Acessibilidade / Reportar erro

DRC após IRA: momento para estar alerta

Ao longo da década, a epidemiologia de lesões renais agudas (IRA) vem evoluindo de forma constante, de uma síndrome associada à perfusão renal em pacientes mais jovens até o estágio atual de comprometimento renal comumente desencadeado pela inflamação em idosos. Atualmente, o paciente típico com IRA abriga múltiplas morbidades e reduzida reserva funcional renal conferida por vários e diferentes agravos crônicos, como diabetes, hipertensão, idade avançada e isquemia.11 Cerdá J, Lameire N, Eggers P, Pannu N, Uchino S, Wang H, et al. Epidemiology of acute kidney injury. Clin J Am Soc Nephrol 2008;3:881-6. DOI: http://dx.doi.org/10.2215/CJN.04961107
http://dx.doi.org/10.2215/CJN.04961107...

Já está estabelecido o conhecimento de que o dano renal causado pela IRA pode resultar em perda renal funcional crônica ou aceleração desse processo, se já estiver em curso.22 Coca SG, Singanamala S, Parikh CR. Chronic kidney disease after acute kidney injury: a systematic review and meta-analysis. Kidney Int 2012;81:442-8.,33 Hsu CY, Ordoñez JD, Chertow GM, Fan D, McCulloch CE, Go AS. The risk of acute renal failure in patients with chronic kidney disease. Kidney Int 2008;74:101-7. Por conseguinte, a IRA não deve ser vista mais como uma entidade clínica benigna que traz, com a resolução clínica, a completa restauração das capacidades renais. O fato de que agora muitos sobrevivem a esta doença ainda letal, apesar do atual ambiente de cuidados intensivos de complexas e severas patologias clínicas e cirúrgicas, é certamente um motivo para comemoração. No entanto, devemos lidar com as consequências da injúria renal aguda no desfecho renal a longo prazo naqueles que sobrevivem.

Assim, é mais do que bem-vindo o artigo intitulado "Fatores de risco para a progressão da doença renal crônica após lesão renal aguda" publicado nesta edição da Revista Brasileira de Nefrologia por Pereira et al.44 Pereira BJ, Barreto S, Gentil T, Assis LS, Soeiro EMD, Isac de Castro I, et al. Risk factors for the progression of chronic kidney disease after acute kidney injury. Braz J Nephrol 2017;39:230-1. Os autores avaliaram um banco de dados contendo informações sobre 1200 pacientes tratados em um hospital público em São Paulo, com foco nos sobreviventes de episódios de IRA, avaliando retrospectivamente fatores de risco clínicos associados ao desfecho renal e ao óbito após a alta.

Deve notar-se que, a partir da população original de 1200 pacientes, 993 (83%) foram excluídos, pois se enquadravam nos critérios de exclusão (óbito antes da alta ou DRC estágio 5). A observação de que pacientes internados nas enfermarias de hospitais progridem mais do que aqueles admitidos na UTI deve ser considerada nesse contexto. Consequentemente, apenas pacientes mais saudáveis com formas mais suaves de doença sistêmica podem ter sobrevivido à internação na UTI, e os outros nunca tiveram a oportunidade de sobreviver e progredir para doença renal crônica (DRC). Isso pode constituir um viés de prevalência/incidência (Neyman) que foi devidamente reconhecido pelos próprios autores.

Os autores descreveram que a ventilação mecânica, a necessidade de diálise e choque séptico não apresentaram correlação com a progressão da DRC. No entanto, eles observaram que a progressão foi mais comum em pacientes com sepse, câncer ou obstrução do trato urinário. A observação de que a sepse, mas não o choque séptico, correlaciona-se com a progressão da DRC, pode estar novamente relacionada a uma alta taxa de mortalidade na UTI. Infelizmente, não foi mencionado o impacto da disfunção renal prévia na progressão.

A observação de que a obstrução urinária está relacionada à progressão da DRC é interessante e tem sido relatada tanto em situações clínicas quanto experimentalmente55 Gonçalves RG, Gabrich L, Rosário A Jr, Takiya CM, Ferreira ML, Chiarini LB, et al. The role of purinergic P2X7 receptors in the inflammation and fibrosis of unilateral ureteral obstruction in mice. Kidney Int 2006;70:1599-606. PMID: 16969386 DOI: http://dx.doi.org/10.1038/sj.ki.5001804
http://dx.doi.org/10.1038/sj.ki.5001804...
. A intensa fibrose intersticial causada pela obstrução pode fornecer a ligação fisiopatológica entre a IRA e DRC. De fato, os primeiros sinais de fibrose e deposição de colágeno foram detectados em outros modelos de IRA.66 Bonventre JV, Yang L. Cellular pathophysiology of ischemic acute kidney injury. J Clin Invest 2011;121:4210-21. PMID: 22045571 DOI: http://dx.doi.org/10.1172/JCI45161
http://dx.doi.org/10.1172/JCI45161...
Mais recentemente, resultados de ensaios experimentais apontam para a possibilidade de haver diferentes mecanismos que associem eventos renais crônicos e agudos, como o dano mitocondrial que medeia e amplifica as respostas imunes inatas.77 Szeto HH, Liu S, Soong Y, Seshan SV, Cohen-Gould L, Manichev V, et al. Mitochondria Protection after Acute Ischemia Prevents Prolonged Upregulation of IL-1β and IL-18 and Arrests CKD. J Am Soc Nephrol 2017;28:1437-49. DOI: http://dx.doi.org/10.1681/ASN.2016070761
http://dx.doi.org/10.1681/ASN.2016070761...

Finalmente, Pereira et al. descreveram a mudança entre diferentes estádios de DRC após a alta, o que mostra claramente a necessidade da consulta com nefrologista no seguimento dos sobreviventes de IRA. Esta é uma mensagem muito importante que nos chama a atenção para os cuidados com pacientes com IRA após a própria IRA. Na era dos alertas eletrônicos criados para identificação em tempo real de episódios de IRA, o reconhecimento do impacto de tais episódios no curso da DRC pode ser ainda mais importante. Consequentemente, foi recentemente demonstrado que a IRA diagnosticada por tais alertas eletrônicas pode correlacionar-se com a mortalidade e o desfecho renal.88 Holmes J, Rainer T, Geen J, Roberts G, May K, Wilson N, et al. Acute Kidney Injury in the Era of the AKI E-Alert. Clin J Am Soc Nephrol 2016;11:2123-31. DOI: http://dx.doi.org/10.2215/CJN.05170516
http://dx.doi.org/10.2215/CJN.05170516...

References

  • 1
    Cerdá J, Lameire N, Eggers P, Pannu N, Uchino S, Wang H, et al. Epidemiology of acute kidney injury. Clin J Am Soc Nephrol 2008;3:881-6. DOI: http://dx.doi.org/10.2215/CJN.04961107
    » http://dx.doi.org/10.2215/CJN.04961107
  • 2
    Coca SG, Singanamala S, Parikh CR. Chronic kidney disease after acute kidney injury: a systematic review and meta-analysis. Kidney Int 2012;81:442-8.
  • 3
    Hsu CY, Ordoñez JD, Chertow GM, Fan D, McCulloch CE, Go AS. The risk of acute renal failure in patients with chronic kidney disease. Kidney Int 2008;74:101-7.
  • 4
    Pereira BJ, Barreto S, Gentil T, Assis LS, Soeiro EMD, Isac de Castro I, et al. Risk factors for the progression of chronic kidney disease after acute kidney injury. Braz J Nephrol 2017;39:230-1.
  • 5
    Gonçalves RG, Gabrich L, Rosário A Jr, Takiya CM, Ferreira ML, Chiarini LB, et al. The role of purinergic P2X7 receptors in the inflammation and fibrosis of unilateral ureteral obstruction in mice. Kidney Int 2006;70:1599-606. PMID: 16969386 DOI: http://dx.doi.org/10.1038/sj.ki.5001804
    » http://dx.doi.org/10.1038/sj.ki.5001804
  • 6
    Bonventre JV, Yang L. Cellular pathophysiology of ischemic acute kidney injury. J Clin Invest 2011;121:4210-21. PMID: 22045571 DOI: http://dx.doi.org/10.1172/JCI45161
    » http://dx.doi.org/10.1172/JCI45161
  • 7
    Szeto HH, Liu S, Soong Y, Seshan SV, Cohen-Gould L, Manichev V, et al. Mitochondria Protection after Acute Ischemia Prevents Prolonged Upregulation of IL-1β and IL-18 and Arrests CKD. J Am Soc Nephrol 2017;28:1437-49. DOI: http://dx.doi.org/10.1681/ASN.2016070761
    » http://dx.doi.org/10.1681/ASN.2016070761
  • 8
    Holmes J, Rainer T, Geen J, Roberts G, May K, Wilson N, et al. Acute Kidney Injury in the Era of the AKI E-Alert. Clin J Am Soc Nephrol 2016;11:2123-31. DOI: http://dx.doi.org/10.2215/CJN.05170516
    » http://dx.doi.org/10.2215/CJN.05170516

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2017
  • Aceito
    14 Jun 2017
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com