Acessibilidade / Reportar erro

DMO-DRC no Brasil: a distância entre a realidade e as diretrizes recomendadas

Distúrbios minerais e ósseos são complicações comuns da doença renal crônica (DRC), associadas a redução da qualidade de vida e aumento da morbidade.

Em 2006, o KDIGO alterou a nomenclatura das anomalias do metabolismo mineral de osteodistrofia renal (ODR) para distúrbio mineral e ósseo da doença renal crônica (DMO-DRC). O termo ODR continua a ser utilizado para descrever anomalias da morfologia óssea.11 Moe S, Drueke T, Cunningham J, Goodman W, Martin K, Olgaard K, et al.; Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO). Definition, evaluation, and classification of renal osteodystrophy: a position statement from kidney disease improving global outcomes (KDIGO). Kidney Int 2006;69:1945-53. Uma vez que DMO-DRC é um distúrbio sistêmico, tratamento e prevenção são fundamentais para reduzir o risco de complicações graves, como doenças cardiovasculares (DCV), perda óssea e fratura, inflamação e mortalidade.22 Tentori F, Blayney MJ, Albert JM, Gillespie BW, Kerr PG, Bommer J, et al. Mortality risk for dialysis patients with different levels of serum calcium, phosphorus, and PTH: the Dialysis Outcomes and Practice Patterns Study (DOPPS). Am J Kidney Dis 2008;52:519-30. A DCV ainda é a principal causa de óbito em pacientes urêmicos, enquanto DMO-DRC desempenha consistentemente um papel central no desenvolvimento de calcificações vasculares. Além disso, contribui para o início ou progressão da hipertrofia ventricular esquerda (HVE), em que o fator de crescimento de fibroblasto-23 (FGF23), um hormônio produzido por células ósseas, tem participação de destaque.33 Fujii H, Joki N. Mineral metabolism and cardiovascular disease in CKD. Clin Exp Nephrol 2017;21:S53-S63

O maior desafio no tratamento da DRC é a prevenção da perda óssea e das fraturas, cujo risco de ocorrência em pacientes em hemodiálise é quatro vezes maior do que em controles, baseados na população nos Estados Unidos. Uma possível explicação para o maior risco de fratura é a presença de alterações dos parâmetros bioquímicos e endócrinos, além de toxinas urêmicas, que causam a perda de massa óssea com a deterioração de sua qualidade.44 Iwasaki Y, Kazama JJ, Fukagawa M. Molecular Abnormalities Underlying Bone Fragility in Chronic Kidney Disease.Biomed Res Int. 2017;2017:3485785.

A biópsia óssea não é rotineiramente utilizada na prática clínica, por ser um procedimento invasivo e muitas vezes dispendioso. Além disso, as amostras obtidas exigem processamento especializado, disponível em poucos centros. Nos últimos anos, os biomarcadores séricos, principalmente os níveis plasmáticos de PTH, têm sido utilizados como marcadores da remodelação óssea. Recentemente, o fósforo sérico (P) foi correlacionado com a remodelação óssea e, associado ao PTH, parece ter também um papel de marcador da ODR.55 Gentry J, Webb J, Davenport D, Malluche HH. Serum phosphorus adds to value of serum parathyroid hormone for assessment of bone turnover in renal osteodystrophy. Clin Nephrol 2016;86:9-17. Na impossibilidade de realizar biópsias ósseas, os níveis séricos de PTH, em associação com cálcio (Ca), P e fosfatase alcalina (FA), ajudam a avaliar, diagnosticar e orientar o tratamento da ODR.

As atuais estratégias têm girado em torno do uso do PTH como marcador de remodelação óssea. O tratamento tem como objetivo principal diminuir os níveis de PTH com ativadores dos receptores de vitamina D e ou calcimiméticos.66 Martin KJ, Floege J, Ketteler M. Bone and Mineral Metabolism in Chronic Kidney Disease. In: Johnson RJ, Feehally J, Floege J, eds. Comprehensive Clinical Nephrology. 5th ed. Philadelphia: Saunders; 2014. p. 984-999. Contudo, o controle bem-sucedido da doença óssea depende de vários fatores, como país de origem, características da população em diálise, recursos para prevenção e tratamento do DMO-DRC e acesso a novos medicamentos, entre outros. Portanto, é importante estar ciente desses detalhes a fim de estabelecer estratégias adequadas para o tratamento da doença mineral óssea.

No artigo intitulado “Avaliação da prevalência, perfil bioquímico e medicamentos associados ao distúrbio mineral e ósseo da doença renal crônica em 11 centros de diálise”, os autores analisaram uma amostra de 1.134 pacientes em diálise de diferentes regiões do Estado de Minas Gerais, ilustrando a diversidade populacional e socioeconômica do país. Segundo o Inquérito Brasileiro de Diálise Crônica de 2016, temos mais de 122.000 pacientes em diálise, o que faz da DRC um importante problema de saúde pública. Os nefrologistas normalmente consideram PTH sérico, Ca, P e FA total para orientar o tratamento farmacológico do DMO-DRC, conforme recomendado pelas diretrizes atuais.77 Sprague MS, Bellorin-Font E, Jorgetti V, Carvalho AB, Malluche HH, Ferreira A, et al. Diagnostic Accuracy of Bone Turnover Markers and Bone Histology in Patients with CKD Treated by Dialysis. Am J Kidney Dis 2016;67:559-66. No entanto, o artigo citado acima revela questões importantes:

  1. Os autores dividiram os pacientes em várias faixas de níveis séricos de PTH e confirmaram dados anteriores em que pacientes com níveis extremamente baixos ou altos de PTH apresentaram níveis séricos de Ca e P mais elevados, com maior risco de DCV e fratura;

  2. O PTH estava fora do alvo recomendado em 50,5% dos pacientes estudados, enquanto hiperfosfatemia não controlada foi observada em 35,8% dos pacientes. Esses resultados levaram à conclusão de que, apesar do conhecimento dos perfis bioquímicos e demográficos da população em diálise, é difícil otimizar o tratamento, provavelmente por falta de disponibilidade de alguns medicamentos. Os autores identificaram maior uso de quelantes de fósforo à base de cálcio (55,6%), comparado ao uso de sevelamer (14%), para controle da hiperfosfatemia. E, também observaram um pequeno uso de medicamentos para controle do PTH, como os ativadores dos receptores de vitamina D (0,2%) e calcimimétiicos (3,5%). Outra preocupação era que, mesmo entre os pacientes com PTH sérico abaixo de 150 pg/mL, havia um percentual significativo de pacientes que recebia quelantes de fósforo a base de Ca (44,3%).

  3. A baixa prevalência observada de DCV (11,8%) pode estar subestimada, possivelmente em função da dificuldade de realizar exames complementares;

  4. É difícil comparar os resultados brasileiros com os de outros países. Em muitas nações, o paricalcitol endovenoso foi lançado em 1998 e paricalcitol oral em 2008. O cloridrato de cinacalcete foi aprovado para uso clínico na Europa e nos EUA em 2004 e no Japão em 2008.88 Mizobuchi M, Ogata H, Koiwa F, Kinugasa E, Akizawa T. Research on kidney and mineral metabolism in Japan: past, present, and future. Clin Exp Nephrol 2017;21:4-8. A terapia combinada de cinacalcete com análogos ativos de vitamina D melhora significativamente o manejo do HPTS, assim como diminui a indicação de paratireoidectomias. Entretanto, esses medicamentos começaram a ser distribuídos no Brasil, para pacientes em diálise atendidos na rede pública, apenas em 2018.

O estudo citado acima reflete a realidade do tratamento do DMO-DRC no Brasil e, como os autores mencionaram, é importante que outros estudos semelhantes sejam realizados. Outro ponto relevante é sensibilizar as autoridades e o Governo da necessidade e da importância de se melhorar as políticas de saúde pública em relação ao tratamento do DMO-DRC, através de argumentos fundamentados em epidemiologia, diretrizes, práticas e custos, contribuindo para prevenção de DCV e fratura. Tal abordagem certamente beneficiaria a população em diálise, melhorando sua qualidade de vida e diminuindo a mortalidade.

References

  • 1
    Moe S, Drueke T, Cunningham J, Goodman W, Martin K, Olgaard K, et al.; Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO). Definition, evaluation, and classification of renal osteodystrophy: a position statement from kidney disease improving global outcomes (KDIGO). Kidney Int 2006;69:1945-53.
  • 2
    Tentori F, Blayney MJ, Albert JM, Gillespie BW, Kerr PG, Bommer J, et al. Mortality risk for dialysis patients with different levels of serum calcium, phosphorus, and PTH: the Dialysis Outcomes and Practice Patterns Study (DOPPS). Am J Kidney Dis 2008;52:519-30.
  • 3
    Fujii H, Joki N. Mineral metabolism and cardiovascular disease in CKD. Clin Exp Nephrol 2017;21:S53-S63
  • 4
    Iwasaki Y, Kazama JJ, Fukagawa M. Molecular Abnormalities Underlying Bone Fragility in Chronic Kidney Disease.Biomed Res Int. 2017;2017:3485785.
  • 5
    Gentry J, Webb J, Davenport D, Malluche HH. Serum phosphorus adds to value of serum parathyroid hormone for assessment of bone turnover in renal osteodystrophy. Clin Nephrol 2016;86:9-17.
  • 6
    Martin KJ, Floege J, Ketteler M. Bone and Mineral Metabolism in Chronic Kidney Disease. In: Johnson RJ, Feehally J, Floege J, eds. Comprehensive Clinical Nephrology. 5th ed. Philadelphia: Saunders; 2014. p. 984-999.
  • 7
    Sprague MS, Bellorin-Font E, Jorgetti V, Carvalho AB, Malluche HH, Ferreira A, et al. Diagnostic Accuracy of Bone Turnover Markers and Bone Histology in Patients with CKD Treated by Dialysis. Am J Kidney Dis 2016;67:559-66.
  • 8
    Mizobuchi M, Ogata H, Koiwa F, Kinugasa E, Akizawa T. Research on kidney and mineral metabolism in Japan: past, present, and future. Clin Exp Nephrol 2017;21:4-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2018
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2018
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com