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A caridade islâmica para além do sujeito sofredor

Islamic charity beyond the suffering subject

MITTERMAIER, Amira. . Giving to God: islamic charity in revolutionary times. California: University California Press, 2019, 233pp.

Amira Mittermaier abre seu livroMITTERMAIER, Amira. Giving to God: islamic charity in revolutionary times. California: University California Press, 2019, 233 pp. com uma escrita contundente sobre o cenário da pesquisa empírica que deu origem ao seu livro, enfatizando que foi fruto do contato anterior que estabeleceu com religiosos no Cairo, Egito. Suas observações anteriores sobre ações desencadeadas por sonhos entre religiosos islâmicos, fizeram-na questionar os sentidos e significados de caridade mobilizados por quem doa e por quem recebe. Professora do Departamento de Estudos da Religião e Departamento de Antropologia da Universidade de Toronto, teve seu projeto de pesquisa contemplado em 2011, com um financiamento que a permitiu investigar o que chamou de “uma ética islâmica de doação - encontros religiosos com, e respostas à, pobreza” (:9).1 1 Todas as citações diretas são de minha própria tradução. O que não esperava, e, talvez, essa seja a sina dos antropólogos (lidar com o inesperado), era o início de protestos civis “pedindo o fim da violência policial, pão, liberdade e justiça social” (:9) dias antes de seu embarque para o Egito. No Cairo, os protestos se concentraram na praça Tahrir, onde milhares de pessoas se organizaram em acampamentos improvisados, levando à idealização de uma utopia socialista em que todos eram iguais e lutavam pelos mesmos fins durante 18 dias.

A relevância de expor o imprevisto no início desta resenha, antes mesmo de ilustrar a posição teórica de Mittermaier, é assinalar o lugar da antropóloga em sua própria pesquisa. A Irmandade Muçulmana, grupo por ela pesquisado, formado por doadores islâmicos, não aderiu aos protestos, mas seguiu suas rotinas ordinárias de dar e receber. Por outro lado, seus amigos intelectuais progressistas estiveram engajados durante todo o processo revolucionário em busca de “justiça social”. Assim, encontrou-se em um limbo político, o qual chamou “mundos revolucionário e caridoso” (:9), que eram incompatíveis. O primeiro mundo desprezava o segundo, denunciando que a distribuição de alimentação diária distraía as pessoas das lutas que realmente importavam: a redistribuição de renda no país em que uma minoria detém a riqueza, enquanto 40% da população passa fome. Durante toda sua pesquisa, Mittermaier lidou com contradições internas que a fizeram questionar a própria relevância de sua pesquisa, participando dos protestos à noite e passando o dia com os caridosos.

Assim, a autora objetiva, em seu livro, desfazer visões consolidadas sobre caridade, compaixão, pobreza, justiça social e política, inspirada nos trabalhos de Talal Asad. Segundo ela, a proposta é realizar uma “antropologia do contrário” (Povinelli 2011),2 2 POVINELLI, Elisabeth. (2011), “Routes/Worlds”. E-flux, nº 27. Disponível em: www.e-flux.com/journal/27/67991/routes-worlds/. Acesso em: 17/07/2023. “que se localiza em formas de vida que estão em desacordo com modos de ser dominados e dominantes” (:16). O principal argumento mobilizado em todo o livro é o de que os doadores religiosos não fazem suas caridades porque sentem compaixão pelos mais pobres, mas sim por considerarem isso uma obrigação. Dar aos pobres é dar a Deus, é garantir um lugar no paraíso, rompendo, assim, tanto com “o conceito liberal de compaixão quanto com o imperativo neoliberal de autoajuda” (:4). Essa constatação se contrapõe a três principais teorizações: 1) teoria da dádiva de Marcel Mauss (1967)3 3 MAUSS, Marcel. (1967), The Gift: Forms and Functions of Exchange in Archaic Societies. New York: Norton. ; 2) lógica da razão humanitária de Didier Fassin (2012)4 4 FASSIN, Didier. (2012), Humanitarian Reason: A Moral History of the Present. Berkeley: University of California Press. ; 3) descrições do Islã como uma religião puramente transcendente. No primeiro argumento, a autora entende que aqueles que recebem não são obrigados a prestar uma contra dádiva, uma vez que Deus é o recebedor, não os pobres. No segundo, o ato de doar não significa ter compaixão com os pobres, o que evita uma reificação do Outro sofredor; ao contrário, quem doa não se importa com os pobres. Por último, a existência de uma imanência islâmica pode ser comprovada pelo próprio ato de dar. Deus se manifesta e se torna imanente em uma refeição.

Para desenvolver seus argumentos, Mittermaier dividiu seu livro em introdução, quatro seções temáticas e proscrito. A primeira seção expõe em um capítulo o início da Revolução Egípcia de 2011 e suas especificidades no Cairo; a segunda, composta por dois capítulos, é destinada às práticas de doação; a terceira, também em dois capítulos, é sobre o “receber”; a quarta, e última, dedica um capítulo ao fim da revolução e seus desdobramentos.

No primeiro capítulo, a autora descreve sua convivência com amigos progressistas durante os seis meses de ocupação revolucionária da praça Tahrir, os quais se contrapunham às práticas silenciosas de caridade. As pessoas que iniciaram as greves e ocupação da praça eram divididas em uma classe média erudita, torcidas organizadas de clubes de futebol, jovens de classe baixa e pobres “urbanos” arriscando perder seus empregos. As percepções de justiça social também variavam, mas uniram-se em prol do mesmo slogan - “Primeiro os pobres” -, definindo uma classe homogênea que necessitava ser atendida mais urgentemente. Esse foi o principal ponto criticado pela Irmandade Muçulmana, defendendo que a classe privilegiada não conhecia as verdadeiras necessidades dos “pobres”, que não podiam parar de trabalhar para protestar.

O grupo circunscrito com o qual Mittermaier conviveu no acampamento defendia um Estado secularizado e denunciava uma determinada justiça religiosa. Para esses revolucionários, a caridade fere os direitos sociais, sendo vista como uma prática puramente moral. Além disso, ressoa, nessa crítica, um “idioma de merecimento” - a ideia de que aqueles que recebem seus direitos devem trabalhar para merecer seu dinheiro em vez de serem amparados por doações.

Na segunda seção, a autora tensiona e aproxima os conceitos de justiça social reivindicados nos protestos com os definidos pelos doadores da Irmandade Muçulmana. Ao mesmo tempo, explicita a heterogeneidade de “doadores”, especificando características religiosas e diferentes formas de “dar”.

No primeiro capítulo dessa seção, Mittermaier nos apresenta Shaykh Salah, engenheiro militar aposentado que se desloca quilômetros todos os dias de sua casa até seu khidma - um pequeno apartamento alugado por ele nos arredores de uma mesquita, onde cozinha refeições diariamente para aqueles que se aproximam e oferece espaço para descanso. Ele ocupa seus dias cozinhando em busca de um “apagamento do eu” e de suas vontades terrenas para “trabalhar para Deus”. Para Shaykh Salah, a doação de comida aos mais pobres é o pagamento do “salário mínimo divino”. Ele também tem suas próprias opiniões sobre os problemas políticos do país, muitas das quais são as mesmas dos revolucionários seculares e liberais.

A confluência dessas duas percepções em Shaykh Salah está ancorada em uma visão que engrandece o trabalho. Para ele, todos possuem uma dívida para com a sociedade em dois sentidos. Primeiro, enquanto exercia sua profissão, recebia por momentos ociosos em seu trabalho. Isso gera uma dívida com seus próprios patrões, uma vez que o dinheiro com o qual o pagam vem também do esforço do seu trabalho. Em um segundo sentido, se Deus dá saúde e condições financeiras para alguém, esse deve retribuir dando aos outros, uma vez que dar a alguém é dar a Deus seu salário mínimo divino. Nesse sentido, nas palavras de Salah, transcritas por Mittermaier, “as pessoas se enganam quando chamam a distribuição de alimentos de uma forma de boas ações (khayr). O khidma é uma forma de compensar as horas perdidas no trabalho e uma tentativa de consertar as coisas em uma sociedade de muitos erros” (:66), ou seja, de promover justiça social.

No segundo capítulo da seção, Mittermaier discute a prática da doação como caminho para o Paraíso, do qual “os pobres são a [...] porta” de entrada (:75). As observações de campo, agora, passam à Resala, cozinhas que recebem jovens islâmicos de classe média e média baixa como voluntários para preparar os alimentos e doar, e que estão distribuídas em filiais por todo o país. São diversos os motivos que levam os jovens a se voluntariar nessas cozinhas. Alguns são formados, mas desempregados, por isso trabalham para se sentirem socialmente úteis. Outros foram proibidos por seus pais de participar dos protestos, por isso direcionaram seus esforços para ações imediatas. Há aqueles que são órfãos e obrigados por seus orfanatos a trabalhar como voluntários. Porém, conclui-se que, durante o tempo que passam nas Resalas, eles aprendem a piedade e participam de uma teia com diversas temporalidades do paraíso. Por mais que alguns esperem recompensas materiais, descobrem destinatários “pobres” que nem sequer agradecem pelas doações. Isso lembra os voluntários que não estão ali para fazer caridade ou receber reconhecimentos mundanos. Além disso, todos sentem que possuem algum controle de seu futuro, significando o momento presente como a busca pelo paraíso futuro. Mittermaier chama atenção para o paradoxo inerente a essa temporalidade: embora visem apenas o futuro, pensando no paraíso, os voluntários islâmicos resolvem necessidades do momento presente, promovendo uma “justiça social” no agora.

A terceira seção do livro nos leva a repensar não os motivos de doar, nem quem são os doadores, mas sim aqueles que recebem. A categoria “pobre” é esmiuçada em uma heterogeneidade de fragmentos. Mais uma vez, o capítulo se inicia nos conduzindo pelas ruas de Cairo, nos deslocamentos entre sua moradia e os espaços de doação. Mittermaier, desde a introdução do livro, chama a atenção para sua recusa em reproduzir histórias e narrativas de “sujeitos sofredores”. O intuito desta seção é investigar as performances de pobreza que as pessoas precisam aderir para serem “merecedoras” de doações. Ela dedica sua escrita às poucas políticas públicas estatais destinadas a pessoas de baixa renda, ao papel das ONGs privadas que oferecem auxílio para famílias e à s práticas de doação islâmicas.

As “performances de pobreza” são ilustradas por casos específicos. O primeiro deles é uma mãe solo de cinco filhos, que narra incessantemente sua história de vida para as ONGs, doadores e agentes estatais. Mittermaier entende a própria forma de narração como parte da performance, não interessando se a história é verídica ou não, mas o quanto é capaz de comover seu ouvinte.

Com esse exemplo, a autora realiza uma inversão nas leituras correntes da antropologia que estuda pobreza e minorias sociais. Em sua escolha de palavras ao tratar de casos sensíveis, como desejo de suicídio e violência física, Mittermaier consegue ir além da descrição do sofrimento; ela engaja as pessoas como agentes que precisam ir em busca de seus recursos financeiros, muitas vezes performando seu sofrimento para fins específicos.

O segundo exemplo trazido pela autora são os dervixes: sujeitos que abandonam suas vidas “materiais”, incluindo suas famílias, para se tornarem ascetas. Eles, em sua totalidade homens, sobrevivem passando por diferentes khidmas e não performatizam sofrimentos para comprovar seu valor como “pobres”. Eles fazem exigências porque tudo pertence a Deus, não aos homens, incluindo comida e abrigo. Por estarem exigindo seus “direitos”, não agradecem aos seus doadores, mas agem de forma considerada grosseira pela autora.

A ingratidão é outro ponto enfatizado por Mittermaier. Aqueles que recebem não se sentem obrigados a agradecer por quaisquer doações. Muito pelo contrário, “eles sabiam que eram necessários. [...] os doadores precisam deles, e não o contrário” (:133). Como tudo pertence a Deus, doadores e “pobres” estão em um mesmo patamar, em pé de igualdade. Doadores dependem dos pobres para o paraíso, assim como os pobres também doam para pessoas mais pobres em busca dessa salvação. Com essas observações, a autora desloca a doação de uma lógica puramente caridosa, mas, em suas palavras, “leva Deus a sério”, a partir do lugar que ocupa como aquele que é generoso e retribuirá. Ao mesmo tempo, essas pessoas são ensinadas desde crianças a agradecer seus parentes e vizinhos, o que complexifica a realidade, fazendo com que doadores precisem “domar” seus desejos carnais de receber gratificações materiais em uma “lógica mundana de dar e receber” (:151). A tentativa de quebrar essa lógica, por parte dos islâmicos com quem a autora trabalhou, contradiz diretamente uma “razão humanitária”, como cunhada por Fassin (2012), além de romper com uma “política neoliberal emancipatória e individualista” (:156). Aos olhos de Deus, todos são pobres e dependentes da vida em comunidade.

Na última seção do livro, Mittermaier descreve os desfechos dos movimentos revolucionários no Egito de 2011 e como a ética islâmica da doação foi manejada por Abdel Fattah El-Sisi, que assumiu o governo federal graças a um golpe de Estado militar em 2014. Por meio de discursos de progresso e sacrifício, El-Sisi comoveu os cidadãos a doarem dinheiro para financiar obras grandiosas no país, sem que seus governantes precisassem tirar dos cofres públicos. Os cidadãos deveriam sofrer hoje para colher os frutos amanhã, em um país já desenvolvido, ao lado de violentas repressões militares. Muitos doadores e “pobres” da Irmandade Muçulmana doaram para o governo acreditando que também estavam a doar para Deus, uma vez que todos seriam diretamente atingidos. Os “pobres” foram chamados a “comer menos e trabalhar mais” (:168), sacrificando-se em prol do país. As Resalas passaram a oferecer microempréstimos aos pobres alimentados. Essa lógica de doação neoliberal, segundo Mittermaier, também aparece, dessa forma, entre seus interlocutores. A caridade islâmica é muito mais multifacetada do que parece. A doação imediata se funde com a de longo prazo, por exemplo, quando uma vaca é doada a um pobre para que ele mesmo possa produzir seu sustento.

A autora conclui seu livro aproximando a ética islâmica da caridade com uma ética revolucionária, como vista durante os protestos de 2011 - o sentimento de comunidade experimentado pelos revolucionários na praça Tahrir aproxima-se daquele compartilhado pela ética islâmica de caridade. Com isso, ela defende que é necessário ampliarmos nossa imaginação política enquanto intelectuais, uma vez que compreender as doações apenas por um ponto de vista político é um ato violento, pois esconde o que tais práticas éticas significam para as pessoas que as praticam. O principal problema com essa afirmação é que Mittermaier não desenvolve o que entende pelo conceito de “ética”. Ao longo do trabalho, dá indícios de que compartilha as bases foucaultianas de Talal Asad, Saba Mahmood e Charles Hirschkind, que entendem a ética como cultivo de si. Nesse caso, cultivo de religiosos piedosos. Porém, essa é a grande lacuna que permanece no decorrer do livro: o que se entende por ética islâmica de doação, que é o principal argumento de Amira Mittermaier, fica subentendido pelo leitor.

  • MITTERMAIER, Amira. Giving to God: islamic charity in revolutionary times California: University California Press, 2019, 233 pp.
  • 1
    Todas as citações diretas são de minha própria tradução.
  • 2
    POVINELLI, Elisabeth. (2011), “Routes/Worlds”. E-flux, nº 27. Disponível em: www.e-flux.com/journal/27/67991/routes-worlds/. Acesso em: 17/07/2023.
  • 3
    MAUSS, Marcel. (1967), The Gift: Forms and Functions of Exchange in Archaic Societies. New York: Norton.
  • 4
    FASSIN, Didier. (2012), Humanitarian Reason: A Moral History of the Present. Berkeley: University of California Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2023
  • Aceito
    19 Dez 2023
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