administrava algumas das mais importantes estradas de ferro do estado de Pernambuco. afirmando que “[...] 70m,50 é a altura do alto do monte acima do nível médio do mar.” (Bandeira 1905:194). O engenheiro ainda explicou que o planejamento do traçado se deu não apenas por questões de ordem econômica, como a proximidade com a estrada de ferro, o que facilitaria o trânsito de materiais, mas também de ordem estética, pois

[...] à proporção que se avança pela estrada, subindo, vai-se pouco a pouco e como obedecendo a calculado mecanismo de um cinetoscópio, descortinando o mar, a cidade, as torres de suas igrejas, as chaminés de suas fabricas e enfim os seus arrabaldes, envolvidos por uma densa facha intérmina de arvores apresentando verdes de todos os tons e matizes. E fora desta facha estende-se a imensa várzea que, partindo daí, prolonga-se de um lado até Caxangá, cujas barreiras de divisam, e do outro até encontrar a serra dos Guararapes no cimo do qual alveja a igreja dos Prazeres. É um espetáculo belíssimo - num raio de três quartos de um círculo divisa-se Olinda, o mar e a cidade, Várzea, Caxangá, Apipucos, Dois Irmãos com o seu reservatório de água e Camaragibe de que se avistam as casas da Vila Operária. Não podia ser melhor a escolha deste local para a colocação do Monumento à Imaculada Conceição [...] (Bandeira 1905BANDEIRA, Lafayette (1905), “Monumento á Immaculada Conceição no Arrayal”. Almanach de Pernambuco, Recife. Disponível em: Disponível em: https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=228443&pagfis=3098 . Acesso em 10/06/2019.
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:195).

A descrição da localidade feita por Bandeira é corroborada pelo historiador Francisco Augusto Pereira da Costa que, ao descrever a povoação do Arraial, ressalta o Morro da Conceição, “[...] cujas eminências se goza dos mais belos panoramas. O Recife e Olinda, com a vista do mar; rumando o Sul, os montes Guararapes [...]” (1981COSTA, Francisco Augusto Pereira da. (1981), Arredores do Recife. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife. :32). O cenário descrito pelos autores ilustra a localização privilegiada, que mais que “dominar” a capital pernambucana, permitia boa visibilidade das cidades vizinhas. A paisagem que se poderia vislumbrar junto ao monumento a ser instalado também tornaria o local atrativo para visitas, tanto de fiéis quanto de outros visitantes.

Quanto ao monumento, as informações apresentadas por Lafayette Bandeira foram mais detalhadas do que as publicadas pela comissão em fins de junho de 1904. Foi informado que a composição seria feita de duas partes, o pedestal e o nicho. A primeira composta por uma base de cantaria de aparelho de gneiss-granito, de um socó de alvenaria de pedra tosca e de uma cornija também de aparelho, como a da base, ambos provenientes do Rio de Janeiro. O nicho era composto de 4 colunas de ferro fundido, encimado por um zimbório com uma flecha em seu topo. A imagem foi colocada sobre uma peanha de cantaria, da mesma pedra da base e do pedestal, medindo 1,10 metro. A imagem media 3,50 metros de altura. Quando somadas as medidas do pedestal e do nicho, o monumento totalizava 12,6 metros (Bandeira 1905:197). Também foram instaladas 3 placas de bronze na base: a primeira em comemoração ao jubileu, a segunda para registrar o trabalho do presidente da comissão, Dr. Alfredo Silva, e a terceira para anotar o nome dos membros da comissão junto a uma homenagem a Carlos Alberto de Menezes, entusiasta da empreitada da Diocese, falecido antes da conclusão dos trabalhos (Lopes Neto 2021LOPES NETO, José Pedro. . (2021) “De modo a dominar bem a cidade: o monumento mariano no Morro da Conceição”. Mosaico, vol. 14: 51-64.:58). O custo das obras foi de 37 contos de réis, sendo que a imagem e o nicho custaram, respectivamente, 5 mil e 15 mil francos (Lopes Neto 2021LOPES NETO, José Pedro. . (2021) “De modo a dominar bem a cidade: o monumento mariano no Morro da Conceição”. Mosaico, vol. 14: 51-64.:58).

Antes da inauguração das obras foi realizado um trabalho de propaganda e catequização no Arraial, por meio de Santas Missões lideradas por dois frades capuchinhos, frei Gaudioso de Giuliano (1877-1922) e frei Angelico de Câmpora.4 4 Não foram encontradas informações sobre data de nascimento e morte de Frei Angélico de Câmpora no Necrológio da Província de Nossa Senhora da Penha do Nordeste do Brasil. Delegar essa tarefa à ordem religiosa não foi uma coincidência, uma vez que os capuchinhos tinham expertise nessas atividades, realizadas nos sertões e em locais onde a presença eclesiástica não era tão forte (Moura & Silva:2021MOURA, Carlos André Silva de & SILVA, Aerton Alexander de Carvalho. (2021). “Missões e devoções no “Nordeste” do Brasil: a atuação eclesiástica e a formação de uma taumaturgia em torno do Frei Damião de Bozzano (1930-1940)”. Topoi, vol. 22: 408-431.). As ações dos religiosos foram iniciadas em 23 de outubro de 1904 e a programação contava com missas diárias. Ao longo do dia os frades ficavam à disposição daqueles que desejassem solicitar algum sacramento, como o batismo e a confissão; à noite havia cânticos (Lopes Neto 2020LOPES NETO, José Pedro. (2020). “Queira a Virgem Imaculada abençoar nossa Diocese”: a invenção da devoção mariana no Morro da Conceição (1904-1925). Recife: Dissertação de Mestrado em História, UFRPE.:92).

A pedra fundamental do monumento foi instalada por Dom Luiz Britto no dia 26 daquele mês, em cerimônia revestida de solenidade, tendo sido a pedra carregada em um andor por senhoras trajando branco e acompanhada por fiéis, religiosos e banda de música (Moura & Lopes Neto 2020MOURA, Carlos André Silva de & LOPES NETO, José Pedro. (2020). “A invenção de uma devoção: Nossa Senhora da Conceição e o Morro do Arrayal na cidade do Recife (1904)”. História e Cultura, vol. 9: 467-490.:480-481). As missões foram realizadas até 5 de novembro, e entre os dias 4 e 5 houve 974 jovens e adultos crismados, tendo o número total dos sacramentos administrados em 120 batizados e 400 casamentos. É importante destacar a divergência entre a quantidade de pessoas batizadas registradas nos periódicos e no Livro de Batismos da Freguesia de Nossa Senhora da Saúde do Poço da Panela: enquanto o Jornal do Recife noticiava 50 batismos, o registro oficial contou 120 (Moura; Lopes Neto 2020MOURA, Carlos André Silva de & LOPES NETO, José Pedro. (2020). “A invenção de uma devoção: Nossa Senhora da Conceição e o Morro do Arrayal na cidade do Recife (1904)”. História e Cultura, vol. 9: 467-490.:480). Nesse sentido, o número dos outros sacramentos também poderia estar subnotificado. De uma forma ou de outra, a quantidade de ritos demonstra o sucesso das Santas Missões no Arraial.

Consideramos que esses exercícios religiosos foram fundamentais para aproximar a população local do projeto que estava sendo desenvolvido pela Diocese, como também intensificar a conexão de diferentes indivíduos com as ações da Igreja. A preocupação em manter religiosos disponíveis aos fiéis por algumas semanas e administrando sacramentos era de suma importância. Com o advento do registro civil, essa ação tornou-se fundamental para controlar nascimentos, casamentos e óbitos, por isso era tão importante convencer os fiéis a continuarem realizando as atividades orientadas pelo clero.

Um dos resultados das missões foi o processo de toponimização pelo qual passou o Morro da Boa Vista. Antes do dia 8 de dezembro de 1904 o monte já estava sendo chamado de Morro da Conceição. Ressaltamos que o nome não suprimiu os outros pelos quais era conhecido, tendo muitos deles continuado em uso até o terceiro quartel do século XX, mas em todo esse período predominou o que veio com as Missões: Morro da Conceição. Além desse processo, houve também uma iniciativa legislativa para oficializar a mudança. O Jornal Pequeno, em 8 de novembro, destacava que o Conselho Municipal da Cidade do Recife, no dia anterior, recebeu o projeto que dava “[...] ao morro em que se está construindo o monumento a denominação de Morro da Conceição e dá ao largo em que se realizaram as missões, ao pé do citado morro, a denominação de Praça do Bispo d. Luiz” (Jornal Pequeno 1904JORNAL PEQUENO. (1904), “O monumento do Arrayal” (1904)., Jornal Pequeno , Recife, 8 de nov. 1904: 2. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/7549 . Acesso em 11/06/2023.
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:2).

Em 13 de novembro, Dom Luiz Britto publicou outra Carta Pastoral para conclamar os fiéis, o clero e o cabido de sua Diocese para comparecer ao Morro nos dias 7 e 8 de dezembro. A organização do discurso do prelado no documento se assemelha ao realizado em 27 de novembro do ano anterior. Inicialmente refletiu sobre o dogma da Imaculada Conceição como uma perspectiva teológica, defendendo a figura de Maria e apontou como os grupos condenados pela Igreja Católica se relacionaram com a devoção. Para o religioso:

[...] o paganismo, embora submerso em seus erros, esperou a vinda dessa Virgem inexplicável; o maometismo materializado não apagou os traços dessa Estrela peregrina que anunciou a aurora da redenção; o positivismo inebriado nos vapores de sua doutrina, deturpou, mas não apagou a ideia anunciada pelo Anjo; só as seitas novas, cujos corações paralisaram-se com o gelo de sua descrença poderão esterilizar-se e não oferecer uma flor ao menos, embora fanada, para juncar o solo à passagem triunfante da Rainha dos Céus![...] (Britto 1904aBRITTO, Luiz Raymmundo da Silva. (1904a), “Pastoral”. Diario de Pernambuco, Recife, 26 nov. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/029033_08/5966 . Acesso em 25/02/2023.
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:2).

No documento se destaca a crítica incisiva ao protestantismo, que sequer é nomeado, mas é classificado como “seitas novas”. A escolha buscava diminuir as religiões protestantes ao classificá-las como seitas, não as colocando como cristãs. O discurso buscava salientar aquilo que mais distinguia o catolicismo das outras denominações: a devoção mariana. A carta se relacionou com o primeiro documento, complementando-o nas questões teológicas, doutrinárias e políticas, pois o combate ao protestantismo empreendido por membros da Diocese de Olinda, entre as últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, tratava-se, sobretudo, de uma questão política.

Com as pastorais, Dom Luiz Britto buscava ressaltar a Igreja Católica como detentora da salvação e obstruir o caminho das outras religiões que disputavam o “mercado das almas” (Bourdieu 2015BOURDIEU, Pierre. (2015), Economias das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.:58). A Pastoral de 13 de novembro apresentava o programa da inauguração do monumento. Nas palavras do Bispo, “Como o Profeta Rei, convidava a todos para louvarem o nome do Senhor [...] assim Irmãos e Filhos amados, vos convidamos a todos, jovens e virgens, velhos e meninos, para em um só espírito e expansão de coração, corrermos a este monte, que vai ser santificado [...]” (Britto 1904aBRITTO, Luiz Raymmundo da Silva. (1904a), “Pastoral”. Diario de Pernambuco, Recife, 26 nov. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/029033_08/5966 . Acesso em 25/02/2023.
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:2). A programação iniciou com uma vigília no dia 7 de dezembro, com pregação às 6 da tarde. Para o alvorecer do dia seguinte, estavam planejadas graças e dedicação da imagem da Virgem, seguida de missa campal e benção papal com indulgência plenária para aqueles que atendessem aos requisitos para recebê-la (Britto 1904aBRITTO, Luiz Raymmundo da Silva. (1904a), “Pastoral”. Diario de Pernambuco, Recife, 26 nov. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/029033_08/5966 . Acesso em 25/02/2023.
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:2).

A grande celebração que aconteceria no Arraial no dia 8 de dezembro inverteu a organização das grandes festas católicas celebradas na cidade do Recife até então, pois elas ocorriam nos bairros centrais, como Santo Antônio, São José e Boa Vista. Durante os dias 7 e 8 de dezembro, a expectativa pela participação de pessoas da capital, de cidades vizinhas e do interior era tamanha que as companhias que administravam o transporte ferroviário se organizaram previamente para buscar atender a demanda atípica de passageiros, com trens e viagens extras nos dias de festejos (Lopes Neto 2020LOPES NETO, José Pedro. (2020). “Queira a Virgem Imaculada abençoar nossa Diocese”: a invenção da devoção mariana no Morro da Conceição (1904-1925). Recife: Dissertação de Mestrado em História, UFRPE.:108). Além do reforço nos transportes, aumentou-se o efetivo da segurança, com o destacamento de 80 praças de infantaria e 20 de cavalaria para manter a ordem no local. No alto do Morro da Conceição foram instaladas bandeirinhas e montadas barracas para atender aos devotos.

Dom Luiz Britto subiu o morro às 6 da manhã, acompanhado de autoridades eclesiásticas, civis e membros da comissão encarregada de conduzir os trabalhos para a instalação do monumento. Estiveram presentes no cortejo o major Peregrino de Faria, representante do Governador de Estado, o acadêmico Raul de Moraes, representando o Prefeito da Cidade do Recife, o alferes Dr. Coelho Ramalho, como representante do general comandante do distrito, Monsenhor Oliveira Lopes, vigário Cavalcanti, Cônego Freitas, vigário Francisco Silva, fr. Gaudioso, vigário Velloso, Monsenhor Fabrício e Monsenhor Marcolino do Amaral, Vigário Geral da Diocese de Olinda. Acompanhavam o séquito as bandas do Colégio Salesiano, a Charanga do Recife e a Sociedade 15 de junho do Arraial (Lopes Neto 2020LOPES NETO, José Pedro. (2020). “Queira a Virgem Imaculada abençoar nossa Diocese”: a invenção da devoção mariana no Morro da Conceição (1904-1925). Recife: Dissertação de Mestrado em História, UFRPE.:109). Após chegarem ao topo, procederam à inauguração do monumento, que apresentava uma mulher com a cabeça coroada, as mãos unidas como se fizesse uma oração e o olhar voltado para baixo, encontrando aqueles que a contemplavam, tendo a cidade sob seus pés. Após a retirada do pano vermelho que envolvia a imagem, Dom Luiz Britto deu a benção e em seguida foi executado o Hino Nacional, seguido de vários fogos (Lopes Neto 2021LOPES NETO, José Pedro. . (2021) “De modo a dominar bem a cidade: o monumento mariano no Morro da Conceição”. Mosaico, vol. 14: 51-64.:59).

A presença de representantes de autoridades civis demonstra uma legitimação do evento por importantes setores de um Estado que se dizia laico. As bandas de música exerciam um papel voltado não apenas para o divertimento e embelezamento da festividade, mas também tinham a função de prolongar os festejos e fazer com que as pessoas permanecessem por mais tempo. As celebrações duraram até à noite, sendo finalizada com o canto do Te Deum Laudamus.

Figura 1:
O bispo de Olinda pregando depois da bênção da imagem da Virgem, no Morro da Conceição, no dia 8 de dezembro de 1904

Os periódicos dos dias que se seguiram à inauguração destacaram diversas informações sobre o novo espaço devocional, como a implementação da iluminação do monumento durante a noite, feita por 14 grandes lâmpadas de álcool e outras alimentadas por eletricidade. Se durante o dia a localização favorecia a visibilidade da imagem, à noite a iluminação se encarregava de chamar a atenção para ela. Outro ponto destacado foi o concurso de fotógrafos amadores e profissionais dedicado ao monumento, à cidade do Recife e aos seus arredores. Quanto ao número de pessoas que compareceram à inauguração, as estimativas giraram em torno de 20 a 30 mil participantes (Lopes Neto 2020LOPES NETO, José Pedro. (2020). “Queira a Virgem Imaculada abençoar nossa Diocese”: a invenção da devoção mariana no Morro da Conceição (1904-1925). Recife: Dissertação de Mestrado em História, UFRPE.:111-2). O quantitativo apresentado e a repercussão na imprensa demonstraram o êxito obtido pelo prelado de Olinda em sua empreitada. Para agradecer, o bispo lançou uma Carta Pastoral em 10 de dezembro, onde afirmou que “Ela lá está abençoando estes mares, estes bosques, estas cidades, esta diocese amada que pusemos sob sua guarda.” (Britto 1904bBRITTO, Luiz Raymmundo da Silva. (1904b), “Pastoral”. Diario de Pernambuco , Recife, 11 dez. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/029033_08/6014 . Acesso em 25/02/2023.
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:2). O seu discurso apontava que, a partir da inauguração, a Virgem dominava aquele lugar e seus arredores, passando uma mensagem de catolicidade para outros espaços. Corrobora esse raciocínio as reflexões de Lucia Grinberg, que afirma que a estatuária sacra é produzida habitualmente em escalas próprias para interiores; quando instaladas em ambientes exteriores, esses passam a ter relação ou proximidade com o sagrado. A inserção de uma estátua sacra na paisagem citadina tem o objetivo de atingir um público muito maior que os fiéis, destinando-se a todos os cidadãos (Grinberg 1999GRINBERG, Lucia. (1999), “República Católica, o monumento ao Cristo Redentor no Corcovado”. In: P. Knauss (org.). Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sette Letras. ). Era esse um dos objetivos da Diocese de Olinda, demonstrar que, mesmo existindo outras religiões que não reconhecessem Maria do mesmo modo que o catolicismo, e o Estado sendo laico, a cidade e seu povo eram católicos. Dom Luiz Britto descreveu de maneira pitoresca o cenário que visualizou no 8 de dezembro:

Não podemos descrever o efeito das vozes de um povo inteiro cantando - No céu, no céu, com minha Mãe estarei - nesse tempo imenso que tinha por teto o firmamento estrelado, por tapete os corações dos nossos amados filhos, por molduras as graciosas campinas, o mar entumecido da lua nova, Recife, a graciosa e incomparável princesa do oceano, e a nossa episcopal cidade de Olinda! No meio de toda esta cena sublime circundada da auréola luminosa, destacava-se a monumental imagem de Maria! [...] Queira a Virgem Imaculada abençoar esta nossa Diocese, e de modo particular a vós que tomaste parte saliente no tributo que lhe rendemos. (Britto 1904bBRITTO, Luiz Raymmundo da Silva. (1904b), “Pastoral”. Diario de Pernambuco , Recife, 11 dez. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/029033_08/6014 . Acesso em 25/02/2023.
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:2).

O documento não se resumiu a questões teológicas, saudosistas e proselitistas, mas apontava direções e objetivos políticos a serem adotados daquele momento em diante. Após exaltar as celebrações e agradecer aqueles que de algum modo contribuíram para o sucesso dos trabalhos, sobretudo os membros da comissão central, os responsáveis pelas linhas férreas que transportaram os fiéis e os tornaram o projeto possível através dos donativos, o bispo foi taxativo: “sabeis porém, amados filhos, que a religião não se contenta com a obra simples do culto; ela é como o foco de luz que, guardando calor em seu centro, irradia-se legando a claridade e o bem por toda a parte.” (Britto 1904bBRITTO, Luiz Raymmundo da Silva. (1904b), “Pastoral”. Diario de Pernambuco , Recife, 11 dez. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/029033_08/6014 . Acesso em 25/02/2023.
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:2). Continuava apontando o desejo de construir uma capela e duas escolas, uma para meninos e outra para meninas, com a finalidade de educar as crianças “[...] nas letras e nas virtudes” (Britto 1904bBRITTO, Luiz Raymmundo da Silva. (1904b), “Pastoral”. Diario de Pernambuco , Recife, 11 dez. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/029033_08/6014 . Acesso em 25/02/2023.
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:2). A capela foi erguida, como relataremos adiante, mas a ideia das escolas não se materializou.

Foi ressaltado anteriormente que essa celebração em um arrabalde invertia a lógica das grandes festas católicas do Recife do início do século XX. É importante destacar também outros pontos: embora a devoção a Nossa Senhora da Conceição fosse bastante difundida, podendo seu culto ser praticado em diversas igrejas da capital e do interior de Pernambuco, o Morro da Conceição passou a centralizar a devoção, tornando-se a celebração mais importante da região ao longo dos anos, com novas maneiras de vivenciar e experienciar a fé. Além disso, embora planejado como ponto catequético e espaço devocional, tornou-se um ponto cultural, algo maior que o planejado, pois as pessoas não acorriam até ali apenas para prestar culto, mas para observar o mar, as cidades vizinhas, para conhecer o monumento por curiosidade, sem intenções religiosas.

Antes de tratar do desenvolvimento da Festa do Morro da Conceição, é importante destacar o protagonismo dado ao monumento como centro de recepção de romarias. Muitas associações religiosas, freguesias e seus párocos, fiéis de várias partes, passaram a realizar peregrinações, muitas delas divulgadas pelos periódicos. As práticas devocionais começaram a ser realizadas após a inauguração e se fortaleceram com o passar do tempo. As romarias não ficavam restritas ao mês de dezembro, ao contrário, eram feitas ao longo de todo o ano. Em 3 de novembro de 1905 o Jornal do Recife noticiava a realização da romaria anual da Sociedade de São Vicente de Paulo, realizada em 1º de novembro. Os romeiros partiram às 6 da manhã da Encruzilhada de Belém em direção ao Arraial. Segundo o articulista do periódico, Dom Luiz Britto seguia à frente e o número de pessoas aumentava conforme se aproximavam do arrabalde. Ao chegar ao morro às 8 horas e 30 minutos, além da missa, o epíscopo abençoou a pedra fundamental da capela que seria erguida (Jornal do Recife 1905JORNAL DO RECIFE. (1905), “Romaria”. Jornal do Recife , Recife, 3 nov: 1. Disponível em Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/705110/48650 . Acesso em 12/06/2023.
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:1).

Na seção seguinte, analisaremos como a Festa do Morro se desenvolveu a partir da inserção de novos hábitos, costumes e as formas de devoção. Inspiramo-nos em Yi-Fu Tuan, para quem “experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele” (Tuan 1983TUAN, Yi-Fu. (1983), Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel.:10). Ressalta-se que a experiência está voltada para o mundo exterior e o papel que a visão tem no processo de experienciar (Tuan 1983TUAN, Yi-Fu. (1983), Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel.:11), com a construção de novas práticas devocionais. Neste sentido, observamos as estratégias das elites eclesiais para o controle da festa, suas táticas, e as artes de fazer dos fiéis e dos demais participantes, para além da dicotomia sagrado e profano.

“A festa do Morro, como é conhecida e chamada”

As atividades de 1904 foram apenas as primeiras de várias outras que aconteceriam nos anos seguintes, consolidando-se como uma das maiores festas religiosas do estado de Pernambuco. Antes de analisarmos as demais edições, precisa-se compreender que o primeiro evento, com a presença de autoridades e grande afluência de pessoas, possuía elementos que fugiam ao que se pode designar como estritamente religioso, como as bandas de músicas e barracas voltadas ao divertimento popular. Mesmo que a prática seja verificada desde o período imperial, alguns periódicos ofereceram mais atenção a outros aspectos das celebrações, apontando que a inauguração do monumento mariano não foi apenas uma atividade sacra.

Defendemos que a associação entre os divertimentos populares e a festa religiosa se desenvolveu de maneira conjunta, sem que ambas se antagonizassem. Nesse sentido, optamos por nomear as festas que ocorrem de maneira concomitante às celebrações sacras como festa de rua, distanciando-nos do termo profano, uma vez que uma não é antagônica à outra. Destaca-se que, muitas vezes, a maneira do fiel praticar a sua fé misturam as práticas, gerando uma relação entre os dois campos, pois a forma de praticar a fé foge ao controle da ortodoxia e da hierarquia católica.

As festas religiosas e de rua atuam na criação de sentidos de maneira mútua, com as atividades religiosas ocupando posição de destaque. Ao ditar um dogma, uma norma de fé, a hierarquia eclesiástica age como um urbanista ao planejar um espaço. Michel de Certeau aponta que “as maneiras de utilizar o espaço fogem à planificação urbanística [...]” (Certeau 2012CERTEAU, Michel de. (2012), A cultura no plural. Campinas: Papirus. :233). De modo semelhante, a vivência e a prática da fé fogem, em parte, às normas eclesiais.

O conceito de ortoprática proposto por Nicola Gasbarro auxilia na compreensão das experiências. Segundo o autor, as ortopráticas são invenções e reinvenções em termos de práticas religiosas, nas quais há influência direta e dialógica entre as normas religiosas e as ações performativas da vida social, resultado direto do contexto cultural do qual emergem os indivíduos e se pratica a fé. (Gasbarro 2006GASBARRO, Nicola (2006), “Missões: A Civilização Cristã em Ação”. In: P. MONTEIRO (org.). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: GLOBO.:70-71; 2013GASBARRO, Nicola (2013), “Religione e/o Religioni? la sfida dell’antropologia e dela comparazione storico-religiosa”. In. E. M. A. Maranhão Filho. (org.). (Re) conhecendo o Sagrado: reflexões teórico-metodológicas dos estudos de religiões e religiosidades. São Paulo: Fonte Editorial.:85-99). As reflexões possibilitam uma análise profunda do caso em questão, pois, se apontarmos as atividades que aconteciam no mesmo período e espaços dos eventos sacros como profanos, corremos o risco de reduzir a uma dicotomia inexistente para os sujeitos que praticavam e experienciavam as festividades, como também desconsideraríamos as suas táticas e as artes de fazer. Ao longo da investigação, as fontes apontavam para certa divergência entre o sacral e a festa de rua, mas reconheciam a íntima interligação entre ambas.

A instalação de barracas e a presença de bandas de música foi uma constante nos festejos. Como destacou um periódico da cidade, “no morro estarão armadas diversas barracas e barraquinhas [...]. Abrilhantará aos festejos a banda de música 15 de Junho, daquele arrabalde. Antes e ao entrar à missa federão aos ares diversas girândolas de foguetes e bombas reais” (Jornal Pequeno 1906JORNAL PEQUENO. (1906), “Natal”. (1906), Jornal Pequeno , Recife, 23 dez. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/705110/50014 . Acesso em 12/06/ 2023.
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:1). É importante observar que o articulista informou o programa sem fazer críticas à banda ou à instalação de barracas, algo que passou a ser questionado nos relatos publicados nos jornais nas décadas posteriores. Além disso, no ano de 1906, os frequentadores da localidade ainda não contavam com um templo para as atividades sacras.

Embora Dom Luiz Britto tenha ressaltado a beleza de ter o espaço aos pés da Santa como um templo, cuja abóbada era o céu estrelado, ele planejava construir uma capela no local. Para efetivar o projeto, a Diocese recebeu donativos, como foi feito para a instalação do monumento. Embora alguns trabalhos tenham indicado 1906 como o ano da inauguração da igreja no Morro, a capela só foi inaugurada em 14 de abril de 1907. Para projetar o templo foi contratado o arquiteto Rodolpho Lima, que também era docente do Ginásio Pernambucano e havia sido professor de desenho no Liceu de Artes e Ofícios. Lima foi responsável pelo projeto de outras edificações no Recife, como o Gabinete Português de Leitura e o monumento histórico da Casa Forte (Lopes Neto 2020LOPES NETO, José Pedro. (2020). “Queira a Virgem Imaculada abençoar nossa Diocese”: a invenção da devoção mariana no Morro da Conceição (1904-1925). Recife: Dissertação de Mestrado em História, UFRPE.:125).

O convite ao arquiteto foi feito pelo prelado de Olinda no ano de 1905, e a capela foi inaugurada dois anos depois. Sua abertura não contou com o mesmo público dos eventos de 1904, mas reuniu grande quantidade de devotos. O edifício foi construído em cimento armado, sobre um embasamento circular com escadaria que o circundava, com 4 colunas, em um quadrado de 4 metros de lado, sobre as quais estavam 4 frontões de 12 metros de altura, encimada por um lanternim e uma flecha, totalizando 24 metros de altura, e tinha 3 portas de 7,5 metros de altura, as maiores da cidade do Recife. O templo não era uma obra grandiosa em termos de escala, mas seu formato chamava a atenção. Mesmo após essa inauguração, o ponto principal de depósito da fé continuou sendo o monumento, servindo a capela como ponto de apoio.

Além do afluxo de pessoas, a Festa do Morro passou a chamar a atenção por suas características. Uma coluna intitulada “Uma de nossas lindas festas de arraial”, publicada no Jornal Pequeno de 7 de dezembro de 1927, apresentava uma boa descrição do funcionamento, organização e das experiências vivenciadas:

A festa do Morro da Conceição é uma das nossas mais lindas festas de arraial. Pela propriedade do local, pode-se dizer, em rigor, que temos apenas duas festas com aquele característico: a do Morro e a do Poço5 5 O autor refere-se à festa de Nossa Senhora da Saúde do Poço da Panela realizada na matriz da freguesia à qual o Morro da Conceição estava sob jurisdição. . Do alto do Morro, onde se ergue, como que velando a cidade, protegendo os seus habitantes, uma formosa imagem da Imaculada Conceição, descortina-se o mais belo panorama do Recife. Iluminado feericamente, como se acha, oferece, também, a quem está em baixo, um encantador aspecto. Os romeiros que ali acorrem são incontestáveis. Vêm de longe, tirando léguas sobre léguas, a pé, numerosas pessoas que pagam, desse modo, graças recebidas da piedade e da clemência da Excelsa Virgem. Desde o comoro até a esplanada do morro, são armadas toscas barracas para descanso e alimentação dos romeiros. E parece, desde hoje à noite, um verdadeiro formigueiro humano, a larga e bonita estrada que leva ao cume do morro. Uns que sobem, outros que descem, outros ainda que se demoram em encontros amistosos. [...] o que faz admirar, na festa do morro, é o respeito, a devoção sincera de todos, apesar da variedade e do entusiasmo dos festejos profanos. É o que vale, para a grandeza de nossa fé católica, e para que a Virgem Imaculada continue a velar por nós, pelos nossos destinos. (Jornal Pequeno 1927JORNAL PEQUENO. (1927), “Uma de nossas lindas festas de arraial”. Jornal Pequeno , Recife, 7 dez: 1. Disponível em Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/800643/42938 . Acesso em 12/06/ 2023.
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:1)

O articulista apontava a perspectiva privilegiada da imagem da Virgem em relação à cidade, assim como a visão que os visitantes tinham durante o período noturno, destacando-se três elementos: as romarias, a variedade das demonstrações de fé e as promessas - estas, ao longo dos anos, se tornaram elementos característicos da devoção a Nossa Senhora da Conceição do Morro.

Nota-se que os transportes utilizados pelos fiéis eram variados: trens, bondes ou tração animal. Isso indica que ser romeiro não estava ligado ao modo de se locomover, mas à necessidade da visita ao monumento, com o objetivo de agradecer uma graça alcançada. As caminhadas por longas distâncias não eram o único modo de se deslocar em romaria, mas algumas vezes eram realizadas como sacrifício a algum pedido atendido por meio do poder taumatúrgico que os fiéis atribuíam à Nossa Senhora da Conceição. Para o autor daquela matéria no Jornal Pequeno, os festejos classificados como profanos talvez não fossem tão adequados para a ocasião. Ainda assim, ele destacava a devoção sincera, inclusive daqueles que se valiam das atividades às quais tecia uma crítica velada.

Figura 2:
Fiéis em romaria ao Santuário da Virgem da Conceição

Sobre a relação de elementos seculares e sagrados em festas religiosas no Recife, Mário Sette argumentou que o mês de maio, dedicado a celebrações marianas ao longo de seus 31 dias, era vivido pelos católicos recifenses além das paredes dos templos. As residências se transformavam em espaços de culto e sociabilidade. Familiares, amigos e vizinhos eram convidados a participar das orações. Após as rezas, cânticos e a Ladainha de Nossa Senhora, havia danças, conversas e até namoros (Sette 1935SETTE, Mario. (1935), Maxambombas e maracatus. São Paulo: Edições Cultura Brasileira.:38). Mário Ribeiro dos Santos destacou que, dentre as festividades religiosas com desdobramentos classificados como profanos, destacaram-se na cidade do Recife as bandeiras do Poço da Panela, de Santo Amaro e outros arrabaldes. Segundo o autor, elas eram levadas por moças, transportadas em procissão, entre cânticos, até a frente do templo. Nas considerações de Mário Ribeiro, “houve no Recife do século passado bandeiras carregadas por via fluvial: lindos cortejos noturnos pelo Capibaribe afora, entre balõezinhos, fogos de bengala, foguetes e música” (Santos 2015SANTOS, Mário Ribeiros dos. (2015), Noites festivas de junho: histórias e representações do São João no Recife (1910-1970). Recife: Tese de doutorado em História, UFPE. :107). Essas afirmações sinalizam que a inserção de elementos seculares em celebrações religiosas não era uma novidade advinda da Festa do Morro, mas algo habitual no Recife. Sendo assim, consideramos que a presença da festa de rua em muitas atividades religiosas desenvolvidas no Recife e seus arredores foi potencializada no Morro da Conceição, tornando-o a expressão máxima dessa relação íntima.

Figura 3:
Fiéis em romaria ao Santuário da Virgem da Conceição

Esse espaço devocional criado pela Diocese de Olinda no início do século XX já nasceu como ponto de romaria, funcionava como um santuário, ainda que não ostentasse oficialmente o título. A devoção criada surgiu grandiosa no número de fiéis, que aumentou com o passar dos anos, com notoriedade à relação íntima entre a prática da fé, expressa nos festejos religiosos e nos divertimentos populares. Ambas as maneiras seriam uma forma de prestar culto à Nossa Senhora, sendo resguardado, nesse processo de diálogo e negociações, o protagonismo do campo religioso católico.

Em 1930 e 1931 um grupo de fiéis utilizou a imprensa para apontar um suposto abandono da capela do Morro da Conceição e das festividades do mês mariano por parte das autoridades eclesiais. Na seção “Vida Religiosa”, de 11 de maio de 1930 do Diario da Manhã, noticiou-se que “os exercícios do mês mariano na capela de Nossa Senhora da Conceição do Morro do Arraial, embora não tenham comissões de noiteiros, tem se celebrado todos os dias com muito realce e devoção.” (Diario da Manhã 1930DIARIO DA MANHÃ. (1930), “O Mez Marianno no morro do Arrayal” (1930), Diario da Manhã, Recife, 11 mai. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/093262_02/1355 . Acesso em 12/06/2023.
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:5). Em janeiro do ano seguinte, o mesmo diário publicou um pedido dirigido ao arcebispo, solicitando a indicação de um sacerdote para celebrar as missas dominicais naquela capela, assim como a nomeação de “uma comissão idônea para tomar conta daquele recanto dedicado à Virgem Santíssima, visto que o mesmo se acha quase abandonado.” (Diario da Manhã 1931DIARIO DA MANHÃ. (1931), “Capella N. S. da Conceição Recife”. Diario da Manhã , 20 jan. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/093262_02/3507 . Acesso em 12/06/2023.
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:4). É importante observar o interesse dos frequentadores na manutenção do culto na ermida ao longo de todo o ano, não apenas durante as festividades de dezembro.

É possível inferir que o suposto estado de abandono foi uma ferramenta retórica para chamar a atenção dos leitores do periódico e do Arcebispo, pois a festa havia ocorrido normalmente nos dois anos anteriores, conforme programa divulgado no Diario da Manhã de 7 de dezembro de 1930. De acordo com a programação, a bandeira sairia em procissão às 18 horas da véspera da festa; já as atividades do dia 8 seriam iniciadas às 7 da manhã e ocorreria “às 18 horas o encerramento da parte religiosa da festa. Em todos os atos tocará uma banda de música, estando o local bem iluminado e havendo diversos divertimentos populares.” (Diario da Manhã 1930DIARIO DA MANHÃ. (1930), “O Mez Marianno no morro do Arrayal” (1930), Diario da Manhã, Recife, 11 mai. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/093262_02/1355 . Acesso em 12/06/2023.
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:13). A comissão utilizou a publicação para se desculpar com os devotos pela simplicidade e finalizou informando que a bandeira desceria às 22 horas para ser entregue à nova juíza que a conduziria no ano seguinte. Cabe questionar o motivo da descida não ocorrer no horário programado para a finalização das festividades que eles apontaram como parte religiosa. O encadeamento dos eventos permite perceber que, embora alguns buscassem dividir as festividades, eles ocorriam de maneira imbricada.

Uma reportagem de capa do Jornal Pequeno de 9 de dezembro de 1953, assinada por Alberto Campelo, intitulada “Espetáculo de fé e sacrifício”, ilustra o que ressaltamos. O autor destacou a quantidade de pessoas que participaram das atividades, o fato de alguns deles carregarem objetos para depositar aos pés da imagem em cumprimento às promessas, e a multidão de fiéis que teria assistido à missa cantada, celebrada no altar montado junto ao monumento (Campelo 1953:1). Após a introdução da reportagem, Alberto Campelo dedicou um trecho aos festejos populares:

Por outro lado, estiveram animados os festejos populares. Numerosas barracas foram armadas no largo do Alto. Aqui e ali feria os ouvidos o som estridente dos alto-falantes montados no local. Nos mocambos circunvizinhos, vários “forrós” funcionavam, ao som das sanfonas e dos instrumentos de corda. Convém ressaltar-se que isso também faz parte das promessas. Há quem as faça para subir a ladeira do morro de joelhos, e existem, também os que preferem fazê-las mediante a obrigação de comemorar a data com uma dança em sua residência. Assim é que grande número de festejos dessa ordem se observa todos os anos, notadamente nos mocambos que circundam o morro em que fica localizada a imagem da Santa (Campelo 1953CAMPELO, Alberto. (1953), “Espetáculo de fé e sacrifício”. Jornal Pequeno, Recife, 9 dez. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/88522 . Acesso em 10/03/2023.
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:1. Grifo nosso).

O autor do texto fez questão de ressaltar que os forrós e os divertimentos também eram um modo pelo qual os fiéis prestavam culto a Nossa Senhora, fosse em suas casas ou nas ruas do Morro. Aqui, voltamos a citar Michel de Certeau, quando destaca que, frente ao conjunto de possibilidades e restrições existentes nas cidades, o caminhante atualiza algumas delas, assim

“ele tanto as faz ser como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou improvisações da caminhada privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais. [...] o caminhante transforma em outra coisa cada significante espacial” (Certeau 2014CERTEAU, Michel de. (2014), A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes.:164-165).

De forma semelhante, as maneiras de praticar a fé não se guiam pelas regras doutrinárias da Igreja ou ditadas pelo clero. Embora sejam observadas, é prerrogativa do fiel segui-las ou não, seja em sua totalidade ou adaptadas ao seu modo de ver e estar no mundo. É nesse sentido que foram construídas as ortopráticas na Festa do Morro, não resumidas apenas às atividades da rua, mas também incluindo a parte religiosa, como registrou o articulista Alberto Campelo.

Os trechos nos quais o autor se dedica a esse tema foram intitulados como “Verdadeiro suplício” e “Fé e sacrifício”. Na primeira, aponta o tipo de promessa que mais chama a atenção: subir o morro de joelhos. Para ele, esse seria o mais importante ato de fé e piedade que os fiéis poderiam demonstrar ao pagar uma graça alcançada. O articulista entrevistou 4 romeiros que estavam realizando a subida de joelhos. O primeiro, o jovem Mucio Icléo de Melo Moutinho, estava agradecendo a cura do pai; a segunda, Gilberta Padilha, não informou a motivação. Nesses dois primeiros, foram destacados os nomes, parentesco e local de residência. O terceiro abordado pela reportagem foi descrito como “[...] o mudo Vicente, tipo de homem popular, também ia subindo a ladeira exaustivamente [...]” (Campelo 1953CAMPELO, Alberto. (1953), “Espetáculo de fé e sacrifício”. Jornal Pequeno, Recife, 9 dez. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/88522 . Acesso em 10/03/2023.
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:1). A última foi Eunice Alves Leite, de Camaragibe, que agradecia a cura de uma enfermidade no rosto. O autor construiu o seu relato de maneira a apontar a presença e a participação de pessoas de diversas classes sociais naquelas celebrações, dos mais abastados e moradores de bairros caros, até o mudo Vicente, que sequer teve seu sobrenome citado, tampouco o local onde residia. O fato demonstra que a participação de pessoas de diferentes origens sociais e econômicas foi uma constante na Festa do Morro, desde a sua primeira edição.

A última parte do texto enaltece o ato dos pagadores de promessas: “os penitentes que a fazem [a subida de joelhos] chegam ao local do seu término, que é onde fica a imagem milagrosa, com os joelhos completamente ensanguentados” (Campelo 1953CAMPELO, Alberto. (1953), “Espetáculo de fé e sacrifício”. Jornal Pequeno, Recife, 9 dez. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/800643/88522 . Acesso em 10/03/2023.
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:1). Ainda segundo o autor, alguns eram socorridos pela Assistência Pública por conta da grande quantidade de sangue perdida pelas feridas nos joelhos. Alberto Campelo destacou que os que não presenciaram as cenas não seriam capazes de imaginar o suplício de subir de joelhos a ladeira, “que é de difícil acesso até mesmo percorrida de maneira normal.” O colaborador do periódico finaliza sua coluna com um comentário contundente sobre as promessas: “Elas expressam a vitória da religião católica. A fé irremovível dos seus adeptos leva-os a fazer as mais sacrificadoras promessas a fim de alcançarem a graça desejada” (Campelo 1953:1). A imagem abaixo acompanha os relatos do articulista, que captura o topo do Morro da Conceição, na qual é possível observar expressivo número de pessoas, além de se destacar ao centro a capela construída por desejo de Dom Luis de Britto. No lado direito da capela, menor e mais distante da perspectiva do registro, está o monumento à Imaculada Conceição. Apesar da qualidade da imagem, destaca-se a distância entre o local onde foi feita a fotografia e a representação de Nossa Senhora da Conceição. Além de subir a ladeira de joelhos, era necessário percorrer todo o topo do morro para alcançar o destino.

Apesar de enfatizar a penitência dos pagadores de promessas, sobretudo daqueles que subiam o Morro de joelhos, o autor não deixou de observar com atenção os forrós, os divertimentos, também como formas de pagar as promessas, embora menos lesivas ao corpo. Esse é um ponto que merece atenção, pois a homenagem, o culto e a reverência eram prestados ao subir a ladeira, ao participar dos exercícios litúrgicos, ao dançar ou acompanhar outro divertimento; maneiras mais ou menos litúrgicas, próximas ou não da ortodoxia católica, compunham juntas a Festa do Morro, sendo ressignificada e vivida de diversas maneiras pelos seus fiéis.

Figura 4:
Grande massa popular em frente ao Monumento de N. S. da Conceição.

Missas na capela e junto ao monumento, barracas, novenas, bebidas, forrós ou promessas. Todos esses elementos faziam parte da festa. A análise das fontes permite observar que, enquanto os articulistas apontam para a existência, variedade e força das atividades de rua, para os praticantes, a festa era uma só, planejada, inventada e desenvolvida em torno do monumento da Imaculada Conceição. Além disso, cresceu ao redor dele uma comunidade. João Hélio Mendonça definia o Morro da Conceição como uma das primeiras alternativas de moradia popular espontânea e periférica do Recife, com residentes há mais de 20 ou 30 anos, ou seja, desde a década de 1950 (Mendonça 1986MENDONÇA, João Hélio. (1986), A festa de Nossa Senhora no Morro da Conceição em Casa Amarela. Ciência & Trópico, vol. 14 (2): 157-181.:168). O autor continua o raciocínio afirmando que “condições de localização, salubridade e higiene, de maneira geral, privilegiam este morro diante de outras comunidades de periferia ou dos alagados da cidade.” (Mendonça 1986MENDONÇA, João Hélio. (1986), A festa de Nossa Senhora no Morro da Conceição em Casa Amarela. Ciência & Trópico, vol. 14 (2): 157-181.:168). Considerando o histórico daquele espaço no século XX, pode-se inferir que essas condições privilegiadas decorriam das práticas culturais do local. É necessário considerar que as atividades da festa de rua movimentavam a economia através dos divertimentos populares das barracas de comidas e bebidas. Ou seja, além de um importante ponto religioso e cultural, o monumento tornava-se fundamental para a economia.

Considerações finais

O monumento à Imaculada Conceição de Maria no Morro do Arraial foi anunciado, quando em fase de projeto, como um marco comemorativo para uma importante personagem na fé católica. No entanto, os objetivos de sua construção, uso e projeção futura ultrapassaram a celebração do cinquentenário. A inserção de uma imagem de Maria de proporções monumentais na paisagem de Recife, instalada para “dominar” a cidade, buscou asseverar simbolicamente o domínio da religião católica sobre aqueles lugares e os seus habitantes, além de ser o ponto de partida para ações estruturadas de proselitismo religioso, especialmente no combate ao protestantismo. O empreendimento desenvolvido por representantes da Igreja Católica dialogava com questões locais, nacionais e transnacionais. Comemorar solenemente a publicação da Ineffabilis Deus atendia a uma convocação da Cúria Romana, com a adição de elementos específicos da Cúria de Olinda, como a fidelização e a instrução de sua base de fiéis, para que pudessem desempenhar de melhor forma seus projetos de expansão e, sobretudo, de reestruturação financeira e administrativa.

A sacralização do Morro do Arraial e seu batismo como Morro da Conceição foi efetivado pela instalação de uma imagem da representação de Nossa Senhora e sua inauguração no dia 8 de dezembro de 1904. Não foi criado apenas um espaço devocional, mas incentivado um culto mariano e, com ele, uma festa religiosa que se consolidou ao longo dos anos. Durante a primeira metade do século XX foram elaboradas ortopráticas a partir da relação estabelecida entre a cultura religiosa pernambucana, os ensinamentos da Igreja Católica e as representações sobre o poder taumatúrgico da imagem. Na primeira metade do século XX, ao falar de Nossa Senhora da Conceição do Morro, não se buscava apontar uma particularidade local, mas a especificidade daquela devoção que tinha como ponto central o monumento.

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  • 1
    A Diocese de Olinda foi criada em 1676, pelo Papa Inocêncio XI (1611-1689). Em 5 de dezembro de 1910, a Sacra Congregationis Consistorialis, por ordem do Papa Pio X (1835-1914), a elevou à condição de Arquidiocese e Sede Metropolitana. O mesmo decreto criou a Diocese de Floresta, tornando esta e as Dioceses de Natal, Paraíba e Fortaleza sufragâneas da Sé de Olinda. No ano de 1918, por meio da Bula Cum Urbs Recife, do Papa Bento XV (1854-1922), a região eclesiástica passou a ser denominada Arquidiocese de Olinda e Recife (Sacra Congregationis Consistorialis 1910SACRA Congregationis Consistorialis (1910), Erectio Dioecesum. Acta Apostolicae Sedis - Commentarium Officiale, annus II, volumen II. Roma: Typis Polyglottis Vaticanis.:945).
  • 2
    A nomenclatura da região é diversa das fontes, mas Morro da Boa Vista é predominante, sendo tratado também como monte ou outeiro. Há registros de Morro da Bela Vista, Morro da Boa Vista no Arraial, Morro do Arraial.
  • 3
    A Great Western of Brazil Railway Company Limited era a companhia que administrava algumas das mais importantes estradas de ferro do estado de Pernambuco.
  • 4
    Não foram encontradas informações sobre data de nascimento e morte de Frei Angélico de Câmpora no Necrológio da Província de Nossa Senhora da Penha do Nordeste do Brasil.
  • 5
    O autor refere-se à festa de Nossa Senhora da Saúde do Poço da Panela realizada na matriz da freguesia à qual o Morro da Conceição estava sob jurisdição.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2023
  • Aceito
    20 Dez 2023
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