Acessibilidade / Reportar erro

Influência da manutenção hemodinâmica do doador falecido na função renal do receptor de transplante renal

Resumos

INTRODUÇÃO: A incidência de função tardia do enxerto (FTE) e função renal insatisfatória (FRI) após o transplante renal é significativamente maior no Brasil comparada com aquela observada nos Estados Unidos ou na Europa. Fatores relacionados ao doador falecido (DF) devem influenciar diretamente a ocorrência desses dois desfechos. OBJETIVO: Este estudo propõe-se a avaliar a influência das características do DF na incidência de FTE e FRI no Brasil. MÉTODOS: Variáveis clínicas e laboratoriais dos DF foram correlacionadas com a incidência de FTE e FRI. RESULTADOS: Foram avaliados 787 DF cujos órgãos foram transplantados em 1.298 pacientes. Notou-se elevada prevalência de uso de droga vasoativa (90,2%), hipernatremia (66,6%) e disfunção renal (34,8%). A incidência de FTE foi de 60,6% e de FRI foi de 55,2%. Considerando as características dos DF, observamos um aumento progressivo no risco de desenvolvimento de FTE para faixas etárias acima de 30 anos e a partir de tempo de isquemia fria (TIF) maior que 24 horas. O risco de FTE foi duas vezes maior em receptores de rim de doadores com creatinina sérica final (Cr) superior a 1,5 mg/dl. Hipertensão arterial (HA) e o TIF acima de 36 horas associou-se com aumentos de 82% e 99% no risco de FRI, respectivamente. A idade do doador acima de 40 anos associou-se com um aumento progressivo no risco de FRI. CONCLUSÃO: A idade, a função renal e a presença de hipertensão arterial no doador falecido, além do TIF prolongado, associaram-se com maior risco de FTE e FRI.

creatinina; função retardada do enxerto; seleção do doador; transplante de rim


INTRODUCTION: The incidence of delayed graft function (DGF) and unsatisfactory creatinine clearance (UCC) after renal transplantation is significantly higher in Brazil, when compared with that observed in United States or Europe. Deceased donor (DD) characteristics should directly influence the occurrence of these two outcomes. OBJECTIVE: This study aim to evaluate the influence of DD characteristics on DGF and UCC incidence in Brazil. METHODS: DD clinical and laboratory variables were correlated with outcome's incidence. RESULTS: We evaluated 787 DD whose organs were transplanted in 1298 patients. We noted a high prevalence of vasoactive drugs use (90.2%), hypernatremia (66.6%) and renal dysfunction (34.8%). The incidence of DGF and UCC was 60.6% and 55.2%, respectively. We observed a progressive increase in DGF risk for age groups over 30 years and for cold ischemia time (CIT) greater than 24 hours. DGF risk was two times higher in recipients of donor kidney final serum creatinine (Cr) over than 1.5 mg/dl. Hypertension and CIT over 36 hours was associated with an increasing of 82% and 99% in UCC risk, respectively. Donor age above 40 years was associated with a progressive increase in UCC risk. CONCLUSION: DD age, renal function, hypertension and prolonged CIT were associated with increased risk DGF and UCC.

creatinine; delayed graft function; donor selection; kidney transplantation


ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE

Influência da manutenção hemodinâmica do doador falecido na função renal do receptor de transplante renal

Ana Paula Maia Baptista; Hélio Tedesco Silva Junior; José Osmar Medina Pestana

Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP Disciplina de Nefrologia Hospital do Rim e Hipertensão/Fundação Osvaldo Ramos

Correspondência para Correspondência para: Ana Paula Maia Baptista Hospital do Rim e Hipertensão, Disciplina de nefrologia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP Rua Borges Lagoa, nº 960, 6º andar São Paulo, SP, Brazil. CEP: 04038-002 E-mail: apmbaptista@yahoo.com.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: A incidência de função tardia do enxerto (FTE) e função renal insatisfatória (FRI) após o transplante renal é significativamente maior no Brasil comparada com aquela observada nos Estados Unidos ou na Europa. Fatores relacionados ao doador falecido (DF) devem influenciar diretamente a ocorrência desses dois desfechos.

OBJETIVO: Este estudo propõe-se a avaliar a influência das características do DF na incidência de FTE e FRI no Brasil.

MÉTODOS: Variáveis clínicas e laboratoriais dos DF foram correlacionadas com a incidência de FTE e FRI.

RESULTADOS: Foram avaliados 787 DF cujos órgãos foram transplantados em 1.298 pacientes. Notou-se elevada prevalência de uso de droga vasoativa (90,2%), hipernatremia (66,6%) e disfunção renal (34,8%). A incidência de FTE foi de 60,6% e de FRI foi de 55,2%. Considerando as características dos DF, observamos um aumento progressivo no risco de desenvolvimento de FTE para faixas etárias acima de 30 anos e a partir de tempo de isquemia fria (TIF) maior que 24 horas. O risco de FTE foi duas vezes maior em receptores de rim de doadores com creatinina sérica final (Cr) superior a 1,5 mg/dl. Hipertensão arterial (HA) e o TIF acima de 36 horas associou-se com aumentos de 82% e 99% no risco de FRI, respectivamente. A idade do doador acima de 40 anos associou-se com um aumento progressivo no risco de FRI.

CONCLUSÃO: A idade, a função renal e a presença de hipertensão arterial no doador falecido, além do TIF prolongado, associaram-se com maior risco de FTE e FRI.

Palavras-chave: creatinina, função retardada do enxerto, seleção do doador, transplante de rim.

INTRODUÇÃO

A necessidade do aumento da oferta de rim para transplante devido ao elevado número de pacientes inscritos em lista de espera determinou maior uso de órgãos de doadores falecidos limítrofes, que eram descartados anteriormente.1,2 Desde que a superioridade do transplante renal em relação à diálise ficou comprovada, a utilização destes órgãos se fez necessária.3-6

Entretanto, o maior uso de rins de doadores falecidos limítrofes associou-se a um aumento da incidência complicações após o transplante, dentre elas a função tardia do enxerto (FTE), que ocorre quando há necessidade de terapia renal substitutiva na primeira semana após o transplante, e a função renal insatisfatória (FRI), definida como creatinina sérica superior a 1,5 mg/dl seis meses ou um ano após o transplante.2,7

A associação negativa entre FTE e FRI e sobrevida do enxerto está bem estabelecida. Pacientes com FTE apresentaram menor sobrevida, menor função do enxerto após recuperação e maior incidência de rejeição aguda.8 Função renal insatisfatória seis meses após transplante associou-se com risco relativo para perda do enxerto duas vezes superior ao risco de pacientes com creatinina sérica inferior a este valor.9,10

Por estes motivos, torna-se necessário identificar fatores de risco para FTE e FRI, a fim de desenvolver intervenções para reduzir a ocorrência destes desfechos e prevenir complicações.

Características relacionadas ao doador falecido levando a maior incidência destes dois desfechos têm sido exaustivamente estudadas.11 Fatores referentes à manutenção hemodinâmica e hidroeletrolítica anteriormente à extração multiorgânica, além de características demográficas, associam-se a maior risco para o desenvolvimento de FTE e FRI.9,12-15

No Brasil, a incidência de FTE é significativamente superior à incidência norte-americana (57,3% vs. 23,5%),2,16 e há menor sobrevida do enxerto após um ano de transplante.1,2 Fatores relacionados ao doador falecido que determinam um pior desfecho do transplante renal neste país ainda necessitam ser estudados.

Este estudo propôs-se a avaliar as características dos doadores falecidos associadas incidência de FTE e a FRI em um grande centro transplantador brasileiro.

MÉTODOS

Este é um estudo retrospectivo, utilizando uma coorte sequencial de doadores falecidos identificados pelo Serviço de Procura de Órgãos e Tecidos (SPOT-EPM) entre janeiro de 1998 a dezembro de 2008. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local.

Foram excluídos dessa análise os doadores falecidos cujos rins foram transplantados em outro centro de transplante, em receptores com idade menor do que 18 anos, em receptores do segundo transplante renal ou em receptores de transplante combinado de outro órgão. As características dos doadores falecidos foram extraídas do formulário "Informações Sobre o Doador Falecido", preenchido pelo SPOT-EPM e repassado à Central Estadual de Transplantes. Os dados dos receptores de transplante de rim foram obtidos dos prontuários médicos.

O objetivo do estudo foi identificar os fatores de risco do doador falecido associados com o desenvolvimento de função tardia do enxerto (FTE) ou com função renal insatisfatória (FRI) seis meses após o transplante. A FTE foi definida como a necessidade de diálise durante a primeira semana após o transplante renal. A FRI seis meses após o transplante foi definida como a depuração de creatinina menor ou igual a 50 ml/min/1,73m2, calculada utilizando a fórmula de Cockcroft-Gault.17 Perda de seguimento foi definida como a transferência definitiva do receptor para acompanhamento em outro serviço. Perda do enxerto foi definida como retorno à diálise ou retransplante.

ANÁLISE ESTATÍSTICA

As variáveis categóricas foram apresentadas em frequências absolutas e relativas e as variáveis numéricas como médias e desvios padrão. Para a análise do desfecho de FRI no sexto mês, utilizamos um método de imputação para valores faltantes da seguinte forma: (1) para os pacientes que perderam o enxerto antes do sexto mês foi atribuído o valor de zero para a depuração da creatinina; (2) para os pacientes que morreram ou perderam o seguimento foi utilizada a última observação (creatinina) realizada ("Last Observation Carried Forward") para o cálculo da depuração da creatinina no sexto mês.

As características do doador falecido avaliadas em relação aos desfechos foram idade, gênero, etnia, causa de morte encefálica, hipertensão arterial, diabetes mellitus, infecção ativa, uso de droga vasoativa, dias de internação em unidade de terapia intensiva, parada cardíaca durante a internação, creatinina sérica no dia da avaliação (creatinina final), transaminase glutâmico oxaloacética (TGO), transaminase glutâmico pirúvica (TGP), creatinofosfoquinase, sódio sérico, sorologia para hepatite B (Ag HBs), sorologia para hepatite C (Anti-HCV) e tempo de isquemia fria. A associação entre as características do doador com os desfechos FTE e FRI foi avaliada utilizando os testes de Qui-Quadrado ou Teste Exato de Fisher para variáveis categóricas e o Teste t de Student para variáveis contínuas. Para a identificação das variáveis do doador associadas de forma independente com os desfechos de FTE e FRI, foi utilizada a regressão logística. A adequacidade de ajuste desse modelo foi verificada utilizando o teste de Hosmer e Lemeshow. Para todos os testes estatísticos foram utilizados um nível de significância de 5%, com p < 0,05. O software utilizado para as análises foi o SPSS versão 17.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA).

RESULTADOS

Identificamos, no período, 1.085 doadores falecidos cujos rins foram transplantados em 1.646 receptores em nosso serviço. Foram excluídos 298 doadores cujos rins foram alocados para 223 receptores com idade inferior a 18 anos e 125 receptores de segundo ou terceiro transplante renal. Foram, então, avaliados 787 doadores falecidos e 1.298 receptores de transplante de rim.

A média de idade dos doadores falecidos foi de 40,2 anos e a principal causa de morte foi o acidente vascular encefálico (54,9%). A análise dos parâmetros de manutenção do doador mostra que 90,2% recebiam uma droga vasoativa no momento da avaliação e 15% haviam apresentado uma parada cardíaca revertida (Tabela 1). Além disso, 70% apresentavam hipernatremia (Na > 145 meq/l), 66,6% elevação da creatinina fosfoquinase e 34,8% insuficiência renal (creatinina > 1,5 mg/dl) (dados não representados). Os rins foram transplantados com um tempo médio de isquemia fria de 23,2 horas (Tabela 1).

Os receptores apresentavam idade média de 46,1 anos, sendo 80,4% portadores de hipertensão e 13,8% de diabetes mellitus. A incidência de FTE foi de 60,6% e a incidência de FRI foi de 55,2%. A média da creatinina foi de 1,6 mg/dl e da depuração de creatinina foi de 46,1 ml/min/1,73m2 no sexto mês de transplante. A sobrevida do receptor foi de 93% e do enxerto foi de 90,6% seis meses após o transplante (Tabela 2).

FUNÇÃO TARDIA DO ENXERTO (FTE)

Os pacientes que desenvolveram FTE receberam rins de doadores com maior média de idade (41,5 vs. 38,3 anos, p < 0,001), maior média de creatinina final (1,6 vs. 1,3 mg/dl, p < 0,001) e maior tempo médio de isquemia fria (23,9 vs. 22,2 horas, p < 0,001). A proporção de doadores hipertensos foi maior no grupo com FTE (28,5% vs. 21,1%, p = 0,003), respectivamente (Tabela 3). Após a análise de regressão logística com múltiplas variáveis, observamos um aumento progressivo no risco de desenvolvimento de FTE a partir de faixas etárias maiores que 30 anos, com valores de creatinina final superiores a 1,5 mg/dl e com tempos de isquemia fria superiores a 24 horas (Tabela 4).

FUNÇÃO RENAL INSATISFATÓRIA SEIS MESES APÓS O TRANSPLANTE RENAL

Os receptores com FRI no sexto mês após o transplante receberam rins de doadores falecidos com maior média de idade (43,7 vs. 35,9 anos, p < 0,001), com maior proporção do gênero feminino (49,1% vs. 39,8%, p = 0,001), de etnia não negra (75,2% vs. 69,4%, p = 0,044), de acidente vascular cerebral como causa de morte encefálica (60,8% vs. 47,5%, p < 0,001) e de hipertensão associada (33,6% vs. 15,7%, p < 0,001). A média de tempo de isquemia fria também foi superior em quase uma hora nos receptores com FRI (23,6 vs. 22,7 horas, p = 0,028). Por outro lado, os valores de CPK foram superiores nos pacientes sem FRI (1444,4 vs. 20005,5 U/l, p = 0,051) no sexto sem de transplante (Tabela 5). Após a análise de regressão logística com múltiplas variáveis, observamos um aumento progressivo no risco de desenvolvimento de FRI a partir de faixas etárias maiores que 40 anos, com a presença de hipertensão arterial e com tempos de isquemia fria superiores a 36 horas (Tabela 6).

DISCUSSÃO

A mais importante observação deste estudo foi a elevada incidência dos desfechos avaliados. Na população estudada, na qual 22,7% dos doadores falecidos foram classificados como expandidos, a incidência de FTE foi de 60,6%. Esta incidência é muito superior à norte-americana, na qual 15,8% dos transplantes foram realizados com rins de doadores com coração parado, grupo de doadores com piores desfechos.2 Já a incidência de FRI, nesta população, foi de 55,2%; analisando-se apenas o grupo de receptores de rim de doador de critério expandido, 70,9% deles apresentavam FRI. Em relação aos Estados Unidos, onde 28,9% dos receptores apresentam depuração de creatinina inferior a 60 ml/min seis meses após o transplante, esse percentual é bastante elevado.2

De fato, a elevada incidência dos desfechos pode ter dificultado o aparecimento de outras características associadas à manutenção hemodinâmica dos doadores falecidos como fatores de risco para FTE e FRI. Além disso, a alta prevalência de alterações laboratoriais e hemodinâmicas graves na população estudada, como descrito anteriormente, também deve ter ocultado o impacto das demais características sobre os desfechos. O tempo médio de internação em UTI, até a extração multiorgânica, foi de 5 dias, 90% deles estavam em uso de droga vasoativa no momento da avaliação e 69% encontravam-se em tratamento para alguma infecção. A média de sódio sérico foi de 156,1 mg/dl e de creatinina de 1,5 mg/dl, valores superiores aos intervalos de referência de normalidade. Esta elevada incidência dos desfechos e dos fatores de risco analisados reflete a má qualidade de manutenção do doador falecido no Brasil.

No estudo, apenas idade superior a 30 anos, tempo de isquemia fria maior do que 24 horas e creatinina final acima de 1,5 mg/dl associaram-se a maior risco de FTE, e somente idade superior a 40 anos, tempo de isquemia fria maior do que 36 horas e presença de hipertensão arterial associaram-se a maior risco de FRI. Essas variáveis já são classicamente descritas como fatores de risco para a incidência de FTE e FRI.12,18,19

Idade, creatinina sérica e presença de hipertensão arterial no doador falecido são características que compõem a definição de doador de critério expandido.12 Quando a idade do doador é superior a 50 anos e combinada a outros fatores de risco, como hipertensão arterial, creatinina sérica superior a 1,5 mg/dl e etiologia vascular para morte encefálica, ou, isoladamente, quando superior a 60 anos, classifica o doador falecido como expandido.12 Receber rim de doador falecido com critério expandido associa-se a aumento de 70% do risco de perda do enxerto,12 e à maior incidência de FTE, em relação aos transplantes com doador falecido que não preenchem esta classificação.18,19

Tempo de isquemia fria prolongado também tem se associado a pior função do enxerto renal e a maior incidência de FTE.11,13,20-23 Além disso, os transplantes que apresentam maior tempo de isquemia fria são os que utilizam rins de doadores de critério expandido,24 órgãos já associados à maior incidência de FTE e FRI, independentemente do tempo de espera até o transplante. Por serem menos aceitos pelos centros transplantadores, os rins de doadores expandidos têm alocação mais demorada.

Curiosamente, causa de morte encefálica não apareceu como fator de risco associada a nenhum dos desfechos avaliados por este estudo. Causa de morte encefálica também é variável participante dos principais escores de avaliação de risco para FTE e função do enxerto, incluindo o DDS, o DCE e o KDRI,12,20,25,26 além de, mesmo isoladamente, associar-se com FTE.27 Neste estudo, a elevada incidência de acidente vascular encefálico como causa de morte (40%) pode ter impedido o aparecimento dos efeitos deste fator de risco nos desfechos avaliados.

Apesar das características que conferiram maior risco para FTE e FRI já possuírem clara associação aos desfechos na literatura, um fator particular deste estudo foi a observação de que doadores com idade inferior a 50 anos, que não são classificados como doadores de critério expandido, também apresentaram maior risco de desenvolvimento de FTE e FRI. É possível que, no Brasil, onde as condutas para manutenção do potencial doador falecido ainda não são padronizadas e nem priorizadas no atendimento de emergência ou em unidades de terapia intensiva, apenas doadores muito jovens consigam suportar grandes falhas no processo de manutenção hemodinâmica e hidroeletrolítica pré-extração do órgão, reduzindo, por isso, a idade de risco. Talvez o manejo inadequado dos doadores falecidos interfira negativamente na qualidade do órgão, conferindo maior risco para desenvolvimento de FTE e FRI, mesmo para os doadores mais jovens.

A discussão sobre a melhora da manutenção hemodinâmica dos doadores falecidos e estratégias para redução da incidência de FTE e FRI é necessária e faz-se mais importante no contexto atual, em que o perfil dos doadores falecidos vem mudando, e a contribuição de doadores de critério expandido, e até de doadores com coração parado em alguns países, vem aumentando.1,2 Como já discutido anteriormente, este grupo de doadores associam-se a maior risco de FTE, FRI e perda do enxerto. Com isso, estratégias para melhorar a qualidade dos doadores e minimizar novas lesões a estes órgãos devem ser exaustivamente buscadas. Neste sentido, intervenções visando melhorar a qualidade da manutenção do doador falecido antes da extração de múltiplos órgãos têm sido estudadas.

Recentemente, Malinoski et al.28 estudaram o impacto do preenchimento de um grupo de metas no manejo do doador falecido, em relação à incidência de FTE. Preencher valores de pressão arterial média entre 60 e 100 mmHg, pressão venosa central entre 4 e 10 mmHg, fração de ejeção superior a 50%, vasopressores em menor dose possível, ph arterial entre 7,30 e 7,45, relação PaO2/FiO2 superior a 300, sódio sérico entre 135 e 155 meq/l, glicemia inferior a 150 e débito urinário entre 0,5 e 3 ml/kg/h, conjuntamente, no momento do consentimento familiar, associaram-se à menor incidência de FTE (17,3% vs. 30,1%, p 0,007). Ressalta-se que apenas 14% dos doadores estudados preenchiam todas as metas neste momento.

Assim como no presente estudo, o trabalho de Malinoski et al.28 demonstrou que somente idade, creatinina séria e TIF associaram-se a maior risco de FTE. Os autores não analisaram os fatores de risco para FRI, como no presente estudo.

Das variáveis que foram significativamente associadas a pior evolução do transplante, apenas duas são modificáveis e, por este motivo, passiveis de intervenção. São elas tempo de isquemia fria e creatinina do doador. Portanto, com base neste estudo, fazem-se necessárias medidas para redução do tempo de isquemia fria até 24 horas e redução dos valores de creatinina sérica para os limites da normalidade. A redução da creatinina sérica do doador implica ação conjunta do Serviço de Procura de Órgãos e Tecidos e médicos intensivistas, visando otimizar hidratação, minimizar necessidade de droga vasoativa e equilibrar balanço hídrico, isto é, melhorar a qualidade de manutenção do doador de órgãos em potencial. Para reduzir o tempo médio de isquemia fria, é necessário agilidade no processo de localização e convocação do receptor, bem como minimizar o tempo de avaliação clínica e laboratorial dos mesmos. A convocação por compatibilidade HLA, mesmo antes do resultado do crossmatch, estratégia já adotada por alguns centros transplantadores, pode contribuir para a redução deste tempo.

Este trabalho apresenta limitações, por se tratar de um estudo retrospectivo e com um longo período de avaliação. Entre os anos de 1998 e 2008, houve mudanças de condutas em relação à manutenção do doador falecido. Além disso, o tempo de seguimento dos receptores foi de apenas seis meses. Isso ameniza os efeitos de outras complicações ocorridas após o transplante, como rejeições agudas ou infecções; entretanto, essas intercorrências podem ter influenciado os resultados, principalmente o desfecho FRI.

CONCLUSÃO

A incidência de FTE e FRI foi alta na população estudada, possivelmente em decorrência da inadequada manutenção do doador falecido. Protocolos para manutenção destes doadores devem ser adotados pelas unidades críticas de internação, visando melhorar a qualidade dos órgãos ofertados para transplante. Um estudo prospectivo deve ser realizado, avaliando o cumprimento destes protocolos e o seu impacto na função e sobrevida dos órgãos transplantados.

AGRADECIMENTOS

Agradeço particularmente aos professores José Osmar Medina Pestana e Hélio Tedesco Silva Junior por compartilharem conhecimento científico e pela revisão de todos os aspectos deste trabalho.

Data de submissão: 17/05/2013.

Data de aprovação: 03/09/2013.

  • 1. Relatório anual, Ano XVI - no 4 - Janeiro/Dezembro 2010. Em: Registro Brasileiro de Transplantes [Acesso 15 de dezembro de 2012]. Disponível em: http://www.abto.org.br
  • 2. Organ Procurement and Transplant Network. - 2011. In: OPTN/SRTR 2011 annual report: summary tables, transplant data 1998 - 2010 ]Acesso 16 de agosto de 2012. Disponível em: http://www.srtr.transplant.hrsa.gov/
  • 3. Rabbat CG, Thorpe KE, Russell JD, Churchill DN. Comparison of mortality risk for dialysis patients and cadaveric first renal transplant recipients in Ontario, Canada. J Am Soc Nephrol 2000;11:917-22.
  • 4. Ojo AO, Hanson JA, Meier-Kriesche H, Okechukwu CN, Wolfe RA, Leichtman AB, et al. Survival in recipients of marginal cadaveric donor kidneys compared with other recipients and wait-listed transplant candidates. J Am Soc Nephrol 2001;12:589-97.
  • 5. Meier-Kriesche H, Port FK, Ojo AO, Leichtman AB, Rudich SM, Arndorfer JA, et al. Deleterious effect of waiting time on renal transplant outcome. Transplant Proc 2001;33:1204-6. PMID: 11267259 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/S0041-1345(00)02387-3
  • 6. Rosengard BR, Feng S, Alfrey EJ, Zaroff JG, Emond JC, Henry ML, et al. Report of the Crystal City meeting to maximize the use of organs recovered from the cadaver donor. Am J Transplant 2002;2:701-11. DOI: http://dx.doi.org/10.1034/j.1600-6143.2002.20804.x
  • 7. McCullough KP, Keith DS, Meyer KH, Stock PG, Brayman KL, Leichtman AB. Kidney and pancreas transplantation in the United States, 1998-2007: access for patients with diabetes and end-stage renal disease. Am J Transplant 2009;9:894-906. DOI: http://dx.doi.org/10.1111/j.1600-6143.2009.02566.x
  • 8. Jayaram D, Kommareddi M, Sung RS, Luan FL. Delayed graft function requiring more than one-time dialysis treatment is associated with inferior clinical outcomes. Clin Transplant 2012;26:E536-43.
  • 9. Harada KM, Sampaio ELM, Freitas TVS, Felipe CR, Park SI, Machado PGP, et al. Fatores de risco associados à perda do enxerto e óbito após o transplante renal. J Bras Nefrol 2008;30:213-20.
  • 10. Hariharan S, McBride MA, Cherikh WS, Tolleris CB, Bresnahan BA, Johnson CP. Post-transplant renal function in the first year predicts long-term kidney transplant survival. Kidney Int 2002;62:311-8. PMID: 12081593 DOI: http://dx.doi.org/10.1046/j.1523-1755.2002.00424.x
  • 11. Doshi MD, Garg N, Reese PP, Parikh CR. Recipient risk factors associated with delayed graft function: a paired kidney analysis. Transplantation 2011;91:666-71. PMID: 21317839 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/TP.0b013e318209f22b
  • 12. Port FK, Bragg-Gresham JL, Metzger RA, Dykstra DM, Gillespie BW, Young EW, et al. Donor characteristics associated with reduced graft survival: an approach to expanding the pool of kidney donors. Transplantation 2002;74:1281-6. DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00007890-200211150-00014
  • 13. Nyberg SL, Matas AJ, Kremers WK, Thostenson JD, Larson TS, Prieto M, et al. Improved scoring system to assess adult donors for cadaver renal transplantation. Am J Transplant 2003;3:715-21. DOI: http://dx.doi.org/10.1034/j.1600-6143.2003.00111.x
  • 14. Nyberg SL, Baskin-Bey ES, Kremers W, Prieto M, Henry ML, Stegall MD. Improving the prediction of donor kidney quality: deceased donor score and resistive indices. Transplantation 2005;80:925-9. PMID: 16249740 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/01.TP.0000173798.04043.AF
  • 15. Blasi-Ibanez A, Hirose R, Feiner J, Freise C, Stock PG, Roberts JP, et al. Predictors associated with terminal renal function in deceased organ donors in the intensive care unit. Anesthesiology 2009;110:333-41. PMID: 19194160
  • 16. Klein R, Galante NZ, de Sandes-Freitas TV, de Franco MF, Tedesco-Silva H, Medina-Pestana JO. Transplantation with kidneys retrieved from deceased donors with acute renal failure. Transplantation 2013;95:611-6. DOI: http://dx.doi.org/10.1097/TP.0b013e318279153c
  • 17. Cockcroft DW, Gault MH. Prediction of creatinine clearance from serum creatinine. Nephron 1976;16:31-41. PMID: 1244564 DOI: http://dx.doi.org/10.1159/000180580
  • 18. Oppenheimer F, Aljama P, Asensio Peinado C, Bustamante Bustamante J, Crespo Albiach JF, Guirado Perich L. The impact of donor age on the results of renal transplantation. Nephrol Dial Transplant 2004;19:iii11-5.
  • 19. Domagala P, Kwiatkowski A, Perkowska-Ptasinska A, Wszola M, Panufnik L, Paczek L, et al. Assessment of kidneys procured from expanded criteria donors before transplantation. Transplant Proc 2009;41:2966-9. PMID: 19857651 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.transproceed.2009.08.004
  • 20. Nyberg SL, Matas AJ, Rogers M, Harmsen WS, Velosa JA, Larson TS, et al. Donor scoring system for cadaveric renal transplantation. Am J Transplant 2001;1:162-70. DOI: http://dx.doi.org/10.1034/j.1600-6143.2001.10211.x
  • 21. Kayler LK, Srinivas TR, Schold JD. Influence of CIT-induced DGF on kidney transplant outcomes. Am J Transplant 2011;11:2657-64. DOI: http://dx.doi.org/10.1111/j.1600-6143.2011.03817.x
  • 22. Moore J, Tan K, Cockwell P, Krishnan H, McPake D, Ready A, et al. Predicting early renal allograft function using clinical variables. Nephrol Dial Transplant 2007;22:2669-77. DOI: http://dx.doi.org/10.1093/ndt/gfm249
  • 23. van der Vliet JA, Warlé MC. The need to reduce cold ischemia time in kidney transplantation. Curr Opin Organ Transplant 2013;18:174-8. DOI: http://dx.doi.org/10.1097/MOT.0b013e32835e2a08
  • 24. Chiurchiu C, Riva V, Bürgesser MV, de Arteaga J, Douthat W, de la Fuente J, et al. Expanded criteria donors, histological scoring, and prolonged cold ischemia: impact on renal graft survival. Transplant Proc 2011;43:3312-4. PMID: 22099786 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.transproceed.2011.09.085
  • 25. Rao PS, Schaubel DE, Guidinger MK, Andreoni KA, Wolfe RA, Merion RM, et al. A comprehensive risk quantification score for deceased donor kidneys: the kidney donor risk index. Transplantation 2009;88:231-6. PMID: 19623019 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/TP.0b013e3181ac620b
  • 26. Swanson SJ, Hypolite IO, Agodoa LY, Batty DS Jr, Hshieh PB, Cruess D, et al. Effect of donor factors on early graft survival in adult cadaveric renal transplantation. Am J Transplant 2002;2:68-75. DOI: http://dx.doi.org/10.1034/j.1600-6143.2002.020112.x
  • 27. Shao MJ, Ye QF, Ming YZ, She XG, Liu H, Ye SJ, et al. Risk factors for delayed graft function in cardiac death donor renal transplants. Chin Med J (Engl) 2012;125:3782-5.
  • 28. Malinoski DJ, Patel MS, Ahmed O, Daly MC, Mooney S, Graybill CO, et al.; United Network for Organ Sharing (UNOS) Region 5 Donor Management Goals (DMG) Workgroup. The impact of meeting donor management goals on the development of delayed graft function in kidney transplant recipients. Am J Transplant 2013;13:993-1000.
  • Correspondência para:
    Ana Paula Maia Baptista
    Hospital do Rim e Hipertensão, Disciplina de nefrologia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
    Rua Borges Lagoa, nº 960, 6º andar
    São Paulo, SP, Brazil. CEP: 04038-002
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      17 Maio 2013
    • Aceito
      03 Set 2013
    Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: bjnephrology@gmail.com