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Hora de conhecer a dimensão da doença renal crônica no Brasil

O estudo de Dutra et al.1Dutra MC, Uliano EJM, Machado DFGDP, Martins T, Schuelter-Trevisol F, Trevisol DJ. Avaliação da função renal em idosos: um estudo de base populacional. J Bras Nefrol 2014;36:297-303. mostra prevalência de 13,6% de doença renal crônica (DRC), definida como uma taxa de filtração glomerular (TFG) estimada menor do que 60 ml/min/1,73 m2. Este estudo traz enorme contribuição para quantificar e identificar um grande contingente de indivíduos com DRC na subpopulação mais susceptível, que são os idosos. Os resultados gerados podem auxiliar os gestores locais a planejar e executar programas voltados para a prevenção e cuidado adequados da DRC, principalmente considerando-se o elevado índice de cobertura do programa de saúde da família naquele município.

Porém, esta análise se aplica à região onde foi realizada a pesquisa e, portanto, não devemos, de forma simplista, extrapolar seus resultados fazendo projeções para o restante do país a partir desta casuística. A população estudada, refletindo a composição étnica do estado de Santa Catarina, é significativamente diferente do restante do país, pela forte predominância caucasiana. É bem conhecido o maior risco de falência renal e necessidade de terapia renal substitutiva entre os afrodescendentes, pelo menos nos Estados Unidos.2US Renal Data System. USRDS 2013 Annual Data Report: Atlas of Chronic Kidney Disease and End-Stage Renal Disease in the United States. Bethesda, MD: National Institutes of Health, National Institute of Diabetes and Digestive and Kidney Diseases; 2013. Assim, é plausível supor que a prevalência de DRC possa ser ainda mais elevada em regiões do país com marcante presença de afrodescendentes. Outros fatores locais podem influenciar na prevalência de DRC, como o nível de cobertura de programas voltados para o tratamento do diabetes e hipertensão. No caso do município onde foi realizado o estudo, mais de 90% da população idosa está inscrita no programa de saúde de família. Já nos municípios com baixa cobertura, podemos esperar maior prevalência de complicações tardias do diabetes e da hipertensão, incluindo a DRC.

Mais estudos epidemiológicos abordando a DRC, tanto no âmbito regional quanto nacional, serão muito bem-vindos. Não é razoável que ainda tenhamos que recorrer a estatísticas de outros países com populações e sistema de saúde tão distintos dos nossos. O conhecimento da real dimensão da prevalência da DRC no Brasil deveria incluir não apenas a classificação por estágios de acordo com a TFG, mas também aprofundar na estratificação de risco de progressão da doença renal, combinando a estimativa da TFG com a presença e magnitude da albuminúria.3Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) CKD Work Group. KDIGO 2012 Clinical Practice Guideline for the Evaluation and Management of Chronic Kidney Disease. Kidney Int Suppl 2013;3:1-150.

Finalmente, cabe ressaltar que os idosos apresentam a maior prevalência de DRC, por isso, foi bem apropriado este estudo ter abordado este estrato da população. Porém, como muitos idosos apresentam uma redução apenas moderada da TFG, por exemplo, no estágio 3a (45-59 ml/min), e costumam ter progressão lenta da DRC, a grande maioria irá falecer de outras causas antes que ocorra a falência renal.4Yang W, Xie D, Anderson AH, Joffe MM, Greene T, Teal V, et al.; CRIC Study Investigators. Association of kidney disease outcomes with risk factors for CKD: findings from the Chronic Renal Insufficiency Cohort (CRIC) study. Am J Kidney Dis 2014;63:236-43. DOI: http://dx.doi.org/10.1053/j.ajkd.2013.08.028
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Por outro lado, hipertensão e diabetes seguem como as principais causas de DRC, levando à falência renal e à necessidade de terapia renal substitutiva no Brasil, trazendo enorme ônus ao nosso sistema de saúde. A média de idade dos pacientes que iniciam tratamento dialítico no Brasil é de apenas 52 anos.5Matos JP, Almeida JR, Guinsburg A, Marelli C, Barra AB, Vasconcellos MS, et al. Assessment of a five-year survival on hemodialysis in Brazil: a cohort of 3,082 incident patients. J Bras Nefrol 2011;33:436-41. Assim, parece razoável que estudos epidemiológicos desta natureza no Brasil devem incluir hipertensos e diabéticos em faixas etárias mais baixas se o nosso intuito for identificar indivíduos que ainda possam se beneficiar de medidas para retardar a progressão da DRC.

Concluindo, para uma abordagem correta da DRC em termos de políticas públicas de saúde, precisamos avançar mais no conhecimento da dimensão da DRC no Brasil. Este estudo realizado com a população idosa do município de Tubarão - SC traz sua contribuição, mas carecemos de mais estudos similares abrangendo populações de outras regiões e outros grupos, além dos idosos, com elevado risco para DRC, como os hipertensos e diabéticos. Na verdade, um real dimensionamento do problema em nosso país só será alcançado empregando estratégias de estudos populacionais à semelhança do que ocorre em países desenvolvidos.6Vart P, Gansevoort RT, Coresh J, Reijneveld SA, Bültmann U. Socioeconomic measures and CKD in the United States and The Netherlands. Clin J Am Soc Nephrol 2013;8:1685-93. DOI: http://dx.doi.org/10.2215/CJN.12521212
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Referências

  • 1
    Dutra MC, Uliano EJM, Machado DFGDP, Martins T, Schuelter-Trevisol F, Trevisol DJ. Avaliação da função renal em idosos: um estudo de base populacional. J Bras Nefrol 2014;36:297-303.
  • 2
    US Renal Data System. USRDS 2013 Annual Data Report: Atlas of Chronic Kidney Disease and End-Stage Renal Disease in the United States. Bethesda, MD: National Institutes of Health, National Institute of Diabetes and Digestive and Kidney Diseases; 2013.
  • 3
    Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) CKD Work Group. KDIGO 2012 Clinical Practice Guideline for the Evaluation and Management of Chronic Kidney Disease. Kidney Int Suppl 2013;3:1-150.
  • 4
    Yang W, Xie D, Anderson AH, Joffe MM, Greene T, Teal V, et al.; CRIC Study Investigators. Association of kidney disease outcomes with risk factors for CKD: findings from the Chronic Renal Insufficiency Cohort (CRIC) study. Am J Kidney Dis 2014;63:236-43. DOI: http://dx.doi.org/10.1053/j.ajkd.2013.08.028
    » http://dx.doi.org/10.1053/j.ajkd.2013.08.028
  • 5
    Matos JP, Almeida JR, Guinsburg A, Marelli C, Barra AB, Vasconcellos MS, et al. Assessment of a five-year survival on hemodialysis in Brazil: a cohort of 3,082 incident patients. J Bras Nefrol 2011;33:436-41.
  • 6
    Vart P, Gansevoort RT, Coresh J, Reijneveld SA, Bültmann U. Socioeconomic measures and CKD in the United States and The Netherlands. Clin J Am Soc Nephrol 2013;8:1685-93. DOI: http://dx.doi.org/10.2215/CJN.12521212
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2014
  • Aceito
    05 Ago 2014
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