Intoxicação alumínica na DRC
Aluminium intoxication in chronic kidney disease
Fellype Carvalho Barreto; Sonia M. Holanda Almeida Araújo
RACIONAL
O alumínio (Al) é um dos metais mais abundantes na natureza e possui uma série de efeitos tóxicos nos seres humanos.1-4 Por ser de excreção predominantemente renal, essa toxicidade assume maior importância nos pacientes com DRC. Embora seja mais frequente em pacientes com DRC em diálise, a intoxicação por Al já foi descrita na DRC pré-dialítica e em pacientes transplantados renais.5,6 O Al acumula-se em vários tecidos, incluindo osso, cérebro, glândulas paratireoides e outros órgãos.1,2 Portanto, as manifestações clínicas do seu acúmulo são variadas, dependendo do órgão afetado, assim como da magnitude da intoxicação. Os principais sinais e sintomas da intoxicação alumínica são a anemia hipocrômica e microcítica, a neurotoxicidade aguda (agitação, confusão mental, mioclonia e convulsão), a encefalopatia dialítica (distúrbios da marcha e fala, apraxia motora, alucinações auditivas e visuais) e a doença óssea relacionada ao Al (osteomalacia e doença óssea adinâmica [DOA]).
As formas de contaminação por esse metal ocorrem por via oral, sobretudo pelo uso de quelantes de P à base de Al, e a parenteral, através da água utilizada no preparo do dialisato. Outras fontes de contaminação descritas incluem o uso de utensílios domésticos de Al,6 soluções parenterais e alimentos.7,8 Além disso, o uso de medicamentos contendo citrato pode facilitar a absorção intestinal de Al.9 O advento de quelantes de P que não contêm Al possibilitou a eliminação quase completa da via oral como fonte de exposição.
O emprego de sistemas mais sofisticados para a purificação da água (osmose reversa) minimizou o risco de intoxicação pela via parenteral em pacientes em HD. Por outro lado, estudos têm demonstrado que a exposição a pequenas concentrações de Al, de forma contínua, pode levar à intoxicação por esse metal.10 Em um estudo que analisou biópsias ósseas realizadas em diversas regiões do Brasil, de 1985 a 2001, Araújo e cols. demonstraram que, embora a prevalência de intoxicação alumínica venha diminuindo (1985-1990: 61,3%; 1991-1996: 38,7%; 1997-2001: 42,5%), ela ainda permanece elevada.11 Entretanto, por ser um estudo retrospectivo, as fontes de contágio não puderam ser analisadas. Valores de concentração de Al no dialisato de até 10 µg/L eram considerados seguros para se evitar a contaminação pelo metal. Atualmente, essa concentração é considerada inadequada, e uma concentração de Al menor que 5 µg/L parece ser a ideal.12,13 Além disso, estudos recentes demonstraram que a dosagem anual isolada é de pouca utilidade.14 Recomenda-se, então, que a monitoração da concentração de Al na água e no dialisato seja feita pelo menos semestralmente. Uma via adicional de contaminação que deve ser considerada são os sais utilizados no preparo do dialisato. Estudos que analisem o grau de pureza e a concentração segura de Al nesse importante componente do tratamento dialítico são necessários.
A dosagem de Al sérico pode ser útil para revelar uma exposição aguda a esse metal. No entanto, seu significado real e eficácia são questionáveis por não refletir a carga tecidual com precisão.15 Sherrard e cols. demonstraram que somente 50,1% dos pacientes com Al plasmático maior ou igual a 40 µg/L tinham DOA, enquanto que 14,2% daqueles com nível abaixo desse valor apresentaram DOA. Nesse estudo, utilizando-se como ponto de corte o nível de 40 µg/L, a sensibilidade e a especificidade do Al plasmático para o diagnóstico de DOA foi de 65,2% e 76,7% respectivamente.16 Além disso, a interferência do estoque de ferro do paciente no nível sérico do Al é reconhecida.17-19 Pacientes em diálise com sobrecarga de ferro (ferritina > 500 ng/mL) podem apresentar níveis séricos baixos de Al mesmo na vigência de uma carga corporal elevada, resultando em um teste à desferroxamina falso-negativo. Por outro lado, pacientes com deficiência de ferro (ferritina < 100 ng/mL) podem apresentar níveis séricos elevados de Al, mesmo na ausência de acúmulo tecidual desse metal.15,20 Vale ressaltar que a alta variabilidade da concentração desse metal nas estações de tratamento de água dificulta a identificação de uma exposição aguda ao metal no paciente em HD, invalidando uma vez mais a dosagem isolada de Al sérico na DRC. O teste à desferroxamina, interpretado de acordo com os níveis de PTH e estoque de ferro, apresenta boas sensibilidade e especificidade para o diagnóstico da intoxicação pelo Al. Um teste à desferroxamina (5 mg/kg) positivo combinado com PTH < 150 pg/mL, com estoque de ferro adequado (ferritina entre 100 e 500 ng/mL), tem valor preditivo positivo de 80% para doença óssea relacionada ao Al;21 ao passo que um teste positivo combinado com PTH < 650 pg/mL apresenta sensibilidade de 91% e especificidade de 95% para o acúmulo de Al no tecido ósseo.21
O teste à desferroxamina deverá ser realizado conforme indicação médica, em pacientes com DRC estágio V D que apresentem pelo menos uma das seguintes situações clínicas: presença de sinais e sintomas de intoxicação alumínica, início de tratamento farmacológico para HPS, antes de PTx e naqueles pacientes com história de exposição recente ao Al.22 O teste é feito através de duas coletas de sangue, após 4 horas de jejum, para determinação dos níveis séricos de Al, sendo a primeira coleta realizada antes da 1ª sessão e a segunda coleta antes da 2ª sessão de hemodiálise (HD) da semana. Após o término da primeira sessão de HD, infundir a desferroxamina na dose de 5 mg/kg de peso, diluída em 100 mL de solução glicosada a 5% ou fisiológica a 0,9%, durante 30 minutos. O teste à desferroxamina é considerado positivo se a diferença entre a 2ª e a 1ª concentração sérica de Al for > 50 µg/L.21 Para pacientes em DP, o teste à desferroxamina deve ser realizado também com duas coletas de sangue para dosagem de Al sérico, separadas por um período mínimo de 5 horas, durante o qual, a DP deve ser interrompida (cavidade abdominal vazia). Sabe-se que, nesse período de 5 horas, a concentração de Al sérico atinge seu pico máximo após a infusão de desferroxamina.23
É importante ressaltar que se deve ter atenção especial na coleta de sangue e no método utilizado para sua dosagem. Por ser muito abundante na natureza, existe um risco elevado de contaminação da amostra, gerando resultados falso-positivos. Para se evitar tal interferência, a coleta deve ser feita em tubo seco livre de metal, enquanto a dosagem deverá ser feita pela técnica de espectrofotometria de absorção atômica, com forno de grafite. Embora o teste à desferroxamina tenha reduzido a necessidade de se realizar biópsia óssea, esta continua sendo o único método para o diagnóstico de certeza da intoxicação óssea pelo Al.24 Assim, em caso de suspeita clínica de intoxicação por Al associada a um teste negativo, a biópsia óssea deve ser sempre realizada. A presença de pelo menos 20% da superfície óssea trabecular recoberta por Al, detectada através da coloração por solocromo-azurina, é considerada diagnóstica.25,26
A desferroxamina é amplamente utilizada desde 1960 como o único agente efetivo e específico para o tratamento de pacientes com hemocromatose, qualquer que seja a sua etiologia. Apenas em 1980 é que Ackrill e cols. relataram o emprego bem sucedido deste agente quelante de ferro no tratamento da intoxicação alumínica.27 A desferroxamina é uma sideroamina natural obtida a partir da cultura da bactéria Streptomyces pilosus.28 Sua substância ativa, o mesilato ou metanossulfato de desferroxamina B, apresenta enorme afinidade pelo ferro trivalente, com capacidade de removê-lo da ferritina e da hemossiderina, mas não da hemoglobina. Ao se ligar ao ferro, forma o complexo ferrioxamina, substância hidrofílica que pode ser eliminada pelos rins e pela diálise. O Al no sangue é pouco dialisável por ser amplamente ligado a proteínas, principalmente à transferrina. Análises in vitro detectaram uma elevação da fração ultrafiltrável do Al sérico após a infusão da droga, resultante da mobilização do Al dos depósitos tissulares e sua deslocação da transferrina com consequente elevação do Al sérico e formação de aluminoxamina, composto hidrossolúvel ultrafiltrável, com peso molecular de 583 D. Esta propriedade faz da desferroxamina uma droga de excelente ação mobilizadora e quelante do Al depositado nos tecidos, passível de remoção através das membranas utilizadas na diálise. Entre os tipos de membrana que contribuem para maior remoção do Al, destacam-se as de polissulfona e poliacrilonitrilo.29 A membrana peritoneal também é capaz de remover adequadamente o Al.30 A hemoperfusão ou hemofiltração, por se tratar de procedimento dispendioso, são atualmente reservadas àqueles casos de intoxicação grave com manifestação clínica de neurotoxicidade.31
A dose de desferroxamina utilizada para o tratamento da intoxicação alumínica foi reduzida ao longo dos anos devido aos seus efeitos colaterais. Desde a Conferência de Consenso no Diagnóstico e Tratamento do Acúmulo de Alumínio na Doença Renal Crônica, em Paris, em 1992, preconiza-se utilizar uma dose de 5 mg/kg, administrada uma vez por semana, após desligada a 1ª HD da semana, por um período variável de 3 meses a 1 ano.32 Alguns autores demonstraram, por meio de estudos clínicos e farmacocinéticos, que doses mais baixas de desferroxamina (< 5 mg/kg de peso) podem ser eficazes no tratamento de pacientes com intoxicação pelo Al.33-35 Porém, tais observações ainda precisam de maior confirmação antes de o seu uso ser recomendado. Nos pacientes submetidos à DP, a administração de desferroxamina pode ser feita por via intravenosa ou intraperitoneal, na mesma dose e frequência preconizadas para os pacientes em HD.36 A infusão intravenosa deve ser feita lentamente, durante 30 a 60 minutos, fora do período de diálise (cavidade abdominal vazia). A diálise só deve ser reiniciada após um mínimo de 5 horas após o término da administração da medicação. Caso opte- se pela via IP, a medicação deve ser adicionada às bolsas de maior permanência, ou seja, em geral na noturna, nos pacientes em diálise peritoneal ambulatorial contínua (CAPD), e na diurna, nos pacientes em diálise peritoneal automatizada (DPA). De modo geral, a desferroxamina é bem tolerada, porém não destituída de efeitos colaterais. Vários estudos relataram neurotoxicidade aguda dose-relacionada, exacerbação da encefalopatia alumínica, reações anafiláticas e maior suscetibilidade a infecções oportunistas, principalmente mucormicose.37-39 A ferrioxamina constitui nutriente para os microrganismos que utilizam ferro no seu metabolismo. Observou-se, experimentalmente, que a presença de ferrioxamina aumenta a taxa de proliferação de Rhizopus e reduz a eficácia terapêutica da anfotericina B.40 Nos últimos 10 anos, após a recomendação do uso de desferroxamina, na dose de 5 mg/kg, os relatos de efeitos colaterais tornaram- se esporádicos.6 Durante o tratamento com desferroxamina, a exacerbação do hiperparatireoidismo secundário pode ser observada devido à retirada do Al dos vários tecidos do organismo, principalmente paratireoides e osso.41,42 A hemoglobina e o volume corpuscular médio aumentam, indicando melhora da anemia, e a ferritina diminui em decorrência da ação quelante da medicação sobre os depósitos de ferro.43 O controle do tratamento pode ser feito por meio do teste de desferroxamina ou da biópsia óssea.44-46
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Jun 2011 -
Data do Fascículo
Abr 2011