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Infecção oral por Pseudomonas aeruginosa em paciente com doença renal crônica - um relato de caso

RESUMO

Pacientes renais crônicos são mais suscetíveis a complicações e infecções hospitalares, tais como infecções do trato urinário, peritonite, infecções cirúrgicas e bacteremia, muitas vezes causadas por Pseudomonas aeruginosa. O presente relato apresenta o caso de uma menina HIV-positiva com doença renal crônica e lesões orais graves devido a choque séptico por P. aeruginosa. A paciente apresentava lesões necróticas na mucosa oral, mobilidade dentária patológica, perda óssea e osteomielite hematogênica maxilar. A paciente foi submetida a antibioticoterapia sistêmica com base na cultura de triagem e tratamento das lesões ósseas por meio da eliminação do agente causal e restauração das condições de saúde. Este relato de caso é extremamente importante para os profissionais da saúde, uma vez que a cavidade oral pode ser afetada por este patógeno ou servir como local de colonização.

Palavras-chave
Pseudomonas aeruginosa; Choque Séptico; Boca

ABSTRACT

Chronic renal patients are more susceptible to hospital complications and infections such as urinary tract infections, peritonitis, surgery infections, and bacteremia, which are often caused by Pseudomonas aeruginosa. A case of a HIV-positive girl with chronic kidney disease and with serious oral lesions due to P. aeruginosa septic shock is presented. The patient showed necrotic lesions in the oral mucosa, pathological tooth mobility, bone loss, and hematogenous osteomyelitis in the maxilla. The patient was submitted to systemic antibiotic therapy based on screening culture and treatment of bone lesions by eliminating the causal agent and restoring health conditions. This case report is extremely important for health professionals, since the oral cavity can be affected by this pathogen or serve as a colonization site.

Keywords
Pseudomonas aeruginosa; Shock, Septic; Mouth

INTRODUÇÃO

Muitos pacientes pediátricos desenvolvem doença renal crônica (DRC) secundária à anomalias congênitas no sistema urinário.11 Murugan R, Kellum JA. Acute kidney injury: what's the prognosis? Nat Rev Nephrol 2011;7:209-17. Pacientes renais crônicos são mais suscetíveis a complicações hospitalares22 Bohlouli B, Tonelli M, Jackson T, Hemmelgam B, Klarenbach S. Risk of Hospital-Acquired Complications in Patients with Chronic Kidney Disease. Clin J Am Soc Nephrol 2016;11:956-63. e infecções por Pseudomonas aeruginosa tais como infecções do trato urinário, peritonite, infecções cirúrgicas e bacteremia. Bacteremia e sepse resultam em altas taxas de mortalidade, especialmente em pacientes com câncer, DRC, diabetes e distúrbios cardiopulmonares33 Ferreira H, Lala ERP. Pseudomonas aeruginosa: Um alerta aos profissionais de saúde. Rev Panam Infectol 2010;12:44-50..

A Pseudomonas aeruginosa é um bacilo gram-negativo, aeróbio, não-esporulado, não-fermentador de glicose e móvel devido à presença de um flagelo polar.33 Ferreira H, Lala ERP. Pseudomonas aeruginosa: Um alerta aos profissionais de saúde. Rev Panam Infectol 2010;12:44-50.,44 Deshmukh DG, Zade AM, Ingole KV, Mathai JK. State of the globe: non-fermenting gram-negative bacilli challenges and potential solutions. J Glob Infect Dis 2013;5:125-6. É frequentemente associada a infecções em pacientes imunossuprimidos internados em unidades de terapia intensiva (UTI), devido à exposição constante a procedimentos invasivos, como cateteres, sondas, instrumentos e dispositivos de ventilação mecânica.33 Ferreira H, Lala ERP. Pseudomonas aeruginosa: Um alerta aos profissionais de saúde. Rev Panam Infectol 2010;12:44-50.

Esta espécie bacteriana é considerada um agente patológico oportunista, uma vez que raramente está associada à infecção em indivíduos imunocompetentes.33 Ferreira H, Lala ERP. Pseudomonas aeruginosa: Um alerta aos profissionais de saúde. Rev Panam Infectol 2010;12:44-50.,55 Lee J, Zhang L. The hierarchy quorum sensing network in Pseudomonas aeruginosa. Protein Cell 2015;6:26-41. A P. aeruginosa também está associada à osteomielite mandibular por disseminação intraóssea66 Coviello V, Stevens MR. Contemporary concepts in the treatment of chronic osteomyelitis. Oral Maxillofac Surg Clin North Am 2007;19:523-34. e à lesões necróticas da mucosa oral em pacientes imunossuprimidos.77 Barasch A, Gordon S, Geist RY, Geist JR. Necrotizing stomatitis: report of 3 Pseudomonas aeruginosa-positive patients. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 2003;96:136-40.

A cavidade oral pode servir de reservatório para P. aeruginosa e, em pacientes debilitados, idosos e imunocomprometidos, as infecções causadas pelo patógeno representam um importante problema de saúde88 Betancourth M, Arce RM, Botero J, Jaramillo A, Cruz C, Contreras A. Microorganismos inusuales en surcos y bolsas periodontales. Colomb Med 2006;37:6-14.. Assim, o objetivo do presente estudo foi relatar o caso de uma criança com DRC submetida à diálise peritoneal com lesões orais graves causadas por infecção por P. aeruginosa.

RELATO DE CASO

Criança com seis anos de idade, sexo feminino com DRC (rim único, congênita) submetida à diálise peritoneal apresentou febre e lesão sugestiva de eritema linear em toda a gengiva marginal. A paciente relatou dor na região gengival e dificuldade para a ingestão de líquidos e sólidos.

O diagnóstico inicial foi pneumonia com neutropenia febril e hipoalbuminemia. Devido à condição clínica, a paciente foi internada na UTI pediátrica. Após alguns dias de internação, toda a extensão da gengiva marginal e inserida, tanto nos lados vestibular quanto palatino, apresentou coloração branca sugestiva de necrose (Figura 1). Não foi observada cárie dentária.

Figura 1
Primeira semana de internação na UTI (necrose de gengivas marginal e inserida).

Um fragmento da gengiva marginal foi colhido para exame de cultura, na qual a presença de P. aeruginosa foi detectada. Como o patógeno também foi detectado em culturas de sangue e secreção nasal, o caso foi diagnosticado como choque séptico por esta bactéria.

Foi iniciada antibioticoterapia sistêmica (vancomicina, ampicilina-sulbactam, amicacina, piperacilina-tazobactam e polimixina B) e, após um período de internação, foi observada uma eliminação gradual da mucosa gengival necrótica. Algumas regiões acima da gengiva normal remanescente apresentavam um tecido duro que se assemelhava a osso, porém apresentava-se como uma estrutura frágil (Figura 2).

Figura 2
Aspecto da arcada superior após o primeiro ciclo de antibioticoterapia sistêmica (eliminação da necrose gengival).

A paciente apresentava mobilidade dentária patológica e perda óssea, especialmente entre os primeiros molares permanentes e os incisivos tanto na maxila quanto na mandíbula (Figura 3). Houve perda de inserção clínica, mas sem bolsas periodontais (Figura 2).

Figura 3
Radiografia panorâmica mostrando perda óssea, especialmente entre incisivos e molares permanentes.
Figura 4
Aparência após raspagem supragengival, uso de clorexidina 0,12% e segundo ciclo de antibioticoterapia sistêmica.

Foram realizadas sessões de raspagem supragengival e aplicação de clorexidina 0,12% durante a internação na UTI. Após a biópsia do tecido gengival e do tecido duro exposto, foi confirmada presença de hiperplasia gengival inflamatória e o tecido duro foi confirmado como tecido ósseo (Figuras 4 e 5). O tecido ósseo foi submetido à cultura, que também mostrou a presença de P. aeruginosa. Antibioticoterapia sistêmica baseada em levofloxacina foi estabelecida por mais quinze dias.

Figura 5
Alterações ósseas.

As lesões ósseas e alguns dentes decíduos com grande mobilidade foram removidos cirurgicamente, sob profilaxia antibiótica. A antibioticoterapia foi mantida após a cirurgia por sete dias. O material coletado foi enviado para exames de histopatologia e cultura (Figura 6).

Figure 6
Lesão óssea e dentes com grande mobilidade removidos cirurgicamente.

A histopatologia revelou um processo inflamatório crônico em meio a tecido necrótico, obtendo-se o diagnóstico de Osteomielite Crônica. P. aeruginosa não foi detectada no exame de cultura.

Quinze dias mais tarde a paciente apresentou melhora significativa na saúde bucal (Figura 7). Após o período de tratamento de seis meses, foi detectado o vírus da imunodeficiência humana (HIV), embora a paciente tivesse sorologia negativa em exames anteriores.

Figura 7
Aparência 15 dias após a cirurgia.

DISCUSSÃO

Embora a maioria dos casos de osteomielite maxilar sejam secundários à infecções dentárias, osteomielite hematogênica também pode ocorrer, sendo mais comum em pacientes pediátricos66 Coviello V, Stevens MR. Contemporary concepts in the treatment of chronic osteomyelitis. Oral Maxillofac Surg Clin North Am 2007;19:523-34.. Os patógenos mais comumente relacionados à esta condição são Staphylococcus, Peptostreptococcus e P. aeruginosa, entre outros99 Suei Y, Taguchi A, Tanimoto K. Diagnosis and classification of mandibular osteomyelitis. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 2005;100:207-14.. O caso apresentado concorda com essa informação, pois a paciente apresentou osteomielite maxilar devido à disseminação hematogênica de P. aeruginosa.

Pacientes debilitados em UTI ou em uso prolongado de cateter podem desenvolver osteomielite por Pseudomonas.66 Coviello V, Stevens MR. Contemporary concepts in the treatment of chronic osteomyelitis. Oral Maxillofac Surg Clin North Am 2007;19:523-34. As infecções por esta bactéria são frequentes e de grande importância em pacientes infectados pelo HIV, devido à tendência de recidiva e fácil disseminação. O amplo espectro de características clínicas, possíveis complicações graves e suscetibilidade antimicrobiana imprevisível tornam esta uma infecção de difícil tratamento.1010 Manfredi R, Nanetti A, Ferri M, Chiodo F. Pseudomonas spp. complications in patients with HIV disease: An eight-year clinical and microbiological survey. Eur J Epidemiol 2000;16:111-8. Durante o tratamento, a paciente estava provavelmente no período da “janela imunológica”, pois apresentara sorologia negativa em exames anteriores. A infecção por HIV explica a baixa imunidade e o alto grau de destruição óssea maxilar.

Foram encontradas lesões necrotizantes focais na mucosa oral de pacientes HIV positivos, diferentes dos padrões de doença periodontal e associadas à presença da Pseudomonas aeruginosa. Sendo observada a cura das lesões após tratamento com antibioticoterapia sistêmica, com concomitante desaparecimento da Pseudomonas aeruginosa nos exames de cultura posteriores.77 Barasch A, Gordon S, Geist RY, Geist JR. Necrotizing stomatitis: report of 3 Pseudomonas aeruginosa-positive patients. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 2003;96:136-40. O mesmo foi observado no presente caso.

Na maioria das infecções por P. aeruginosa, os sinais e sintomas não são específicos e estão relacionados ao órgão afetado. O patógeno penetra na pele ou mucosa afetada, invade localmente e pode entrar na corrente sanguínea causando septicemia.1111 Dos Santos Moraes F, Antonio AG, Almeida ML, de Almeida Lima Castro R, Vianna R. Pseudomonas aeruginosa in the Early Childhood: A Case Report. Clin Med Case Reps 2008;1:25-8. No presente caso, as bactérias se estabeleceram na cavidade oral, sangue e pulmões.

Por conta da alta morbidade e mortalidade em pacientes imunocomprometidos, Barasch et al.77 Barasch A, Gordon S, Geist RY, Geist JR. Necrotizing stomatitis: report of 3 Pseudomonas aeruginosa-positive patients. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 2003;96:136-40. sugerem a inclusão de infecção por P. aeruginosa no diagnóstico diferencial de lesões necróticas orais na ausência de doença periodontal necrosante, enfatizando a importância da realização de exames de cultura para direcionar a terapia adequada ao patógeno específico. Procedimentos semelhantes foram realizados neste caso, em que lesões necróticas na gengiva marginal e inserida induzidas por P. aeruginosa foram tratadas com antibióticos sistêmicos com base no perfil de susceptibilidade.

Devido às condições sistêmicas da paciente, renal crônica e portadora do vírus HIV, houve um quadro de grande alteração do sistema imunológico, favorecendo a infecção por Pseudomonas aeruginosa. O tratamento antibiótico eliminou o agente causal, restaurando as condições de saúde. Este relato é extremamente importante para os profissionais de saúde, uma vez que a cavidade oral pode ser afetada por este patógeno ou servir de sítio de colonização do mesmo.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2018
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2017
  • Aceito
    06 Nov 2017
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