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Qualidade de vida e saúde mental em pacientes em hemodiálise: um desafio para práticas multiprofissionais

A Doença Renal Crônica (DRC) poderia representar a problemática da atualidade nas áreas da saúde: se por um lado os avanços terapêuticos permitem a manutenção e o prolongamento da vida, por outro não garantem necessariamente melhora qualitativa. Embora sejam evidentes as conquistas e os progressivos avanços no tratamento de pessoas com doença renal, diversos estudos reforçam a prevalência de neuropsicopatologias associadas ao tratamento da DRC - como depressão, transtornos de ansiedade, comprometimento de funções cognitivas, fadiga, entre outros11 Yeh CY, Chen CK, Hsu HJ, Wu IW, Sun CY, Chou CC, et al. Prescription of psychotropic drugs in patients with chronic renal failure on hemodialysis. Ren Fail 2014;36:1545-9. -, todas facilmente reconhecidas nas queixas e dificuldades adaptativas relatadas pelos pacientes e por seus familiares ao longo do enfrentamento da doença. Diante disso, faz-se importante considerar que o processo de adoecimento provoca mudanças significativas que demandam adaptação de quem o vivencia, podendo influenciar o modo como a pessoa percebe e qualifica sua vida.

O World Health Organization Quality of Life Group conceitua o termo Qualidade de Vida (QV) como: "A percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e do sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, suas expectativas, seus padrões e suas preocupações".22 The World Health Organization Quality of Life Assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization. Soc Sci Med 1995;41:1403-9. Como a percepção de uma pessoa sobre a própria rotina é individual, a QV é subjetiva e multidimensional, pois considera aspectos físicos, emocionais, sociais, padrões culturais e familiares, dentre outros. Em estudo brasileiro33 Oliveira APB, Schmidt DB, Amatneeks TM, Santos JC, Cavallet LH, Michel RB. Quality of life in hemodialysis patients and the relationship with mortality, hospitalizations and poor treatment adherence. J Bras Nefrol 2016;38:411-20. sobre a QV com 286 pessoas em hemodiálise, o escore médio foi de 60,53 (± 14,10), escores menores do que os encontrados em estudos dos EUA (63,7) e da Europa (62,7). Os resultados permitem a reflexão acerca dos fatores mais percebidos como impactados pela doença e pelo tratamento, possibilitando o planejamento de terapêuticas que abarquem aspectos subjetivos deles, para melhorar a qualidade de vida.

A depressão se refere ao quadro psiquiátrico mais frequentemente descrito em pacientes com Doença Renal Crônica, com taxa de prevalência de 20% a 30% em pacientes em hemodiálise. Estágios avançados da DRC estão associados à alta prevalência de alterações psicológicas e psiquiátricas previamente não diagnosticadas e à pior qualidade de vida. A depressão de pacientes em hemodiálise está relacionada à alta morbidade e mortalidade, redução na adesão ao tratamento e piora do estado nutricional.11 Yeh CY, Chen CK, Hsu HJ, Wu IW, Sun CY, Chou CC, et al. Prescription of psychotropic drugs in patients with chronic renal failure on hemodialysis. Ren Fail 2014;36:1545-9. Apesar de muito frequente em pacientes com DRC, a depressão é subdiagnosticada, e seu manejo é um desafio, visto que as queixas somáticas associadas à DRC mimetizam sintomas depressivos (como fadiga, anorexia, alterações de peso, distúrbios de sono, náuseas e dor).11 Yeh CY, Chen CK, Hsu HJ, Wu IW, Sun CY, Chou CC, et al. Prescription of psychotropic drugs in patients with chronic renal failure on hemodialysis. Ren Fail 2014;36:1545-9.

Somado a isso, convém considerar ainda a adesão limitada aos tratamentos psiquiátricos por esses pacientes, pois frequentemente se queixam de inúmeros tratamentos paralelos e da polifarmácia. A dificuldade de o paciente aderir às consultas fora do local e horário de diálise também corrobora para que os tratamentos com foco na saúde mental fiquem em segundo plano, demandando dos profissionais de saúde um esforço interdisciplinar que abarque a complexidade do paciente e de seu tratamento. É nesse contexto que terapêuticas multiprofissionais, especialmente não farmacológicas, consolidam-se como práticas importantes para a abordagem da saúde mental em pacientes com doença renal, fazendo da musicoterapia uma das abordagens possíveis ao paciente com depressão, que podem se beneficiar das intervenções durante o período do tratamento.

O artigo de Hagemann e demais autores,44 Hagemann PMS, Martin LC, Neme CMB. The effect of music therapy on hemodialysis patients' quality of life and depression symptoms. J Bras Nefrol 2018 Sep 13. pii: S0101-28002018005032101. [Epub ahead of print] intitulado "O efeito da musicoterapia na qualidade de vida e nos sintomas de depressão de pacientes em hemodiálise", evidencia a musicoterapia como opção efetiva no tratamento e prevenção de sintomas depressivos e na melhora da QV de pacientes em hemodiálise. No estudo, 23 pacientes foram avaliados antes e depois de oito sessões de 75 minutos de musicoterapia durante a sessão de hemodiálise. A avaliação contemplou um questionário de qualidade de vida (KDQOL-SF) e um instrumento de presença de sintomas depressivos (Beck Depression Inventory - BDI-II), e os resultados comparados das avaliações indicam que os participantes tiveram melhora estatisticamente significativa tanto em dimensões genéricas de QV quanto em dimensões específicas da DRC: capacidade funcional (p = 0,011), dor (p = 0,036), estado geral de saúde (p = 0,01), vitalidade (p = 0,004), saúde mental (p = 0,012), lista de sintomas e problemas (p = 0,01) e saúde global (p = 0,01). Na avaliação dos sintomas de depressão, os pacientes apresentaram redução significativa dos sintomas de depressão (p < 0,001).

O estudo corrobora a pesquisa de Pivatto et al.,55 Pivatto FB, Silva LR, Simões PN. Canta canta, minha gente: um estudo de caso sobre a musicoterapia com pacientes portadores de insuficiência renal crônica em hemodiálise. Rev InCantare 2015;6:52-72. que avaliaram o impacto da musicoterapia nos pacientes em hemodiálise, constatando que houve diminuição de 75% no registro de intercorrências durante as sessões em que aconteceram as atividades musicoterápicas quando comparadas às sessões sem a intervenção. Os pacientes ainda relataram que a percepção da passagem do tempo foi compreendida como acelerada em 79% dos pacientes e houve prevalência de sentimentos positivos durante as sessões de HD compostas pelas intervenções da musicoterapia.

Deve-se ressaltar que a musicoterapia tem se inserido em diversas áreas do contexto da saúde, e na hemodiálise está percorrendo um caminho de consolidação como uma prática de promoção de qualidade de vida e estimulação do envolvimento ativo dos pacientes.44 Hagemann PMS, Martin LC, Neme CMB. The effect of music therapy on hemodialysis patients' quality of life and depression symptoms. J Bras Nefrol 2018 Sep 13. pii: S0101-28002018005032101. [Epub ahead of print] Trata-se de uma prática de cuidado que contribui para o sentimento de acolhimento, pertencimento e ampliação de possibilidade de enfrentamento.

De maneira geral, as pesquisas sobre qualidade de vida nos auxiliam a compreender quais aspectos estão envolvidos e impactados em cada condição de saúde, e o estudo em questão permite a consideração de que a interdisciplinaridade é um caminho possível para abordar a complexidade da doença renal crônica, constituindo a importância de práticas que abordem a depressão e promovam a qualidade de vida de modo eficaz, integrada à rotina de atendimento ao paciente.

References

  • 1
    Yeh CY, Chen CK, Hsu HJ, Wu IW, Sun CY, Chou CC, et al. Prescription of psychotropic drugs in patients with chronic renal failure on hemodialysis. Ren Fail 2014;36:1545-9.
  • 2
    The World Health Organization Quality of Life Assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization. Soc Sci Med 1995;41:1403-9.
  • 3
    Oliveira APB, Schmidt DB, Amatneeks TM, Santos JC, Cavallet LH, Michel RB. Quality of life in hemodialysis patients and the relationship with mortality, hospitalizations and poor treatment adherence. J Bras Nefrol 2016;38:411-20.
  • 4
    Hagemann PMS, Martin LC, Neme CMB. The effect of music therapy on hemodialysis patients' quality of life and depression symptoms. J Bras Nefrol 2018 Sep 13. pii: S0101-28002018005032101. [Epub ahead of print]
  • 5
    Pivatto FB, Silva LR, Simões PN. Canta canta, minha gente: um estudo de caso sobre a musicoterapia com pacientes portadores de insuficiência renal crônica em hemodiálise. Rev InCantare 2015;6:52-72.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2018
  • Aceito
    22 Nov 2018
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