Acessibilidade / Reportar erro

Um Chamado à Prevenção

Falar em prevenção de doença renal não é uma novidade, mas após cerca de uma década de esforços para chamar a atenção para o tema, será que os médicos recém-formados e os novos nefrologistas têm a dimensão certa do problema?

A partir de 2002, quando foi proposta a "nova" definição da doença renal crônica (DRC),1National Kidney Foundation. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification, and stratification. Am J Kidney Dis 2002;39:S1-266. baseada sobretudo na alteração da taxa de filtração glomerular estimada a partir da creatinina sanguínea e na perda de proteína (albumina nos diabéticos), ficou evidente que a doença era mais frequente do que se pensava, a ponto de ser considerada "a nova epidemia do século XXI". Desde então, os diversos estudos realizados, em diferentes partes do mundo, têm revelado que cerca de 11% da população adulta tem DRC em um dos seus cinco estágios.2Coresh J, Astor BC, Greene T, Eknoyan G, Levey AS. Prevalence of chronic kidney disease and decreased kidney function in the adult US population: Third National Health and Nutrition Examination Survey. Am J Kidney Dis 2003;41:1-12. PMID: 12500213 DOI: http://dx.doi.org/10.1053/ajkd.2003.50007
http://dx.doi.org/10.1053/ajkd.2003.5000...

No Brasil, ainda não foi feito um estudo de abrangência nacional que nos permita afirmar, com certeza, qual é a prevalência da DRC. Mas, considerando que a hipertensão arterial (HA), o diabetes mellitus (DM) e as glomerulonefrites são as principais doenças que determinam a necessidade de tratamento dialítico e transplante renal em nossos programas de terapia renal substitutiva e que os nossos pacientes apresentam os mesmos fatores de risco (obesidade, hiperlipidemia, tabagismo, entre outros) observados nos pacientes dos países nos quais a doença foi estudada, é possível supor que cerca de 13 milhões de brasileiros adultos têm DRC em um de seus estágios.

Um grande desafio no manejo da DRC é o fato de que a mesma progride durante anos completamente assintomática. Infelizmente, ainda hoje, o que se observa é o enorme número de pacientes apresentando-se aos programas de urgência já com necessidade de tratamento dialítico, sem nunca ter tido a oportunidade de acompanhamento especializado com o nefrologista. Assim, atende-se à necessidade de fazer terapia de substituição renal e manter a vida do paciente, mas não há tempo para um planejamento e preparo adequados do paciente dos pontos de vista físico e mental, para lidar com uma doença sem possibilidade de recuperação.

Talvez os menos avisados poderiam perguntar: "Se o paciente com DRC tem a oportunidade de diálise e/ou transplante mesmo quando os seus rins ‘param’ de funcionar, não seria mais importante concentrar os esforços no tratamento das doenças de base (por exemplo, HA e DM) e se preocupar menos com a prevenção da DRC?". Nesse contexto, é importante esclarecer aos médicos "menos experientes" que ter a DRC é o maior fator de risco para as doenças cardiovasculares, notadamente a doença cardíaca isquêmica e predispõe à mortalidade precoce. Mesmo no estágio 4 da DRC, o paciente apresenta duas vezes mais chance de óbito do que de iniciar o tratamento dialítico.3Keith DS, Nichols GA, Gullion CM, Brown JB, Smith DH. Longitudinal follow-up and outcomes among a population with chronic kidney disease in a large managed care organization. Arch Intern Med 2004;164:659-63. DOI: http://dx.doi.org/10.1001/archinte.164.6.659
http://dx.doi.org/10.1001/archinte.164.6...
Assim, fica evidente para os nefrologistas que a melhor solução diante da DRC é a prevenção pelo diagnóstico precoce de DRC e preservação da função renal. Para tanto, as recomendações para diagnóstico dirigem-se a todos, mas, sobretudo, aos indivíduos que apresentam maior risco (ou seja, diabéticos, hipertensos, parentes de pacientes com DRC, idosos, pacientes com doença cardiovascular). Este grupo de pessoas deve ser submetido periodicamente a uma triagem para verificar a possibilidade de ter a DRC através de exames simples como o de urina (com destaque para a pesquisa de proteinúria e, no caso do diabetes, a dosagem de "microalbuminúria") e da determinação de creatinina sérica, num primeiro momento.4Bastos MG, Andriolo A, Kirsztajn GM. World Kidney Day 2011 albuminuria and creatinine: simple, inexpensive and essential tests in the course of chronic kidney disease. J Bras Nefrol 2011;33:1-7. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-28002011000100001
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-28002011...

A Sociedade Brasileira de Nefrologia lançou, em novembro de 2003, a campanha "Previna-se", uma campanha contínua (durante todo o ano), que tem por objetivo principal alertar a população, assim como profissionais de saúde e autoridades, para a necessidade do diagnóstico precoce das doenças dos rins e orientar medidas preventivas, não só para a DRC como para doenças a ela muito vinculadas, já mencionadas.5Mastroianni-Kirsztajn G, Bastos MG, Burdmann EA. Strategies of the Brazilian chronic kidney disease prevention campaign (2003-2009). Nephron Clin Pract 2011;117:c259-65. PMID: 20861650 DOI: http://dx.doi.org/10.1159/000320741
http://dx.doi.org/10.1159/000320741...
A partir de 2006, foi criado o "World Kidney Day", que concentra em um dia, em diferentes países, esforços para chamar a atenção para a DRC. Esta iniciativa internacional compartilha as metas de prevenção aqui citadas e faz um alerta importante e pontual, com um tema diferente a cada ano. Neste ano, lembra-se que a saúde deve estar ao alcance de todos, com ênfase no cuidado com os rins ("Kidney Health for All").

Considerando-se os aspectos aqui expostos, preocupa-nos o quanto estudantes de Medicina, jovens médicos e profissionais de saúde em geral realmente sabem que a DRC é tão grave e comum, que pacientes com DRC têm um risco muito elevado de desenvolver doença cardiovascular e morrer por causa disso e que as doenças cardiovasculares têm a DRC como complicação relevante. Preocupa-nos o quanto se ensina que exames laboratoriais simples, disponíveis em todo o território nacional e de baixíssimo custo, como a análise de urina e a creatinina sérica, podem fazer o diagnóstico precoce e quanto os médicos que não são nefrologistas usam tais exames no seu dia-a-dia ou nos check-ups. Preocupa-nos se os médicos sabem interpretar uma estimativa da taxa de filtração glomerular quando a veem em laudos de laboratório. Preocupa-nos que ainda se questione o custo-benefício de prevenir uma doença com tanto impacto sobre o prognóstico, quando o custo da terapia de substituição renal é proibitivo em muitos países, ainda mais quando se considera o comprometimento inquestionável da qualidade e abreviamento de vida pela DRC.

Parece-nos que é hora de fazer um novo chamado de alerta para a importância de prevenir, que vem sendo encoberta pela premência e dificuldades de tratar aqueles para os quais só resta a terapia de substituição dos rins.

Referências

  • 1
    National Kidney Foundation. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification, and stratification. Am J Kidney Dis 2002;39:S1-266.
  • 2
    Coresh J, Astor BC, Greene T, Eknoyan G, Levey AS. Prevalence of chronic kidney disease and decreased kidney function in the adult US population: Third National Health and Nutrition Examination Survey. Am J Kidney Dis 2003;41:1-12. PMID: 12500213 DOI: http://dx.doi.org/10.1053/ajkd.2003.50007
    » http://dx.doi.org/10.1053/ajkd.2003.50007
  • 3
    Keith DS, Nichols GA, Gullion CM, Brown JB, Smith DH. Longitudinal follow-up and outcomes among a population with chronic kidney disease in a large managed care organization. Arch Intern Med 2004;164:659-63. DOI: http://dx.doi.org/10.1001/archinte.164.6.659
    » http://dx.doi.org/10.1001/archinte.164.6.659
  • 4
    Bastos MG, Andriolo A, Kirsztajn GM. World Kidney Day 2011 albuminuria and creatinine: simple, inexpensive and essential tests in the course of chronic kidney disease. J Bras Nefrol 2011;33:1-7. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-28002011000100001
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0101-28002011000100001
  • 5
    Mastroianni-Kirsztajn G, Bastos MG, Burdmann EA. Strategies of the Brazilian chronic kidney disease prevention campaign (2003-2009). Nephron Clin Pract 2011;117:c259-65. PMID: 20861650 DOI: http://dx.doi.org/10.1159/000320741
    » http://dx.doi.org/10.1159/000320741

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2015
  • Aceito
    17 Jun 2015
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com