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Trauma renal de alto grau devido a lesão contusa em crianças: será que todas necessitam intervenção?

RESUMO

Introdução:

O objetivo deste estudo foi analisar a apresentação e tratamento de grande trauma renal em crianças.

Método:

Foi realizado um estudo retrospectivo incluindo dados coletados dos pacientes que foram internados na cirurgia pediátrica com lesão renal de grau importante (grau 3 ou mais) de janeiro de 2015 a agosto de 2018. Coletamos dados a respeito de demografia, parâmetros clínicos, manejo, tempo de internação e resultado final.

Resultados:

Das 13 crianças (9 homens e 4 mulheres) com faixa etária de 2-12 anos (média de 8 anos), a queda auto-relatada foi o modo de lesão mais comum seguido de acidente de trânsito. A maioria (10/13, 75%) apresentou lesão renal direita. Oito crianças tiveram uma lesão grau IV, uma apresentou uma lesão grau V e quatro crianças apresentaram lesão grau III. A duração da internação hospitalar variou de 3 a 28 (média de 11,7) dias. Três crianças necessitaram de transfusão de sangue. Uma criança necessitou de aspiração guiada por imagem duas vezes e duas inserções de dreno pigtail exigidas para coleções perinefréticas. Todas as 13 crianças melhoraram sem re-internação ou necessidade de qualquer outra intervenção cirúrgica.

Conclusão:

Crianças com trauma renal de alto grau devido a lesão contusa podem ser manejadas com sucesso sem intervenção cirúrgica, e intervenção mínima pode ser necessária apenas em situações selecionadas.

Palavras-chave:
Ferimentos não Penetrantes; Acidentes de Trânsito; Rim; Pediatria; Resultado do Tratamento; Tratamento Conservador

ABSTRACT

Introduction:

The aim of this study was to analyze the presentation and management of major grade renal trauma in children.

Method:

A retrospective study was performed including data collected from the patients who were admitted in Pediatric surgery with major grade renal injury (grade 3 and more) from January 2015 to August 2018. Demography, clinical parameters, management, duration of hospital stay and final outcome were noted.

Results:

Out of 13 children (9 males and 4 females), with age range 2-12 years (mean of 8 years), reported self-fall was the commonest mode of injury followed by road traffic accident. The majority (10/13, 75%) had a right renal injury. Eight children had a grade IV injury, one had a grade V injury, and four children had grade III injury. Duration of hospital stay varied from 3 to 28 (mean of 11.7) days. Three children required blood transfusion. One child required image guided aspiration twice and two required pigtail insertion for perinephric collection. All the 13 children improved without readmission or need for any other surgical intervention.

Conclusion:

Children with major grade renal trauma due to blunt injury can be successfully managed without surgical intervention and minimal intervention may only be needed in select situations.

Keywords:
Wounds, Nonpenetrating; Accidents, Traffic; Kidney; Pediatrics; Treatment Outcome; Conservative Treatment

INTRODUÇÃO

A lesão abdominal contusa em crianças geralmente envolve órgãos sólidos, como fígado e baço. Os rins são menos comumente lesados, estima-se que estejam envolvidos em cerca de 20% das crianças com lesão abdominal contusa11 Fernández-Ibieta M. Renal Trauma in Pediatrics: A Current Review. Urology 2018;113:171-8.. O manejo ideal da lesão renal tem sido objeto de debate há muito tempo. O manejo cirúrgico para lesão renal de alto grau não demonstrou aumentar a recuperação e taxas paradoxalmente mais altas de nefrectomia são registradas na literatura. O manejo conservador é o padrão atual de tratamento adotado nas lesões viscerais abdominais e sólidas do fígado e do baço. Assim, há uma mudança geral com relação ao manejo não-cirúrgico da lesão renal, semelhante ao resultado bem-sucedido observado no manejo das lesões do fígado e do baço22 Fraser JD, Aguayo P, Ostlie DJ, St Peter SD. Review of the evidence on the management of blunt renal trauma in pediatric patients. Pediatr Surg Int 2009;25:125-32..

A maioria das lesões de baixo grau do rim são eminentemente responsivas à observação sem intervenção. Entretanto, ainda precisamos investigar se o mesmo modo conservador pode ser extrapolado para as lesões de alto grau, que podem estar associadas a um estado crítico. Este estudo foi planejado para analisar os desfechos da lesão renal contusa de alto grau em crianças.

METODOLOGIA

Uma revisão retrospectiva de prontuários foi realizada em nosso departamento (um hospital universitário de atendimento terciário), para identificar os dados das crianças admitidas com trauma renal de alto grau, de janeiro de 2015 a agosto de 2018. Resultados relevantes incluindo modo de lesão, parâmetros clínicos, achados de imagem, parâmetros laboratoriais, intervenção e desfecho foram anotados (Tabela 1). A classificação da lesão renal foi relatada de acordo com a Escala de Pontuação de Lesões da Associação Americana para a Cirurgia do Trauma (AAST)33 Moore EE, Shackford SR, Pachter HL, McAninch JW, Browner BD, Champion HR, et al. Organ injury scaling: spleen, liver, and kidney. J Trauma 1989;29:1664-6.. A permanência hospitalar incluiu observação com monitoramento rigoroso dos sinais vitais e medicamentos relevantes, como analgésicos e antibióticos endovenosos. Após a alta, as crianças foram acompanhadas em intervalos de 2 a 4 meses com exames de imagem e ambulatoriais.

Tabela 1
Dados das crianças com trauma renal de alto grau

RESULTADOS

Um total de 13 crianças foi internado com lesão renal de alto grau (grau 3 e acima) durante o período do estudo, dos quais 9 eram meninos e 4 eram meninas, com idade variando de 2 a 12 anos. O modo mais comum de lesão foi queda em 7 crianças e acidente de trânsito em 6 crianças. Lesões de órgãos associados foram observadas em 4 de 12 crianças, das quais 3 tiveram lesões no baço (Figura 1) e uma delas sofreu uma lesão no fígado. Dez crianças tiveram lesão renal do lado direito e três tiveram lesão renal do lado esquerdo. Todos apresentavam história de trauma com dor abdominal seguida de vômito e hematúria. Em nosso estudo, a maioria foi de lesão de grau 4 em 8 casos, seguida por 4 crianças com lesão de grau 3 (Figura 2), e uma lesão de grau 5 (Figura 3). A média de permanência hospitalar foi de 11,7 dias (variação de 3 a 28 dias), 6 crianças apresentaram picos febris persistentes durante o período de internação, dos quais 3 necessitaram de intervenções e o restante melhorou espontaneamente. Transfusão de sangue foi realizada em 3 crianças devido à queda da hemoglobina, que se estabilizou após a transfusão inicial. No geral, apenas 3 das 13 crianças com lesão renal de alto grau necessitaram de intervenções, a saber, aspiração guiada por ultrassonografia em um e inserção de dreno pigtail em duas crianças. O aspirado resultante foi de urina em todas as 3 crianças. Todas as crianças se recuperaram bem, sem a necessidade de novas intervenções ou procedimentos. As crianças foram atendidas no ambulatório em intervalos regulares de 3-4 meses por um período de pelo menos 1 ano após o trauma, após o qual o acompanhamento continuou anualmente.

Figura 1
Lesão esplênica combinada com lesão renal esquerda grau 4.

Figura 2
Lesão renal direita isolada (Grau-3).

Figura 3
Lesão renal direita (Grau 5 - parênquima renal destruído com hematoma contido).

DISCUSSÃO

Crianças estão sob maior risco de trauma renal devido às diferenças anatômicas exclusivas em comparação aos adultos. Em crianças, certas características anatômicas as tornam mais expostas e vulneráveis a lesões, rins maiores em relação ao tamanho do corpo da criança, rins posicionados mais abaixo no abdômen e menos protegidos por causa de menos gordura peri-renal, musculatura da parede abdominal mais fraca, e uma caixa torácica menos calcificada. Além disso, a cápsula renal e a fáscia de Gerota são menos desenvolvidas que nos adultos, criando um potencial maior de laceração parenquimal, sangramento não confinado e extravasamento urinário. Mecanismos de lesão renal contusa incluem acidentes com veículos motorizados/pedestres (60%), quedas (22,5%), lesões esportivas (10%), agressão (3,5%) e outras causas (4%)44 Coran AG. Genitourinary Tract Trauma. In: Coran AG, Adzick NS, Krumnell TM, Laberge JM, Shamberger R, Caldamone A, eds. Pediatric Surgery. 7th ed. Philadelphia: Elsevier; 2012. p. 311-25..

Em contraste com os adultos, a hematúria em crianças é um sinal pouco confiável na determinação da necessidade de rastrear lesões renais. Em alguns estudos, não há evidência de hematúria macroscópica ou microscópica em até 70% das crianças com lesão renal de grau 2 ou superior. Como as características clínicas podem não ser uma indicação confiável da gravidade da lesão visceral, um protocolo de imagem por ultrassonografia e tomografia computadorizada com contraste deve ser seguido para evitar atraso no diagnóstico de lesão renal55 Buckley JC, McAninch JW. Pediatric renal injuries: management guidelines from a 25-year experience. J Urol 2004;172:687-90..

A maioria das lesões renais isoladas pode ser classificada como lesões relativamente pequenas. A mortalidade associada a um trauma renal isolado é rara, e é mais frequentemente atribuída aos efeitos combinados de um grande trauma multissistêmico. O objetivo final do manejo da lesão renal é maximizar o parênquima renal funcional e minimizar a morbidade do paciente. Os avanços no estadiamento radiográfico na avaliação da gravidade da lesão renal ajudam a prognosticar e planejar com precisão as estratégias de manejo.11 Fernández-Ibieta M. Renal Trauma in Pediatrics: A Current Review. Urology 2018;113:171-8.,22 Fraser JD, Aguayo P, Ostlie DJ, St Peter SD. Review of the evidence on the management of blunt renal trauma in pediatric patients. Pediatr Surg Int 2009;25:125-32.

As lesões renais são classificadas em uma escala de I a V, variando de menor (grau I) até mais complexa (grau V) de acordo com o AAST. Tradicionalmente, as lesões grau I a grau III foram tratadas com sucesso de forma conservadora, enquanto as lesões grau V são submetidas à exploração e reparo cirúrgico. Para pacientes com lesão renal grau IV, o papel e o momento da intervenção cirúrgica, endourológica e radiográfica são menos estabelecidos e permanecem controversos.66 Shoobridge JJ, Corcoran NM, Martin KA, Koukounaras J, Royce PL, Bultitude MF. Contemporary management of renal trauma. Rev Urol 2011;13:65-72. No entanto, dados de estudos recentes sugerem tratamento conservador, mesmo para o trauma renal contuso pediátrico de alto grau. As taxas de manejo bem-sucedidas variam de 40 a 84%.77 Fitzgerald CL, Tran P, Burnell J, Broghammer JA, Santucci R. Instituting a conservative management protocol for pediatric blunt renal trauma: evaluation of a prospectively maintained patient registry. J Urol 2011;185:1058-64. Quando o traumatismo contuso é acompanhado por extravasamento urinário significativo, intervenções como drenagem percutânea, aspiração guiada e implante de stent interno podem ser necessárias para lidar com as complicações causadas pelo extravasamento de urina. Pelo contrário, a maioria das explorações cirúrgicas de acordo com o manejo contemporâneo de trauma renal de alto grau resultou em nefrectomia. Quando possível, o manejo conservador em casos semelhantes resultaria em aumento das taxas de resgate e subsequente preservação renal.88 Aguayo P, Fraser JD, Sharp S, Holcomb GW 3rd, Ostlie DJ, St Peter SD. Nonoperative management of blunt renal injury: a need for further study. J Pediatr Surg 2010;45:1311-4.

No presente estudo, a maioria foi de lesões renais grau 4, com queda como o modo comum de lesão. Todas as crianças estavam hemodinamicamente estáveis. Excluindo-se três crianças que foram submetidas a intervenção na forma de inserção de drenos pigtail e aspiração percutânea para aumento progressivo do urinoma perinéfrico e febre alta, nenhum requereu intervenção cirúrgica importante. Além disso, todos eles estavam indo bem no acompanhamento após o trauma.

As consequências a longo prazo não foram abordadas em nosso estudo, devido ao acompanhamento contínuo dessas crianças. Tem sido proposto que o início da hipertensão e as funções renais alteradas são consequências de traumas renais anteriores de alto grau.99 Keller MS, Eric Coln C, Garza JJ, Sartorelli KH, Christine Green M, Weber TR. Functional outcome of nonoperatively managed renal injuries in children. J Trauma 2004;57:108-10.,1010 El-Sherbiny MT, Aboul-Ghar ME, Hafez AT, Hammad AA, Bazeed MA. Late renal functional and morphological evaluation after non-operative treatment of high-grade renal injuries in children. BJU Int 2004;93:1053-6.

Embora o número de pacientes neste estudo fosse pequeno, o estudo ganhou significância devido à incidência incomum de trauma renal de grau importante em crianças.

CONCLUSÃO

Avanços na imagem, melhorias na monitorização hemodinâmica, sistemas validados de pontuação de lesão renal e detalhes precisos sobre os mecanismos de lesão permitem estratégias bem-sucedidas de manejo conservador para a preservação renal. O tratamento não-cirúrgico pode ser recomendado com segurança em crianças com trauma renal de alto grau, desde que não haja hemorragia contínua e haja estabilidade hemodinâmica. A intervenção seletiva na forma de drenagem percutânea pode ser necessária em uma minoria de pacientes, para ajudar a acelerar a resolução completa do vazamento de urina quando o traumatismo contuso for acompanhado de extravasamento urinário significativo.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2018
  • Aceito
    14 Out 2018
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