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Insuficiência renal aguda nefrotóxica: prevalência, evolução clínica e desfecho

Nephrotoxic acute renal failure: prevalence, clinical course and outcome

Resumos

INTRODUÇÃO: A insuficiência renal aguda (IRA) nefrotóxica é frequente e importante causa de morbimortalidade. OBJETIVO: Avaliar a prevalência, o curso clínico e o desfecho da IRA nefrotóxica. PACIENTES e MÉTODOS: Coorte histórica realizada em um hospital de ensino terciário, no período de fevereiro a novembro de 1997. Foram incluídos pacientes acima de 12 anos, com diagnóstico de IRA, acompanhados pela equipe de Interconsulta de Nefrologia. Foram excluídos transplantados renais, portadores de insuficiência renal crônica, dialisados por intoxicação exógena e aqueles transferidos de hospital durante o tratamento. RESULTADOS: Dos 234 pacientes acompanhados, 12% apresentaram IRA nefrotóxica e 24%, IRA multifatorial associada ao uso de drogas nefrotóxica. Entre as comorbidades mais prevalentes, estão hipertensão arterial, hepatopatias, neoplasias, insuficiência cardíaca congestiva e diabetes mellitus. Quinze por cento necessitaram de diálise, e o tipo mais frequentemente usado foi hemodiálise venovenosa contínua; 42% eram oligúricos, 44,7% evoluíram para óbito e 33% recuperaram a função renal. Antibióticos, AINH e contraste radiológico foram as drogas nefrotóxicas mais prevalentes.Os medicamentos nefrotóxicos implicados foram, em ordem de frequência, vancomicina, aminoglicosídeos, aciclovir, quimioterápicos e contraste radiológico. Hepatopatia foi a única variável com significância estatística (p = 0,03, IC = 1,08 a 6,49) em análise multivariada. Na comparação entre IRA nefrotóxica e não nefrotóxica, houve aumento da mortalidade proporcionalmente aos dias de internação. CONCLUSÃO: IRA nefrotóxica é frequente, grave e deve ser continuamente monitorada, tanto ambulatorialmente quanto no ambiente intra-hospitalar.

insuficiência renal aguda; nefrotóxica; epidemiologia


INTRODUCTION: Nephrotoxic acute renal failure (ARF) is a frequent and important cause of morbidity and mortality. OBJECTIVE: To assess the prevalence, clinical course, and outcome of nephrotoxic ARF. PATIENTS AND METHODS: Historical cohort carried out in a tertiary school hospital from February to November, 1997. Patients over 12 years of age, diagnosed with ARF, and followed up by a team of nephrologists were included. The exclusion criteria were as follows: renal transplantation, chronic renal failure, dialysis due to exogenous poisoning, and those transferred to hospital during treatment. RESULTS: Of the 234 patients followed up, 12% had nephrotoxic ARF and 24% multifactorial ARF associated with the use of nephrotoxic drugs. The most prevalent comorbidities were as follows: hypertension, hepatopathy, neoplasias, congestive heart failure, and diabetes mellitus. Fifteen percent of the patients required dialysis, and the most commonly used type was continuous venovenous hemodialysis; 42% of the patients were oliguric; 44.7% died; and 33% recovered renal function. The most prevalent nephrotoxic drugs were antibiotics, nonsteroidal anti-inflammatory drugs, and radiographical contrast media. In order of frequency, the nephrotoxic drugs were as follows: vancomycin, aminoglycosides, acyclovir, chemotherapy agents, and radiographical contrast media. In multivariate analysis, hepatopathy was the only statistically significant variable (p = 0.03, CI = 1.08 to 6.49). The comparison of non-nephrotoxic and nephrotoxic ARF showed an increase in mortality proportional to the length of hospitalization. CONCLUSION: Nephrotoxic ARF is common, serious, and must be continuously monitored both in hospital and on an outpatient basis.

acute renal failure; nephrotoxic; epidemiology


ARTIGO ORIGINAL

Insuficiência renal aguda nefrotóxica: prevalência, evolução clínica e desfecho

Nephrotoxic acute renal failure: prevalence, clinical course and outcome

Patrícia S. PintoI; Moisés CarminattiI; Thiago LacetII; Dominique F. RodriguesII; Luiza O. NogueiraII; Marcus G. BastosIII; Natália FernandesIV

IFundação IMEPEN

IIUniversidade Federal de Juiz de Fora

IIIDisciplina de Nefrologia da Universidade Federal de Juiz de Fora e Fundação IMEPEN

IVUniversidade Federal de Juiz de Fora e Fundação IMEPEN

Correspondência para Correspondência para: Natália Maria da Silva Fernandes Rua Jamil Altaff, 132 - Vale do Ipê Juiz de Fora/MG - CEP: 36035-380 Tel: (32) 3231-6319

RESUMO

INTRODUÇÃO: A insuficiência renal aguda (IRA) nefrotóxica é frequente e importante causa de morbimortalidade.

OBJETIVO: Avaliar a prevalência, o curso clínico e o desfecho da IRA nefrotóxica.

PACIENTES e MÉTODOS: Coorte histórica realizada em um hospital de ensino terciário, no período de fevereiro a novembro de 1997. Foram incluídos pacientes acima de 12 anos, com diagnóstico de IRA, acompanhados pela equipe de Interconsulta de Nefrologia. Foram excluídos transplantados renais, portadores de insuficiência renal crônica, dialisados por intoxicação exógena e aqueles transferidos de hospital durante o tratamento.

RESULTADOS: Dos 234 pacientes acompanhados, 12% apresentaram IRA nefrotóxica e 24%, IRA multifatorial associada ao uso de drogas nefrotóxica. Entre as comorbidades mais prevalentes, estão hipertensão arterial, hepatopatias, neoplasias, insuficiência cardíaca congestiva e diabetes mellitus. Quinze por cento necessitaram de diálise, e o tipo mais frequentemente usado foi hemodiálise venovenosa contínua; 42% eram oligúricos, 44,7% evoluíram para óbito e 33% recuperaram a função renal. Antibióticos, AINH e contraste radiológico foram as drogas nefrotóxicas mais prevalentes.Os medicamentos nefrotóxicos implicados foram, em ordem de frequência, vancomicina, aminoglicosídeos, aciclovir, quimioterápicos e contraste radiológico. Hepatopatia foi a única variável com significância estatística (p = 0,03, IC = 1,08 a 6,49) em análise multivariada. Na comparação entre IRA nefrotóxica e não nefrotóxica, houve aumento da mortalidade proporcionalmente aos dias de internação.

CONCLUSÃO: IRA nefrotóxica é frequente, grave e deve ser continuamente monitorada, tanto ambulatorialmente quanto no ambiente intra-hospitalar.

Palavras-chave: insuficiência renal aguda, nefrotóxica, epidemiologia.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Nephrotoxic acute renal failure (ARF) is a frequent and important cause of morbidity and mortality.

OBJECTIVE: To assess the prevalence, clinical course, and outcome of nephrotoxic ARF.

PATIENTS AND METHODS: Historical cohort carried out in a tertiary school hospital from February to November, 1997. Patients over 12 years of age, diagnosed with ARF, and followed up by a team of nephrologists were included. The exclusion criteria were as follows: renal transplantation, chronic renal failure, dialysis due to exogenous poisoning, and those transferred to hospital during treatment.

RESULTS: Of the 234 patients followed up, 12% had nephrotoxic ARF and 24% multifactorial ARF associated with the use of nephrotoxic drugs. The most prevalent comorbidities were as follows: hypertension, hepatopathy, neoplasias, congestive heart failure, and diabetes mellitus. Fifteen percent of the patients required dialysis, and the most commonly used type was continuous venovenous hemodialysis; 42% of the patients were oliguric; 44.7% died; and 33% recovered renal function. The most prevalent nephrotoxic drugs were antibiotics, nonsteroidal anti-inflammatory drugs, and radiographical contrast media. In order of frequency, the nephrotoxic drugs were as follows: vancomycin, aminoglycosides, acyclovir, chemotherapy agents, and radiographical contrast media. In multivariate analysis, hepatopathy was the only statistically significant variable (p = 0.03, CI = 1.08 to 6.49). The comparison of non-nephrotoxic and nephrotoxic ARF showed an increase in mortality proportional to the length of hospitalization.

CONCLUSION: Nephrotoxic ARF is common, serious, and must be continuously monitored both in hospital and on an outpatient basis.

Keywords: acute renal failure, nephrotoxic, epidemiology.

INTRODUÇÃO

A insuficiência renal aguda (IRA) é caracterizada por rápida queda na taxa de filtração glomerular, manifestada clinicamente como um abrupto e contínuo aumento de ureia e creatinina,1 resultando na impossibilidade dos rins em exercer suas funções básicas de excreção e manutenção da homeostasia hidroeletrolítica e ácido-básica do organismo.2

A IRA é responsável por 1% das admissões hospitalares e por 7% das complicações em pacientes hospitalizados,3,4 sobretudo naqueles que apresentam a doença renal crônica (DRC).1 Além disso, tem alta taxa de mortalidade, que varia de 20% a 90%, dependendo da população estudada.5,6,7,8 Determina um prolongamento da internação hospitalar e é diretamente responsável pelo aumento da morbidade e da mortalidade. Estima-se que o tratamento de IRA custe mais que $3 bilhões por ano nos Estados Unidos.9 A identificação dos pacientes de risco (idosos, doentes renais crônicos, diabéticos, obesos, hipertensos)5 e a instituição de medidas apropriadas de prevenção são cruciais.1

A IRA mantém elevado grau de morbimortalidade, mesmo com os progressos tecnológicos alcançados. Um dos fatores mais importantes para manter esse alto grau de mortalidade é a mudança demográfica observada no perfil dos pacientes que apresentam essa patologia. Estudo recente10 mostrou que mesmo pacientes que sobreviveram a um episódio de IRA por necrose tubular aguda (NTA) apresentam, em longo prazo, maior mortalidade por todas as causas, quando comparados à população geral.

A NTA, geralmente de causa multifatorial, é causa mais frequente de IRA. As IRAs de causas nefrotóxicas também são frequentes e, se não evitáveis, são passíveis de monitoramento.

O objetivo deste estudo foi avaliar prevalência, curso clínico e desfecho da IRA nefrotóxica intra-hospitalar.

PACIENTES E MÉTODOS

Realizamos um estudo de coorte histórica em um hospital terciário de ensino, Hospital São Paulo (Escola Paulista de Medicina - UNIFESP), no período de 1º de fevereiro de 1997 a 30 de novembro de 1997. Foram incluídos todos os pacientes acima de 12 anos com diagnóstico de IRA, acompanhados pela equipe de Interconsulta de Nefrologia do Hospital. Os pacientes com idade < 12 anos, transplantados renais, portadores de insuficiência renal crônica, dialisados por intoxicação exógena e aqueles transferidos de hospital durante o tratamento foram excluídos do estudo.

A população foi composta de 234 pacientes acompanhados no período de estudo, até a alta ou o óbito intra-hospitalar. O estudo foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa em Humanos.

Os critérios utilizados para a definição de categorias etiológicas da IRA foram aqueles publicados por Liaño et al., 1993.11 As variáveis incluídas na análise de fatores de risco de óbito foram: 1) Dados demográficos: idade, sexo, raça, procedência (UTI/enfermaria/PS), duração da internação, tipo de internação (clínica/cirúrgica); 2) Etiologia da IRA (cirúrgica, nefrotóxica, séptica, clínica ou pós-renal); 3) Diálise: necessidade, indicação, tempo, e tipo de diálise: HDI (hemodiálise intermitente), CVVHD (hemodiálise venovenosa contínua), DPI (diálise peritoneal intermitente), DPAC (diálise peritoneal ambulatorial contínua); 4) Patologias crônicas associadas: presença de neoplasia, diabetes mellitus, doença cardiovascular (hipertensão arterial sistêmica, insuficiência cardíaca, valvulopatia, coronariopatia), doença pulmonar (DPOC ou asma brônquica), doença hepática (cirrose confirmada por biópsia ou hipertensão portal documentada com ou sem hemorragia digestiva ou episódios pregressos de encefalopatia/coma hepático), uropatia (incluindo presença ou não de nefrostomia e litíase), nefropatia (excluindo-se IRC), arteriopatia periférica, Aids, imunossupressão (secundária ao uso de imunossupressores); 5) Insuficiências orgânicas segundo Knaus et al., 1985.12 Os desfechos estudados foram: óbito no hospital, necessidade de diálise, recuperação de função renal.

ANÁLLISE ESTATÍSTICA

Os dados foram expressos como média, desvio-padrão, percentagem ou número absoluto. Para a análise estatística dos resultados, foram aplicados: 1) Teste do Qui-Quadrado, para análise de tabelas de contingência; 2) Teste exato de Fisher, quando não foi possível a utilização do teste do Qui-Quadrado devido ao tamanho da amostra; 3) Teste t de Student, para a comparação de duas amostras não pareadas de variáveis quantitativas numéricas, contínuas; 4) Regressão Logística "Stepwise"; 5) Análise de sobrevida (Kaplan Meier), tendo como variável desfecho o óbito e comparada a mortalidade entre os grupos IRA nefrotóxica versus não nefrotóxica. Censuraram-se os dados em caso de alta hospitalar, transferência ou perda de seguimento.

Todas as diferenças observadas foram consideradas significantes quando a probabilidade de a em teste bicaudal foi inferior a 5% (p < 0,05). Para a realização dos testes, utilizou-se o software estatístico SPSS 13.0.

RESULTADOS

Foram avaliados 234 casos de IRA. Desses, 12% correspondiam à IRA nefrotóxica isolada e 24% à IRA multifatorial associada ao uso de drogas nefrotóxicas (analisados em conjunto). Metade dos casos (52%) de IRA nefrotóxica já foi admitida no hospital com alteração da função renal.

Na Tabela 1, descrevem-se os dados clínicos e demográficos. A média de idade foi 56,9 ± 17,3 anos, variando entre 12 e 96 anos, e 54% da população era composta por homens. As comorbidades mais prevalentes foram: hipertensão em 40%, hepatopatias em 18%, neoplasia maligna em 15%, insuficiência cardíaca congestiva (ICC) em 14% e diabetes mellitus em 12%. Um percentual elevado apresentava sepse (36,5%) e grande parte dos pacientes apresentava-se, à visita do nefrologista, com falência de órgãos: 31% com cardiovascular; 23,5%, respiratória; 11%, neurológica; 21%, hepática; e 5%, hematológica.

Na Tabela 2, observam-se as características da IRA. Com relação à necessidade dialítica, 15% demandaram terapia renal de substituição (TRS), e o tipo mais frequentemente utilizado foi hemodiálise venovenosa contínua (CVVHD). A indicação de diálise mais frequente foi hipervolemia (53%). Cinco por cento foram submetidos à biópsia renal. Evolução para óbito ocorreu em 45%, e 33% recuperaram a função renal.

Entre as drogas nefrotóxicas mais usadas, temos os antibióticos e antivirais (87%). Os nefrotóxicos mais frequentemente utilizados foram vancomicina (12%), aminoglicosídeos (8%), aciclovir (2,5%), além de quimioterápicos (2,5%), AINH (2,5%) e contraste radiológico (2,5%).

Após análise univariada, realizou-se análise multivariada, incluindo as variáveis que mostraram significância estatística no primeiro modelo. Na análise multivariada (regressão logística), foram incluídos no modelo idade, sexo, presença de diabetes mellitus, hipertensão arterial, hepatopatia, ICC, doença arterial periférica, pancreatite e sepse. A única variável que manteve significância foi doença hepática (p = 0,03, IC = 1,08 a 6,49). Idade e sexo feminino também foram fatores relevantes, mas não apresentaram significância estatística (Tabela 3).

Quando se compara a IRA nefrotóxica com a IRA não nefrotóxica, em ambas o risco de morte aumenta com os dias de internação, sendo menor na primeira. Essa análise foi representativa, mas não alcançou significância estatística (log rank, p = 0,09) (Gráfico 1).


DISCUSSÃO

Existem poucos estudos epidemiológicos sobre insuficiência renal aguda nefrotóxica no Brasil.7 A falta de uma definição uniforme para IRA é uma das principais dificuldades para pesquisas na área. Para estabelecer uma definição uniforme, a Acute Dialysis Quality Initiative (ADQI) formulou a classificação: risk, injury, failure, loss and end-stage kidney (RIFLE).13 Porém, no presente estudo, como foi utilizado o escore ATN-ISS descrito por Liaño,11 usamos a definição de IRA constante do artigo original.

A ocorrência de insuficiência renal aguda em pacientes críticos é um dos principais fatores de mau prognóstico em relação à sua evolução, notadamente em unidades de terapia intensiva, onde sua prevalência é, em média, de 20% a 30% dos casos, sendo necessária a terapia renal substitutiva em uma importante parcela dos casos (cerca de 6% dos pacientes admitidos em unidade fechada).14

Há poucos estudos epidemiológicos que avaliam a ocorrência de IRA comunitária. Hsu Cy et al. (2007) publicaram grande revisão sobre IRA na comunidade, na qual encontraram aumento na incidência no período de 1996 a 2003.15 Em nosso estudo, 48,2% dos pacientes já foram admitidos no hospital com IRA, mostrando alta prevalência de IRA grave adquirida na comunidade.

Avaliamos 234 casos de IRA, sendo 12% de causa nefrotóxica isolada e 24% multifatorial (nefrotóxica associada a outras causas). Esses valores são semelhantes aos encontrados por Block et al., em que 29,3% dos pacientes em uma série de casos tinham uma contribuição de drogas nefrotóxicas no desenvolvimento de IRA.16 Outros estudos demonstram que drogas nefrotóxicas são responsáveis por 19% a 25% dos casos de IRA em pacientes criticamente doentes.17,18

Com relação às características clínicas, a maioria dos casos de IRA nefrotóxica isolada é não oligúrica (42%), porém, quando relacionada a outras causas, a prevalência de oligúria aumenta.19,20 Em nosso estudo, 35,8% do total de pacientes com IRA nefrotóxica isolada eram oligúricos, comparados a 40,2% daquela relacionada a outras causas. A indicação dialítica mais frequente foi hipervolemia, em consonância com a maioria dos estudos.21

São diversas as formas de nefrotoxicidade por medicamentos usados em pacientes críticos: lesão tubuloepitelial (aminoglicosídeos, contraste venoso), nefrite intersticial (penicilina, inibidores de calcineurina, AINEs), glomerulite (IECA, sais de ouro, d-penicilamina), formação de cristais intratubulares (indinavir e aciclovir) e redução do fluxo plasmático renal (IECAs, AINEs).14 Dentre os medicamentos causadores de IRA em nosso estudo, o principal grupo foi o dos antibióticos e dos antivirais (87%).

No caso da vancomicina, em que se desconhece o exato mecanismo de lesão renal, há uma conhecida taxa de nefrotoxicidade que varia de 6% a 30%, elevando-se bastante quando há outros fatores de risco associados, tais como idade, nefropatia preexistente, tempo de uso da droga e associação com outras drogas nefrotóxicas, principalmente aminoglicosídeos, situação clínica que pode atingir 20-30% de nefrotoxicidade.22,23

Os aminoglicosídeos são drogas insolúveis nos lípides (ligação à albumina plasmática < 10%), não são metabolizados e sofrem eliminação renal.14 Provocam disfunção renal em 10% a 20% dos pacientes tratados com essas drogas.24 Exercem efeito bactericida ao se ligarem ao ribossomo bacteriano, portanto necessitam penetrar na célula bacteriana para agir.25 Alguns fatores aumentam a ocorrência de nefrotoxicidade por aminoglicosídeos, como uso de doses elevadas, uso da droga por mais de três dias, diminuição do intervalo das doses, uso recente de aminoglicosídeos e administração da droga no período das 24h às 7h.19,20 Em nosso estudo, 12% apresentaram IRA nefrotóxica isolada.

A presença de alguns fatores de risco contribui para o desenvolvimento da disfunção renal após o uso de drogas nefrotóxicas. São eles: idade do paciente, presença de HAS, DM, doenças cardiovasculares, hepatopatias, neoplasias, sepse e falência de órgãos.

Cole et al., ao avaliarem 116 pacientes com IRA dialítica, constataram que 80% dos pacientes com IRA severa, tratados em UTI, tinham falência respiratória e circulatória associada.21 Lima et al. analisaram 324 pacientes com IRA em UTI e observaram como fatores de risco a idade superior ou igual a 65 anos, ureia sérica maior ou igual a 70 mg/dL, sepse e hipertensão prévia.8 No entanto, analisando separadamente diversos fatores de risco, encontramos a presença de doença hepática como único fator estatisticamente relacionado ao desenvolvimento de IRA nefrotóxica. Isto é, após análise multivariada, não se encontrou associação estatística na análise geral dessa população, isoladamente, para fatores tradicionalmente implicados como fortemente relacionados ao desenvolvimento de IRA, como diabetes, hipertensão arterial, idade, ICC e até sepse.

Quando se retira hepatopatia do modelo, as variáveis idade (p = 0,03, IC = 0,94 a 0,98) e sexo feminino (p = 0,04, IC = 1,2 a 3,2) passam a apresentar importância estatística. A identificação de hepatopatia como principal fator de risco nessa população provavelmente está relacionada a importantes alterações hemodinâmicas dos pacientes. Os pacientes hepatopatas, em especial nos estágios mais avançados, frequentemente apresentam menor volume circulante efetivo decorrente da hipoalbuminemia ou de sequestro de volume na circulação esplâncnica. Essas alterações, somadas à vasoconstricção arteriolar renal intensa, como a observada nos casos de síndrome hepatorrenal, tornam mais provável a descompensação da função renal após o uso de diuréticos ou paracenteses de alívio repetidas e, assim, explicariam o quadro IRA nos pacientes cirróticos, que foram incluídos na análise. A própria participação do fígado no metabolismo de determinados medicamentos, neste caso reduzida, e a acidose metabólica advinda da falência hepática também são possíveis fatores contribuintes ao desenvolvimento de IRA nefrotóxica.26,27

Verificamos que, de forma geral, a gravidade da IRA relacionada a drogas nefrotóxicas tende, estatisticamente, a se apresentar menor, quando medida em termos de mortalidade (44,7% versus 46,3%, log rank = 0,09). Isso possivelmente se deve ao caráter transitório da agressão tecidual da maioria dos agentes nefrotóxicos, por vezes insuficiente para levar a um dano irreversível à função renal.

Uma importante medida da qualidade do cuidado do paciente é o "resultado renal" (porcentagem de sobreviventes que recebem alta do hospital sem necessitar de tratamento dialítico). Cole et al. tiveram 18,6% de pacientes sobreviventes com necessidade de terapia renal substitutiva após a alta hospitalar.21 Outros estudos encontraram resultados de 34,3% e 33% com esse mesmo desfecho.28,29 Em nosso estudo, apenas 8% dos pacientes sobreviventes tiveram alta hospitalar com dependência de tratamento dialítico.

CONCLUSÃO

A prevalência de IRA nefrotóxica isolada e associada ao uso de drogas nefrotóxicas como causa de IRA multifatorial é comum tanto em IRA hospitalar quanto em pacientes com IRA comunitária. As principais drogas nefrotóxicas são antibióticos, AINH e contraste radiológico. Em análise multivariada, a população sob maior risco foi aquela portadora de doença hepática em qualquer estadiamento (CHILD A, B ou C). A prescrição de drogas nefrotóxicas na presença de fatores de risco deve ser criteriosa, tanto ambulatorialmente quanto em ambiente hospitalar.

Data de submissão: 25/03/2009

Data de aprovação: 04/08/2009

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

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  • Correspondência para:
    Natália Maria da Silva Fernandes
    Rua Jamil Altaff, 132 - Vale do Ipê
    Juiz de Fora/MG - CEP: 36035-380
    Tel: (32) 3231-6319
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Aceito
      04 Ago 2009
    • Recebido
      25 Mar 2009
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