Acessibilidade / Reportar erro

Fatores de Risco associados com Isquemia Subendocárdica nos Pacientes em hemodiálise

Eventos cardiovasculares são a principal causa de morbidade e mortalidade entre pacientes com doença renal crônica (DRC). A presença de fatores de risco cardiovasculares, tanto tradicionais como aqueles associados a DRC, desempenham um papel de peso nos resultados adversos observados nesta população. Sabemos que os distúrbios minerais e ósseos (DMO) relacionados à doença renal crônica, tais como hiperfosfatemia, hipercalcemia, deficiência de vitamina D, excesso de análogos de vitamina D, hiperparatireoidismo secundário (HPTS) e baixos níveis de PTH, podem contribuir para doença cardiovascular (DCV).

No artigo publicado nesta edição do Jornal Brasileiro de Nefrologia sob o título "Fatores associados ao risco de isquemia subendocárdica em pacientes em hemodiálise," Silva et al. avaliaram a associação entre a razão de viabilidade subendocárdica (RVSE) e os marcadores de DMO em uma coorte de pacientes em hemodiálise. Os autores relataram que tempo mais prolongado de exposição a HPTS grave está relacionado a risco mais elevado de isquemia subendocárdica não reversível por paratireoidectomia (PTX). Além disso, os autores observaram que valores mais baixos de RVSE apresentaram associação com sexo feminino e pacientes com baixos níveis de 25-hidroxivitamina D.

Embora este estudo tenha suas limitações por conta do delineamento observacional transversal e do tamanho reduzido da amostra, ele agrega informações relevantes sobre a avaliação funcional vascular não-invasiva para disfunções vasculares e o impacto de longo prazo da HPTS sobre o sistema cardiovascular.

A avaliação cardiovascular realizada por imaginologia estrutural e funcional não-invasiva aumentou nossa compreensão sobre as complicações cardiovasculares associadas à DRC, incluindo as calcificações vasculares e valvares cardíacas, cardiomiopatia e rigidez arterial. Várias técnicas estão atualmente disponíveis, tais como tomografia computadorizada cardíaca, radiografia de plano único, ultrassonografia Doppler, ecocardiografia, cintilografia de perfusão miocárdica, tonometria de aplanação e ressonância magnética.11 Karohl C, D'Marco Gascón L, Raggi P. Noninvasive imaging for assessment of calcification in chronic kidney disease. Nat Rev Nephrol 2011;7:567-77. A análise da onda de pulso por tonometria de aplanação na avaliação da função vascular tem demonstrado importantes aplicações na pesquisa da DRC. Esta técnica fornece vários índices vasculares, tais como a velocidade da onda de pulso (VOP), índice de aumento, índice de duração de ejeção e RVSE. A VOP tem sido amplamente utilizada em pacientes com DRC, servindo principalmente de indicador de rigidez arterial. A rigidez arterial provoca um aumento na pós-carga ventricular esquerda que leva a hipertrofia ventricular esquerda e reduz a perfusão coronariana. Vários estudos têm demonstrado uma associação entre calcificação vascular e aumento da rigidez arterial em pacientes com DRC.22 Adragão T, Pires A, Birne R, Curto JD, Lucas C, Gonçalves M, et al. A plain X-ray vascular calcification score is associated with arterial stiffness and mortality in dialysis patients. Nephrol Dial Transplant 2009;24:997-1002. Além disso, a VOP permite a estratificação de risco para mortalidade cardiovascular e por todas as causas na DRC. No entanto, a análise da onda de pulso tem suas limitações, principalmente por ser dependente do operador.

No estudo de Silva et al. a RVSE, também conhecida como índice de Buckberg, foi utilizada para avaliar o impacto de marcadores de DMO em pacientes em hemodiálise. A RVSE é um índice da oferta miocárdica de oxigênio e da demanda calculada através da análise da onda de pulso. Ao contrário da VOP, a RVSE tem sido pouco utilizada na DRC, ainda que pareça ser um interessante marcador substituto para DCV e seja merecedora de investigações mais aprofundadas. Recentemente, Ekart et al.33 Ekart R, Šegula A, Hartman T, Hojs N, Hojs R. Subendocardial Viability Ratio Is Impaired in Highly Proteinuric Chronic Kidney Disease Patients With Low Estimated Glomerular Filtration Rate. Ther Apher Dial 2016;20:281-5. avaliaram um grupo de 90 pacientes não-dialíticos com DRC e 39 controles saudáveis e demonstraram que os pacientes com DRC estágio 4-5 e albuminúria superior a 1000 mg/g tiveram RVSE significativamente mais baixas. Além disso, em uma análise post hoc, 212 pacientes ambulatoriais assintomáticos com DRC estágio 3-4 seguidos por seis meses apresentaram correlação inversa entre RVSE e calcificações vasculares e massa miocárdica. A redução dos valores de RVSE durante o seguimento foi associada a mortalidade cardiovascular.44 Di Micco L, Salvi P, Bellasi A, Sirico ML, Di Iorio B. Subendocardial viability ratio predicts cardiovascular mortality in chronic kidney disease patients. Blood Purif 2013;36:26-8. No estudo de Silva et al., novos avanços foram observados na figura da associação entre redução da RVSE e níveis sub-ótimos de vitamina D e HPTS grave. Al Mheid et al.55 Al Mheid I, Patel R, Murrow J, Morris A, Rahman A, Fike L, et al. Vitamin D status is associated with arterial stiffness and vascular dysfunction in healthy humans. J Am Coll Cardiol 2011;58:186-92. descreveram uma associação entre insuficiência de vitamina D e redução da RVSE em 554 adultos saudáveis. A normalização dos níveis de vitamina D aos seis meses foi associada a elevações da RVSE. No entanto, o impacto do PTH sobre disfunção vascular avaliada por RVSE em pacientes com DRC ainda não fora demonstrado.

O hiperparatireoidismo secundário foi associado a risco aumentado de morbidade e mortalidade cardiovascular. O efeito cardiovascular do PTH é reconhecido, mas a coexistência de vários fatores de confundimento prejudiciais à função vascular em pacientes com DRC torna sua análise uma tarefa complexa. Embora os mecanismos subjacentes que levam à DCV não estejam claramente determinados, evidências indicam que o sistema cardiovascular pode ser alvo do PTH. Foi também demonstrada a expressão de RNAm nos receptores de PTH de células vasculares endoteliais e células musculares lisas. Além disso, acredita-se que o PTH tenha efeitos diretos e indiretos sobre cardiomiócitos, células musculares lisas vasculares das arteríolas miocárdicas e até mesmo fibroblastos que podem contribuir para a hipertrofia cardíaca e fibrose.66 Rostand SG, Drüeke TB. Parathyroid hormone, vitamin D, and cardiovascular disease in chronic renal failure. Kidney Int 1999;56:383-92.

Neves et al.77 Neves KR, Graciolli FG, dos Reis LM, Graciolli RG, Neves CL, Magalhães AO, et al. Vascular calcification: contribution of parathyroid hormone in renal failure. Kidney Int 2007;71:1262-70. demonstraram, ainda, que a administração de PTH induz calcificação aórtica na presença dos níveis séricos normais de cálcio e fósforo em um modelo de ratos paratireoidectomizados com doença renal crônica, sugerindo que o PTH também pode contribuir com a calcificação vascular. Portanto, é plausível afirmar que elevações de longo prazo nos níveis de PTH podem contribuir com a fisiopatologia de doenças cardiovasculares como aterosclerose, rigidez arterial, calcificação vascul com DRC. Contudo, a reversão da disfunção vascular pelo tratamento da HPTS com redução dos níveis de PTH é ainda alvo de discussões. No estudo clínico de Osto et al.,88 Osto E, Fallo F, Pelizzo MR, Maddalozzo A, Sorgato N, Corbetti F, et al. Coronary microvascular dysfunction induced by primary hyperparathyroidism is restored after parathyroidectomy. Circulation 2012;126:1031-9. a disfunção microvascular coronariana foi completamente revertida em pacientes com hiperparatireoidismo primário submetidos a PTX.

Por outro lado, Silva et al. observaram que o tempo com HPTS foi independentemente associado a redução da RVSE e que a mesma não foi revertida após PTX. A ocorrência de dano cardiovascular permanente pode se dever ao longo tempo de exposição a HPTS grave. Além disso, os pacientes do estudo estavam há um longo tempo em tratamento dialítico e sob vários fatores de risco cardiovasculares além dos relacionados aos distúrbios minerais e ósseos. Apesar da disfunção microvascular não ter sido revertida após PTX, uma recente revisão sistemática e meta análise demonstrou uma associação entre PTX e redução do risco de mortalidade cardiovascular e por todas as causas em comparação a tratamento clínico em pacientes com DRC e HPTS.99 Chen L, Wang K, Yu S, Lai L, Zhang X, Yuan J, et al. Long-term mortality after parathyroidectomy among chronic kidney disease patients with secondary hyperparathyroidism: a systematic review and meta-analysis. Ren Fail 2016 May 19:1-9. [Epub ahead of print]. DOI: 10.1080/0886022X.2016.1184924.

Em conclusão, o artigo de Silva et al. é realmente bem-vindo. É importante ressaltar que nossa compreensão das manifestações cardiovasculares da HPTS ainda permanece incompleta. Podem os danos cardiovasculares e a isquemia subendocárdica serem evitados ou tratados em pacientes com DRC e SHPT? Esta e muitas outras questões precisam ser abordadas em estudos futuros. Além disso, devemos nos lembrar que é preciso controlar melhor e mais precocemente os distúrbios minerais e ósseos da DRC de modo a evitar futuras consequências negativas, incluindo a HPTS grave. Da mesma forma, a PTX não pode ser adiada, evitando assim danos permanentes ao sistema cardiovascular causados pela exposição prolongada à HPTS grave.

References

  • 1
    Karohl C, D'Marco Gascón L, Raggi P. Noninvasive imaging for assessment of calcification in chronic kidney disease. Nat Rev Nephrol 2011;7:567-77.
  • 2
    Adragão T, Pires A, Birne R, Curto JD, Lucas C, Gonçalves M, et al. A plain X-ray vascular calcification score is associated with arterial stiffness and mortality in dialysis patients. Nephrol Dial Transplant 2009;24:997-1002.
  • 3
    Ekart R, Šegula A, Hartman T, Hojs N, Hojs R. Subendocardial Viability Ratio Is Impaired in Highly Proteinuric Chronic Kidney Disease Patients With Low Estimated Glomerular Filtration Rate. Ther Apher Dial 2016;20:281-5.
  • 4
    Di Micco L, Salvi P, Bellasi A, Sirico ML, Di Iorio B. Subendocardial viability ratio predicts cardiovascular mortality in chronic kidney disease patients. Blood Purif 2013;36:26-8.
  • 5
    Al Mheid I, Patel R, Murrow J, Morris A, Rahman A, Fike L, et al. Vitamin D status is associated with arterial stiffness and vascular dysfunction in healthy humans. J Am Coll Cardiol 2011;58:186-92.
  • 6
    Rostand SG, Drüeke TB. Parathyroid hormone, vitamin D, and cardiovascular disease in chronic renal failure. Kidney Int 1999;56:383-92.
  • 7
    Neves KR, Graciolli FG, dos Reis LM, Graciolli RG, Neves CL, Magalhães AO, et al. Vascular calcification: contribution of parathyroid hormone in renal failure. Kidney Int 2007;71:1262-70.
  • 8
    Osto E, Fallo F, Pelizzo MR, Maddalozzo A, Sorgato N, Corbetti F, et al. Coronary microvascular dysfunction induced by primary hyperparathyroidism is restored after parathyroidectomy. Circulation 2012;126:1031-9.
  • 9
    Chen L, Wang K, Yu S, Lai L, Zhang X, Yuan J, et al. Long-term mortality after parathyroidectomy among chronic kidney disease patients with secondary hyperparathyroidism: a systematic review and meta-analysis. Ren Fail 2016 May 19:1-9. [Epub ahead of print]. DOI: 10.1080/0886022X.2016.1184924.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2016
  • Aceito
    28 Jul 2016
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com