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Terremoto no Haiti: lições de uma catástrofe

EDITORIAL

Terremoto no Haiti: lições de uma catástrofe

Em janeiro de 2010, um terremoto devastador atingiu o Haiti, resultando em 230.000 óbitos e milhares de feridos. As estruturas administrativa e de saúde foram gravemente comprometidas, com o colapso de hospitais, morte de médicos e enfermeiros, destruição de prédios, recursos de comunicação e de infraestrutura. A catástrofe foi amplificada pela pobreza, grande densidade populacional e má qualidade das construções.

A resposta médica internacional ocorreu em grande escala. No Hôpital de l'Université d'État in Port-Au-Prince, o maior da capital, diversas organizações como o International Medical Corps, Médecins du Monde, Médecins sans Frontières (MSF), Cruz Vermelha, e profissionais ligados a Universidades americanas (Stanford, Utah, Miami, Columbia, etc.) instalaram- se na pequena área restante do HUH e em tendas.1 Alguns chegaram a Porto Príncipe em menos de 48h, como a Força de Defesa Israelense2 e os membros do projeto Medishire.3

A Sociedade Internacional de Nefrologia (ISN) enviou o Renal Disasters Relief Task Force (RDRTF) que atua desde 1988 em terremotos, com foco no tratamento de lesão renal aguda. O trabalho é realizado em colaboração com o MSF, responsável pela logística da operação. A Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) participou do grupo RDRTF, representada por mim e por Luiz Augusto Fernandes da Silva. Nessa missão, 250 tratamentos hemodialíticos foram realizados e inúmeros pacientes foram tratados conservadoramente.

Lições importantes foram aprendidas nessa missão e servem para o aprimoramento de futuras intervenções, que devem considerar: planejamento, formação de equipes, dimensionamento de insumos/equipamentos, trabalho com militares, inter-relações com governos e parcerias com Universidades e Sociedades Médicas.

O planejamento requer comprometimento, experiência e recursos financeiros. Um bom exemplo é a relação RDRTF/MSF. A maior parte dos recursos financeiros e logísticos da missão é do MSF. No Rio de Janeiro, existe uma célula do MSF e parcerias poderiam ser construídas envolvendo Sociedades Médicas/Governo/MSF. No caso do terremoto no Haiti, acreditávamos que a interação SBN/governo seria natural e bem-vinda, visto a presença brasileira naquele território. No entanto, não só a SBN como a Associação Médica Brasileira (AMB) não conseguiram materializar a ajuda médica, restando uma impressão negativa sobre a postura do governo. Desde então, lento progresso foi feito com a aproximação entre a AMB e as Forças Armadas do Brasil. Em abril deste ano, ocorreu reunião com a presença de representantes de várias Associações Médicas, inclusive da SBN, e representantes das Forças Armadas, onde se estabeleceu uma intenção de parceria.

Durante a missão no Haiti, pudemos perceber a importância do trabalho com militares americanos, que foi absolutamente importante no sentido de propiciar segurança, organização do fluxo de atendimento, transporte de pacientes ao navio-hospital US Confort e resolução de questões operacionais, como a instalação de hospitais de campanha, unidades de tratamento de água e geração de energia elétrica. A presença dos militares foi criticada por muitos devido a ostensividade e forma de atuação. Porém, neste caso, os meios justificaram a finalidade.

Quanto à formação de equipes médicas em nefrologia, o modelo de células operacionais mostrou-se efetivo. Uma equipe formada por três médicos, quatro enfermeiros e um técnico eletroeletrônico, tendo à disposição quatro máquinas de hemodiálise, quatro sistemas de osmose reversa portátil, insumos para hemodiálise, gerador de energia elétrica e água, é capaz de realizar 100 tratamentos dialíticos por semana. Cada componente da equipe deve estar com boa condição de saúde, estar vacinado contra doenças infecciosas, ter bom perfil de relacionamento interpessoal e habilidades múltiplas. Um dos membros deve ser o líder, definindo objetivos, táticas e delegando funções condizentes com a habilidade de cada indivíduo, além de cuidar da segurança, descanso e alimentação do grupo. O time deve ser trocado a cada 10 dias. Para isso, é necessário o recrutamento de indivíduos em número quatro vezes maior do que para a criação de uma célula operacional para contemplar trocas de equipe, desistências e imprevistos.

O dimensionamento dos insumos deve incluir aqueles relativos ao tratamento da insuficiência renal, mas também antibióticos, vacina/imunoglobulina contra o tétano, medicamentos para profilaxia contra HIV, morfina, protetor solar e repelentes contra insetos. Um laboratório portátil, como o i-Stat (Abbott) é fundamental para a realização de exames bioquímicos. Parcerias com indústrias produtoras de equipamentos para hemodiálise podem ser previamente firmadas para, que em uma situação de emergência, o material esteja imediatamente à disposição e não ocorram atrasos nem gastos desnecessários.

Com as parcerias consolidadas, times formados, insumos/equipamentos definidos e com fácil acesso é possível ter eficiência razoável e em curto tempo de resposta entre o desastre natural e o início da missão. Quanto menor o tempo, mais vidas serão salvas. No Haiti, certamente, milhares de vidas poderiam ter sido salvas se mais equipes tivessem chegado precocemente.

Outra experiência relevante foi ver a atuação de equipes ligadas a Universidades americanas. No HUH, cerca de 20 tendas estavam em operação, atendendo cerca de 800 pacientes em leitos improvisados. Médicos, enfermeiros, tradutores de línguas e militares trabalhavam em perfeita sincronia. Universidades brasileiras poderiam ser importantes parceiras do governo e dos militares em situações de calamidades.

Finalmente, Sociedades Médicas como a SBN, AMB, Sociedade Latino-Americana de Nefrologia e Hipertensão podem trabalhar como coordenadoras de forças-tarefas, fornecendo conhecimento técnico e recursos humanos. Esta ajuda não pode ser negligenciada por nenhum governo, visto que essa relação pode trazer frutos realmente significativos como no exemplo do RDRTF da ISN. Atualmente, estamos atrasados no sentido de atuar com eficiência em desastres naturais. Somente com organização, planejamento e com a construção de parcerias poderemos salvar mais vidas em futuros desastres.

Rodrigo Bueno de Oliveira, MD

Hospital das Clínicas

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

  • 1. Kidder T. Recovering from disasters - Partners in health and the Haitian earthquake. N Eng J Med 2010; 362:769-772.
  • 2. Merin O, Nachman A, Levy G et al. The Israeli Field hospital in Haiti - ethical dilemmas in early disarter response. N Eng J Med 2010; 362:e38(1:3).
  • 3. Ginzburg E, O'Neill WW, Pascal J et al. Rapid medical relief - Project Medshire and the haitian earthquake. N Eng J Med 2010; 362:e31(1:3).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2010
  • Data do Fascículo
    Set 2010
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