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Fórum nacional de discussão das diretrizes do KDIGO para o distúrbio mineral e ósseo da doença renal crônica (DMO-DRC): uma análise crítica frente à relidade Brasileira

Resumos

No dia 14 de novembro de 2009, a Sociedade Brasileira de Nefrologia promoveu um fórum de discussão das novas diretrizes do KDIGO (Kidney Disease: Improving Global Outcomes). O objetivo desse encontro, onde estiveram presentes 64 participantes, foi discutir estas novas diretrizes diante da realidade brasileira. Esse encontro teve o patrocínio da Empresa de Biotecnologia Genzyme, que não teve acesso à sala de discussão e tampouco aos temas tratados durante o evento. Este artigo traz um resumo das diretrizes do KDIGO e das discussões realizadas pelos participantes.

osteodistrofia renal; distúrbios do metabolismo do fósforo; hormônio paratireóideo; doenças ósseas metabólicas; insuficiência renal crônica


On November 14th, 2009, the Brazilian Society of Nephrology coordinated the Brazilian Discussion Meeting on the new KDIGO (Kidney Disease: Improving Global Outcomes) guidelines. The purpose of this meeting, which was attended by 64 nephrologists, was to discuss these new guidelines from the Brazilian perspective. This meeting was supported by an unrestricted grant of the biotechnology company Genzyme, which did not have access to the meeting room or to the discussion sections. This article brings a summary of the KDIGO guidelines and of the discussions by the attendees.

renal osteodystrophy; phosphorus metabolism disorders; parathyroid hormone; metabolic bone diseases; chronic kidney failure


FÓRUM DE NEFROLOGIA

Fórum nacional de discussão das diretrizes do KDIGO para o distúrbio mineral e ósseo da doença renal crônica (DMO-DRC): uma análise crítica frente à relidade Brasileira

Rosa Maria Affonso MoysésI; Ana Ludimila Espada CancelaII; José Edvanilson Barros GueirosIII; Fellype Carvalho BarretoIV; Carolina Lara NevesV; Maria Eugênia Fernandes CanzianiVI; Rodrigo Bueno de OliveiraI; Vanda JorgettiI; Aluizio Barbosa de CarvalhoVI

IHospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HCFMUSP, Brasil

IIFaculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, Brasil

IIIHospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Brasil

IVUniversidade de Picardie, França

VUniversidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil

VIUniversidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Brasil

Correspondência para Correspondência para: Rosa Maria Affonso Moysés Disciplina de Nefrologia da FMUSP Rua Iperoig, 690 ap 121. Perdizes São Paulo - São Paulo CEP 05016-000 E-mail: katza@uol.com.br

RESUMO

No dia 14 de novembro de 2009, a Sociedade Brasileira de Nefrologia promoveu um fórum de discussão das novas diretrizes do KDIGO (Kidney Disease: Improving Global Outcomes). O objetivo desse encontro, onde estiveram presentes 64 participantes, foi discutir estas novas diretrizes diante da realidade brasileira. Esse encontro teve o patrocínio da Empresa de Biotecnologia Genzyme, que não teve acesso à sala de discussão e tampouco aos temas tratados durante o evento. Este artigo traz um resumo das diretrizes do KDIGO e das discussões realizadas pelos participantes.

Palavras-chave: osteodistrofia renal, distúrbios do metabolismo do fósforo, hormônio paratireóideo, doenças ósseas metabólicas, insuficiência renal crônica.

Análise crítica frente à realidade brasileira

Metodologia e desenvolvimento do KDIGO

Nas diretrizes brasileiras de prática clínica para o distúrbio mineral e ósseo na doença renal crônica (DMO-DRC) da SBN, atribuiu-se o termo Evidência toda vez que a diretriz baseou-se em artigo da literatura, independente de seu grau de evidência, enquanto o termo Opinião baseou-se em opiniões contidas nas diretrizes consultadas, e, às vezes, expressou a experiência pessoal dos participantes da redação destas diretrizes. Já para o KDIGO, a determinação do termo Evidência obedeceu aos critérios criados pelo GRADE (Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation) Working Group, grupo criado pelo KDIGO para avaliação de todos os trabalhos utilizados na diretriz. Há outra diferença entre as duas diretrizes quanto à definição dos desfechos (endpoints): para determinar as melhores opções de tratamento, o KDIGO avaliou apenas estudos que tinham como desfecho fraturas, eventos cardiovasculares, internações, diminuição de qualidade de vida e mortalidade. Já as diretrizes brasileiras também aceitaram como critério de sucesso de tratamento a normalização (ou melhora) de parâmetros bioquímicos e/ou das lesões ósseas (avaliadas por biopsia). Embora isso possa ser interpretado como um mero detalhe, esta diferença de conceitos foi fator determinante para algumas das diferenças encontradas entre as recomendações. Nas diretrizes brasileiras, assim como nas diretrizes norte-americanas (KDOQI), há maior liberalidade na definição de evidência. Já no KDIGO, esses critérios foram muito rígidos, e, ao final da análise, constatou-se que há pouquíssimos estudos clínicos que poderiam ser utilizados na construção de evidências.

Controle dos níveis de fósforo e cálcio

A hiperfosfatemia é consequência importante e inevitável da DRC avançada, uma vez que o balanço de fósforo é permanentemente positivo nos pacientes em estágios 4-5D. A presença de hiperfosfatemia está relacionada com maior mortalidade e risco elevado de doenças cardiovasculares tanto na população normal quanto nos pacientes com DRC. Além disso, nesses pacientes contribui para o desenvolvimento de calcificações vasculares e do hiperparatireoidismo secundário, através do estímulo à produção de PTH e da redução da produção de calcitriol.

Controle de fósforo - alvo terapêutico: DRC estágios 3 a 5D: manter o fósforo na faixa normal

Os níveis de fósforo recomendados pelo KDIGO são semelhantes para os pacientes com DRC estágios 3-5D e devem ser mantidos dentro da faixa normal do método utilizado. Essa recomendação difere das diretrizes brasileiras e norte-americanas que recomendavam níveis de fósforo normais em pacientes nos estágios 3 e 4, enquanto no estágio 5 eram recomendados valores um pouco mais liberais, que variavam de 3,5 a 5,5 mg/dL. O racional da opção por níveis mais baixos de fósforo mesmo em estágios mais avançados da doença reside nas evidências recentes da relação entre níveis de fósforo mais elevados, ainda que no limite superior da normalidade, e maior risco de morte e eventos cardiovasculares em indivíduos com função renal normal e com perda de função. É importante ressaltar a ausência de ensaios clínicos randomizados que determinem se o controle dos níveis de fósforo tem impacto sobre a morbimortalidade da população com DRC e qual exatamente seria a faixa-alvo ideal. Portanto, considerando-se apenas as evidências epidemiológicas atuais, parece ser razoável manter a fosforemia tão próxima do normal quanto possível.

Controle de cálcio - alvo terapêutico: DRC estágios 3 a 5D: manter o cálcio na faixa normal

De maneira semelhante à recomendação referente ao fósforo, os níveis de cálcio recomendados pelo KDIGO são aqueles que se encontram dentro da normalidade do método empregado para todos os estágios da doença. Novamente, nesse caso, a orientação do KDIGO difere das diretrizes brasileiras e norte-americanas, que recomendam manter os níveis de cálcio sérico entre 8,4 e 9,5 mg/dL, com base em estudos prévios de associação entre níveis de cálcio acima desses valores e mortalidade em pacientes com DRC. No entanto, como não existem estudos randomizados e prospectivos que estabeleçam o nível ideal a ser mantido, o KDIGO optou por uma recomendação mais conservadora, aguardando novos dados que poderão surgir de estudos futuros.

Concentração de cálcio no dialisato: é recomendada uma concentração de cálcio no dialisato de 2,5 a 3,0 mEq/L

O balanço de cálcio durante a sessão de diálise depende do conteúdo corporal total de cálcio, da calcemia e também dos níveis séricos de PTH. Nos pacientes em hemodiálise, esse balanço sofre a influência da taxa de ultrafiltração e do cálcio iônico. Poucos estudos avaliaram o efeito da concentração de cálcio no dialisato sobre o balanço de cálcio, mas parece haver neutralidade, na maioria dos pacientes, quando a concentração de cálcio no dialisato é igual a 2,5-3,0 mEq/L. Na diálise peritoneal, pelo fato da exposição ao dialisato ser mais prolongada e pela maior prevalência de doença óssea adinâmica nesta população, parece recomendável usar concentrações reduzidas de cálcio. Essas recomendações são semelhantes às diretrizes brasileiras. No nosso caso, a orientação é usar concentração de 2,5 mEq/L para pacientes com PTH sérico menor do que 150 pg/mL e de 3,0 mEq/L naqueles com PTH sérico acima de 500 pg/mL. Já as diretrizes americanas sugerem usar uma concentração de cálcio no dialisato de 2,5 mEq/L para a maioria dos pacientes. Na realidade, mais uma vez, a polêmica existe porque não existem estudos prospectivos e randomizados que tenham avaliado o efeito de diferentes concentrações de cálcio no dialisato sobre os níveis de PTH, desenvolvimento de calcificações vasculares e desfechos como fraturas, internações e mortalidade.

Uso de quelantes de fósforo: recomenda-se o uso de quelantes de fósforo em todos os estágios de DRC em caso de hiperfosfatemia. o uso dos quelantes à base de cálcio deve ser evitado quando houver hipercalcemia, doença óssea adinâmica, níveis baixos de PTH ou evidências de calcificação arterial

As diretrizes do KDIGO, assim como as brasileiras e norte-americanas, recomendam a utilização de quelantes de fósforo na vigência de hiperfosfatemia em todos os estágios de DRC. Todos os quelantes de fósforo disponíveis são efetivos na redução da fosforemia. No entanto, as evidências sobre os efeitos de cada classe de quelante sobre outros desfechos como morbimortalidade, calcificação vascular e doença óssea permanecem inconclusivas. Assim, a escolha do quelante deve ser individualizada. Quanto ao impacto do uso das diferentes classes de quelantes sobre os desfechos clínicos, apenas dois estudos randomizados compararam a morbimortalidade entre pacientes no estágio 5D que usaram sevelamer e quelantes à base de cálcio. Ambos apresentam sérias limitações metodológicas e seus resultados foram conflitantes. Nenhum deles avaliou desfechos como fraturas, eventos cardiovasculares ou necessidade de paratireoidectomias. Com relação ao benefício do uso de quelantes sobre a progressão de calcificações vasculares, há cinco estudos prospectivos já concluídos, um deles em pacientes com DRC estágio 3 a 5 e os demais em pacientes com DRC estágio 5D. Novamente, as evidências se mostraram conflitantes. Em dois dos estudos, o uso de cloridrato de sevelamer atenuou a progressão da calcificação arterial quando comparado ao uso de quelantes à base de cálcio. Nos outros dois estudos, não houve diferença entre os grupos. A prevalência de calcificação vascular é um desfecho intermediário e ainda não há evidências de que retardar sua progressão se traduza em redução de eventos cardiovasculares ou mortalidade. O impacto do uso de lantânio como quelante sobre desfechos clínicos e calcificação vascular não foi avaliado.

As alterações de remodelação óssea com o uso de diferentes quelantes foram heterogêneas e parecem depender da histologia óssea de base. Já os parâmetros bioquímicos parecem diferir com o uso de quelantes à base de cálcio quando comparados aos demais quelantes, pois níveis de cálcio elevados e supressão do PTH foram mais frequentes no primeiro grupo considerando-se o conjunto dos estudos avaliados. As diretrizes do KDIGO mantiveram as recomendações anteriores quanto à restrição de cálcio no que se refere às situações de hipercalcemia, PTH reduzido, doença óssea adinâmica e calcificações arteriais, embora as evidências nos dois últimos casos sejam inconclusivas.

Restrição ao uso de quelantes à base de alumínio: é recomendado evitar o uso de quelantes à base de alumínio a longo prazo.

O KDIGO recomenda que não sejam utilizados quelantes à base de alumínio devido ao risco de intoxicação pelo metal e ao grande número de opções de quelantes que não contêm o metal. Não se sabe, até o momento, por quanto tempo seria seguro utilizar quelantes à base de alumínio. Essa recomendação é semelhante à das diretrizes brasileiras.

Restrição dietética de fósforo: é recomendada a restrição dietética de fósforo associada ou não ao uso de quelantes.

A restrição dietética de fósforo é factível, sem prejuízo ao estado nutricional do paciente. Entretanto, não existem evidências inequívocas da utilidade isolada dessa medida como intervenção primária. Um único estudo avaliou o uso de dieta pobre em fósforo isolada ou associada ao uso de quelantes e não houve benefício sobre a progressão de calcificações vasculares. Como na maior parte dos tópicos comentados até o momento, são necessárias novas evidências que comprovem o impacto da intervenção sobre desfechos clínicos. As diretrizes do KDIGO não recomendam valores específicos de ingestão diária de fósforo a serem seguidos. Já as diretrizes norte-americanas recomendam ingestão diária de fósforo de 800 mg, enquanto as brasileiras utilizam esse valor para pacientes em diálise e até 700 mg diários para aqueles com DRC 3 e 4.

Remoção dialítica de p na hiperfosfatemia persistente: é recomendado aumentar a remoção dialítica de fósforo em caso de hiperfosfatemia persistente.

O KDIGO recomenda, como as diretrizes anteriores, que seja incrementada a remoção intradialítica de fósforo, embora não esteja bem definida qual a melhor estratégia a ser utilizada. Um único estudo comparou um grupo de pacientes em hemodiálise convencional com pacientes em hemodiálise noturna prolongada diária e observou que, após 6 meses, houve melhor controle de fósforo e PTH, assim como a redução da necessidade de quelantes de fósforo. Trata-se da única evidência disponível. É urgente a necessidade de novos estudos que definam o impacto de regimes alternativos de diálise como, por exemplo, a diálise diária curta no controle do fósforo sérico.

Tratamento dos níveis anormais de paratormônio (PTH)

Pacientes com DRC frequentemente apresentam anormalidades nos níveis séricos de PTH implicados nas doenças ósseas e no aumento da mortalidade cardiovascular. Desta forma, o controle adequado dos níveis séricos de PTH, nos vários graus de lesão renal, é essencial para evitar tais complicações.

Segundo o KDOQI e as Diretrizes Brasileiras, o nível adequado de PTH em pacientes com DRC em fase pré-dialítica varia de acordo com o grau de insuficiência renal, sendo orientado manter o PTH entre 35 e 70 pg/mL (estágio 3), 70 e 110 pg/mL (estágio 4) e 150 e 300 pg/mL (estágio 5). Segundo a resolução do KDIGO, o valor adequado de PTH para esses pacientes permanece indeterminado; no entanto, a diretriz sugere que devamos mantê-lo até o limite superior do método. A elevação do PTH nesses pacientes pode corresponder a um mecanismo compensatório para manutenção da homeostase mineral do cálcio e do fósforo; porém a elevação contínua e sustentada desse hormônio leva a alterações deletérias ao organismo, devendo, portanto, ser corrigida. A abordagem terapêutica desses pacientes deve inicialmente ser realizada pelo controle dos níveis séricos de cálcio, fósforo e pela correção da deficiência de vitamina D. Apenas após o controle desses fatores estaria indicado o tratamento com calcitriol ou análogos da vitamina D.

Para pacientes em diálise, a recomendação das diretrizes norte-americanas e brasileiras é a manutenção dos níveis de PTH sérico entre 150 e 300 pg/mL. Entretanto, a determinação dos níveis ideais de PTH ainda continua um desafio. Fatores como a metodologia de dosagem do PTH e a falta de correlação entre histologia óssea e valores intermediários de PTH dificultam a determinação dos níveis ideais. Dessa forma, o KDIGO sugere que devemos evitar valores extremos de PTH procurando mantê-lo entre duas a nove vezes o limite superior para o método utilizado. O acompanhamento longitudinal do paciente é imprescindível para a abordagem terapêutica. Diante de uma tendência de desvio da faixa recomendada, medidas imediatas devem ser adotadas para o retorno aos níveis sugeridos. Isso implica no uso de calcitriol ou análogos de vitamina D e/ou calcimiméticos. É razoável que a seleção da droga de primeira escolha para tratamento do hiperparatireoidismo secundário dependa dos níveis séricos de cálcio e fósforo. Pacientes que desenvolvem hipercalcemia e/ou hiperfosfatemia devem evitar o uso de calcitriol ou análogos de vitamina D, ou, se já em uso dessas drogas, devem ter sua dose reduzida. Por outro lado, naqueles com hipocalcemia, o uso de calcimiméticos deve ser interrompido dependendo de sua severidade, sintomatologia e de medicações concomitantes. Naqueles indivíduos com redução do PTH abaixo de duas vezes o limite superior do método, calcitriol, análogos de vitamina D e calcimiméticos devem ser suspensos ou ter a sua dose reduzida. O uso de quelantes de fósforo (com ou sem cálcio) deve ser ajustado de forma que o tratamento não seja comprometido por modificações nos níveis de cálcio e fósforo. A ausência de estudos com metodologia adequada, e que mostrem desfechos clínicos favoráveis com uso de determinada classe de droga, nos impossibilita apontar, de forma definitiva, qual a melhor alternativa terapêutica para o controle dos níveis elevados de PTH. Para aqueles pacientes que não respondem de forma satisfatória à terapêutica clínica, é indicada a realização de paratireoidectomia. A definição de hiperparatireoidismo refratário é muito difícil. De forma geral, níveis crescentes de PTH estão associados à menor chance de resposta ao tratamento clínico. Entretanto, o nível exato de PTH que determine refratariedade ao tratamento ainda não foi definido. As técnicas cirúrgicas, de forma geral, são equivalentes, com frequência semelhante de recorrência do hiperparatireoidismo ou de desenvolvimento de hipoparatireoidismo. Entretanto, candidatos a transplante renal não devem ser submetidos à paratireoidetomia total sem autotransplante.

Diagnóstico da calcificação vascular

Para o KDIGO e para as diretrizes brasileiras, o diagnóstico DMO-DRC inclui a detecção de calcificação extraóssea. Isso se deve ao fato de que nos pacientes com DRC, a calcificação vascular é precoce, severa, prevalente e acelerada quando comparada à população geral. A presença e a severidade da calcificação têm sido associadas à maior incidência de eventos cardiovascular e são fortes preditoras de morbimortalidade. A associação entre a presença de calcificação e mortalidade foi identificada em 9 dentre 10 estudos com pacientes com DRC, a maioria em diálise. A calcificação vascular é um processo ativo, altamente regulado e ocorre em dois sítios distintos, na íntima e na camada média do vaso, com diferente apresentação clínica, tratamento e prognóstico. A prevalência da calcificação aumenta com a diminuição da função renal. Na revisão realizada pelo grupo do KDIGO, foram identificados 25 estudos que descrevem a prevalência da calcificação extraóssea, em aproximadamente 4.000 pacientes, a maioria em estágio 5 da DRC. Esses estudos evidenciaram calcificação coronariana em 51% a 93% dos pacientes, calcificação valvar em 20% a 47% e em outros sítios a prevalência variava muito, dependendo da sensibilidade do método utilizado. A progressão da calcificação foi avaliada em oito estudos, sendo que a maioria com pacientes no estágio 5, em períodos de 1 a 3 anos, e foram utilizados vários métodos para avaliar a progressão. A conclusão desses estudos apontou que o grau de progressão em 1 ano é dependente da presença de calcificação vascular prévia. Vários fatores foram associados ao desenvolvimento e a progressão. Entre eles, destacam-se fatores clínicos (idade, sexo masculino, diabetes, tempo de diálise, ingestão de cálcio) e bioquímicos (PTH, fosfatase alcalina, fósforo, produto Cálcio x Fósforo, proteína C reativa). Entretanto, esses achados não foram uniformemente reproduzidos nos diferentes estudos avaliados.

Enquanto as diretrizes brasileiras recomendam a investigação da presença da calcificação vascular em todo o paciente portador de DRC e com reavaliação anual, o grupo de estudo do KDIGO, de forma não unânime, não recomenda investigação de calcificação indiscriminadamente em todos os pacientes. Essa recomendação baseou-se no fato de haver inconsistências quanto ao tratamento indicado frente a um exame positivo e de que há evidências limitadas sobre o impacto das intervenções na mortalidade. Entretanto, foi consenso no grupo que conhecer a presença da calcificação vascular e da sua magnitude ajuda a identificar pacientes de alto risco. E a presença de calcificação deve ser considerada um componente complementar a ser incorporado na decisão do tratamento individualizado da DMO-DRC.

Para O KDIGO, o teste recomendado para o diagnóstico da calcificação é a tomografia computadorizada, por ser um teste quantitativo e o mais sensível. Já as diretrizes brasileiras recomendam que a investigação de calcificação vascular pode ser feita por métodos quantitativos (nesse caso, a tomografia computadorizada) ou semiquantitativos. O fato é que ainda existem controvérsias quanto a sensibilidade e especificidade de outros métodos usados na identificação da calcificação. Um único estudo publicado evidenciou que a radiografia lateral de abdômen e o ecodopplercardiograma podem ser úteis na avaliação da presença de calcificação por apresentarem razoáveis sensibilidade e especificidade.

Outras opções para o tratamento da doença óssea

A presença de lesões ósseas é uma consequência comum da DRC, e pacientes portadores dessa patologia têm um risco aumentado de fratura quando comparados com a população geral. O risco de fratura está relacionado com a densidade mineral óssea e a qualidade óssea, em conjunto com o risco de queda e trauma, fatores presentes na DRC. Contrariamente ao observado na população geral, a análise da densidade mineral óssea não prediz o risco de fratura em pacientes com DMO-DRC, evidenciando a importância da qualidade óssea nesses pacientes. Além disso, a análise da densidade mineral óssea não distingue os diferentes tipos de osteodistrofia renal. Os estudos que avaliaram as medicações para o tratamento da osteoporose pós-menopausa, como risendronato, alendronato, o teriparatide e raloxifeno, excluíram pacientes com níveis séricos aumentados de creatinina, PTH e fosfatase alcalina. No entanto, análises post-hoc desses estudos identificaram, empregando a fórmula de Cockcroft-Gault, que indivíduos com redução moderada da função renal (DRC estágio 3) foram incluídos no estudo e que se beneficiaram do tratamento utilizado na população geral. Todavia, não há estudos baseados em evidências que avaliaram essas terapias na DRC estágios 3 a 5D. Finalmente, o déficit de crescimento é um dos achados cardinais da DRC progressiva em crianças, e é também um dos componentes da DMO-DRC. Com base nesse racional, o KDIGO propôs que a análise da densidade mineral óssea não deve ser realizada de rotina em pacientes com DRC estágios 3 a 5D. Já as diretrizes norte-americanas propõem que a análise da densidade mineral óssea seja realizada em todo paciente com risco de osteoporose, sem especificar quais seriam esses pacientes. As diretrizes brasileiras não abordam esse tópico. O KDIGO ainda sugere que, em pacientes com DRC estágios 1 a 3 com osteoporose e/ou alto risco de fratura, conforme os critérios da OMS, o tratamento seja semelhante ao da população geral. Já os pacientes com DRC estágio 3 com anormalidades bioquímicas de DMO-DRC e densidade mineral óssea baixa e/ou fraturas patológicas, recomenda-se que as escolhas de tratamento considerem a magnitude e a reversibilidade das anormalidades bioquímicas, assim como a progressão da DRC. A realização de biopsia óssea deve ser considerada. Nos pacientes com DRC estágios 4 a 5D com anormalidades bioquímicas de DMO-DRC e densidade mineral óssea baixa e/ou fraturas patológicas, recomenda-se investigação adicional com biopsia óssea antes de iniciar terapia com agentes antiosteoporose e o tratamento sistemático não é recomendado. Em crianças e adolescentes com DRC estágios 2 a 5D e déficit de crescimento relacionado, recomenda-se tratamento com hormônio do crescimento recombinante, que deve ser iniciado após investigação e tratamento de desnutrição e anormalidades bioquímicas da DMO-DRC.

Avaliação e tratamento da doença óssea após o transplante renal

Com o aumento do número e da sobrevida dos pacientes transplantados renais, surgem novos desafios para o seu tratamento. A persistência da doença óssea após o transplante é frequente, piora a qualidade de vida e aumenta a morbidade. O transplante renal bem sucedido geralmente corrige ou melhora o DMO-DRC. No entanto, muitos pacientes persistem com alterações ósseas, resultado de uma complexa interposição de diferentes fatores. Dentre eles, vale ressaltar a resolução incompleta do DMO-DRC, devido ao funcionamento deficiente do enxerto e à ação de drogas imunossupressoras. No período precoce do transplante renal, há uma flutuação importante dos marcadores bioquímicos do DMO-DRC, sendo hipofosfatemia, hipercalcemia e queda do PTH as alterações mais encontradas. No período tardio, há normalização do nível sérico do fósforo, e o cálcio e o PTH tendem a se estabilizar nos limites superiores da normalidade. Os níveis de calcitriol dependerão do funcionamento do enxerto. Além desses fatores, os transplantados também estão sujeitos aos mesmos fatores de risco para perda de massa óssea, isto é, o desenvolvimento de osteoporose, observados na população geral, ou seja, idade, sexo, raça, hipogonadismo, estado nutricional e atividade física. As principais consequências da diminuição da massa óssea são maior risco de fraturas e maior incidência de doenças cardiovasculares, os quais, apesar de tradicionalmente serem vistos como entidades distintas, possuem mecanismos fisiopatológicos comuns. A maioria dos estudos mostra uma perda óssea rápida e intensa nos primeiros 6 a 12 meses após o transplante renal, o que justifica a elevada prevalência de fraturas nesses pacientes. A densidade mineral óssea normal em pacientes transplantados não afasta o risco de fratura, já que pode haver alterações na integridade óssea, não detectadas pela densitometria. Nessa população, a correlação entre DMO e risco de fratura não está estabelecida. As anormalidades da histologia óssea são uniformemente relatadas nos estudos, mas a etiologia e a patologia são variáveis. A doença óssea existente no período da diálise tende a se resolver de forma lenta de acordo com o bom funcionamento de enxerto, reduzidas doses de imunossupressores e resolução do DMO-DRC. Ainda não dispomos de estudos randomizados e controlados que tenham avaliado o impacto de uma determinada intervenção terapêutica sobre desfechos clínicos como mortalidade, hospitalizações, fratura óssea e necessidade de paratireodectomia nesses pacientes. O uso de cálcio, análogos da vitamina D e bisfosfonatos parecem melhorar a densidade mineral óssea de pacientes transplantados renais. No entanto, os estudos que realizaram biopsia óssea para essa avaliação são escassos. Não temos definição de quais pacientes poderiam, realmente, beneficiar-se desses tratamentos. Por tudo isso, não é possível generalizar uma estratégia terapêutica para tais pacientes.

As diretrizes brasileiras não abordaram este tópico, enquanto as diretrizes norte-americanas foram pioneiras em assumir que a doença óssea é frequente após o transplante renal. Assim, tanto essas diretrizes como o KDIGO propõem a dosagem frequente de cálcio e fósforo após o transplante renal imediato, até a estabilização dos seus valores. Após o período imediato do transplante, deve ser realizada a monitoração do cálcio, fósforo e PTH, dependendo da magnitude das alterações e da progressão da DRC: quanto mais avançada a DRC, mais frequente deve ser essa monitoração. O KDIGO também sugere que a dosagem de calcidiol seja realizada em todos os pacientes transplantados, e que tanto a deficiência e a insuficiência quanto vitamina D sejam corrigidas. Com relação à dosagem da densidade mineral óssea, enquanto as diretrizes norte-americanas sugerem a realização desse exame em todo paciente submetido a transplante renal, o KDIGO sugere que ele seja realizado apenas naqueles que receberam altas doses de corticoides ou possuem fatores de risco para osteoporose. O tratamento poderá ser realizado com Vitamina D, Calcitriol ou Bisfosfonatos, dependendo dos valores de cálcio, fósforo, fosfatase alcalina, PTH e calcidiol. O KDIGO também recomenda a realização de biopsia óssea sempre que possível, previamente ao uso de bisfosfonatos. Há também a orientação de não realizar densitometria óssea nos transplantados com DRC 4 a 5T, já que esse exame não é capaz de predizer risco de fratura nem o tipo de doença óssea. A sugestão é que esses pacientes sejam tratados como pacientes portadores de DRC 4 a 5 em tratamento conservador, o que já era recomendado pelas diretrizes norte-americanas.

Recomendações para pesquisa

A despeito de todas as informações contidas no documento do KDIGO, o grupo de trabalho salienta a necessidade de pesquisas de alta qualidade nessa área, visto que a maior parte das recomendações são baseada em nível 2 (fracas) e com grau de qualidade de evidência C (baixo). A necessidade de mais estudos nessa área, bem como na nefrologia como um todo, fica evidente quando comparamos a produção científica de alta qualidade entre nossa especialidade e outras especialidades da medicina interna. De 1966 até 2002, a nefrologia produziu 2.779 estudos clínicos prospectivos, controlados e randomizados contra 27.109 na cardiologia. Por outro lado, levando-se em conta a elevada incidência e prevalência da DRC no mundo, existe a possibilidade de aumento na produção científica em nefrologia. No Brasil, a prevalência da DRC aumenta a cada ano e, atualmente, 77.589 pacientes encontram-se em diálise. Esse significativo contingente populacional sinaliza a possibilidade para a realização de estudos clínicos de alta qualidade.

As recomendações para pesquisa contidas no KDIGO abrangem, principalmente, questões relativas a desfechos clínicos. Ressalta-se a necessidade de pesquisas que permitam a estratificação de risco baseada nos componentes do metabolismo ósseo e mineral, a definição do papel do uso sequencial da densitometria óssea na predição de fraturas ósseas, a avaliação do nível ideal de fósforo e da eficiência de quelantes de fósforo nos diferentes estágios da DRC e o impacto na sobrevida dos pacientes, o impacto de drogas como bifosfonatos, teriparatide e raloxifeno sobre o risco de fraturas e calcificação vascular, e a determinação do papel da vitamina D e análogos sobre progressão de DRC e mortalidade.

Em conclusão, a maioria das decisões terapêuticas atuais em DMO-DRC baseia-se em dados científicos de baixo grau de evidência e na opinião de especialistas. A comunidade científica nefrológica precisa mudar essa realidade através de estudos prospectivos, controlados, randomizados, com número adequado de pacientes e seguimento superior a 6 meses, e com desenho adequado para avaliação de desfechos clínicos como mortalidade e progressão de DRC.

Conclusões

Após a exposição de todos os tópicos, foi aberta discussão com os integrantes do Fórum. Os participantes expuseram sua opinião com relação às diretrizes do KDIGO e seu potencial uso pelos nefrologistas brasileiros. A maior preocupação dos participantes foi a não adoção das diretrizes brasileiras pelas autoridades do governo brasileiro. Assim, na atualidade, os protocolos clínicos implementados pelo governo federal são confusos, dando margem a interpretações distintas pelas diversas Secretarias de Saúde de cada Estado. Dessa forma, o fornecimento de medicamentos para o tratamento do DMO-DRC é variável no território brasileiro e não são todos os pacientes portadores de DRC que têm acesso ao tratamento adequado.

Diante dessa situação preocupante, os participantes do Fórum decidiram encaminhar carta ao Ministério da Saúde, descrita a seguir.

Finalmente, o Fórum também decidiu que é necessária a revisão das Diretrizes Brasileiras para o tratamento do DMO-DRC e sugeriram à Sociedade Brasileira de Nefrologia a organização de novo grupo de discussão para esse fim.

São Paulo, 19 de novembro de 2009.

À Sociedade Brasileira de Nefrologia

Att. Prof. Dr. Emmanuel A Burdmann

Ref. Mudança urgente da Portaria do Ministério da Saúde referente ao cuidado com o paciente com DRC

Prezado Professor,

No último dia 14 pp. foi realizado o Fórum Nacional de Discussão das Diretrizes do KDIGO para o DMO-DRC, com apoio desta Sociedade. Estiveram presentes mais de 60 nefrologistas de todo o país.

Na ocasião, discutimos, detalhadamente, todas as diretrizes recentemente publicadas pelo KDIGO para o distúrbio mineral e ósseo da DRC frente à realidade brasileira. Os participantes do Fórum concluíram a necessidade de urgente mudança de alguns tópicos das portarias vigentes do Ministério da Saúde relacionadas ao cuidado do paciente com DRC como descrito abaixo:

1. Mudar a frequência da dosagem do PTH intacto para a cada 3 meses.

2. Instituir dosagem da 25 hidroxi-vitamina D a cada 12 meses.

3. Instituir a realização anual de Rx simples lateral de abdômen para pacientes que ainda não possuem diagnóstico de calcificação vascular ou valvar.

4. Suspender a dosagem anual do alumínio sérico.

5. Instituir o teste ao Desferal (2 dosagens de alumínio sérico + uma ampola de Desferal 500 mg), de acordo com indicação médica.

6. Disponibilizar quelantes livre de cálcio em situações específicas definidas na diretriz da SBN (hipercalcemia, PTHi < 150 pg/mL em duas medidas consecutivas, produto CaxP > 55 mg2/dL2, presença de calcificação extraóssea).

7. Determinar que o fabricante de solução concentrada para diálise especifique a concentração de alumínio contida no produto.

Certos de vossa atenção,

Fórum Nacional de Discussão das Diretrizes do KDIGO para o DMO-DRC

Demais integrantes deste fórum:

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Data da submissão: 19/7/2010

Data da aprovação: 19/7/2010

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Encontro organizado pela Sociedade Brasileira de Nefrologia, com o patrocínio do Laboratório Genzyme.

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    KDIGO. Clinical practice guidelines for the diagnosis, evaluation, prevention and treatment of chronic kidney disease-mineral and bone disorder (CKD-MBD). Kidney Int 2009; 76:S1-S113.
  • 2. K/DOQI. Clinical practice guidelines for bone metabolism and disease in chronic kidney disease. Am J Kidney Dis 2003; 42:1-202.
  • 3. Diretrizes Brasileiras de Prática Clínica para o Distúrbio Mineral e Ósseo na Doença Renal Crônica. J Bras Nefrol 2008; 30:1-42.
  • Correspondência para:

    Rosa Maria Affonso Moysés
    Disciplina de Nefrologia da FMUSP
    Rua Iperoig, 690 ap 121. Perdizes
    São Paulo - São Paulo CEP 05016-000
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2010

    Histórico

    • Aceito
      19 Jul 2010
    • Recebido
      19 Jul 2010
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