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Avaliação de variáveis associadas à permeabilidade de fístulas arteriovenosas criadas por um nefrologista para fins de hemodiálise

RESUMO

Introdução:

A fístula arteriovenosa (FAV) é considerada o acesso vascular padrão ouro para hemodiálise crônica, e sua falha prediz taxas mais altas de morbimortalidade.

Objetivos:

1) Avaliar a taxa de sucesso da FAV criada por um nefrologista e 2) identificar variáveis clínicas, laboratoriais e demográficas que influenciam a patência da FAV.

Métodos:

Estudo de coorte retrospectivo de 101 pacientes com doença renal crônica, totalizando 159 FAVs criados por um nefrologista entre junho de 2010 e junho de 2013. Resultados: Das FAVs criadas, 124 (78%) apresentaram patência imediata e 110 (62,9%) apresentaram patência tardia. A hemoglobina (10-12 g/dL) foi a única variável relacionada à patência tardia da FAV (p = 0,05). A pressão arterial elevada no momento da cirurgia foi associada a um menor número de procedimentos por paciente (p = 0,001). A FAV proximal ocorreu com maior frequência em pacientes com dois acessos confeccionados (p = 0,03). A taxa de sucesso da FAV foi semelhante à relatada anteriormente na literatura.

Conclusão:

O nível de hemoglobina no intervalo recomendado tem um impacto favorável na perviedade tardia da FAV e pressão arterial elevada durante a cirurgia no menor número de acessos vasculares por paciente. A alta taxa de sucesso indica que ela pode ser feita por nefrologistas treinados.

Palavras-chave:
Fístula Arteriovenosa; Diálise Renal; Insuficiência Renal Crônica; Grau de Desobstrução Vascular

ABSTRACT

Introduction:

Arteriovenous fistula (AVF) is considered the gold standard vascular access for chronic hemodialysis, and its failure predicts higher morbidity and mortality rates.

Objective:

1) To evaluate the success rate of AVF created by a nephrologist and 2) to identify clinical, laboratory, and demographic variables that influence AVF patency.

Methods:

A retrospective cohort study of 101 patients with chronic kidney disease for a total of 159 AVF created by a nephrologist between June 2010 and June 2013. Results: Of the AVFs created, 124 (78%) displayed immediate patency and 110 (62.9%) displayed late patency. Hemoglobin (10-12 g/dL) was the only variable related to late AVF patency (p = 0.05). An elevated blood pressure at time of surgery was associated with a lower number of procedures per patient (p = 0.001). Proximal AVF occurred more frequently in patients with dual access (p = 0.03). The AVF success rate was similar to those previously reported in the literature.

Conclusion:

Hemoglobin level in the recommended range has a favorable impact on late AVF patency and elevated blood pressure during surgery on the lower number of vascular accesses per patient. The high success rate indicates that it can be placed by trained nephrologists.

Keywords:
Arteriovenous Fistula; Renal Dialysis; Renal Insufficiency, Chronic; Vascular Patency

INTRODUÇÃO

A confecção da fístula arteriovenosa autógena (FAV) no punho, conforme descrito inicialmente em 1966,11 Brescia MJ, Cimino JE, Appel KK, Hurwich BJ. Chronic hemodialysis using venipuncture and a surgically created arteriovenous fistula. N Engl J Med 1966;275:1089-92. continua sendo o acesso vascular de escolha para o tratamento hemodialítico, pois está associada a baixos níveis de complicações e melhor durabilidade a longo prazo.22 Toregeani JF, Kimura CJ, Rocha AST, Volpiani GG, Bortoncello A, Shirasu K, et al. Evaluation of hemodialysis arteriovenous fistula maturation by color-flow Doppler ultrasound. J Vasc Bras 2008;7:203-13. Além disso, a FAV autógena está associada a uma menor taxa de mortalidade nos primeiros 6 meses de hemodiálise, comparada ao uso de cateteres venosos centrais e acesso vascular com prótese.33 Polkinghorne KR, McDonald SP, Atkins RC, Kerr PG. Vascular access and all-cause mortality: a propensity score analysis. J Am Soc Nephrol 2004;15:477-86. Em 2016, no Brasil, a prevalência de pacientes em diálise utilizando cateter venoso central como acesso vascular foi de 20,5%; e 2,2% estavam em uso de prótese, o que significa que 77,3% apresentavam FAV autógena.44 Sesso RC, Lopes AA, Thomé FS, Lugon JR, Martins CT. Brazilian Chronic Dialysis Survey 2016. J Bras Nefrol 2017;39:261-6.

A falência da FAV é um importante problema clínico com altos custo e morbidade no tratamento de pacientes com doença renal crônica (DRC) estágio 5 em hemodiálise.55 Roy-Chaudhury P, Spergel LM, Besarab A, Asif A, Ravani P. Biology of arteriovenous fistula failure. J Nephrol 2007;20:150-63. Os gastos com acesso vascular para hemodiálise são altos; por exemplo, em 2007, nos Estados Unidos, os gastos do Medicare com acesso vascular para diálise foram de cerca de US $ 1,8 bilhão.66 Chang TI, Paik J, Greene T, Desai M, Bech F, Cheung AK, et al. Intradialytic hypotension and vascular access thrombosis. J Am Soc Nephrol 2011;22:1526-33. A falha de acesso vascular para hemodiálise aumenta significativamente as taxas de morbidade e os custos do tratamento,77 Ethier J, Mendelssohn DC, Elder SJ, Hasegawa T, Akizawa T, Akiba T, et al. Vascular access use and outcomes: an international perspective from the Dialysis Outcomes and Practice Patterns Study. Nephrol Dial Transplant 2008;23:3219-26. enquanto a FAV em funcionamento está associada a menores taxas de mortalidade.88 Solid CA, Carlin C. Timing of arteriovenous fistula placement and Medicare costs during dialysis initiation. Am J Nephrol 2012;35:498-508.

Nos Estados Unidos, o acesso vascular é criado principalmente pelo cirurgião vascular, em contraste com outros países, nos quais o nefrologista planeja e confecciona a FAV.99 Mishler R, Yevzlin AS. Outcomes of arteriovenous fistulae created by a U.S. interventional nephrologist. Semin Dial 2010;23:224-8. Por exemplo, na Itália e no Japão, as taxas de confecção de FAV pelo nefrologista são 85% e 25%, respectivamente. Nesses países, o tempo entre a indicação e a criação de acesso vascular é de 5 a 6 dias, muito abaixo dos 40 a 43 dias relatados para Canadá e Reino Unido, países nos quais a FAV é feita por cirurgiões. Como resultado, esse atraso influenciou a proporção de pacientes que iniciaram diálise com FAV.77 Ethier J, Mendelssohn DC, Elder SJ, Hasegawa T, Akizawa T, Akiba T, et al. Vascular access use and outcomes: an international perspective from the Dialysis Outcomes and Practice Patterns Study. Nephrol Dial Transplant 2008;23:3219-26.

Até o momento, nenhuma publicação relatou a experiência da criação de FAV por nefrologistas brasileiros, justificando assim, os estudos que avaliam essa possibilidade como uma estratégia para reduzir o uso de cateteres venosos centrais no início da diálise. Assim, os objetivos deste estudo foram avaliar as taxas de patência imediata e tardia da FAV criada por um nefrologista e identificar as variáveis demográficas, clínicas e laboratoriais associadas à funcionalidade do acesso vascular.

METODOLOGIA

AMOSTRA E CONFIGURAÇÕES

Trata-se de um estudo de coorte retrospectivo envolvendo pacientes da Clínica Pró-Renal - Centro de Nefrologia, em Barbacena, Minas Gerais, Brasil, em hemodiálise crônica que consentiram com a confecção de uma FAV por um nefrologista (A.T.R.), previamente treinado para realizar o procedimento. Como não há currículo formal em nefrologia com relação ao treinamento para a confecção da FAV, um treinamento em Fellowship foi realizado pelo autor (A.T.R.) com um cirurgião vascular durante um período de três meses, quando cerca de 100 fístulas foram feitas.

O período avaliado incluiu o início da criação da FAV pelo nefrologista no período de junho de 2010 a junho de 2013. Os pacientes cuja FAV foi criada por outros profissionais médicos não pertencentes ao serviço não foram incluídos no estudo.

As variáveis avaliadas estavam presentes no momento da confecção da FAV, uma vez que o mesmo paciente pode ter sido submetido a mais de um procedimento. As informações foram transcritas em um banco de dados que foi desenvolvido especificamente para o estudo e foram registrados idade, gênero e diagnóstico de diabetes mellitus (DM). Analisamos também as seguintes variáveis: frequências dos procedimentos agrupados por período de meses, a área anatômica onde o procedimento foi realizado, número total de procedimentos por paciente, presença ou ausência de pressão arterial elevada (PA) (definida como PA > 140/90 mmHg) no momento da cirurgia, níveis de hormônio paratireoidiano intacto (iPTH), fósforo (P) e hemoglobina (Hb) e o produto de cálcio (Ca) × P. Todos os dados laboratoriais foram coletados no mês da confecção do acesso. Os valores de iPTH foram estratificados em três grupos: < 500 pg/dL, 501-1000 pg/dL e > 1000 pg/dL; o produto de Ca × P foi dividido em ≤ 55 e > 55; o nível de P foi dividido em ≤ 5,5 mEq/L e > 5,5 mEq/L; os valores de Hb foram estratificados em ≤ 10 g/dL, 10,1-12,0 g/dL e > 12 g/dL. A taxa de complicações relacionadas ao número total de procedimentos realizados também foi descrita.

As áreas anatômicas dos procedimentos distais foram definidas como aquelas abaixo da dobra do cotovelo com apenas uma anastomose vascular e utilizando as artérias radial ou ulnar, e as veias cefálica ou basílica do antebraço; enquanto aquelas dos procedimentos proximais foram definidas como aquelas na região da dobra do cotovelo com apenas uma anastomose vascular e utilizando a artéria braquial e veias do plexo basílico, cefálico ou braquial.

A patência imediata foi identificada se a FAV apresentasse pulso à palpação e/ou frêmito palpável e/ou sopro audível na veia de drenagem no período pós-operatório imediato e patência tardia se a FAV pudesse ser puncionada e usada para uma sessão de hemodiálise 30-60 dias após o procedimento cirúrgico.

O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC sob protocolo número 831/2010.

ANÁLISE ESTATÍSTICA

A análise dos dados foi realizada utilizando-se o software IBM SPSS Statistics para Macintosh, Versão 21.0 (Armonk, NY: IBM). As variáveis do estudo corresponderam àquelas registradas no banco de dados mencionado acima. Foram calculados a frequência e as médias, desvios-padrão e percentuais indicados para cada variável. As taxas de patência das fístulas com as outras variáveis do estudo foram colocadas em tabelas de contingência linha por coluna ou tabelas de análise de variância (ANOVA). A significância estatística das diferenças obtidas nas comparações foi determinada usando o teste qui-quadrado ou o teste exato de Fisher para tabelas ANOVA. As variáveisdependentes - patência imediata e tardia - foram avaliadas por modelos de regressão logística e ajustadas para PA elevada no momento do procedimento, nível de Hb e número de procedimentos por paciente para obter o odds ratio (OR), intervalo de confiança de 95% (IC 95%) e valor de P. O nível de significância estatística para a análise foi de 5%.

RESULTADOS

Estudamos 101 pacientes (49 homens [48,5%], 52 mulheres [51,5%]; 38 [37,6%] com DM como causa ou comorbidade da DRC) com idade média de 56,3 ± 16,2 anos. Das 159 FAVs, 54 (34%) foram criadas entre junho de 2010 e junho de 2011, 53 (33,3%) entre julho de 2011 e junho de 2012 e 52 (32,7%) entre julho de 2012 e junho de 2013. As FAV foram criadas uma vez em 100 pacientes (62,8%), duas vezes em 38 (23,9%) e três ou mais vezes em 21 (13,2%). O número máximo de FAVs por paciente foi de cinco. PA elevada foi observada em 92 (58,6%) cirurgias. A porção distal foi utilizada em 95 (59,7%) procedimentos. Patências imediata e tardia da FAV ocorreram em 124 (78,0%) e 110 (69,2%) procedimentos, respectivamente.

A Tabela 1 apresenta as variáveis clínicas e laboratoriais durante a confecção da FAV com patência imediata. Como pode ser observado, esta não foi infuenciada pelo gênero, diagnóstico de diabetes, os diferentes períodos de confecção da FAV, o número de procedimentos por paciente, a área anatômica da fístula ou o nível de iPTH e P. Por outro lado, é evidente que a PA elevada, o produto de Ca × P ≤ 55, e os níveis de Hb de 10,1 a 12,0 g/dL tendem a favorecer a patência imediata da FAV.

Tabela 1
Características inerentes à procedimentos de confecção de fistula que mostraram patência imediata ou não

A Tabela 2 mostra as variáveis clínicas e laboratoriais em relação à patência tardia da FAV. Um nível de Hb de 10,1 a 12,0 g/dL foi a única variável que impactou positivamente a patência tardia da FAV.

Tabela 2
Características inerentes ao procedimento de coinfecção da fistula que tiveram patência tardia ou não

As Tabelas 3 e 4 apresentam o OR do modelo de regressão logística ajustado para PA alta no momento da cirurgia, número de procedimentos por paciente (valor de referência igual a um procedimento) e Hb (valor de referência de 10,1 a 12,0 g/dL); as variáveisdependentes foram patência imediata e tardia. Houve uma tendência clara para a PA elevada no momento da confecção da FAV com patência imediata da FAV (Tabela 3) e o impacto positivo dos níveis de Hb de 10,1 a 12,0 g/dL na patência tardia.

Tabela 3
Resultados do modelo de regressão aplicado à variável dependente de patência imediata
Tabela 4
Resultados do modelo de regressão aplicado à variável dependente de patência tardia mantida

Em relação às complicações do procedimento, dois pacientes (1,25%) apresentaram pseudoaneurisma roto, três FAV foram associadas à síndrome do roubo do acesso vascular (1,88%) e um paciente (0,62%) apresentou infecção com boa resposta ao tratamento com antibióticos de curto espectro.

DISCUSSÃO

Embora nosso estudo tenha sido retrospectivo e realizado em um único centro, o que limita a generalização de seus resultados, sua importância decorre de ser o primeiro relato de experiência com FAVs criadas por um nefrologista no Brasil. Os dados brasileiros sobre terapia de substituição renal indicam um número crescente de pacientes com insuficiência renal funcional em necessidade de diálise (mais que o dobro da última década) e que uma proporção significativa desses pacientes inicia o tratamento por acesso vascular temporário44 Sesso RC, Lopes AA, Thomé FS, Lugon JR, Martins CT. Brazilian Chronic Dialysis Survey 2016. J Bras Nefrol 2017;39:261-6.. Assim, nossos resultados no cenário brasileiro de diálise são encorajadores, pois apontam para a possibilidade de os nefrologistas se capacitarem para confeccionar a FAV.

Há evidências publicadas de que a experiência do médico que confecciona a FAV tem um impacto positivo em sua patência. Por exemplo, Fassiadis et al. observaram associação entre a experiência do cirurgião que criou as fístulas radiocefálicas e o sucesso do procedimento1010 Fassiadis N, Morsy M, Siva M, Marsh JE, Makanjuola AD, Chemla ES. Does the surgeon's experience impact on radiocephalic fistula patency rates? Semin Dial 2007;20:455-7.. Em nosso estudo, após dividir a construção de fístulas em três períodos consecutivos, descobrimos que a taxa de sucesso da FAV foi igual nos três períodos e não foi associada à experiência cirúrgica do nefrologista.

A pressão arterial é um aspecto interessante durante a criação da FAV. Na clínica de diálise, não é incomum observar perda da FAV devido a episódios hipotensivos. Uma análise secundária do estudo HEMO66 Chang TI, Paik J, Greene T, Desai M, Bech F, Cheung AK, et al. Intradialytic hypotension and vascular access thrombosis. J Am Soc Nephrol 2011;22:1526-33. demonstrou, pela primeira vez, uma associação entre hipotensão pré, intra e pós-dialítica e perda da FAV. Em nossos pacientes, a PA elevada (> 140/90 mmHg) apresentou um efeito protetor na patência imediata da FAV, com uma menor necessidade de novos procedimentos por paciente, mas isso não se correlacionou com a patência tardia. Conforme descrito por Gandhi et al., a PA elevada não se associou a complicações e se apresentou como uma questão segura para o paciente submetido a procedimento de acesso vascular1111 Gandhi BV, Patel TB, Costanzo EJ, Masud A, Mehandru S, Salman L. Management of hypertension in patients during percutaneous dialysis access interventions. J Vasc Access 2017;18:363-5.. Não analisamos especificamente o nível da PA, mas tabulamos apenas se o paciente era hipertenso ou não no momento da cirurgia, como dados qualitativos e não para análise quantitativa. No entanto, nossa opinião é que pacientes hipertensos assintomáticos não devem ser tratados. Em estudos futuros, pretendemos analisar qual nível de PA é mais favorável na promoção de melhor patência de acesso.

A não uniformidade da distribuição do gênero nos estudos publicados limita a avaliação de possíveis associações entre gênero e patência da FAV. Embora Wang et al. (2008)1212 Wang W, Murphy B, Yilmaz S, Tonelli M, Macrae J, Manns BJ. Comorbidities do not influence primary fistula success in incident hemodialysis patients: a prospective study. Clin J Am Soc Nephrol 2008;3:78-84. tenham observado que pacientes do sexo feminino apresentaram maior insucesso da patência das fístulas braquiocefálicas, a taxa de sucesso da FAV foi igual para os gêneros, resultado semelhante ao nosso.

A associação entre idade e patência da FAV permanece controversa, com estudos a favor99 Mishler R, Yevzlin AS. Outcomes of arteriovenous fistulae created by a U.S. interventional nephrologist. Semin Dial 2010;23:224-8. e contra1212 Wang W, Murphy B, Yilmaz S, Tonelli M, Macrae J, Manns BJ. Comorbidities do not influence primary fistula success in incident hemodialysis patients: a prospective study. Clin J Am Soc Nephrol 2008;3:78-84., embora pacientes idosos realizem hemodiálise com menor frequência1313 Allon M, Ornt DB, Schwab SJ, Rasmussen C, Delmez JA, Greene T, et al. Factors associated with the prevalence of arteriovenous fistulas in hemodialysis patients in the HEMO study. Hemodialysis (HEMO) Study Group. Kidney Int 2000;58:2178-85.. Entre nossos pacientes, apenas 27% eram idosos, o que não permite inferir o impacto da idade na patência da FAV.

Diabetes mellitus é reconhecidamente um fator de risco para doença endotelial e, portanto, potencialmente favorece a taxa de falha da FAV. No entanto, de acordo com os achados de Kazemzadeh et al. (2008)1414 Kazemzadeh GH, Modaghegh MHS, Ravari H, Daliri M, Hoseini L, Nateghi M. Primary patency rate of native AV fistula: long term follow up. Int J Clin Exp Med 2012;5:173-8., não observamos impacto negativo do DM na patência da FAV em nossos pacientes.

As diretrizes sobre o acesso vascular do Kidney Disease Outcomes Quality Initiative (KDOQI) em pacientes com DRC em tratamento dialítico1515 National Kidney Foundation. 2006 Updates Clinical Practice Guidelines and Recommendations. New York: National Kidney Foundation; 2006. recomendam a colocação de FAV distal nas extremidades superiores para aumentar a possibilidade de criação de novas fístulas, se necessário. Em nosso estudo, a maioria das FAVs foram confeccionadas distalmente (58,6%), enquanto aquelas confeccionadas proximalmente foram associadas à necessidade de mais de um procedimento.

Os níveis de iPTH e P, assim como o produto de Ca × P, estão associados a alterações vasculares como calcificação1616 Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) CKD-MBD Work Group. KDIGO clinical practice guideline for the diagnosis, evaluation, prevention, and treatment of Chronic Kidney Disease-Mineral and Bone Disorder (CKD-MBD). Kidney Int Suppl 2009:S1-130., aterosclerose1717 Canziani MEF, Moysés RMA. Vascular calcification in CKD. J Bras Nefrol 2011;33:26-30. e hiperplasia miointimal1818 Song GJ, Fiaschi-Taesch N, Bisello A. Endogenous parathyroid hormone-related protein regulates the expression of PTH type 1 receptor and proliferation of vascular smooth muscle cells. Mol Endocrinol 2009;23:1681-90. isoladamente ou em combinação, podendo impactar negativamente na patência da FAV. Em nossos pacientes, na confecção da FAV, os valores de PTH, P e Ca×P foram encontrados dentro dos limites clínicos recomendados na maioria dos casos, e não influenciaram o resultado da patência da FAV.

Estudos recentes realizados em pacientes com DRC não dependente de diálise mostraram um impacto geralmente negativo da correção dos níveis de Hb à normalidade na mortalidade cardiovascular1919 Palmer SC, Navaneethan SD, Craig JC, Johnson DW, Tonelli M, Garg AX, et al. Meta-analysis: erythropoiesis-stimulating agents in patients with chronic kidney disease. Ann Intern Med 2010;153:23-33.,2020 Besarab A, Bolton WK, Browne JK, Egrie JC, Nissenson AR, Okamoto DM, et al. The effects of normal as compared with low hematocrit values in patients with cardiac disease who are receiving hemodialysis and epoetin. N Engl J Med 1998;339:584-90.. Por outro lado, menos estudos correlacionaram a patência da FAV e o nível de Hb, mas um relatou que os pacientes com níveis de Hb de 10,1 a 12,0 g/dL tiveram as taxas de patência mais altas2121 Gheith OA, Kamal MM. Risk factors of vascular access failure in patients on hemodialysis. Iran J Kidney Dis 2008;2:201-7.. Em nosso estudo, embora os registros de valores de Hb estivessem ausentes em aproximadamente 20% dos pacientes no momento da confecção do acesso vascular, a OR da patência tardia da FAV também foi maior se o nível de Hb foi 10,1-12 g/dL, enquanto valores <10,0 g/dL e > 12 g/dL afetaram adversamente o sucesso do acesso venoso.

Como mencionado anteriormente, no Brasil, a incidência e prevalência de pacientes que utilizam o acesso venoso central temporário para hemodiálise são inaceitavelmente altas44 Sesso RC, Lopes AA, Thomé FS, Lugon JR, Martins CT. Brazilian Chronic Dialysis Survey 2016. J Bras Nefrol 2017;39:261-6.. Existem várias razões para explicar essa infeliz observação: 1) encaminhamento tardio de pacientes com DRC avançada ao nefrologista; 2) financiamento inadequado da FAV; e 3) na maioria dos programas de terapia de substituição renal, a FAV é confeccionada por cirurgiões vasculares, que têm pouco tempo longe de suas práticas para criar FAVs em vista do crescente número de novos pacientes com indicação de hemodiálise. Assim, é importante avaliar se os nefrologistas podem ser capacitados para confeccionar FAVs para seus pacientes. As experiências relatadas em outros países sugerem que isso é possível. Por exemplo, Garcia-Trío et al. não encontraram diferença nas taxas de patência de FAV colocadas por nefrologistas e cirurgiões e relataram uma taxa de falha primária de 21,8%2222 García-Trío G, Alonso M, Saavedra J, Cigarrán S, Lamas JM. Integral management of vascular access by nephrologist. Three years work outcome. Nefrologia 2007;27:335-9.. Em nosso estudo, 78,0% das FAVs apresentavam critérios de patência imediata, muito semelhantes a esses dados. Além disso, 69,2% dos nossos pacientes apresentavam FAVs com patência tardia, ou seja, fístulas adequadas para punção venosa, percentual semelhante ao observado em outros estudos 2323 Ferring M, Henderson J, Wilmink T. Accuracy of early postoperative clinical and ultrasound examination of arteriovenous fistulae to predict dialysis use. J Vasc Access 2014;15:291-7.,2424 Al-Jaishi AA, Oliver MJ, Thomas SM, Lok CE, Zhang JC, Garg AX, et al. Patency rates of the arteriovenous fistula for hemodialysis: a systematic review and meta-analysis. Am J Kidney Dis 2014;63:464-78.. Esses achados são de grande importância, pois indicam uma nova possibilidade na abordagem das FAVs, pois os nefrologistas podem preparar e criar a FAV para seus pacientes e, assim, encurtar o tempo de confecção do acesso venoso, comparado ao longo tempo do procedimento quando realizado por cirurgiões77 Ethier J, Mendelssohn DC, Elder SJ, Hasegawa T, Akizawa T, Akiba T, et al. Vascular access use and outcomes: an international perspective from the Dialysis Outcomes and Practice Patterns Study. Nephrol Dial Transplant 2008;23:3219-26.. Além disso, pode se tornar uma estratégia importante para formalizar um currículo de treinamento no âmbito da nefrologia intervencionista, a fim de aumentar este excelente campo de atuação ainda não disponível para os nefrologistas brasileiros.

Finalmente, é importante enfatizar os baixos índices de complicações relacionadas às FAVs em nossos pacientes. A porcentagem de complicações observadas está de acordo com dados publicados2525 Padberg FT Jr, Calligaro KD, Sidawy AN. Complications of arteriovenous hemodialysis access: recognition and management. J Vasc Surg 2008;48:55S-80S.. Nenhuma complicação grave precoce ou tardia, que poderia causar consequências ou danos permanentes aos pacientes, foi observada. Isso reflete a importância de uma boa técnica cirúrgica e da experiência do profissional na colocação segura da FAV, evitando complicações e obtendo bons resultados finais.

Em conclusão, este estudo retrospectivo sobre a confecção de FAV por um nefrologista brasileiro indicou uma taxa de sucesso de patência tardia semelhante à de nefrologistas e cirurgiões em outros países. Além disso, a PA elevada (> 140/90 mmHg) é importante para a patência imediata do acesso venoso, e os níveis de Hb de 10,1 a 12,0 g/dL são recomendados para garantir a patência tardia da FAV.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2018
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2017
  • Aceito
    17 Maio 2018
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