Acessibilidade / Reportar erro

Manejo da doença crônica do enxerto renal

Resumos

A doença crônica do enxerto renal permanece sendo uma importante causa de perdas de enxertos. Ela está relacionada a fatores de risco imunológicos e não imunológicos que podem estar presentes antes do transplante ou que após ele se desenvolvam. A avaliação histológica do tecido renal tem papel importante no seu manejo, em especial para a avaliação de atividade imunológica contra o enxerto e toxicidade de drogas imunossupressoras. O manejo dessa condição está em geral restrito a alterações no regime imunossupressor e no manejo geral de condições relacionadas à progressão da doença renal crônica.

Transplante de rim; Falência renal crônica; Biópsia; Rejeição de enxerto; Imunossupressão


Chronic renal allograft disease remains a leading cause of graft loss. Immunologic and non-immunologic risk factors are related to its development and may be present before or develop after transplantation. Histological evaluation of renal tissue has an important role in the management, especially for the evaluation of immune activity against the graft and toxicity of immunosuppressive drugs. Management of this condition is generally restricted to changes in the immunosuppressive regimen and the overall control of conditions related to the progression of chronic kidney disease.

Kidney transplantation; Kidney failure, chronic; Biopsy; Graft rejection; Immunosuppression


ARTIGO ORIGINAL

Manejo da doença crônica do enxerto renal

Management of chronic allograft nephropathy

Roberto Ceratti Manfro

Hospital de Clínicas de Porto Alegre - HCPA

Correspondência para Correspondência para: Roberto Ceratti Manfro Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Serviço de Nefrologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre Rua Ramiro Barcelos, 2.350 Porto Alegre - RS - Brasil CEP 90040-903 E-mail: rmanfro@hcpa.ufrgs.br

RESUMO

A doença crônica do enxerto renal permanece sendo uma importante causa de perdas de enxertos. Ela está relacionada a fatores de risco imunológicos e não imunológicos que podem estar presentes antes do transplante ou que após ele se desenvolvam. A avaliação histológica do tecido renal tem papel importante no seu manejo, em especial para a avaliação de atividade imunológica contra o enxerto e toxicidade de drogas imunossupressoras. O manejo dessa condição está em geral restrito a alterações no regime imunossupressor e no manejo geral de condições relacionadas à progressão da doença renal crônica.

Palavras-chave: Transplante de rim. Falência renal crônica. Biópsia. Rejeição de enxerto. Imunossupressão.

ABSTRACT

Chronic renal allograft disease remains a leading cause of graft loss. Immunologic and non-immunologic risk factors are related to its development and may be present before or develop after transplantation. Histological evaluation of renal tissue has an important role in the management, especially for the evaluation of immune activity against the graft and toxicity of immunosuppressive drugs. Management of this condition is generally restricted to changes in the immunosuppressive regimen and the overall control of conditions related to the progression of chronic kidney disease.

Keywords: Kidney transplantation. Kidney failure, chronic. Biopsy. Graft rejection. Immunosuppression.

INTRODUÇÃO

Os significativos avanços na terapia imunossupressora, obtidos principalmente nas duas últimas décadas, levaram a importante diminuição da incidência da rejeição aguda e aumentos substanciais nas sobrevidas de pacientes e enxertos, em curto prazo, em receptores de transplantes renais. No entanto, a perda crônica dos enxertos, decorrente da doença crônica do enxerto renal (DCE), foi pouco afetada por tais avanços. Ela e o óbito com enxerto funcionante permanecem sendo as principais causas de perdas dos transplantes renais, levando juntos à perda anual de 3 a 5% dos rins transplantados após o primeiro ano pós-transplante.1, 2 Isso é corroborado pelo aumento apenas limítrofe das meias-vidas dos enxertos renais nos últimos anos.3

A DCE renal é possivelmente o resultado de diferentes agressões ao enxerto mediadas por mecanismos imunológicos e não imunológicos. À medida que os processos fisiopatogênicos se desenvolvem, as manifestações clínicas podem estar ausentes por algum tempo. Posteriormente, em geral de alguns meses a poucos anos após o transplante, ocorre um aumento progressivo da creatininemia, hipertensão arterial e proteinúria usualmente de baixa intensidade, as quais são frequentemente encontradas, podendo ocorrer simultaneamente ou de forma isolada. A demora em se diagnosticar essa condição se deve em parte à clara falta de acurácia da monitorização da função do enxerto pela creatinina sérica, a qual falha em demonstrar a perda progressiva de função neste e em outros contextos.2

Os achados histológicos estão presentes na maioria dos enxertos poucos anos após o transplante e atingem praticamente a totalidade deles após dez anos.4 A condição inicialmente denominada nefropatia crônica do enxerto (do inglês: chronic allograft nephropathy) levou à considerável confusão no entendimento e manejo da doença crônica do enxerto renal por transmitir a noção de que se trata de uma entidade nosológica específica. Presentemente, o termo fibrose intersticial e atrofia tubular (FI-AT) é empregado para a descrição patológica das condições em que fibrose e atrofia ocorrem na ausência de fatores etiológicos determinados, e o termo nefropatia crônica do enxerto foi retirado da classificação patológica. Esta busca agora classificar o que anteriormente era denominado nefropatia crônica do enxerto em rejeição crônica, nefropatia hipertensiva crônica, nefrotoxicidade por inibidores de calcineurina, obstrução crônica, pielonefrite crônica e infecções virais.5

Recentemente, o termo agressão crônica do enxerto (do inglês: chronic allograft injury) foi proposto para o papel de correlato da FI-AT, não tendo ainda sido amplamente incorporado no jargão da especialidade.6 Por outro lado, o termo nefropatia crônica do enxerto continua sendo largamente utilizado, no contexto clínico, para denotar a doença crônica, progressiva, do enxerto renal sem etiologia determinada, em geral iniciada três meses após a transplantação.6

Este trabalho tem por objetivo propiciar uma atualização sobre o manejo da DCE. Nele será usado o termo doença crônica do enxerto renal para denotar a condição nefropatia crônica do enxerto, termo o qual tende ao abandono.

SUMÁRIO DA PATOGÊNESE DA DOENÇA CRÔNICA DO ENXERTO RENAL

Múltiplos mecanismos podem estar relacionados ao desenvolvimento da DCE. Classicamente, fatores imunológicos e não imunológicos têm sido implicados na sua patogênese e estão sumariados na Figura 1. Os fatores imunológicos, relacionados à aloimunidade, ficam demonstrados por diversas observações clínicas, como a boa compatibilidade nos antígenos do sistema HLA (fator protetor) e a ocorrência de rejeição aguda celular, clínica ou subclínica, rejeição mediada por anticorpos e a má aderência aos medicamentos imunossupressores (fatores de risco). As rejeições recorrentes, graves, tardias (> 90 dias pós-transplante), com componente vascular, e as córtico-resistentes são especialmente preditivas da ocorrência de DCE. Evidências recentes apontam para um papel predominante das rejeições medidas por anticorpos na patogênese das perdas tardias dos enxertos renais.7,8 Outros fatores que envolvem o sistema imune, mas não dependentes dos aloantígenos, são as infecções virais, em especial pelo vírus polioma.9 A infecção pelo citomegalovírus está envolvida na doença crônica de transplantes cardíacos e hepáticos, mas seu papel no desenvolvimento da DCE permanece incerto.10


Os fatores não imunológicos dizem respeito mais diretamente: (a) à qualidade do órgão implantado, que está diretamente relacionada à idade do doador, pelos mecanismos senescência renal, "dose" de néfrons, possivelmente maior imunogenecidade e a presença de comorbidades (e.g. hipertensão arterial sistêmica); (b) aos insultos a que o órgão é submetido antes do transplante (causa mortis e manejo do doador falecido), processo de retirada e conservação dos órgãos (isquemias quente e fria e possivelmente o tipo de preservação); (c) a agressões pós-transplante, como o uso de drogas nefrotóxicas, com destaque para os inibidores de calcineurina (IC);11-13 e (d) a fatores relacionados ao receptor presentes antes do transplante ou que após ele se desenvolvam, como recorrência de doença de base, diabetes mellitus, hipertensão arterial, dislipidemias e obstrução vascular ou urinária.

MANEJO DA DOENÇA CRÔNICA DO ENXERTO RENAL

Atualmente, o manejo da DCE renal está restrito às chamadas condições modificáveis que são basicamente o manejo das drogas imunossupressoras para controle da aloimunidade e minimização ou eliminação de sua nefrotoxicidade, tratamento da hipertensão arterial, diabetes mellitus, proteinúria, dislipidemias, infecções e possivelmente o manejo da anemia e do metabolismo dos íons divalentes. Um algoritmo sumariando as medidas de manejo está demonstrado na Figura 2.


A biópsia do enxerto renal tem papel crucial no manejo da DCE. Apesar de suas diversas limitações, a avaliação histológica, até o presente momento, é a única capaz de demonstrar diferentes situações cujo manejo pode ser importante na DCE. Como exemplo, temos a detecção de componente imune ativo (infiltrado intersticial, tubulite), depósito de frações do complemento (C4d), inclusões virais relacionadas ao vírus polioma, fibrose intersticial e atrofia tubular por nefrotoxicidade, entre outros. Ademais, apesar das diversas possibilidades em termos fisiopatogênicos, o elemento de maior importância prognóstica é a demonstração de componente imune ativo, mesmo em enxertos com função estável em que se detecte atividade imunológica em termos histológicos.14,15 Novos métodos não invasivos poderão potencialmente substituir a biópsia do enxerto para essas e outras finalidades.8,16-18

A DCE pode ser vista como a variante da doença renal crônica (DRC) que ocorre no paciente com rim transplantado. Assim, os princípios que norteiam o manejo da DRC podem e, em geral, devem ser aplicados às condições passíveis de manipulação citadas anteriormente. Considere-se que essas condições são também fatores de risco cardiovascular e que as doenças cardiovasculares são a principal causa de óbito em pacientes transplantados renais após o primeiro ano pós-transplante. A partir daqui, esta revisão será focada nos fatores modificáveis que podem ter impacto no estabelecimento e na progressão da DCE.19

NEFROTOXICIDADE DOS INIBIDORES DE CALCINEURINA

Os IC são os imunossupressores mais eficazes do atual armamentário e são utilizados na maior parte dos protocolos de imunossupressão.20 A detecção de componente imune, seja pelo resultado da biópsia renal ou pela detecção de anticorpos anti-HLA do doador, no contexto da disfunção do enxerto, aponta para a necessidade de adequação da imunossupressão, o que deve incluir a revisão da adesão do paciente ao uso desses medicamentos.

Na direção contrária da utilidade dos IC está a ocorrência da nefrotoxicidade relacionada ao seu uso, tida como a maior causa de disfunção de enxertos renais, assim como uma importante causa de disfunção renal em pacientes que recebem outros tipos de enxertos.4,12 Esse paradigma, no entanto, foi recentemente questionado em favor do conceito de que o dano à microcirculação do enxerto, mediado pela presença de anticorpos anti-HLA, seja o mecanismo determinante da perda crônica dos enxertos renais.8

Em pacientes nos quais a nefrotoxicidade por inibidores de calcineurina esteja estabelecida, o seu manejo pode envolver a minimização ou a retirada dessas drogas, nestes casos, em geral, substituindo-as por outros imunossupressores eficazes. Existe também a sugestão, em um estudo randomizado com pequeno número de pacientes, de que a substituição da ciclosporina pelo tacrolimo possa levar à melhora da função do enxerto.21

Estratégias envolvendo o uso de derivados do ácido micofenólico, sirolimo, everolimo, e belatacept, este último com estudos de fase III em andamento, têm sido propostas para tal finalidade e serão brevemente revisadas. Em um estudo randomizado, envolvendo pacientes com deterioração progressiva da função renal, a substituição de azatioprina por micofenolato mofetil (MMF) com posterior retirada da ciclosporina resultou em estabilização da função renal em maior número de pacientes no grupo que recebeu MMF comparado ao grupo em que foi mantida a terapia com azatioprina e ciclosporina.22 Em outra abordagem, a dose de ciclosporina foi reduzida à metade após a adição de MMF, o que da mesma forma resultou em estabilização da função renal no grupo em que a dose de ciclosporina foi diminuída enquanto houve piora progressiva no grupo com as doses mantidas.23

Estratégias com inibidores da mTOR têm sido publicadas.13,24-26 No estudo mais robusto até o momento, foi demonstrado que os pacientes com taxa de filtração glomerular (TFG) > 40 mL/min apresentam melhora da função renal e menor incidência de neoplasias 24 meses após a conversão para sirolimo do que o grupo controle. Foi, no entanto, observado aumento significativo da proteinúria. O estudo foi suspenso precocemente no braço em que os pacientes apresentavam TFG inicial entre 20-40 mL/min devido ao elevado número de pacientes que atingiram o desfecho primário.25 Achados semelhantes haviam sido descritos em revisão sistemática prévia com estudo com número mais substancial de pacientes, porém incluindo ensaios randomizados e não randomizados.24

HIPERTENSÃO ARTERIAL SISTÊMICA

Essa condição ocorre em aproximadamente 80% dos pacientes receptores de transplante renal em uso de inibidores de calcineurina.19,27,28 Dados obtidos a partir da análise de milhares de pacientes do Estudo Colaborativo de Transplantes (CTS, Collaborative Transplant Study) mostram claramente que o mau controle da pressão arterial, com pressão arterial sistólica maior que 130 mmHg, exerce efeito deletério na função dos enxertos em longo prazo e que o aumento gradual da pressão arterial está associado a aumento progressivo da perda de enxertos.27 Sendo a pressão arterial um fator de risco modificável para a perda de enxertos, os mesmos autores testaram o impacto do controle da PA neste desfecho, tendo encontrado que a diminuição da pressão arterial sistólica está associada a melhores índices de sobrevida de enxertos.28

Diversas drogas são utilizadas para o controle da pressão arterial em pacientes transplantados renais. Os bloqueadores dos canais do cálcio, da classe dos dihidropiridínicos, são efetivos em controlar a pressão arterial e, via vasodilatação arteriolar aferente, propiciam melhor taxa de filtração glomerular, em um estudo, comparados a um inibidor da enzima conversora da angiotensina (IECA),29 embora esse possa não ser um achado consistente.30 As drogas que atuam no sistema renina-angiotensina, os IECA e os bloqueadores do receptor 1 da angiotensina (BRA), por seus possíveis efeitos na proteção renal, são indicados para o manejo dos pacientes com proteinúria superior a 1,0 g/24 horas, tal como recomendado nas diretrizes KDIGO para transplantados renais. Entretanto, essas diretrizes não recomendam nenhuma classe preferencial de droga anti-hipertensiva exceto para as situações em que há proteinúria significativa.31

Dados experimentais demonstram que a ativação do SRA está envolvida no desenvolvimento de fibrose e que sua inibição está associada a menor progressão da DCE pela inibição propiciada em fatores mediadores de fibrose (revisado na referência 10). Por fim, para o manejo clínico dos pacientes com DCE renal, é pertinente lembrar que eles podem ter perda significativa de filtração glomerular e que nesta situação o uso de diuréticos é muitas vezes necessário para o controle da pressão arterial.

DISLIPIDEMIAS

A frequência de dislipidemias em pacientes transplantados renais é elevada, ocorrendo em aproximadamente 60% dos pacientes no decorrer do primeiro ano pós-transplante e existindo a sugestão de que possam estar relacionadas ao desenvolvimento de DCE.32 Neste contexto, a patogenia das dislipidemias é multifatorial e inclui a dislipidemia pré-transplante, ganho de peso, proteinúria, perda de função do enxerto, uso de corticosteróides, ciclosporina e sirolimo. Estudos observacionais e um ensaio clínico randomizado mostraram que a hipercolesterolemia e o aumento do LDL colesterol estão independentemente associados a eventos cardiovasculares em receptores de transplante renal.33

Redução da proteinúria, controle do diabetes e a menor frequência do hipotireoidismo podem levar à melhora nos níveis dos lípides séricos. Em alguns casos, pode haver necessidade de troca da medicação imunossupressora para o melhor controle das dislipidemias. O tratamento é feito em duas etapas. Inicialmente, a remoção de possíveis causas e mudanças no estilo de vida, incluindo dieta, redução de peso e exercícios. Posteriormente, o tratamento farmacológico é feito com estatinas e eventualmente com fenofibratos em pacientes com triglicerídeos muito elevados, sob monitorização rigorosa da função do enxerto. De acordo com as diretrizes atuais, pacientes transplantados renais adultos são considerados de elevado risco para doença isquêmica coronariana e devem ser mantidos com LDL-colesterol inferior a 100 mg/dL usando-se para tal uma estatina.5,34 Da mesma forma, níveis de triglicerídeos superiores a 500 mg/dL devem ser tratados. Em um estudo robusto, o uso de fluvastatina diminuiu em 38% a mortalidade cardiovascular em pacientes transplantados renais. Não há, no entanto, evidências clínicas de que as estatinas beneficiem a função dos enxertos ou protejam do desenvolvimento de DCE.34 Adicionalmente, em uma recente meta-análise, avaliou-se o uso de estatinas em pacientes com doença renal crônica, incluindo transplantados renais. Observou-se redução significativa do colesterol total, LDL-colesterol e da proteinúria. No entanto, não foi observado, nas avaliações em pacientes transplantados renais, diminuição de eventos cardiovasculares, de mortalidade global ou de mortalidade cardiovascular.35

DIABETES MELLITUS

O transplante renal em receptores diabéticos é progressivamente mais frequente. É também reconhecido que a incidência de diabetes mellitus pós-transplante (DMPT) aumentou significativamente com o uso de inibidores de calcineurina, em especial do tacrolimo, e que as abordagens com baixas doses e com a retirada precoce dos corticosteróides estão associadas à diminuição dessa incidência.36 Existem também sugestões de que os inibidores da mTOR possam estar envolvidos no desenvolvimento de DMPT.37

Está bem demonstrado que a ocorrência de DMPT leva a menor sobrevida de pacientes e de enxertos principalmente em função de complicações cardiovasculares e infecciosas. O manejo dessa condição é principalmente feito com dieta, intervenção no estilo de vida, redução de peso e tratamento farmacológico com insulina ou drogas hipoglicemiantes. Estas últimas têm a possibilidade de interação metabólica com as drogas imunossupressoras e limitada avaliação de segurança e eficácia em pacientes transplantados renais. Além disso, o uso de algumas dessas drogas pode estar contraindicado em pacientes com perda significativa de função renal.38

PROTEINÚRIA

Proteinúria é altamente prevalente após o transplante renal, ocorrendo em até 45% dos pacientes quando uma definição mais rigorosa é utilizada. Além de glomerulonefrites recorrentes ou de novo, proteinúria em receptores de transplante renal é comumente associada a diagnósticos específicos de nefropatia crônica do transplante, glomerulopatia do transplante e rejeição aguda. A proteinúria está associada à diminuição da sobrevida do enxerto, com risco estimado de perda de duas a cinco vezes maior, bem como risco aumentado de eventos cardiovasculares.

Em pacientes renais crônicos não transplantados com doenças proteinúricas, ensaios clínicos randomizados confirmaram que o bloqueio do sistema renina angiotensina está associado a melhores desfechos clínicos. Em receptores de transplante renal, a redução de proteínas na dieta e o tratamento com IECA ou BRA diminuem a proteinúria, mas até o momento não há evidências, em estudos randomizados robustos, de que essas estratégias levem a melhores sobrevidas ou preservação da função dos enxertos.39 Em um pequeno ensaio clínico randomizado com apenas 47 pacientes, observou-se que a terapia com lisinopril levou à redução de 30% da proteinúria; houve, porém, maior queda da filtração glomerular, embora sem significância estatística, no grupo que utilizou lisinopril.40 Estudos observacionais produziram resultados controversos em relação à utilidade dos IECA ou BRA em modificar desfechos de sobrevida do enxerto ou mortalidade.41,42

ANEMIA

A prevalência de anemia após o transplante renal varia entre 20 e 40%. Sua etiologia é multifatorial e inclui a função do enxerto, com a decorrente produção de eritropoietina, deficiência de ferro, perda sanguínea, presença de neoplasias, infecções e medicamentos comumente usados. Entre eles, estão alguns imunosupressores (azatioprina, derivados do ácido micofenólico, sirolimo e everolimo) e outros, como os IECA ou BRA.43,44 Existem sugestões de que os receptores de transplantes renais possam ter níveis de anemia maiores que os esperados para uma determinada função do enxerto, sem causa específica determinada.45 O impacto da anemia pós-transplante na sobrevida de pacientes e enxertos foi avaliado em estudos recentes nos quais se observou que a presença de anemia aos 12 meses pós-transplante tem impacto negativo na sobrevida de pacientes e enxertos. Neste estudo, no entanto, os autores não parecem ter controlado os resultados para a função do enxerto no momento da avaliação inicial.45 Em outro estudo com maior número de pacientes, esses achados foram confirmados, tendo também sido encontrada uma maior incidência de rejeição aguda nos pacientes anêmicos.46

A anemia deve ser investigada nos pacientes em que se exclui sangramento ativo e que atingiram função estável do enxerto. Seu tratamento deve ser dirigido à causa, sendo a reposição de ferro por vezes necessária. Presentemente, em torno de 20% dos pacientes transplantados renais recebem estimulantes da eritropoiese.47 No entanto, não existem estudos randomizados avaliando o efeito da correção da anemia com eritropoietina em receptores de transplante renal. O estudo mais robusto, uma coorte retrospectiva recentemente publicada, confirmou que a presença de anemia está associada a maior risco de óbito nesses pacientes.4l Entretanto, surgiram novos achados, sujeitos à confirmação em ensaios clínicos randomizados, de que a correção da anemia com eritropoietina é benéfica até uma taxa de hemoglobina de 12,5 mg/dL e que a partir desse ponto está associada a aumento de mortalidade que se torna estatisticamente significativo quando essa taxa alcança 14,0 mg/dL.47

No manejo da anemia em transplantados renais, pode por vezes ser necessária a suspensão ou substituição de uma droga imunossupressora. Nesses casos, deve ser ponderado o risco que isso possa representar para o enxerto.

CONCLUSÕES

A doença crônica do enxerto renal é atualmente a principal causa de perdas de enxertos. Fatores de risco imunológicos e não imunológicos contribuem para seu desenvolvimento e levam ao desenvolvimento de fibrose cuja etiologia não é muitas vezes clara. A biópsia renal é essencial para detectar fatores modificáveis que levem a ajustes de terapia imunossupressora. Assim como é recomendado para pacientes com doença renal crônica não dialítica, é possível que o manejo adequado das condições relacionadas à progressão da doença renal crônica possa ser útil em prolongar a sobrevida dos pacientes e retardar a progressão da perda de função do enxerto.48 No entanto, não há presentemente dados robustos para o suporte dessa recomendação em transplantados renais. Mais conhecimento da patogênese das diferentes causas de DCE e dos mecanismos de fibrose poderá propiciar alternativas terapêuticas individualizadas que impeçam ou retardem os processos nocivos ao enxerto renal.

Data de submissão: 16/02/2011

Data de aprovação: 12/07/2011

O referido estudo foi realizado no Serviço de Nefrologia do HCPA da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

O autor declara a inexistência de conflitos de interesse.

  • 1. Pascual M, Theruvath T, Kawai T, Tolkoff-Rubin N, Cosimi AB. Strategies to improve long-term outcomes after renal transplantation. N Engl J Med 2002;346:580-90.
  • 2. Serón D, Arns W, Chapman JR. Chronic allograft nephropathy - clinical guidance for early detection and early intervention strategies. Nephrol Dial Transplant 2008;23:2467-73.
  • 3. Lamb KE, Lodhi S, Meier-Kriesche HU. Long-term renal allograft survival in the United States: a critical reappraisal. Am J Transplant 2011;11:450-62.
  • 4. Nankivell BJ, Borrows RJ, Fung CL, O'Connell PJ, Allen RD, Chapman JR.Lamb KE. The natural history of chronic allograft nephropathy. N Engl J Med 2003;349:2326-33.
  • 5. Solez K, Colvin RB, Racusen LC, Sis B, Halloran PF, Birk PE, et al Banff '05 Meeting Report: Differential Diagnosis of Chronic Allograft Injury and Elimination of Chronic Allograft Nephropathy ('CAN'). Am J Transplant 2007;7:518-26.
  • 6. KDIGO. Clinical practice guideline for the care of kidney transplant recipients. Am J Transplant 2009;9 (Suppl):S1-157.
  • 7. Gaston RS, Cecka JM, Kasiske BL, Fieberg AM, Leduc R, Cosio FC, et al Evidence for antibody-mediated injury as a major determinant of late kidney allograft failure. Transplantation 2010;90:68-74.
  • 8. Einecke G, Sis B, Reeve J, Mengel M, Campbell PM, Hidalgo LG, et al Antibody-Mediated microcirculation injury is the major cause of late kidney transplant failure. Am J Transplant 2009;9:2520-31.
  • 9. Dall A, Hariharan S. BK Virus nephritis after renal transplantation. Clin J Am Soc Nephrol 2008;3:S68-75.
  • 10. Li C, Yang CW. The pathogenesis and treatment of chronic allograft nephropathy. Nat Rev Nephol 2009;5:513-9.
  • 11. Najafian B, Kasiske BL. Chronic allograft nephropathy. Cur Op Nephrol Hypertension 2008;17:149-55.
  • 12. Ojo AO, Held PJ, Port FK, Wolfe RA, Leichtman AB, Young EW, et al Chronic renal failure after transplantation of nonrenal organ. N Engl J Med 2003;349:931-40.
  • 13. Gaston RS. Chronic calcineurin inhibitor nephrotoxicity: reflections on an evolving paradigm. Clin J Am Soc Nephrol 2009;4:2029-34.
  • 14. Mengel M, Gwinner W, Schwarz A, Bajeski R, Franz I, Bröcker V, et al Infiltrates in protocol biopsies from renal allografts. Am J Transplant 2007;7:356-65.
  • 15. Cosio FG, Grande JP, Wadei H, Larson TS, Griffin MD, Stegall MD. Predicting subsequent decline in kidney allograft function from early surveillance biopsies. Am J Transplant 2005;5:2464-72.
  • 16. Aquino-Dias EC, Joelsons G, da Silva DM, Berdichevski RH, Ribeiro AR, Veronese FJ, et al Non-invasive diagnosis of acute rejection in kidney transplants with delayed graft function. Kidney Int 2008;73:877-84.
  • 17. Anglicheau D, Suthanthiran M. Noninvasive prediction of organ graft rejection and outcome using gene expression patterns. Transplantation 2008;86:192-9.
  • 18. Schaub S, Wilkins JA, Rush D, Nickerson P. Developing a tool for noninvasive monitoring of renal allografts. Expert Rev Proteomics 2006;3:497-509.
  • 19. Jevnikar AM, Mannon RB. Late kidney allograft loss: What we know about it, and what we can do about it. Clin J Am Soc Nephrol 2008;3:S56 -67.
  • 20. Danovitch GM. Immunosuppressive medications and protocols for kidney transplantation. In: Danovitch GM, editor. Handbook of Kidney Transplantation. 5th ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2010. p. 77-126.
  • 21. Meier M, Nitschke M, Weidtman B, Jabs WJ, Wong W, Suefke S, et al. Slowing the progression of chronic allograft nephropathy by conversion from cyclosporine to tacrolimus: a randomized controlled trial. Transplantation 2006;81:1035-40.
  • 22. Dudley C, Pohanka E, Riad H, Dedochova J, Wijngaard P, Sutter C, et al Mycophenolate mofetil substitution for cyclosporine a in renal transplant recipients with chronic progressive allograft dysfunction: the "creeping creatinine" study. Transplantation 2005;79:466-75.
  • 23. Frimat L, Cassuto-Viguier E, Provôt F, Rostaing L, Charpentier B, Akposso K, et al Long-Term Impact of Cyclosporin Reduction with MMF Treatment in Chronic Allograft Dysfunction: REFERENCE Study 3-Year Follow Up. J Transplant 2010 Published online 2010, July 28. doi: 10.1155/2010/402750.
  • 24. Mulay AV, Cockfield S, Stryker R, Fergusson D, Knoll GA. Conversion from calcineurin inhibitors to sirolimus for chronic renal allograft dysfunction: a systematic review of the evidence. Transplantation 2006;82:1153-62.
  • 25. Schena FP, Pascoe MD, Alberu J, del Carmen Rial M, Oberbauer R, Brennan DC, et al Conversion from calcineurin inhibitors to sirolimus maintenance therapy in renal allograft recipients: 24-month efficacy and safety results from the CONVERT trial. Transplantation 2009;87:233-42.
  • 26. Flechner SM, Kobashigawa J, Klintmalm G. Calcineurin inhibitor-sparing regimens in solid organ transplantation: focus on improving renal function and nephrotoxicity. Clin Transplant 2008:22:1-15.
  • 27. Opelz G, Wujciak T, Ritz E. Association of chronic kidney graft failure with recipient blood pressure. Collaborative Transplant Study. Kidney Int 1998;53:217-22.
  • 28. Opelz G, Dohler B. Improved long-term outcomes after renal transplantation associated with blood pressure control. Am J Transplant 2005;5:2725-31.
  • 29. Midtvedt K, Hartmann A, Foss A, Fauchald P, Nordal KP, Rootwelt K, et al Sustained improvement of renal graft function for two years in hypertensive renal transplant recipients treated with nifedipine as compared to lisinopril. Transplantation 2001;72:1787-92.
  • 30. Mourad G, Ribstein J, Mimran A. Converting-enzyme inhibitor versus calcium antagonist in cyclosporine-treated renal transplants. Kidney Int 1993;43:419-25.
  • 31. Kasiske BL, Zeier MG, Chapman JR, Craig JC, Ekberg H, Garvey CA, et al KDIGO clinical practice guidelines for the care of kidney transplant recipients: a summary. Kidney Int 2010;77:299-311.
  • 32. Guijarro C, Massy ZA, Kassiske BL. Clinical correlation between renal allograft failure and hyperlipidemia. Kidney Int 1995;52:S56-S59.
  • 33. Kasiske B, Cosio FG, Beto J, Bolton K, Chavers BM, Grimm R Jr, et al Clinical practice guidelines for managing dyslipidemias in kidney transplant patients: a report from the Managing Dyslipidemias in Chronic Kidney Disease Work Group of the National Kidney Foundation Kidney Disease Outcomes Quality Initiative. Am J Transplant 2004;4:13-53.
  • 34. Holdaas H, Fellström B, Jardine AG, Holme I, Nyberg G, Fauchald P, et al Effect of fluvastatin on cardiac outcomes in renal transplant recipients: a multicentre, randomised, placebo-controlled trial. Lancet 2003;361:2024-31.
  • 35. Strippoli GF, Navaneethan SD, Johnson DW, Perkovic V, Pellegrini F, Nicolucci A, et al Effects of statins in patients with chronic kidney disease: meta-analysis and meta-regression of randomised controlled trials. BMJ 2008;336:645-51.
  • 36. Knight SR, Morris PJ. Steroid avoidance or withdrawal after renal transplantation increases the risk of acute rejection but decreases cardiovascular risk. A meta-analysis. Transplantation 2010;89:1-14.
  • 37. Johnston O, Rose CL, Webster AC, Gill JS. Sirolimus is associated with new onset diabetes in kidney transplant recipients. J Am Soc Nephrol 2008;19:1411-8.
  • 38. Roy D, Bloom RD, Crutchlow MF. New-onset diabetes mellitus in the kidney recipient: diagnosis and management strategies. Clin J Am Soc Nephrol 2008;3:S38-48.
  • 39. Knoll GA. Proteinuria in kidney transplant recipients: prevalence, prognosis, and evidence-based management. Am J Kidney Dis 2009;54:1131-44.
  • 40. Amara AB, Sharma A, Alexander JL, Alfirevic A, Mohiuddin A, Pirmohamed M, et al Randomized controlled trial: lisinopril reduces proteinuria, ammonia, and renal polypeptide tubular catabolism in patients with chronic allograft nephropathy. Transplantation 2010;89:104-14.
  • 41. Heinze G, Mitterbauer C, Regele H, Kramar R, Winkelmayer WC, Curhan GC, et al Angiotensin converting enzyme inhibitor or angiotensin II type 1 receptor antagonist therapy is associated with prolonged patient and graft survival after renal transplantation. J Am Soc Nephrol 2006;17:889-99.
  • 42. Opelz G, Zeler M, Laux G, Morath C, Dohler B. No improvement of patient or graft survival in transplant recipients treated with angiotensin - converting enzyme inhibitors or angiotensin II type 1 receptor blockers: a collaborative transplant study report. J Am Soc Nephrol 2006;17:3257-62.
  • 43. Shah N, Al-Khoury S, Afzali B, Covic A, Roche A, Marsh J, et al Posttransplantation anemia in adult renal allograft recipients: prevalence and predictors. Transplantation 2006;81:1112-8.
  • 44. Vanrenterghem Y. Anemia after kidney transplantation. Transplantation 2009;87:1265-7.
  • 45. Kamar N, Rostaing L. Negative impact of one-year anemia on long-term patient and graft survival in kidney transplant patients receiving calcineurin inhibitors and mycophenolate mofetil. Transplantation 2008;85:1120-4.
  • 46. Chhabra D, Grafals M, Skaro AI, Parker M, Gallon L. Impact of Anemia after Renal Transplantation on Patient and Graft Survival and on Rate of Acute Rejection. Clin J Am Soc Nephrol 2008;3:1168-74.
  • 47. Heinze G, Kainz A, Horl WH, Oberbauer R. Mortality in renal transplant recipients given erythropoietins to increase haemoglobin concentration: cohort study. BMJ 2009;339:1-7.
  • 48. Bastos MG, Kirsztajn GM. Doença renal crônica: importância do diagnóstico precoce, encaminhamento imediato e abordagem interdisciplinar estruturada para melhora do desfecho em pacientes ainda não submetidos à diálise. J Bras Nefrol 2011;33:93-108.
  • Correspondência para:
    Roberto Ceratti Manfro
    Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
    Serviço de Nefrologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
    Rua Ramiro Barcelos, 2.350
    Porto Alegre - RS - Brasil
    CEP 90040-903
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      16 Fev 2011
    • Aceito
      12 Jul 2011
    Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: bjnephrology@gmail.com